sábado, 28 de outubro de 2006

Escrito por em 28.10.06 com 0 comentários

Fórmula 1 (VI)

E hoje é o dia da última parte do post sobre a Fórmula 1!

2000-2009
Atualizado em 25 de fevereiro de 2010


A década de 80 foi dominada pela McLaren, que, entre 1984 e 1991, ganhou sete títulos, perdendo somente o de 1987 para a Williams. Que por sua vez foi o time dominante na década de 90, com um carro invencível em 1992 e 1993, e ganhando o título também em 1996 e 1997. A partir de 2000, foi a vez da Ferrari dominar a Fórmula 1, graças, principalmente, a um cidadão de nome Michael Schumacher.

Rubens BarrichelloO último título da equipe vermelha de Maranello tinha sido em 1979, com o sul-africano Jody Scheckter. Depois disso, bons pilotos e engenheiros se revezaram no time, mas nenhum deles conseguiu levantar o caneco. Disposta a reverter este quadro, em 1996 a Ferrari contratou Schumacher, então o atual bicampeão e já considerado o melhor piloto em atividade, e decidiu não medir esforços para dar a ele mais um título. Junto com Schumacher, foram para a Ferrari o diretor Jean Todt, o estrategista Ross Brawn e o projetista Rory Byrne, todos dentre os melhores em suas funções. Toda esta estrutura levou quatro anos para chegar ao ponto certo: em 2000, a Ferrari voltaria a ganhar um campeonato.

Os maiores rivais do alemão foram os carros da McLaren, pilotados pelo então bicampeão, o finlandês Mika Häkkinen, e pelo escocês David Coulthard. Tivesse a equipe se concentrado em apenas um deles, talvez tivesse chegado ao título, mas um piloto acabou tirando muitos pontos do outro, e as sete vitórias da McLaren foram quatro para Häkkinen e três para Coulthard. Schumacher, por outro lado, fez uma temporada quase impecável, subindo ao lugar mais alto do pódio nove vezes, o que lhe garantiu seu tricampeonato 19 pontos a frente de Häkkinen, mesmo tendo abandonado quatro provas. Para o lugar de Irvine, que deixou a equipe após entender que teria sido atrapalhado em 1999 para não ser campeão antes de Schumacher, a Ferrari contratou o brasileiro Rubens Barrichello, que se tornou o quinto brasileiro a vencer uma corrida, ganhando de forma espetacular o GP da Alemanha, onde largou da última posição. Barrichello ainda consegui quatro segundos lugares, quatro terceiros lugares, e três quartos lugares, abandonando as outras quatro provas. Um outro brasileiro, Luciano Burti, fez sua estréia em 2000, correndo o GP da Áustria pela equipe Jaguar curiosamente no lugar de Irvine, que estava contundido. Burti ainda correu as quatro primeiras provas de 2001 pela mesma Jaguar, se transferindo depois para a nova equipe Prost, surgida após o tricampeão Alain Prost comprar o que restava da Ligier, onde correu mais dez provas. Seus melhores resultados foram dois oitavos lugares, nos GPs da Austrália e do Canadá.

Em relação ao ano anterior, o calendário de 2000 ganhou uma prova a mais, para um total de 17: Austrália em Melbourne, Brasil em Interlagos, San Marino em Ímola, Inglaterra em Silverstone, Espanha em Montmeló, Europa em Nürburgring, Mônaco em Monte Carlo, Canadá em Montreal, França em Magny-Cours, Áustria em Spielberg, Alemanha em Hockenheim, Hungria em Hungaroring, Bélgica em Spa-Francorchamps, Itália em Monza, Estados Unidos em Indianápolis, Japão em Suzuka e Malásia em Sepang. A nova corrida, o GP dos Estados Unidos, não era as 500 Milhas de Indianápolis, como nos primórdios da Fórmula 1, mas sim uma corrida totalmente nova, em um circuito misto construído dentro do oval, que aproveitava uma curva e uma reta deste.

Este calendário, pela primeira vez na história da categoria, foi o mesmo utilizado no ano seguinte, com a única mudança sendo a data do GP da Malásia. Assim como o calendário, o domínio da Ferrari também continuou o mesmo - aliás, até se intensificou. Schumacher mais uma vez venceu nove provas, mas as demais foram divididas entre Häkkinen e Coulthard, com duas cada, e os dois pilotos da Williams, impulsionada por um poderoso motor BMW, o colombiano Juan Pablo Montoya, que venceu o GP da Itália, e o alemão Ralf Schumacher, irmão de Michael, que venceu outras três provas. Schumacher conseguiu seu quarto título com uma vantagem de 58 pontos sobre Coulthard. Barrichello terminou o campeonato na terceira colocação, chegando em segundo lugar cinco vezes, e em terceiro mais cinco. E mais um brasileiro fez sua estréia em 2001, Enrique Bernoldi, que correu este ano e o seguinte pela Arrows. A precariedade da equipe fez com que ele abandonasse a maioria das provas, e tivesse como melhor resulatado o oitavo lugar no GP da Alemanha de 2001.

A temporada de 2002 foi o maior banho da história da Fórmula 1. Schumacher venceu 11 das 17 provas, e Barrichello ganhou mais quatro - as duas provas restantes ficaram uma com Ralf e uma com Coulthard. O alemão se igualou ao argentino Juan Manuel Fangio como pentacampeão da categoria, com quase o dobro dos pontos do brasileiro, que terminou em segundo lugar. Schumacher ainda garantiu o título com seis corridas de vantagem, o que, aliado ao imenso domínio da Ferrari, fez com que a audiência das provas a partir da metade do campeonato caísse, preocupando a FIA, já que o esporte se tornava cada vez mais caro, e precisava de um bom retorno. Apesar de um domínio tão amplo, a Ferrari se utilizou de uma manobra nada desportiva, ao ordenar pelo rádio que Barrichello deixasse Schumacher passar na última volta do GP da Áustria, para que o alemão ganhasse a corrida. A manobra foi criticada no mundo inteiro, rendeu uma multa de um milhão de dólares para a Ferrari, e gerou uma mudança no regulamento, segundo a qual toda a comunicação entre os boxes e os carros deveria ser aberta para quem quisesse ouvir, e ordens para que os pilotos trocassem de posição de propósito seriam proibidas. O calendário foi mais uma vez o mesmo, e mais um brasileiro estreou, Felipe Massa, que, correndo pela Sauber, conseguiu um quinto e dois sextos lugares.

Com um domínio tão amplo em 2002, era de se esperar que em 2003 a Ferrari desse um novo passeio. Curiosamente, a temporada foi a mais disputada em anos, com oito pilotos diferentes ganhando corridas, e pelo menos três deles chegando à última prova com chances matemáticas de ganhar o campeonato: Schumacher, Montoya, e o finlandês Kimi Räikkönen, que substituíra seu compatriota Häkkinen na McLaren no ano anterior. Schumacher conseguiu seu sexto título apenas dois pontos à frente de Räikkönen, graças a um oitavo lugar na última prova, o GP do Japão, vencido por Rubens Barrichello, que também venceu o GP da Inglaterra, e terminou o campeonato na quarta posição. A temporada de 2003 também teve como destaques uma alteração na pontuação, onde os oito primeiros receberiam pontos ao invés dos seis primeiros como até então; a vitória do espanhol Fernando Alonso, o piloto mais jovem a vencer na categoria, no GP da Hungria, correndo pela equipe Renault, que comprara a Benetton no ano anterior; e a redução do calendário para 16 provas, após a retirada do GP da Bélgica. 2003 também foi o ano de estréia de mais dois pilotos brasileiros: Antônio Pizzonia, que correu as oito primeiras provas pela Jaguar, quatro provas de 2004 e quatro provas de 2005 pela Williams, tendo como melhor resultado quatro sétimos lugares; e Cristiano da Matta, que correu as temporadas de 2003 e 2004 pela Toyota, e teve como melhor resultado três sextos lugares.

Após uma temporada emocionante e disputada, 2004 foi mais uma vez um passeio da Ferrari. Schumacher venceu 12 das 13 primeiras provas - a exceção foi o GP de Mônaco, onde conseguiu bater dentro do túnel, em bandeira amarela e atrás do safety car - e mais o GP do Japão, conseguindo um impressionante sétimo título sem grandes complicações. Barrichello terminou em segundo, ganhando duas provas. Massa, que após um ano como piloto de testes da Ferrari voltou a correr pela Sauber, teve como melhor resultado um quarto lugar no GP da Bélgica. As outras três corridas foram vencidas uma por Räikkönen, uma por Montoya, e uma pelo italiano Jarno Trulli, da Renault. McLaren e Williams foram verdadeiras decepções, começando a temporada com carros fracos e pouco competitivos, e abrindo espaço para a Renault e para a BAR, pilotada pelo inglês Jenson Button e pelo japonês Takuma Sato, e que terminou em segundo no mundial de construtores. O calendário viu a saída do GP da Áustria para a volta do da Bélgica, e aumentou para 18 provas com a estréia de duas corridas na Ásia, o GP do Bahrein em Sakhir e o GP da China em Xangai.

Como sempre acontece quando uma equipe é muito superior às demais, a FIA providenciou mudanças no regulamento para 2005 - atrasadas para alguns, muito radicais para outros. Pra começar, cada motor deveria ser usado em duas corridas seguidas, com o piloto que trocasse de motor sendo penalizado com a perda de 10 posições no grid de largada. Além disso, se tornou proibido trocar pneus durante a corrida, a não ser que o pneu furasse ou estivesse deteriorado a ponto de representar risco à integridade do piloto. Graças a esta nova regra, as equipes que usavam pneus Michelin obtiveram uma vantagem sobre a Ferrari, que usava pneus Bridgestone, pois os Michelin tinham uma menor perda de performance conforme se deterioravam. A regra também acabou causando um episódio bizarro: durante os treinos para o GP dos Estados Unidos, a Michelin chegou à conclusão de que os pneus que levara não ofereciam segurança aos pilotos, podendo causar acidentes na curva de maior velocidade do circuito. A Michelin tentou uma autorização da FIA para trazer novos pneus da França, mas o rígido regulamento determinava que os pneus usados na corrida deveriam ser os mesmos usados no treino. Bernie Ecclestone ainda tentou uma solução política, dizendo que faria uma chicane para diminuir a velocidade na curva se todas as equipes concordassem, mas a Ferrari foi contra, alegando que teve problemas por "usar pneus inadequados" em várias corridas até ali, e nem por isso tinha pedido modificações nas pistas. Sem saída, as equipes que usavam Michelin deram a volta de apresentação, e depois foram para os boxes, abandonando voluntariamente a corrida, que ficou com apenas os seis carros que usavam Bridgestone, das equipes Ferrari, Jordan e Minardi. Se os pneus Michelin realmente ofereciam riscos aos pilotos ou se a empresa cometeu um equívoco e ficou com medo de perder na pista, jamais saberemos, mas o fato é que o GP dos EUA até correu o risco de sair do calendário por insatisfação do público - o que, felizmente, não aconteceu.

Nas primeiras corridas do ano, o carro de melhor desempenho era o Renault, que venceu a primeira corrida com o italiano Giancarlo Fisichella, e as três seguintes com Alonso, que venceria um total de sete. A partir do GP da Espanha, a McLaren deu um salto de qualidade, vencendo outras sete corridas com Räikkönen e mais três com Montoya, que havia trocado a Williams pela equipe de Ron Dennis. O desempenho ruim de Räikkönen nas primeiras provas, porém, acabou favorecendo Alonso, que se tornou o primeiro espanhol campeão da Fórmula 1, e também o campeão mais jovem da história, quebrando o recorde que era de Emerson Fittipaldi. Schumacher, brigando com os pneus, ainda conseguiu terminar o campeonato na terceira posição, mas 50 pontos atrás de Räikkönen. O alemão, aliás, foi o vencedor do bizarro GP dos EUA. Barrichello também não fez uma boa temporada, mas conseguiu dois segundos lugares e dois terceiros, terminando na oitava posição. Massa conseguiu mais um quarto lugar, desta vez no GP do Canadá. E o calendário chegou a 19 provas, com a inclusão do GP da Turquia, em Istanbul. Um fato curioso de 2005 foi a estréia da equipe Red Bull, de propriedade do dono da fábrica de bebidas energéticas de mesmo nome, que comprou a Jaguar.

Para 2006, o calendário voltou a 18 provas, com a impossibilidade de se realizar o GP da Bélgica devido a obras no circuito. As equipes voltariam a poder trocar pneus durante a corrida, mas a regra dos motores continuava. A categoria se via cada vez mais dominada por montadoras de automóveis, com a BMW comprando a Sauber e a Honda adquirindo a BAR. Curiosamente, a Red Bull passou a controlar duas equipes, ao comprar a Minardi e renomeá-la Toro Rosso ("touro vermelho" em italiano, o mesmo significado de Red Bull em inglês). O mesmo, de certa forma, ocorreu com a Honda, que bancou a Super Aguri, uma equipe 100% japonesa sob o comando do ex-piloto Aguri Suzuki, mas que pouco conseguiu além das últimas posições. Após seis anos na Ferrari, Barrichello decidiu aceitar um convite do ex-piloto brasileiro de Fórmula Indy Gil de Ferran, atual diretor esportivo da Honda, e se transferiu para a equipe japonesa, para ser companheiro de Jenson Button. Isto permitiu que Massa assumisse seu lugar na Ferrari, ao lado de Schumacher.

No início, todos esperavam uma nova disputa entre Räikkönen e Alonso, mas a McLaren começou o ano mais uma vez com um carro muito ruim, permitindo que o espanhol abrisse uma boa vantagem. Para o bem do campeonato, a Ferrari renasceu das cinzas, e Schumacher também começou a vencer corridas, tendo uma possibilidade real de chegar ao seu oitavo título. Após o GP da Itália, o alemão anunciou que iria encerrar a carreira ao final da temporada, e que desejava fazer isso como octocampeão. Um estouro de motor na penúltima prova acabou dificultando as coisas para Schumacher, e Alonso se sagrou bicampeão no GP do Brasil. Cada um dos pilotos teve sete vitórias, mas Alonso fez uma temporada impecável, com mais sete segundos lugares, dois quintos lugares, e abandonando nas outras duas provas. Massa se tornou o sexto brasileiro a vencer uma corrida na Fórmula 1, ganhando o GP da Turquia e repetindo a dose no GP do Brasil, que não era vencido por um brasileiro desde Ayrton Senna em 1993. As outras duas corridas foram vencidas uma por Fisichella e uma por Button, na primeira vitória da Honda como equipe na Fórmula 1. Barrichello conseguiu dois quartos lugares, terminando o campeonato uma posição atrás de seu companheiro de equipe.

Com o fim da temporada de 2006, chegou ao fim a era Schumacher. O alemão se despediu da Fórmula 1 como dono de 24 recordes, sendo os mais expressivos o maior número de títulos (7 contra 5 de Fangio), o maior número de vitórias (91 contra 51 de Prost) e o maior número de pole positions (68 contra 65 de Senna). Tivesse corrido mais uma temporada, Schumacher ainda quebraria o recorde de maior número de GPs disputados (250 contra 256 de Patrese). Tirando os recordes que envolvem idade ("piloto mais jovem a vencer um GP", por exemplo), Schumacher só não quebrou outros dois recordes: o de maior número de pole positions em uma mesma temporada (14 de Mansell em 1992) e o de maior número de pole positions consecutivas (8 de Senna em 1988/1989). Ironicamente, na corrida em que Schumacher se despediu das pistas, ele teve um recorde seu quebrado, o de piloto mais jovem a se tornar bicampeão, que ele tinha estabelecido em 1996, e hoje pertence a Alonso.

Além de Schumacher, quem se despediu da categoria foram os motores Cosworth, que já foram os preferidos, mas não interessaram a nenhuma das equipes para 2007. Os patrocínios das fabricantes de cigarros, os pioneiros da Fórmula 1, também ficaram de fora devido a rígidas leis anti-tabagistas da Europa e Américas, sendo substituídos por bancos e empresas de telecomunicações. A Michelin também decidiu pedir as contas, deixando a Bridgestone como única fornecedora de pneus para a categoria. Finalmente, Montoya, que já não rendia o esperado, decidiu trocar a Fórmula 1 pela NASCAR, a categoria de stock car norte-americana. O calendário de 2007 teve 17 provas, com a saída dos GPs de San Marino e da Alemanha, a volta do GP da Bélgica, e a transferência do GP do Japão para Fuji. A principal mudança no regulamento para 2007 foi que cada carro teria que usar, obrigatoriamente, os dois tipos de pneus disponíveis ("duro" e "macio") a cada corrida, não podendo mais fazer a corrida inteira com o mesmo tipo.

Com a aposentadoria de Schumacher, todos os olhos se voltaram para Alonso, o único campeão do mundo em atividade, que se transferiu para a McLaren. O que Alonso não contava, porém, era com seu companheiro de equipe, o inglês Lewis Hamilton. Patrocinado pela McLaren desde garoto e campeão da GP2 em 2006, Hamilton ganhou ares de primeiro piloto, algo que Alonso, evidentemente, não admitiu. O resultado foi que os dois, além de companheiros de equipe e rivais, acabaram se tornando também inimigos - e essa inimizade acabou fomentada pela imprensa esportiva espanhola, que acusava a McLaren de prejudicar Alonso deliberadamente. A equipe, evidentemente, negava qualquer favorecimento, e dizia seguir a mesma política da época em que seus pilotos eram Senna e Prost, sem privilegiar nenhum, permitindo que eles se destacassem por seus próprios méritos.

Verdade ou não, a rinha entre Alonso e Hamilton acabou favorecendo Räikkönen, contratado pela Ferrari para o lugar de Schumacher. Enquanto os dois pilotos da McLaren se estranhavam, e Hamilton cometia algumas barbeiragens, o finlandês foi ganhando pontos, e permancendo no terceiro lugar do campeonato. Räikkönen chegou à última corrida do ano, no Brasil, precisando ganhar e torcer para Alonso chegar no máximo em terceiro e Hamilton no máximo em sexto. Por incrível que pareça, foi quase justamente isso que aconteceu - pois Hamilton chegou em sétimo. Graças a essa combinação, Räikkönen se tornou o segundo piloto a chegar na última corrida em terceiro e ganhar o título, sendo que o primeiro havia sido o italiano Giuseppe Farina, campeão da temporada inaugural da categoria, em 1950. Dentre os brasileiros, Massa terminou em quarto lugar, com três vitórias, e Barrichello, correndo com o péssimo carro da Honda, talvez o pior do grid, teve como melhor resultado um nono lugar no GP da Inglaterra.

No plano negativo, a temporada de 2007 foi marcada por um acidente bizarro envolvendo o polonês Robert Kubica, da BMW, que decolou da pista e destruiu seu carro contra um muro no GP do Canadá, e por um escândalo de espionagem envolvendo a McLaren, que acabou excluída do Mundial de Construtores acusada de roubar tecnologia da Ferrari. Curiosamente, apenas a equipe foi punida, não sobrando nada para seus dois pilotos brigões.

Incapaz de prosseguir como companheiro de equipe de Hamilton, Alonso voltou para a Renault em 2008, sendo substituído na McLaren pelo finlandês Heikki Kovalainen. Ainda na dança de pilotos, o campeão da Champ Cars, o francês Sébastien Bourdais, foi contratado pela Toro Rosso, Ralf Schumacher saiu da Fórmula 1 para correr na DTM, a categoria de turismo alemã, e o brasileiro Nelson Ângelo Piquet passou de piloto de testes para titular da Renault. Pela primeira vez a Fórmula 1 teve uma equipe indiana, a Force India, de propriedade do multimilionário Vijay Mallya. Por outro lado, sem conseguir pagar suas contas, a Super Aguri deixou o campeonato após quatro corridas. O calendário de 2008 contou com 18 provas, com a saída do GP dos Estados Unidos, a volta do GP da Alemanha, a transferência do GP da Europa para Valencia, Espanha, em um belíssimo circuito de rua, e a estréia do GP de Cingapura, disputado em Marina Bay, também em um circuito de rua. Devido a problemas de fuso-horário e reclamações das emissoras de TV européias, o GP de Cingapura se tornou a primeira prova da história da Fórmula 1 a ser disputada à noite, com a ajuda de poderosos refletores.

Cingapura, porém, acabria marcada não por esse fato, mas pelo "cingapuragate", um escândalo envolvendo a equipe Renault, que só viria à tona em 2009. Na décima-quarta volta da corrida, Nelsinho Piquet perdeu o controle do carro, se chocou contra o muro e provocou a entrada do safety car. Graças a isso, Alonso, companheiro de equipe de Nelsinho, que havia reabastecido pouco antes do acidente, venceu a prova. Após ser dispensado pela Renault depois do GP da Hungria de 2009, Nelsinho revelaria que recebeu ordens dos boxes para bater de propósito naquele momento e beneficiar Alonso. A denúncia rendeu uma investigação por parte da FIA que resultou no banimento de Flavio Briatore, gerente da equipe, da categoria. A rigor, a Renault não foi punida, mas ficará sob observação durante as temporadas de 2010 e 2011, sendo automaticamente banida do esporte se cometer qualquer infração grave. Além desse escândalo, o GP de Cingapura também contou com um acidente bizarro, quando os mecânicos da Ferrari deram ordem para que Felipe Massa deixasse os boxes enquanto seu carro ainda estava sendo reabastecido. Massa saiu arrastando a mangueira do reabastecimento, teve de parar na saída dos boxes para que ela fosse removida, e perdeu várias posições, comprometendo sua posição no campeonato.

O campeonato, aliás, foi decidido mais uma vez por uma diferença de um ponto, desta vez em favor de Lewis Hamilton, que roubou de Alonso o recorde de piloto mais jovem a ser campeão. Massa quase se tornou o quarto brasileiro campeão do mundo: na última corrida do ano, o GP do Brasil, precisava vencer, e torcer para Hamilton chegar no máximo em sexto lugar. Esta situação estava se configurando até a última curva da corrida, quando Hamilton ultrapassou o Toyota do alemão Timo Glock, que não entrara nos boxes para trocar pneus quando começou a chover, e mal conseguia se manter na pista. O resultado foi que a família de Massa chegou a comemorar, não percebendo que Glock havia sido ultrapassado e Hamilton conquistado o título. Massa terminaria o campeonato em segundo lugar, conseguindo seis vitórias - uma a mais que o inglês campeão. Nelsinho seria o décimo-segundo, tendo como melhor resultado um segundo lugar no GP da Alemanha, e Barrichello terminaria em décimo-quarto, com um heróico terceiro lugar no GP da Inglaterra.

No regulamento, em 2008 foi decretada a proibição do uso do controle de tração e do controle de largada, bem como do desenvolvimento dos motores durante cinco anos - ou seja, os mesmos modelos de motores têm de ser usados de 2008 a 2012, sem quaisquer melhorias nesse período. Para 2009, porém, as modificações foram ainda mais radicais: com as desculpas de driblar a crise econômica mundial e trazer o espetáculo de volta às corridas, a FIA proibiu diversos itens que influenciavam na aerodinâmica dos carros, trouxe de volta os pneus slick, sem sulcos, banidos desde 1998, permitiu partes móveis, controladas pelo piloto, na asa dianteira dos carros pela primeira vez na história da categoria, e introduziu o KERS, uma geringonça que armazenava energia quando o piloto freava, transformando-a em potência extra - uma espécie de turbo - que podia ser utilizada uma vez por volta. A princípio, o KERS seria obrigatório, mas como era caro e não estava completamente desenvolvido, acabou se tornando opcional.

Todas essas mudanças acabaram fazendo uma verdadeira revolução no campeonato, que começou quando a Honda, sem conseguir se livrar de sucessivos prejuízos, anunciou que estava deixando a Fórmula 1. Ross Brawn, ex-estrategista da Ferrari e diretor técnico da Honda na época, decidiu comprar o espólio da equipe e renomeá-la Brawn GP, mantendo os mecânicos e pilotos, e passando a usar motores Mercedes. Como grande estrategista que é, Brawn encontrou uma brecha no regulamento, e instalou em seus carros um difusor traseiro duplo, que influenciava na aerodinâmica do carro, tornando-o muito mais veloz que os da McLaren ou Ferrari, que todos esperavam continuar dominando a categoria. A Brawn não foi a única equipe a usar o difusor - a Williams e a Toyota também desenvolveram modelos parecidos - mas foi a que mais se beneficiou da peça, ao ponto de sua legalidade ser contestada junto à FIA. Depois que o difusor foi considerado dentro das regras, as outras equipes passaram a usá-lo, mas sem conseguir alcançar a Brawn.

O resultado foi que a primeira metade da temporada foi dominada por Jenson Button e Rubens Barrichello, ambos já considerados por muitos como acabados para o esporte. Button se adaptou melhor ao carro, e venceu seis das sete primeiras provas da temporada, adquirindo uma vantagem que lhe permitiu ganhar seu primeiro campeonato, e transformar a Brawn na primeira equipe estreante a ganhar o Mundial de Construtores. Conforme os demais carros se adaptavam ao regulamento - e alguns migravam para o difusor duplo - a principal rival da Brawn se mostrou não uma das grandes, mas a Red Bull, com um carro desenhado por Adrian Newey, pilotado pelo novato alemão Sebastian Vettel e pelo veterano australiano Mark Webber. Vettel ganhou quatro corridas, e por alguns momentos até chegou a ameaçar o título de Button, conquistado na penúltima prova, o GP do Brasil.

Apesar da aparente ressurreição de Barrichello, o ano de 2009 não foi bom para os brasileiros. Sem conseguir se adaptar ao carro, especialmente aos freios, nas primeiras corridas, Rubens terminou o ano com duas vitórias, mas em terceiro lugar no campeonato, sem conseguir ameaçar o título de seu companheiro de equipe. Pior que isso, durante os treinos para o GP da Hungria, uma mola se soltou de seu carro e atingiu o capacete de Felipe Massa, que não pôde correr o restante da temporada, terminando o campeonato em décimo-primeiro lugar, com o melhor resultado de um terceiro no GP da Alemanha. Após o mesmo GP da Hungria, Nelsinho Piquet foi demitido da Renault - o que motivou o episódio do "cingapuragate" - sob a alegação de maus resultados - de fato, seu melhor foi um décimo lugar no GP do Bahrein.

O calendário de 2009 teve a estréia de um novo e moderníssimo circuito, o dos Emirados Árabes, em Yas Marina, Abu Dhabi, com direito a um túnel na saída dos boxes e a extravagância da corrida ser disputada em um horário em que começou durante o dia, com luz natural, e terminou à noite, sob holofotes. O GP do Japão voltou para Suzuka, o da Alemanha foi disputado em Nurburgring, e os do Canadá e da França foram removidos, para um total de 17 provas. A curiosidade ficou por conta do GP da Malásia, que terminou antes do final por causa de fortes chuvas, e só rendeu aos pilotos que pontuaram metade dos pontos que ganhariam normalmente.

Apesar de tão bem sucedida, a equipe Brawn teve vida curta, sendo comprada e renomeada no final da temporada pela Mercedes. A temporada de 2010, aliás, promete muitas surpresas e novidades, com a volta não só da Mercedes, mas também de Michael Schumacher, contratado pela equipe alemã para ganhar seu oitavo título. Button foi para a McLaren fazer dupla com Hamilton, na primeira vez em que uma equipe reúne os dois mais recentes campeões do mundo desde 1989, quando a própria McLaren teve Senna e Prost. Alonso foi para a Ferrari e é o novo companheiro de Massa, substituindo Räikkönen, que decidiu tirar um ano de férias. No regulamento, o reabastecimento acabou, com os carros já largando com todo o combustível que usarão e entrando nos boxes somente para trocar pneus, algo que não acontecia desde 1993, e um novo sistema de pontuação premiará os dez primeiros de cada corrida, e não os oito como atualmente. No calendário, estão previstas 19 provas, com o retorno do GP do Canadá e a estréia do GP da Coréia do Sul, em Yeongam, que, entretanto, só será realizado se o circuito ficar pronto a tempo. Em relação às equipes, a Toyota, seguindo a Honda, também abandonou a Fórmula 1, e a BMW reverteu ao seu estado anterior e voltou a se chamar Sauber e usar motores Ferrari. Mas a maior novidade talvez seja a entrada de quatro novas equipes, Campos Meta, USF1, Virgin e Lotus - que não é a mesma da Era de Ouro do esporte, mas uma equipe da Malásia que usa o mesmo nome. Com elas, voltaram os motores Cosworth, e o número de brasileiros na categoria aumentou para quatro: além de Massa, na Ferrari, e Barrichello, agora na Williams, teremos Bruno Senna, sobrinho de Ayrton, na Campos Meta, e Lucas di Grassi na Virgin.

Mas isso tudo terá de ficar para um próximo post, o do período 2010-2019. Quem sabe se o átomo durar mais uns dez anos ele não ganhe um lugar aqui?

Série Fórmula 1

2000-2009

Ler mais

sábado, 21 de outubro de 2006

Escrito por em 21.10.06 com 0 comentários

Olimpíadas (XIII)

E hoje teremos mais um post sobre os Jogos Olímpicos!

Innsbruck 1964


Normalmente, a escolha da sede das Olimpíadas de Verão contava com muitas candidatas, mas a das Olimpíadas de Inverno com apenas umas duas ou três. Em 1964 não foi diferente: as únicas candidaturas apresentadas foram as de Calgary, Canadá; Lahti, Finlândia; Åre, Suécia; e Innsbruck, Áustria, que já havia sido candidata para 1960. Todas eram concorrentes de peso, famosas no mundo dos esportes de inverno e com boas instalações. Como Suécia e Finlândia já haviam sediado Olimpíadas, e não interessava ao COI dois Jogos de Inverno seguidos fora da Europa, Innsbruck acabou sendo a vencedora.

Mas, se existisse macumba na Escandinávia, teríamos uma explicação para um infortúnio que atingiu a pequena cidade tirolesa: bem na época dos Jogos, Innsbruck sofreu com uma falta crônica de neve. Simplesmente não nevou o suficiente para que fosse possível disputar qualquer esporte de inverno. Para não perder o direito a sediar os Jogos, o governo acionou o exército austríaco, que cortou vinte mil tijolos de gelo do topo de uma montanha próxima, e os utilizou para pavimentar as pistas de bobsleding e luge, uma modalidade de trenó no qual o competidor desce deitado de costas, com os pés primeiro (ao contrário do skeleton, onde o atleta desce de bruços com a cabeça primeiro), e que estrearia justamente em 1964. Além desse gelo todo, eles ainda cavaram 40 mil metros cúbicos de neve, e a espalharam pela descida do esqui, para fazer mais volume. Tudo parecia resolvido, mas há 10 dias da Cerimônia de Abertura uma forte chuva bagunçou toda a descida, e o exército teve de ir lá assentá-la, usando pás e suas mãos e pés. Com medo de novos desastres, o exército cavou mais 20.000 m3 de neve e deixou "de reserva", para uma eventual emergência. Só para contrariar, depois disso não choveu mais, e eles não precisaram usá-la.

Além da falta de neve, os Jogos de Innsbruck aconteceram sob a sombra de três acidentes fatais. O primeiro, e mais grave, ocorreu em 15 de fevereiro de 1961, quando o vôo 548 da aviação Sabena caiu em Bruxelas, Bélgica, matando as 72 pessoas a bordo e mais um no solo. Dentre seus passageiros estava toda a delegação da patinação artística dos Estados Unidos, que viajava para participar do Campeonato Mundial daquele ano, em Praga, Tchecoslováquia. Todos os dezoito patinadores norte-americanos morreram, causando uma comoção tão grande que o Mundial acabou cancelado, e as provas da patinação artística em Innsbruck foram cheias de homenagens, sendo o momento mais emocionante quando o norte-americano Scott Allen conseguiu um bronze nas simples masculinas.

Como se esse enorme desastre não tivesse sido o bastante, Innsbruck ainda registrou as duas primeiras mortes de atletas em Olimpíadas de Inverno, a do atleta inglês do luge Kazimierz Kay-Skyszpeski, de 50 anos, e do esquiador australiano Ross Milne, ambos em treinamentos uma semana antes da Abertura. A morte de Milne causou uma certa revolta na Austrália, pois a versão do COI seria a de que ele teria passado por uma pequena subida e batido numa árvore, enquanto delegados australianos diziam que ele só teria batido ao tentar desviar da platéia, muito superior à capacidade do local, e alojada em um lugar impróprio.

Mas nem mesmo tanta tristeza tiraria o brilho das competições. Realizados entre 29 de janeiro e 9 de fevereiro, os Jogos de Innsbruck contaram com a participação de 1.091 atletas, sendo 199 mulheres, que competiram em 34 provas de 10 esportes: biatlo, bobsleding, combinado nórdico, esqui alpino, esqui cross country, hóquei no gelo, luge, patinação artística no gelo, patinação no gelo em velocidade e saltos com esqui. O eisstockschiessen mais uma vez foi o esporte de demonstração (clique aqui para ver todas as provas do programa). A Cerimônia de Abertura foi realizada no monte Bergisel, famoso por sediar uma das etapas da Four Hills, a mais famosa competição de saltos com esqui depois do Mundial e dos Jogos Olímpicos. Innsbruck contou com duas novidades: por determinação do COI, a partir de 1964 a Tocha Olímpica de Inverno também seria acesa em Olímpia, no mesmo local da Olimpíada de Verão; e pela primeira vez os cronômetros das provas de esqui chegaram ao registro dos centésimos de segundo.

Os destaques dos Jogos começam por Lidiya Skoblikova, que conseguiu o ouro nas quatro provas da patinação em velocidade. Ela quebrou o recorde olímpico nos 500, 1.000 e 1.500 metros, e só não o fez nos 3.000 metros porque o gelo não estava em boas condições. Skoblikova é até hoje a recordista de ouros na patinação em velocidade (ganhou mais duas em 1960), e seu feito só seria alcançado por um homem em 1980. Falando nisso, dessa vez ninguém empatou em primeiro lugar em uma prova como nos dois Jogos anteriores, mas a prova de 3.000 metros feminina teve um empate no segundo lugar, e a prova dos 500 metros masculina teve um inacreditável tríplice empate pela segunda posição, entre dois atletas soviéticos e um norueguês.

Skoblikova não foi a única a fazer a limpa em sua modalidade: outra soviética, Klavdiya Boyarskikh, ganhou as três provas do esqui cross country, nas distâncias de 5 km, 10 km, e no revezamento 3 x 5 km. No masculino, o finlandês Eero Mäntyranta ganhou duas, nos 15 km e 30 km, e ainda levou a prata no revezamento 4 x 10 km. No hóquei, o ouro foi mais uma vez para a União Soviética; e os dois ouros de simples do luge foram para atletas da Alemanha Oriental, representando a Alemanha Unida, Thomas Köhler no masculino e Ortrun Enderlein no feminino.

Os saltos com esqui pela primeira vez tiveram duas provas, a colina baixa (cujo final da rampa está entre 80 e 100 metros do ponto onde o atleta começa sua descida) e a colina alta (cujo final da rampa está entre 120 e 130 metros). Curiosamente, os medalhistas foram os mesmos, o finlandês Veikko Kankkonen e os noruegueses Toralf Engan e Torgeir Brandtzæg, com a única diferença de Engan vencer Kankkonen na distância maior. Igualmente curiosa foi a disputa feminina do esqui alpino: no slalom, a vencedora foi a francesa Christine Goitschel, de 20 anos, ficando a medalha de prata com sua irmã Marielle, de 18, e o bronze com a norte-americana Jean Saubert. Dois dias depois, no slalom gigante, foi a vez de Marielle Goitschel ganhar o ouro, deixando Christine e Saubert, empatadas, com a prata.

Para finalizar, foi em Innsbruck que o primeiro atleta da história ganhou a Medalha Pierre de Coubertin, reservada àqueles que cometem atos verdadeiramente honrados em nome do esportismo. A honraria coube ao italiano Eugenio Monti, do bobsleding, duas pratas em 1956. Durante a disputa do trenó de dois lugares, a equipe da grã-bretanha, liderada por Tony Nash, sofreu uma avaria em uma das lâminas, e não tinha uma sobressalente. Monti então retirou uma das lâminas de seu próprio trenó, e as emprestou aos britânicos, que ganhariam o ouro, deixando os italianos com o bronze. Monti foi severamente criticado pela imprensa, à qual respondeu: "Nash não venceu porque eu lhe dei uma lâmina. Ele venceu porque fez a descida mais veloz".

Mesmo com as críticas, Monti ainda foi capaz de mais um ato de altruísmo: durante a disputa do trenó de quatro lugares, a equipe do Canadá teve um eixo danificado, e seria desclassificada. Monti e seus mecânicos correram para ajudá-los, conseguindo consertar o trenó a tempo para a última bateria. Novamente, o Canadá ganhou o ouro, deixando a Itália com o bronze. Monti chegaria ao ouro em 1968, mas sua contribuição para o mundo do esporte foi maior do que qualquer pista de bobsleding.

Tóquio 1964


Tóquio, a capital do Japão, havia sido escolhida pelo COI para ser a sede dos Jogos de 1940. Devido à guerra contra a China, o Japão se viu obrigado a abrir mão deste direito, passando a honra para Helsinque, capital da Finlândia. A Segunda Guerra Mundial, porém, faria com que os Jogos de 1940 fossem definitivamente cancelados. Os finlandeses teriam de esperar doze anos para receber uma Olimpíada; os japoneses, o dobro do tempo.

Foi só na reunião do COI de 1958 que ficou definido que, pela primeira vez, as Olimpíadas seriam realizadas na Ásia, e a vitória de Tóquio veio, surpreendentemente, graças à ajuda dos Estados Unidos. Não havia nada de altruísta em tal ajuda, porém: após ficar atrás dos soviéticos no quadro não-oficial de medalhas por dois Jogos seguidos, os norte-americanos desejavam uma Olimpíada em casa, ou pelo menos fora da Europa, para que seus atletas, devidamente incentivados, pudessem demonstrar sua superioridade em relação aos comunistas. Com o descarte de Detroit, a candidata dos Estados Unidos, os esforços norte-americanos se voltaram para a candidatura de Tóquio, chegando ao ponto de o governo norte-americano se comprometer a doar ao Japão o dinheiro que este porventura não conseguisse arrecadar para as obras necessárias.

A idéia de uma Olimpíada na Ásia seduziu o COI, e Tóquio venceu, além de Detroit, Buenos Aires, Viena e Bruxelas. A capital japonesa realmente não tinha instalações do nível de uma Olimpíada, mas o dinheiro norte-americano, aliado à meticulosidade japonesa, fez brotar do chão edifícios administrativos, hotéis para dirigentes, alojamentos para atletas, vias expressas, avenidas, estradas-de-ferro, centrais de TV, e as mais modernas instalações esportivas da época: o Estádio Olímpico, o Nippon Budokan ("centro de artes marciais japonês"), o Ginásio Nacional de Yoyogi, e o Parque Olímpico Komazawa. Em todos eles, a arquitetura combinava concreto e madeira, em um estilo que lembrava as construções xintoístas do passado japonês, transmitindo tranqüilidade e introspecção, unindo passado e futuro, como só os japoneses sabem fazer.

Falando nisso, o Japão não seria o Japão se não tivesse introduzido em 1964 duas inovações tecnológicas, a primeira delas graças a uma ajuda dos Estados Unidos: dois meses antes da Cerimônia de Abertura, os norte-americanos haviam levado ao espaço o primeiro satélite de comunicações geoestacionário do planeta, o Syncom-3. Graças a ele, dezenas de países no mundo inteiro puderam assistir às competições ao vivo, no momento em que eram realizadas, fazendo com que as Olimpíadas de 1964 se tornassem o primeiro programa de televisão transmitido via satélite. Milhares de norte-americanos puderam torcer por seus atletas no conforto de seus lares, mesmo com os Jogos ocorrendo do outro lado do mundo. A segunda inovação tecnológica foi pensada para facilitar a vida dos fiscais e dos repórteres: os japoneses desenvolveram especialmente para os Jogos um supercomputador, capaz de registrar tempos até os centésimos de segundo, analisar fotocharts, e distribuir os resultados das provas à imprensa momentos após o término de cada uma.

A primeira Olimpíada da Ásia foi realizada entre 10 e 24 de outubro, e seu programa contou com 163 provas de 21 esportes: atletismo, basquete, boxe, canoagem, ciclismo, equitação, esgrima, futebol, ginástica artística, hóquei, judô, levantamento de peso, luta olímpica, natação, pentatlo moderno, polo aquático, remo, saltos ornamentais, tiro esportivo, vela e vôlei (clique aqui para ver todas as provas do programa). A rigor, o programa contou com dois esportes de demonstração, mas somente o beisebol teve um torneio; o segundo, chamado pelo comitê organizador de budô, na verdade foi uma demonstração, sem torneios nem distribuição de medalhas, de três artes marciais japonesas, o sumô, o kendô e o kyudô. Na emocionante Cerimônia de Abertura, adentrou o Estádio Olímpico portando a Tocha o jovem Yoshinori Sakai. Sakai não era um atleta, mas sua presença lá estava carregada de simbolismo: ele havia nascido em 6 de agosto de 1945, o dia em que a bomba atômica caiu sobre Hiroshima. No momento em que Sakai acendeu a pira, dez mil pombas brancas começaram uma revoada, arrepiando as oitenta mil pessoas presentes, e emocionando o Imperador Hirohito, que assistia à Cerimônia de sua tribuna particular. Participaram dos Jogos de Tóquio 5.140 atletas, sendo 683 mulheres, representando 93 nações. O número poderia ter sido maior, se não fosse um incidente diplomático: dois anos antes, haviam sido realizados na Indonésia os Jogos da Ásia, uma espécie de Pan-Americano de lá. Comandada por uma intransigente ditadura militar, a Indonésia havia impedido os países que não apreciava de participar do evento, o que gerou uma punição do COI, que impediu os indonésios de participar dos Jogos de 1964. Com raiva, em 1963 a Indonésia decidiu organizar uma competição esportiva que chamou de "Ganefo Games", os "Jogos das Novas Forças Emergentes". Para valorizar o evento e afrontar o COI, a Indonésia convidou a China, que não aceitava participar das Olimpíadas devido à presença de Taiwan. Apesar dos esforços indonésios, o único país filiado ao COI que decidiu participar dos Ganefo Games foi a Coréia do Norte, e o resultado deste ato foi que ela também acabou impedida pela entidade de disputar os Jogos de 1964. Além destes dois países, a África do Sul também recebeu uma suspensão do COI, mas por outro motivo, a racista política do apartheid. A África do Sul só retornaria à competição após o fim deste regime, em 1992.

Atendendo a um pedido dos japoneses, o COI incluiu no programa dois dos mais populares esportes de lá, o judô e o vôlei. No judô, os japoneses acreditavam que ganhariam todas as quatro medalhas, das categorias leves, médios, pesados e absolutos. Para sua infelicidade, na dos absolutos, aberta a atletas de qualquer peso, o holandês Anton Geesink venceu na final o maior ídolo do judô japonês da época, Akio Kaminaga, por imobilização. Graças à educação japonesa, na cerimônia de premiação fez-se o maior silêncio da história das Olimpíadas. No vôlei, por outro lado, se viu tudo, menos silêncio. No masculino, o Japão terminaria em terceiro, após perder duas partidas; no feminino, ganharia o ouro, em uma final emocionante diante da União Soviética, durante a qual nada menos que 80% dos lares japoneses com televisão estavam sintonizados na partida, um recorde durante muito tempo não batido. Formado principalmente por trabalhadoras do moinho Nichibo, o time feminino do Japão tinha como treinador Hirofumi Daimatsu, o Bernardinho da época. Totalmente o inverso do que se espera de um japonês, Daimatsu gritava, berrava, insultava, ameaçava suas atletas, e chegava até a chutá-las no bumbum quando erravam. Apesar do método pouco ortodoxo, Daimatsu tinha uma visão ampla do esporte: diante das gigantes dos países comunistas, as miúdas japonesas só conseguiriam a vitória se tivessem uma defesa perfeita. Foi ele quem criou o que hoje se chama de "escola oriental", onde as atletas se jogam no chão como se mergulhassem em uma piscina, salvam as bolas com as pontas das unhas, viram cambalhotas e estrelas, tudo para impedir que a bola toque o chão e armar o próximo ataque. Com esta disposição, o Japão venceu todos os seus cinco jogos, sendo campeão do certame de forma invicta. Os métodos de Daimatsu, porém, o levariam a perder o emprego: após a vitória, as meninas do Japão foram convidadas a visitar o Primeiro Ministro Eisaku Sato, e aproveitaram para colocar para fora todas as suas mágoas. A capitã do time, inclusive, queixou-se de que Daimatsu não permitia que elas namorassem, e que deste jeito ela jamais arrumaria um marido. Irritado com esta "insubordinação", Daimatsu entregou o cargo, e foi trabalhar em uma agência de publicidade.

Dos atletas que ganharam seu segundo ouro em Tóquio, dois merecem destaque, a romena Iolanda Balas, do salto em altura, que curiosamente competia com uma sapatilha só, no pé de apoio; e o etíope Abebe Bikila, o primeiro homem a vencer a maratona duas vezes. Mesmo com seu histórico, e desta vez correndo calçado, poucos apostavam em Bikila, pois apenas quarenta dias antes ele havia se submetido a uma cirurgia de apêndice. Durante a prova, porém, Bikila mostrou que não se abalara por tão pouco, permanecendo junto aos líderes até a metade da prova, quando apertou seu passo e se distanciou, até romper a fita de chegada quatro minutos à frente do segundo colocado, o britânico Basil Heatley. A vitória de Bikila foi tão inesperada que os organizadores nem tinham um disco com o hino da Etiópia, e decidiram encerrar a premiação com o hino japonês, o que causou muito constrangimento, pois o atleta da casa, Kokichi Tsuburaya, que a imprensa local dava como vencedor antes da prova, havia chegado apenas em terceiro. Bikila ainda correria a maratona de 1968, a qual abandonaria com uma contusão na coxa, mas teria sua carreira abruptamente interrompida em 1969, quando um acidente automobilístico o deixaria paraplégico. Ele ainda chegaria a praticar o tiro com arco, mas morreria de hemorragia cerebral em 1973.

Ainda no atletismo, a soviética Irina Press se tornaria a primeira campeã do pentatlo, uma espécie de "decatlo light" para as mulheres; sua irmã, Tamara Press, ganharia o ouro no arremesso de peso; o norte-americano Robert Hayes, que mais tarde faria carreira como jogador de futebol americano, venceu os 100 metros rasos com uma arrancada devastadora a partir dos 60 metros, mesmo tendo de esperar mais de dez minutos após seu aquecimento para que os fiscais aplainassem a pista, arruinada pela largada da prova da marcha de 20 Km; e o neozelandês Peter Snell levaria para a sua pátria o ouro dos 800 e dos 1.500 metros. Especialista nas distâncias dos 800 metros e da milha (1.609 metros), Snell não se dava muito bem nos 1.500, mas decidiu disputar a prova justamente em uma Olimpíada pelo "prazer incomparável do risco", em suas próprias palavras. A princípio, ele competiria apenas nesta prova, e acreditava que se daria bem porque os 800 metros seriam disputados antes, e muitos dos corredores eram comuns às duas provas. Em seu pensamento, ele, descansado, levaria vantagem. Poucos momentos antes de de se encerrarem as inscrições, porém, Snell decidiu correr também os 800 metros, seja lá por qual motivo fosse. Acabou vencendo a prova, registrando um novo recorde olímpico. Cinco dias depois, nos 1.500 metros, Snell permaneceu junto aos líderes, mas se poupando, até faltarem 300 metros para o fim, quando viu um espaço onde conseguiu arrancar para ganhar mais uma medalha de ouro.

Filho de uma índia Sioux, o norte-americano Billy Mills se tornou o único atleta dos Estados Unidos até hoje a vencer a prova dos 10.000 metros. Desconhecido até então, um dos menos cotados para vencer a prova, Mills nascera em uma reserva, junto com 14 irmãos, e se tornou órfão aos 12 anos. Internado em uma escola no interior do Kansas, se dedicou ao boxe, até que um nocaute em um treinamento o fez se dedicar ao atletismo. Sem resultados expressivos, chegou a abandonar o esporte, mas sua esposa o convenceu a voltar em 1962. Com o incentivo da mulher, Mills se classificou para os 10.000 metros e para a maratona de 1964, mas decidiu correr apenas a primeira prova. No dia da contenda, chovia muito, e o australiano Ron Clarke decidira por uma técnica arriscada, mas aparentemente infalível: alternaria seu ritmo, ora se poupando ora arrancando, para desgastar os adversários. Deu certo: aos 9.000 metros, apenas Mills e o tunisino Mohamed Gammoudi ainda perseguiam Clarke. Disputada sem eliminatórias, porém, a prova contava com 29 corredores na pista, o que transformou seu final em um tumulto. A 200 metros do fim, Clarke e Mills estavam atrás de um retardatário, mas o americano não tinha velocidade para ultrapassá-lo; Clarke, mais rápido, não tinha como passar, e fez um gesto para que Mills chegasse um pouco para o lado, para que ambos passassem. Mills não se moveu, e Clarke tentou passar assim mesmo. O choque entre os dois os desestabilizou pelo momento necessário para que Gammoudi tomasse a primeira posição. Apertando o passo, Clarke alcançou Gammoudi, mas a quantidade de retardatários na pista fez com que eles ficassem se chocando ombro a ombro, sem ter como um passar o outro. Então, a oitenta metros do fim, Mills veio rapidamente de trás, passou por entre os dois, e cruzou a linha de chegada com duas passadas de vantagem, quebrando o recorde olímpico.

Na natação, os protagonistas foram o norte-americano Don Schollander e a australiana Dawn Fraser. Ele, aos 18 anos e em sua primeira Olimpíada, teve uma performance impecável, ganhando o ouro nos 100 metros livre, nos 400 metros livre, e nos revezamentos 4 x 100 metros livre e 4 x 200 metros livre, quebrando o recorde olímpico nas quatro provas e o mundial nas três últimas, só não chegando a um quinto ouro porque seu treinador decidiu poupá-lo no revezamento 4 x 100 metros medley. Ela, em sua terceira participação nos Jogos, ganhou o terceiro ouro seguido nos 100 metros livre, mas protagonizou o episódio mais bizarro dos Jogos de Tóquio: em uma visita ao Palácio Imperial, Fraser, de comportamento rebelde e polêmico, decidiu furtar uma bandeira do Japão, e acabou presa pela polícia japonesa. Em um gesto de tolerância, o Imperador a perdoou pela brincadeira, e a livrou de todas as acusações. Sua delegação, porém, não foi tão tolerante: ao retornar à Austrália, Fraser pegou uma suspensão de dez anos, que encerrou sua carreira ali mesmo, aos 27 anos de idade.

Na ginástica, uma musa se foi, outra surgiu: a soviética Larissa Latynina, 30 anos, fez sua terceira e última participação em Olimpíadas, ganhando mais dois ouros, duas pratas e dois bronzes, para um total de 18 medalhas, sendo nove de ouro, um recorde até hoje não alcançado. Em seu lugar no coração dos fãs ficou a lindíssima tchecoslovaca Vera Caslavska, 22 anos, uma secretária em Praga, dona de uma prata por equipes em Roma, que ganharia três ouros e uma prata em Tóquio, e mais quatro ouros e duas pratas na Olimpíada seguinte.

O Brasil levou ao Japão 70 atletas, sendo apenas uma mulher. Dos homens, 53 faziam parte dos esportes coletivos, nos times de basquete, futebol, pólo aquático e vôlei. Infelizmente, voltou de lá com apenas uma medalha, um bronze do basquete, cuja base do time eram os campeões mundiais de 1963, mas que mais uma vez no quadrangular final perdeu para Estados Unidos e União Soviética. O vôlei, que tinha no time Carlos Arthur Nuzman, atual presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, ficou na sétima colocação, atrás apenas das equipes comunistas e do Japão. Futebol e Pólo Aquático, infelizmente, não foram muito longe, sendo eliminados ainda na primeira fase de seus torneios.

A única mulher da delegação, Aída dos Santos, mesmo sem poder levar seu treinador, conseguiu a melhor colocação de uma atleta brasileira em uma prova individual até hoje, um quarto lugar no salto em altura, a meros quatro centímetros do bronze. O cavaleiro Nélson Pessoa Filho também chegou perto do pódio, terminando em quinto lugar no Prêmio das Nações da equitação, a apenas uma falta do terceiro colocado. Na classe Finn da vela, Joerg Bruder, futuro bicampeão mundial em 1966 e 1968, não teve sorte, e acabou na sétima colocação.

Mesmo tendo sido pontuados por algumas confusões, principalmente nas disputas do boxe, os Jogos de 1964 transcorreram calmos e fluidos, bem ao estilo da harmonia oriental. Mas a Cerimônia de Encerramento ainda reservava uma surpresa: no desfile dos atletas, os mais animados não eram os norte-americanos, soviéticos ou japoneses, mas os neozelandeses, que adentraram o Estádio Olímpico cantando e dançando músicas típicas de sua pátria, e convidando a platéia a dançar com eles. Antes que a segurança se desse conta, dezenas de espectadores invadiram o campo, e se puseram a dançar e confraternizar com os atletas. Tamanha quebra de protocolo seria de infartar qualquer japonês, mas, quando a pira se apagou e no placar eletrônico apareceu a palavra sayonara, o Imperador Hirohito aplaudiu e se despediu de seus visitantes, emocionado. Era a coroação do esforço de seu povo.


Série Olimpíadas

Innsbruck 1964
Tóquio 1964

Ler mais

domingo, 15 de outubro de 2006

Escrito por em 15.10.06 com 0 comentários

Inimigo Meu

Quando eu era pequeno, a exploração espacial estava na moda. Naves espaciais, alienígenas e planetas coloridos apareciam por toda parte, até mesmo em um jogo meio Batalha Naval cujas peças - na verdade figurinhas - vinham dentro dos salgadinhos Elma Chips. Essa fascinação também ocorria no cinema, onde praticamente toda semana saía um filme novo cujo tema era o espaço. Às vezes eu até acho isso curioso: numa época em que as naves tinham de ser miniaturas penduradas por fios, e os alienígenas eram pessoas maquiadas, fantoches, bonecos ou animatronics, tivemos uma tonelada de filmes espaciais. Hoje, quando qualquer criança consegue criar naves e monstros por computação gráfica, eles sumiram. Sério, quantos filmes de ficção espacial você viu estrear esse ano? Vai ver acharam que perdeu a graça.

Bom, mas eu estou digressionando e me afastando do ponto principal, que é: na década de 80, qualquer história ficava mais legal se você incluísse naves, alienígenas e planetas estranhos. Até mesmo uma história onde duas pessoas que se odeiam são forçadas a conviver, e acabam descobrindo que possuem mais semelhanças que diferenças. Alguns já devem saber de que filme estou falando: Inimigo Meu.

Lançado no hoje longínqüo ano de 1985, mas impressionantemente atual, com o título original de Enemy Mine - um trocadilho de respeito em inglês, pois pode passar a impressão de que meu inimigo sou eu mesmo - Inimigo Meu foi dirigido pelo alemão Wolfgang Petersen, que um ano antes tinha lançado um dos maiores clássicos da fantasia, A História Sem Fim. Baseado em um premiado livro de Barry B. Longyear, sua história não tem nada de mais. Provavelmente, nós já a vimos em centenas de outros filmes, livros e novelas. No caso, é a ambientação que faz a diferença: podiam ser um inglês e um alemão, um americano e um soviético, um japonês e um chinês, um judeu e um árabe - mas são um humano e um drac.

Segundo a história, no final do Século XXI, todas as nações da Terra estarão finalmente em paz. Unidos, os humanos partirão para a colonização espacial, indo para cada vez mais longe de seu planeta natal atrás de novos lares e novas riquezas. Ao chegar a um dos sistemas mais ricos da galáxia, porém, os humanos descobrem que ele já tem dono: os dracs, habitantes do planeta Dracon. Seres reptilianos de pele escamosa, os dracs começaram suas viagens espaciais antes dos humanos, e se autodenominam "descobridores de novos mundos". A sociedade drac é estruturada no respeito aos antepassados, de forma que cada drac sabe citar sua linhagem completa até a fundação do planeta, 170 gerações atrás. Além disso, dracs são hermafroditas, e se reproduzem assexuadamente, dando a luz a um novo drac "quando é chegada a hora".

Pois bem, durante uma batalha, o humano Willis Davidge (Dennis Quaid) e o drac Jeriba Shigan (Louis Gossett Jr) se envolvem em um acidente, e acabam naufragando em um planeta não-explorado. Como o co-piloto de Davidge morre na queda, ele a princípio persegue o drac para matá-lo. Quando uma chuva de meteoros assola o planeta, porém, ambos percebem que a única chance que têm de permanecerem vivos é cooperando.

Ao longo do filme, a relação entre Davidge e o drac, que ele apelida de "Jerry", passa por vários estágios. No início, eles se odeiam. Depois, eles apenas se suportam. No fim, acabam amigos. Davidge ensina o drac a falar inglês, ajuda a construir um abrigo à prova de meteoros, e caça a estranha fauna local para servir de comida. Jerry, por sua vez, ensina o humano a falar drac, e passa a ele os ensinamentos de Shizumaat, o Grande Professor Drac, ensinamentos estes que norteiam a vida de qualquer drac, e não por acaso idênticos aos das religiões da Terra, como por exemplo o de que devemos amar até mesmo nossos inimigos. Com a convivência, Davidge e Jerry descobrem que não são tão diferentes assim, e que só se tornaram inimigos por convicções ideológicas.

Mas o filme ainda reserva uma surpresa: cansado de esperar por um salvamento que nunca chega, Davidge decide explorar o planeta, e acaba descobrindo que os Sucateiros fazem extração de metais preciosos nele. Os Sucateiros são humanos que capturam dracs para usar como escravos, e exploram planetas ainda não colonizados até acabar com suas riquezas minerais. Davidge decide não contar nada a Jerry, mas, quando retorna, descobre que ele está "grávido". Jerry morre "durante o parto", mas faz Davidge prometer que criará seu filho, Zammis (Bumper Robinson, que hoje em dia é dublador), levando-o de volta a Dracon quando chegar a hora.

Novamente sozinho com um drac, Davidge passa a ter a missão de criar o pequeno Zammis, até ter uma oportunidade de tirá-lo de lá. Durante mais uma visita dos Sucateiros, porém, Zammis, curioso para ver outros dracs, acaba capturado. Alguns dias depois, Davidge finalmente é resgatado por seus antigos companheiros, que estavam seguindo a nava dos Sucateiros. Para manter a promessa que fez a Jerry, Davidge decide voltar ao planeta, e resgatar Zammis de seus captores.



Inimigo Meu é um filme que matém o espectador interessado do início ao fim, mesmo só com dois personagens na maior parte do tempo. Tanto Quaid quanto Gossett têm atuações perfeitas, com muitos inclusive considerando que este é o melhor papel da vida de Gossett. Seu visual é meio "retrô", mais parecido com as séries dos anos 60/70 que com os demais filmes da época, com planetas de céu colorido e que se parecem com grandes bolas de praia quando vistos do espaço. Além disso, ele traz uma lição que, infelizmente, todo mundo conhece, todo mundo adora ver em filmes, mas quase ninguém pratica: diferente não significa errado.

Curiosamente, Inimigo Meu não é considerado um bom filme justamente por causa disso, sendo considerado por muitos como bobo, ingênuo, e até mesmo forçado. Eu já ouvi mais de uma vez que "só porque os dois ficaram amiguinhos, não significa que acabou a guerra". Concordo, mas ninguém disse que era para acabar. Este pensamento equivale a dizer que a amizade entre um branco e um negro de nada vale porque não acaba com o racismo, ou que a amizade entre um judeu e um muçulmano de nada adianta porque não acaba com a intolerância religiosa. A mensagem de Inimigo Meu não é em nível global, mas individual: não é porque o meu planeta está em guerra com o seu que eu não posso ser seu amigo. Talvez um único indivíduo deixando de lado um preconceito decorrente de seu ambiente social não vá fazer tanta diferença no âmbito geral, mas nunca se sabe. Talvez seja apenas o primeiro passo.
Ler mais

domingo, 8 de outubro de 2006

Escrito por em 8.10.06 com 0 comentários

Olimpíadas (XII)

E hoje é mais um dia de Olimpíadas!

Squaw Valley 1960


Em 1955, quando Squaw Valley foi escolhida para sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1960, houve uma certa controvérsia, porque Squaw Valley não era uma cidade. Para falar a verdade, Squaw Valley não era absolutamente nada além de um vale nevado a 1.900 metros de altitude, localizado a noroeste da cidade da Tahoe, Califórnia, a 300 km de São Francisco. Ainda assim, seu único habitante e dono do lugar, Alexander Cushing, conseguiu convencer o Comitê Olímpico norte-americano a lançar o vale como candidato. O COI - cujo presidente era norte-americano, vale lembrar - se fascinou com a idéia de uma cidade inteira construída especialmente para os Jogos, e justo na Califórnia, de forma que Squaw Valley acabou batendo a cidade austríaca de Inssbruck, e as recorrentes Sankt Moritz e Garmish-Partenkirchen.

Realmente, Squaw Valley foi construída do zero especialmente para hospedar os Jogos. Entre 1955 e 1960 foram abertas estradas que levavam ao local, e erguidos hotéis, restaurantes, pontes, a Vila Olímpica, um rinque de patinação, um estádio para o hóquei, uma pista para a patinação em velocidade, trilhas de esqui, teleféricos, e a rampa para os saltos com esqui. Tudo com a mais avançada tecnologia de construção e cronometragem, incluindo um computador da IBM especialmente desenvolvido para calcular os resultados das provas, visando o máximo conforto para atletas e platéia, além de deixar bastante espaço para o televisionamento. Como é comum entre os norte-americanos, se desejava que os Jogos de Inverno de 1960 fossem um espetáculo jamais visto. A única mancha neste projeto foi a ausência de uma pista para o bobsleding, pois os organizadores, argumentando que apenas nove trenós haviam demonstrado interesse em competir, decidiram cancelar a prova e empregar o dinheiro destinado à construção da pista em obras mais úteis, o que fez com que 1960 tenha sido a única ocasião em que o bobsleding não fez parte do programa dos Jogos de Inverno. O estacionamento também sofreu um pequeno problema, pois havia sido construído sobre uma planície alagada e congelada que chuvas fora de hora fizeram questão de degelar poucos dias antes da abertura do evento, arruinando as obras. O exército dos Estados Unidos foi chamado e reconstruiu tudo em um local próximo, em tempo recorde.

Os Jogos de Squaw Valley foram realizados entre 18 e 28 de fevereiro, e contaram com a participação de 665 atletas, sendo 144 mulheres, representando 30 nações em 27 provas de 8 esportes: biatlo, combinado nórdico, esqui alpino, esqui cross country, hóquei no gelo, patinação artística no gelo, patinação no gelo em velocidade e saltos com esqui (clique aqui para ver todas as provas do programa). As cerimônias de abertura e encerramento ficaram a cargo de ninguém menos que Walt Disney, que encomendou a seu artista John Hench um novo desenho para a Tocha, que acabou se tornando o mais famoso de todos. Como em Oslo, 1952, a Tocha foi acesa em Morgedal, na lareira de Sondre Nordheim, o pioneiro do esqui esportivo. Assim como em Melbourne, 1956, o fogo foi usado para acender um lampião, que viajou de avião até os Estados Unidos, onde uma nova Tocha foi acesa e levada em revezamento até a Califórnia, onde foi utilizada para acender a pira pelo patinador Ken Henry. Ao contrário de todas as demais edições dos Jogos, porém, a pira não foi apagada ao final das competições, e está até hoje queimando lá em Squaw Valley, que hoje em dia é um resort para esportes de inverno.

Após algumas aparições como esporte de demonstração, o biatlo, uma combinação de esqui cross country em um trajeto de 20 km com uma disputa de tiro, fez sua estréia em 1960 para não mais sair do programa. Com as regras unificadas e uma Federação para zelar por elas, estavam afastadas as controvérsias que ocorreram em 1924 e que mantiveram este esporte, bastante popular por sinal, fora dos Jogos de Inverno até então. A medalha de ouro do evento ficou com o sueco Klas Lestander, que fez um tempo pior que seus oponentes diretos na corrida, mas não errou um tiro sequer. Outro esporte a estrear como "oficial" em 1960 foi a patinação em velocidade feminina, com quatro eventos, três deles vencidos por soviéticas, sendo que nas provas de 1.500 metros e 3.000 metros o ouro foi para Lidia Skobilikova.

Outro soviético, Yevgeny Grishin, também da patinação em velocidade, conseguiu um feito absolutamente inacreditável. Ele até bateu um recorde mundial nos 500 metros, mas o que ele conseguiria depois seria ainda mais fantástico. Para quem não se lembra, Grishin havia conquistado duas medalhas de ouro em 1956, sendo que uma delas, a dos 1.500 metros, ele dividiu com seu compatriota Yuri Mihaylov, pois ambos haviam terminado a prova com o exato mesmo tempo. Em 1960, Grishin também ganhou dois ouros, um deles nos já citados 500 metros. O outro foi novamente nos 1.500 metros. E, acreditem ou não, novamente empatado com outro atleta, desta vez o norueguês Roald Aas. O evento foi considerado tão absurdo que virou notícia em vários lugares do mundo, principalmente porque, mesmo já tendo ocorrido na edição anterior dos Jogos, ainda não havia regras para resolver este empate.

O finlandês Veikko Hakulinen também entrou para a história dos Jogos, mas sem precisar empatar duas vezes. De qualquer forma, seu feito foi igualmente incrível: competindo no esqui cross country, além de um ouro em 1952 e de um ouro e duas pratas em 1956, Hakulinen já tinha uma medalha de prata, nos 50 km, e uma de bronze, nos 15 km, quando entrou na pista para defender sua pátria no revezamento 4 x 10 km. Hakulinen era o último homem da equipe, e partiu para o último trecho 20 segundos após a saída do líder Haakon Brusveen, da Noruega. Nos 100 metros finais, porém, Hakulinen conseguiu uma arrancada fantástica, e venceu a prova por apenas um metro.

Ainda no esqui cross country, a União Soviética levou pra casa as três medalhas dos 10 km, mas ficou com a prata no revezamento de 3 x 5 km. Os Estados Unidos ganharam os dois ouros individuais da patinação artística, com David Jenkins e Carol Heiss, mas nas duplas mistas não passou do bronze. O maior destaque dos donos da casa foi o time do hóquei no gelo, que, em uma apresentação memorável, ganhou o ouro de forma invicta, batendo, inclusive, os superfavoritos Canadá e União Soviética. E o francês Jean Vuarnet, ouro na descida do esqui alpino, foi o primeiro campeão a usar esquis de metal, ao invés dos de madeira preferidos até então.

Resumindo, além de um belo espetáculo, os Jogos de Squaw Valley trouxeram muitas novidades. A maior delas, porém, pouca gente sabe que foi criada aqui: no esqui alpino masculino, modalidade slalom, os fiscais ficaram na dúvida se um dos competidores havia passado por dentro ou por fora do "portão" - aquelas duas bandeirinhas que marcam os lugares onde os esquiadores devem passar durante a descida - pois seus esquis haviam levantado muita neve durante a passagem. Para dirimir a dúvida, eles perguntaram à CBS, a rede de televisão responsável pela transmissão do evento, se a cena havia sido filmada, e se eles poderiam revê-la em câmera lenta. Estava criado o replay instantâneo, adotado pela CBS durante todo o resto da competição, e por todas as redes de televisão do mundo em transmissões esportivas a partir de então.

Roma 1960


Grécia, França, Grã-Bretanha, Suécia, Bélgica, Holanda, Alemanha, Finlândia. Todas estas nações européias haviam tido o direito de sediar pelo menos uma Olimpíada. Aos olhos dos fãs dos esportes, porém, faltava uma, a Itália. Roma já havia sido escolhida para sediar o evento de 1908, mas uma erupção do Vesúvio forçou o governo italiano a desistir da tarefa, passando-a para Londres. E, quando a capital italiana se declarou candidata a sede dos Jogos de 1960, todos sabiam que seria uma vitória fácil. Afinal, a Itália era famosa não só por sua boa comida e pelo bom humor de sua gente, mas também tinha atletas de ponta, um dos torneios de futebol mais importantes do planeta, e um governo empenhado a realizar a Olimpíada mais fantástica de todos os tempos - talvez ironicamente, justo na cidade que destruiu Olímpia na antiguidade.

Roma não enfrentou percalços para ser escolhida, vencendo Bruxelas, Budapeste, Lausanne, Detroit, Cidade do México e Tóquio quase que por unanimidade. E o comitê organizador se pôs a trabalhar já no dia da escolha, para que nada saísse errado. A principal fonte de recursos foi a loteria do futebol italiano, a Totocalcio, que destinou parte de sua renda ao Comitê Olímpico italiano. Fanáticos por esportes, os italianos apostaram como nunca, e a arrecadação foi de mais de 30 milhões de dólares, mais do que suficiente para construir ou reformar todas as instalações necessárias. O Stadio Olimpico, sede dos times de futebol Roma e Lazio, inaugurado em 1937, passou por uma reestruturação completa. A seu lado, uma pista de atletismo construída durante o governo de Benito Mussolini foi totalmente revitalizada, sendo equipada com uma das pistas mais modernas, e um eficiente sistema de cronometragem. O charme especial da pista eram sessenta esculturas de mármore localizadas à sua volta, representando todos os deuses esportivos de que se tinha notícia. No mesmo complexo, os italianos ergueram o Stadio del Nuoto, sede dos esportes aquáticos, com uma moderníssima piscina coberta, especialmente projetada para que os atletas não tivessem nenhum obstáculo a mais em sua busca pela quebra de recordes. Do outro lado da cidade, construíram o Palazzo e o Palazzeto dello Sport, obras da mais moderna engenharia, construídos em alumínio e concreto protendido, idealizados pelo arquiteto Pierluigi Nervi. As lutas livre e greco-romana seriam realizadas na Basílica de Maxientius; a ginástica nas ruínas das Termas de Caracalla, destruídas pelos bárbaros por volta do ano 400; e a maratona passaria pelas históricas Via Appia e Via Aurelia. Enfim, o encontro perfeito entre antiguidade e modernidade, o cenário perfeito para uma disputa olímpica.

Os Jogos de Roma reuniram 5.275 atletas, sendo 537 mulheres, competindo entre 22 de agosto e 11 de setembro em 150 provas de 19 esportes: atletismo, basquete, boxe, canoagem, ciclismo, equitação, esgrima, futebol, ginástica artística, hóquei, levantamento de peso, luta olímpica, natação, pentatlo moderno, polo aquático, remo, saltos ornamentais, tiro esportivo e vela (clique aqui para ver todas as provas do programa). No dia 24 de agosto, o Papa João XXIII reuniu todos os atletas e dirigentes que iriam participar do evento para uma bênção ecumênica na Praça São Pedro, no Vaticano, em uma cerimônia que nem mesmo o Barão de Coubertin poderia imaginar: gente de todas as raças, todas as etnias, todas as religiões esqueceu suas diferenças, e por alguns breves momentos formou a nação única do esporte, idealizada pelo jovem John Ian Wing nos Jogos de 1956. Talvez a energia positiva do momento tenha influenciado até mesmo a Cerimônia de Abertura, realizada no dia seguinte: após acesa a pira, os organizadores libertaram cinco mil pombos brancos, que se puseram a voar pelas galerias do Stadio Olimpico. De repente, todas as igrejas da cidade se puseram a soar seus sinos em uníssono, comemorando a abertura dos Jogos. Como se soubessem o que fazer, todos os pombos imediatamente deixaram o Stadio Olimpico e rumaram para a Praça São Pedro, pousando magicamente em seu centro. Detalhe: os Jogos de 1960 foram os primeiros a ser transmitidos para 37 países, via microondas, alguns deles podendo assistir às competições, inclusive, a cores.

A maratona de 1960 é tida como a mais bela e sensacional de todos os Jogos. Realizada à noite, para poupar os competidores do calor que castigava a Itália naquele verão, e com seu trajeto passando por vários locais da Roma histórica, pela primeira vez a maratona contou com atletas africanos efetivamente defendendo seus países, e não seus colonizadores. E foi precisamente um deles, Abebe Bikila, da Etiópia, que conquistaria o ouro, correndo descalço, uma cena que ficaria registrada para sempre nas mentes dos amantes do esporte. Nascido em uma favela da capital etíope, Bikila era um cabo na guarda palaciana do Imperador Haile Selassie, e nas horas de folga gostava de correr nas montanhas de Mout, a 2.470 metros acima do nível do mar. O terreno íngreme e a altitude fortaleceram suas pernas, seu coração e seus pulmões, e fizeram de Bikila um corredor extraordinário, que chamou a atenção do finlandês Omni Niskanen, que havia sido contratado pelo Imperador para estimular o atletismo entre os jovens da Etiópia. Mesmo já tendo 28 anos, Bikila foi convencido por Niskanen a competir a sério. Após seis meses de treinamento, Bikila ganhou sua primeira maratona. Após ganhar a segunda, garantiu o direito de competir em Roma.

Mas Niskanen não queria confiar apenas no talento natural de seu pupilo: assim que desembarcaram na capital italiana, os dois pegaram um táxi, e fingindo-se de turistas pediram para o motorista fazer precisamente o trajeto da maratona. Niskanen e Bikila anotaram todas as curvas, subidas, sinais geográficos e pontos de referência. 1.500 metros antes da chegada, eles encontraram o marco perfeito, o Obelisco de Axum, trazido justamente da Etiópia dois mil anos antes. Logo após o Obelisco, começava uma subida. Dali, Bikila começaria sua arrancada rumo à vitória.

Enganados pelo frescor da noite, os atletas menos experientes ampliaram as passadas e a velocidade. Bikila permaneceu em seu ritmo, seguro de sua tática. Durante os primeiros 15 km, ele apenas perseguiu o favorito, o soviético Sergei Popov. Quando percebeu que Popov mudara a respiração do nariz para a boca, Bikila arrancou e o deixou para trás, trazendo com ele o marroquino Rhadi Ben Abdesselem. Ambos aumentaram o ritmo e permaneceram quase juntos, até o Obelisco de Axum, quando Bikila, em mais uma arrancada, abriu uma distância de 200 metros sobre o marroquino. A esta altura, o público já estava enlouquecido com sua performance, e com o fato de ele correr descalço, tanto que um romano distraído, que o acompanhava de lambreta, perdeu a direção e quase o atropelou a 50 metros da chegada. Bikila driblou o obstáculo sorrindo, e rompeu a fita com um novo recorde mundial, ganhando a primeira medalha de ouro de um negro africano nas Olimpíadas. Retornando à sua pátria, Bikila seria promovido a sargento, e ganharia do Imperador um fusquinha.

Outros dois destaques de 1960 viriam dos Estados Unidos, a começar por Wilma Rudolph, a Gazela Negra. Vigésima entre 22 irmãos, nascida em uma família paupérrima do Tennessee, Wilma nasceu com apenas 2 Kg, teve pneumonia dupla, escarlatina, e uma doença rara que causou a descalcificação dos ossos de suas pernas, obrigando-a a usar aparelhos para manter as pernas firmes. Segundo ela, aprendeu a correr para chegar antes dos irmãos à mesa do jantar e colocar mais comida no prato. Aconselhada a praticar esportes para fortalecer as pernas, Wilma optou pelo basquete, mas aos 14 anos foi descoberta por um treinador de atletismo, que acreditava que ela possuía o físico perfeito para uma velocista. Em dezoito meses de treinos, Wilma já não precisava mais dos aparelhos, e em 1956 conseguiu uma vaga na equipe que disputou os Jogos de Melbourne. Lá ela só conseguiu um bronze no revezamento 4 x 100 metros, mas a partir de então sua carreira teria uma ascensão fulminante, quebrando vários recordes. Favorita absoluta em Roma, Wilma parecia não se importar com a pressão, e chegava a dormir ao lado da pista enquanto esperava o início da prova. Acabou conquistando três ouros, nos 100 metros, 200 metros e revezamento 4 x 100 metros, além da admiração da imprensa italiana, que lhe concedeu o apelido pelo qual seria conhecida pelo resto da vida.

O outro destaque de 1960 também era negro, veio do boxe, e atendia pelo nome de Cassius Clay. Nascido no Kentucky, filho de um defensor dos direitos dos negros, e apelidado "o tagarela da Louisville", Clay era o personagem mais popular da Vila Olímpica, o atleta mais entrevistado e fotografado. Venceu todas as suas lutas de maneira incontestável, e só não nocauteou o polonês Zbigniew Pietrzkowski na final porque não quis. De volta aos EUA, teve uma recepção de herói, e se profissionalizou, patrocinado por dez milionários, todos brancos. Mas nem toda esta glória o livrou do racismo: certo dia, ao entrar em uma lanchonete com um amigo, Clay ouviu da garçonete que lá não serviam negros. Ele lhe mostrou a medalha de ouro, que carregava para tudo o que é lugar. Ainda assim, o dono da lanchonete argumentou que não interessava quem ele fosse, ele ainda era um negro, e não seria servido ali. Com raiva, Clay jogou sua medalha no rio Ohio, pois, se ela não servia para lhe trazer respeito, não serviria para mais nada.

Mesmo sofrendo com o racismo, Clay teve uma carreira brilhante, e é hoje considerado o maior boxeador de todos os tempos. Aos 25 anos, já era campeão dos peso pesados, vencendo 41 lutas, 32 por nocaute, sem nenhuma derrota. Então, foi convocado para servir no Vietnã. Clay alegou objeção de consciência, algo que a lei americana permitia, mas mesmo assim foi processado por violar regulamentos do serviço militar, e teve seu cinturão cassado. Enquanto lutava nos tribunais, converteu-se ao islamismo, e mudou seu nome para Muhammad Ali. Após quatro anos impedido de competir por causa do processo, Ali finalmente foi inocentado, e em 1971 retomou sua carreira. Fora de forma, porém, sofreu sua primeira derrota, para Joe Frazier.

Mas Ali não se abalou. Retomou os treinamentos disposto a recomeçar sua carreira do zero. Após uma escalada de três anos, retomou o título de Frazier. Em 1975, na África do Sul, na primeira luta de boxe transmitida ao vivo e a cores para todo o planeta, massacrou George Foreman. Em 1978 ele perderia novamente, para o campeão da Olimpíada de 1976, Leon Spinks. Sem se abalar, no mesmo ano recuperaria o título, e só abandonaria os ringues aos 37 anos, em 1979, detentor de nove títulos, 61 vitórias, 37 nocautes, apenas 5 derrotas. Pouco depois, foi diagnosticado como portador do Mal de Parkinson. Nem mesmo a doença o parou: Ali se pôs a viajar pelo mundo, como exemplo para os jovens negros, e modelo de coragem e determinação. Em 1996, Ali emocionou o mundo ao ser escolhido para acender a pira das Olimpíadas de Atlanta. Como prêmio por sua gloriosa carreira, Ali recebeu uma nova medalha, para repor a que ele havia jogado fora. Praticamente um pedido de desculpas.

Grandes nomes do esporte se consolidaram em 1960: o dinamarquês Paul Elvstrøm, da vela, classe Finn, se tornou o primeiro atleta a ganhar quatro ouros em quatro Olimpíadas seguidas em provas individuais, feito que, oito anos mais tarde, seria igualado pelo norte-americano Al Oerter, do lançamento do disco, que em Roma ganhou seu segundo ouro consecutivo. O sueco Gert Fredriksson, da canoagem, foi ainda mais longe, ganhando seu sexto ouro em quatro Olimpíadas, três no caiaque individual 1.000 metros, dois no caiaque individual 10.000 metros e, em Roma, no caiaque duplo 1.000 metros. Fredriksson perdeu em uma medalha para o húngaro Aladár Gerevich, que, competindo desde 1932 na esgrima, categoria sabre, chegou ao seu sétimo ouro, todos por equipes, exceto um individual em 1948. E o italiano Sante Gaiardoni se tornou o único atleta a vencer as provas de sprint e corrida contra o relógio do ciclismo em uma mesma edição dos Jogos. Também merecem destaque as meninas soviéticas da ginástica, que ganharam 15 das 16 medalhas possíveis, e a equipe masculina de ginástica do Japão, que conquistou seu primeiro de cinco ouros consecutivos.

Episódios bizarros também marcaram o evento: o finlandês Vilho Ylönen, categoria rifle livre três posições, em um dos tiros se confundiu e acertou a mosca do alvo do atirador vizinho. Terminou em quarto lugar; tivesse acertado a do seu, ganharia a prata. Na prova de estrada do ciclismo, o dinamarquês Knut Jensen, logo após completar a prova, caiu desmaiado e fraturou o crânio, o segundo atleta a morrer durante uma Olimpíada, depois do português Francisco Lázaro em 1912. Imediatamente, a delegação da Dinamarca culpou o calor excessivo que fazia no dia da prova; a autópsia, porém, revelaria que Jensen correu dopado, sob o efeito de Ronicol, e desfalecera devido ao remédio. Mas o episódio mas absurdo ocorreu na natação, prova dos 100 metros estilo livre: a prova foi vencida pelo norte-americano Lance Larson, com o tempo de 55"1. Inexplicavelmente, porém, os fiscais deram o ouro ao australiano John Devitt, cujo computador acusava o tempo de 55"2. Após numerosos protestos, os fiscais levaram meia hora analisando os videotapes e fotocharts, e resolveram a questão. Só que, ao invés de dar o ouro para Larson, corrigiram seu tempo para 55"2, alegando que Devitt havia tocado com a mão primeiro na borda da piscina.

Sem tantas bizarrices, o decatlo de 1960 é tido como um dos mais emocionantes de todos os Jogos, uma disputa entre dois amigos, o norte-americano recordista mundial e medalha de prata em 1956 Rafer Johnson, e seu colega da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Chuan Kwang Yang, representando Taiwan. Ambos batalharam pelo ouro até a última prova, os 1.500 metros, quando Yang venceu, mas o tempo de Johnson, aliado aos seus demais resultados, lhe garantiram a vitória. Ao final da prova, ambos se abraçaram calorosamente, em uma demonstração do espírito olímpico. Depois de Roma, Johnson abandonaria o esporte para se tornar ator de cinema; Yang continuaria competindo, quebrando o recorde mundial, e forçando a Federação de Atletismo a reformular a tabela dos pontos, pois em uma prova do salto com vara em 1963 ele conseguiria a marca de 4m82, e a tabela terminava em 4m57.

Os esportes coletivos também merecem destaque: no Pólo Aquático, o Setebello da Itália surpreendeu os analistas esportivos ao ganhar o ouro, batendo os favoritos Hungria e União Soviética. Seu estilo de jogo rápido, com os jogadores sabendo onde estavam seus companheiros mesmo de costas, fez com que este fosse considerado pelos fãs do esporte como o melhor time de todos os tempos. No basquete, os Estados Unidos ganharam seu quinto ouro consecutivo, com uma seleção de universitários também considerada a melhor de todos os tempos, sem contar o Dream Team de 1992, formado por profissionais. No hóquei, o Paquistão acabou com uma seqüência de seis ouros e trinta vitórias seguidas de sua mega-rival Índia, ao derrotá-la na final pelo mínimo placar de 1 x 0. E no futebol, a Iugoslávia, com seus amadores de fachada, chegaria ao ouro após um inusitadíssimo episódio nas semifinais, justamente contra os donos da casa: o jogo terminara 1 x 1, e o regulamento previa não prorrogação ou pênaltis, mas um simples sorteio. Jogada a moedinha, a Iugoslávia avançou para enfrentar a Dinamarca, e a Itália, espraguejando o regulamento até hoje, acabou perdendo da Hungria e ficando em quarto lugar.

O Brasil trouxe duas medalhas de Roma, ambas de bronze. Uma com o nadador Manoel dos Santos Júnior, que na controversa prova dos 100 metros livre liderava a até bem perto dos 90 metros, quando foi ultrapassado por Larson e Devitt. A outra veio com a seleção de basquete, campeã mundial em 1959, que passou pela primeira e segunda fases invicta, vencendo inclusive a União Soviética, e no quadrangular final só perdeu para esta, por dois pontos, e para os Estados Unidos. Dois outros brasileiros caíram nas quartas-de-final: José Telles da Conceição, em sua terceira Olimpíada, nos 200 metros do atletismo devido a uma distensão muscular; e o ciclista Anésio Argento, no sprint, perdendo para o campeão Gaiardoni. Mas o momento mais emocionante de um atleta brasileiro não foi um pódio, mas a despedida de Adhemar Ferreira da Silva, aos 33 anos, que mesmo sem conseguir se classificar para a final do salto triplo, foi aplaudido de pé tanto por seus oponentes quanto pela platéia.

No fim, para se fazer um resumo perfeito dos Jogos de 1960, basta dizer que foram vinte dias emocionantes, pontuados por algumas bizarrices. E até a Cerimônia de Encerramento manteve este padrão: na contagem não-oficial de medalhas, a União Soviética mais uma vez terminou à frente dos Estados Unidos. Apesar disso, os atletas destes países entraram para o misturado encerramento com seus agasalhos trocados, um país vestindo as cores do outro, como se mandando um recado para seus governantes de que todos podemos ser irmãos. A organização, porém, quase transformou este lindo momento em um inferno: alguém teve a idéia de jerico de distribuir cem mil tochas feitas de papel de jornal, que seriam acesas pela platéia ao final, iluminando o Stadio Olimpico, que teria todas as suas luzes apagadas. Apesar do enorme risco inerente, por milagre nada de pior aconteceu. Mas no vizinho Monte Mario, uma salva de tiros de canhão e toneladas de fogos de artifício se fizeram ouvir quando a pira se apagou. Os fogos incendiaram as árvores, que por sua vez transformaram dezenas de carros que estavam estacionados sob elas em bolas de fogo. Se alguém planejou uma homenagem a Nero, foi bastante bem sucedido.

Série Olimpíadas

Squaw Valley 1960
Roma 1960

Ler mais