domingo, 17 de setembro de 2006

Escrito por em 17.9.06 com 0 comentários

Olimpíadas (XI)

E hoje é dia de Olimpíadas no átomo!

Cortina d'Ampezzo 1956


Após duas tentativas frustradas, a bela Cortina d'Ampezzo, situada nos alpes italianos, finalmente teve sua chance de sediar uma edição dos Jogos de Inverno. Contra ela concorreram a insistente Lake Placid e a novata Colorado Springs, ambas nos Estados Unidos, e a canadense Montreal, que curiosamente se candidatou tanto para as Olimpíadas de Inverno quanto para as de Verão de 1956. Pesou a favor da cidade italiana a fama de seus hotéis e lojas, e o fato de já ter sediado muitas competições de esqui, tendo instalações que precisavam de poucas reformas.

Os Jogos de Inverno de 1956 aconteceram entre 26 de janeiro e 5 de fevereiro. Deles participaram 821 atletas, sendo 134 mulheres, representando 32 nações em 24 provas de 8 esportes: bobsleding, combinado nórdico, esqui alpino, esqui cross country, hóquei no gelo, patinação artística no gelo, patinação no gelo em velocidade e saltos com esqui (clique aqui para ver todas as provas do programa). Na cerimônia de abertura, duas delegações chamaram a atenção: a União Soviética, participando pela primeira vez dos Jogos de Inverno; e a Equipe da Alemanha Unida (Deutchland gemeinsames Team), na verdade uma delegação conjunta dos atletas das Alemanhas Ocidental e Oriental, que disputaram os Jogos sob uma mesma bandeira, com as mesmas cores da Alemanha, mas com os Anéis Olímpicos na cor branca na faixa central. O Presidente do COI, o norte-americano Avery Brundage, era terminantemente contra a participação da Alemanha Oriental no evento, e considerava a formação da Alemanha Unida uma vitória pessoal, chegando a imaginar que esta delegação conjunta poderia ser o primeiro passo para uma unificação alemã. Infelizmente, a Alemanha Unida só duraria mais duas Olimpíadas, e a unificação teria de esperar mais de trinta anos.

Além destas duas delegações, e do discurso da esquiadora Giuliana Minuzzo, a primeira mulher a fazer o juramento do atleta, o grande destaque da Cerimônia de Abertura foi a Tocha. Para as Olimpíadas de Verão, a Tocha Olímpica deveria sempre ser acesa na Grécia, como mandava a tradição. Nos Jogos de Inverno, porém, ninguém era muito rígido quanto a isso, tanto que, nos Jogos anteriores, duas vezes a Pira foi acesa com fogo comum, pela organização, e, no primeiro com o revezamento da Tocha, ela havia sido acesa na Noruega, na lareira da casa de Sondre Nordheim, o pioneiro do esqui esportivo. Aproveitando-se de que os Jogos seriam disputados na Itália, os organizadores decidiram acender a Tocha em Roma, fazendo um revezamento composto exclusivamente por italianos, até o Estádio Olímpico, onde a tocha seria acesa pelo patinador Guido Caroli, que patinaria da entrada do Estádio até ela. Talvez os deuses gregos tenham se ofendido com a afronta de acender a Tocha logo em Roma, pois Caroli levou um senhor tropeção em um cabo de televisão, transmitido para o mundo inteiro. Felizmente, ele não deixou o fogo se apagar, se levantou como se nada tivesse acontecido, e foi acender a pira, sob aplausos da platéia. Falando nisso, os Jogos de Inverno de 1956 foram os primeiros transmitidos pela televisão.

O maior destaque dos Jogos de Inverno de 1956 foram os atletas da União Soviética, que já em sua primeira participação resolveram botar pra quebrar, ganhando mais medalhas que qualquer outra nação, quase o dobro de ouros da Áustria, que ficou em segundo no quadro não-oficial de medalhas. Além de ver seu time tirar o ouro do hóquei no gelo do Canadá, os soviéticos ganharam três das quatro provas da patinação em velocidade, sendo que nos 1.500 metros houve um inacreditável empate entre Yevgeny Grishin e Yuri Mihaylov, ambos cruzando a linha de chegada com o exato mesmo tempo. Sem que as regras da época previssem como proceder neste caso, o COI decidiu premiá-los com uma medalha de ouro cada. Pavel Kolchin foi o primeiro não-escandinavo a ganhar uma medalha no esqui cross country, um bronze nos 15 km, que ele repetiria nos 30 km. Ainda no cross country, a atleta Lyubov Kosyreva conquistaria o ouro nos 10 km, e a equipe masculina venceria o revezamento 4 x 10 km.

No esqui alpino, dois atletas apropriadamente dos alpes se destacaram: o austríaco Anton Sailer se tornou o primeiro homem a vencer as três provas em uma mesma edição dos Jogos, sendo que sua margem de vitória sobre o segundo colocado no slalom gigante, mais de 6 segundos, foi a maior da História do esporte, e tanto no slalom quanto no downhill ele quebrou o recorde da prova; e a suíça Madeleine Berthod, que no dia de seu aniversário de 25 anos completou o downhill com um tempo fantástico, quase cinco segundos à frente da segunda colocada. Nos saltos com esqui, os atletas da Finlândia, ouro e prata, inventaram um novo método, colando os braços ao corpo e se curvando para a frente, para melhorar a aerodinâmica, e que se mostrou tão eficiente que acabaria sendo adotado por todos os competidores deste esporte. E na patinação artística, pela primeira vez nos Jogos de Inverno disputada em um rinque coberto, houve um amplo domínio dos Estados Unidos, cujos atletas ganharam as três medalhas no masculino, mais ouro e prata no feminino.

Aliás, a medalha de ouro no feminino, Tenley Albright, merece destaque. Filha de um cirurgião, Albright começou a patinar aos 11 anos, após contrair uma forma branda de poliomielite, que não deixou suas pernas paralisadas, mas comprometeu sua força. Aos 17 ela participou das Olimpíadas de Inverno de Oslo, onde ganhou medalha de prata. Aos 21, era uma das favoritas para os Jogos de 1956 quando, durante um treinamento, apenas duas semanas antes do início das competições, passou por cima de um sulco no gelo. Ao cair, seu patim esquerdo cortou seu tornozelo direito. O corte foi tão violento que abriu a bota, passou pela carne, rompeu uma veia e danificou o osso. Albright foi medicada rapidamente, mas provavelmente ficaria fora dos Jogos. Ela decidiu então chamar seu pai, que chegou dois dias após o acidente, e a operou. A operação foi tão perfeita que, mesmo com dor, Albright conseguiu uma apresentação impecável, ganhando nota máxima de dez dos onze jurados. Emocionada, após os Jogos ela decidiu estudar medicina em Harvard, e se tornou ela mesma uma cirurgiã.

Graças às modernas e confortáveis instalações, os Jogos de Inverno de 1956 foram um espetáculo. A única frustração foi a da torcida local, que, após tanta espera, viu seus atletas ganharem apenas três medalhinhas, um ouro e duas pratas, todas no bobsleding - ouro e prata na categoria dois ocupantes, prata na categoria quatro ocupantes. Os Jogos de Inverno ainda não eram a disputa ferrenha entre capitalismo e comunismo que as Olimpíadas de Verão haviam se tornado, mas a União Soviética, com grande parte de seu território gelado, viu ali mais uma excelente oportunidade para provar sua supremacia. Por um lado, isto foi bom, pois elevou o nível da competição. Por outro, restringiu ainda mais a lista dos países que ganhariam medalhas nos esportes de inverno, que já era pequena. Para o COI estava tudo bem. Afinal, os Jogos são uma disputa entre atletas, não entre nações.

Melbourne 1956


O mundo do pós-Guerra era bem mais complicado, e grande parte desta complicação advinha do dinheiro, escasso naquela época. Para que as cidades escolhidas como sedes tivessem tempo suficiente para arrecadar dinheiro e se preparar para hospedar os Jogos, portanto, o COI decidiu escolhê-las com bastante antecedência: a sede dos Jogos de 1952 fora escolhida na reunião de 1947; a sede para 1956, com antecedência ainda maior, na reunião do COI de 1949. Por algum motivo, nesta reunião ficou claro que o COI queria fazer jogos fora da Europa, os primeiros desde 1932, pois quase todas as candidatas aprovadas eram das Américas: Buenos Aires, Cidade do México, Montreal, Chicago, Los Angeles, Filadélfia, Mineápolis e São Francisco. A única candidata não-americana era Melbourne, capital da província de Victoria, na longínqua Austrália. Surpreendentemente, Melbourne acabou justamente sendo a escolhida, por 21 votos contra 20 dados a Buenos Aires.

No início, houve certa preocupação quanto a esta escolha. Afinal, se todo mundo já acha que a Austrália fica longe hoje em dia, imaginem em 1949 - muitas das nações sequer teriam dinheiro para pagar por esta longa viagem. Além disso, uma Olimpíada no Hemisfério Sul teria que ser disputada em outra época que não os meses de julho e agosto, quando a Austrália estaria passando pelo inverno. Pode parecer bobagem, mas todos os atletas do Hemisfério Norte estavam mais do que acostumados a treinar no inverno e competir no verão, e ter que inverter esta lógica poderia resultar não apenas em baixo desempenho, mas também em contusões. Mesmo com todas estas preocupações, o COI, acreditando na capacidade dos australianos de organizar bons Jogos, e crendo que até 1956 soluções práticas seriam encontradas, manteve sua escolha.

De fato, houve uma imensa boa vontade dos participantes. Nações mais ricas, como Estados Unidos, União Soviética e Grã-Bretanha, gastaram verdadeiras fortunas para enviar seus mais fortes atletas, se esmerando para não diminuir o brilho do certame. Nações mais pobres, como as da África e da América do Sul, enviaram delegações reduzidas, mas ainda assim fizeram questão de embarcar todos os seus atletas de ponta. Os australianos também se prepararam para receber a maior competição esportiva do mundo de braços abertos, embora problemas governamentais quase tenham posto tudo a perder: nos sete anos entre a escolha de Melbourne como sede e o efetivo início da Olimpíada, se sucederam no poder os partidos Conservador e Trabalhista, cada qual com sua própria visão de como o dinheiro para a realização dos Jogos deveria ser gasto. Faltando pouco menos de dois anos para a abertura do evento, a província de Victoria declarou que o dinheiro havia acabado, e que não tinha como concluir as obras. O Primeiro-Ministro, do partido oponente, se recusou a liberar mais dinheiro. O impasse só foi resolvido com uma visita de inspeção do COI, em abril de 1955, quando ficou decidido um empréstimo de 4,5 milhões de dólares pelo Governo-Geral. Mesmo com o dinheiro chegando, as obras estavam muito atrasadas - a construção da Vila Olímpica, a primeira na história dos Jogos que iria abrigar homens e mulheres em um só local, sequer havia começado - e Brundage chegou a considerar uma troca de sede, levando os Jogos de 1956 para Roma, que havia sido escolhida para sediar os de 1960, e já estava com suas obras bem mais adiantadas. Somente após muitos apelos do povo australiano esta idéia foi posta de lado, mas até o último momento os Jogos de 1956 perigaram ser adiados. O principal estádio da competição, o Melbourne Cricket Ground, foi totalmente reformado em uma correria jamais vista - daquelas que a gente até fica com medo de que caia tudo por ter ficado mal-feito - sendo que a pintura das tribunas de honra só foi concluída horas antes da Cerimônia de Abertura, submetendo os Chefes de Estado convidados a um constrangedor cheiro de tinta. Os atletas tiveram de se hospedar em uma Vila Olímpica ainda em construção, que só ficou totalmente pronta após o início de algumas competições. Felizmente, apesar de apressadas, as obras foram bem executadas, e uma vez começados, os Jogos não sofreram mais com elas.

Muito pior que este atraso, porém, foi o curioso episódio envolvendo a equitação: na época, a Austrália tinha leis rígidas quanto à entrada de animais estrangeiros em seu território, pois suas autoridades temiam que doenças ainda não existentes em solo australiano poderiam ser trazidas com eles. O Governo-Geral não estava disposto a abrir exceções nem para as Olimpíadas, e informou ao COI que todos os cavalos que fossem competir teriam de ficar em quarentena, passando por rigorosos exames, separados de seus cavaleiros. Nenhum atleta aceitou tal imposição, e a Federação Equestre Internacional também não aceitava ver seu esporte fora do programa. Pressionado, o COI acabou por tomar uma decisão inusitada: os eventos da equitação ocorreriam em Estocolmo, capital da Suécia, entre os dias 10 e 17 de junho de 1956. Para todos os efeitos, tais competições contaram como parte das Olimpíadas, mesmo tendo sido realizadas cinco meses antes, e a meio mundo de distância.

Mas o principal problema de 1956, verdade seja dita, não foi culpa da Austrália, mas do mundo turbulento da época. Em 1954, eclodira a guerra da independência da Argélia. No início de 1956, o Egito decidiu nacionalizar o Canal de Suez, o que deu início a uma guerra contra Israel, que terminou quando Grã-Bretanha e França bombardearam o local e tomaram posse do Canal. A poucos dias do início da Olimpíada, o exército da União Soviética invadiu a Hungria para acabar com uma rebelião de estudantes. A conseqüência? Boicotes. Egito, Líbano e Iraque exigiram que o COI impedisse Israel de participar, e, diante da recusa, resolveram eles mesmos não enviar seus atletas. Espanha, Holanda e Suíça também decidiram não enviar seus atletas, em protesto contra a invasão da Hungria. Sob pressão da opinião pública, o governo da Suíça voltou atrás, mas seus atletas, com os treinamentos interrompidos, não fizeram uma boa campanha, ganhando apenas uma medalha de bronze. A delegação da Hungria, que já estava no meio da viagem quando seu país foi invadido, foi recebida calorosamente e apoiada durante toda a competição pelos australianos, o que lhe deu um ânimo a mais para vencer suas pelejas, principalmente as que eram disputadas contra soviéticos. O último boicote foi o da China: o vôo que levava seus atletas já estava na metade do caminho quando o governo chinês exigiu que o COI proibisse a participação de Taiwan, até hoje considerada pela China continental como uma província rebelde, e não um país independente. Diante da recusa do COI, a China não somente mandou seu vôo retornar, como também se desfiliou do COI, não participando de nenhuma Olimpíada até 1984. Neste cenário turbulento, muitos foram os que imaginaram que os Jogos seriam cancelados, mas Brundage foi firme em sua posição de que os Jogos são uma disputa entre indivíduos, e não entre nações. Tão firme que chegou a declarar publicamente: "eu não permitirei que nenhum governo do mundo use os Jogos para propósitos políticos".

Graças a esta posição firme, mesmo com todos estes contratempos, os Jogos de Melbourne, realizados entre 22 de novembro e 8 de dezembro, foram um sucesso, e acabaram ganhando o apelido de "Jogos da Amizade". Deles participaram 3.342 atletas, sendo 384 mulheres, competindo em 151 provas de 19 esportes: atletismo, basquete, boxe, canoagem, ciclismo, equitação, esgrima, futebol, ginástica artística, hóquei, levantamento de peso, luta olímpica, natação, pentatlo moderno, polo aquático, remo, saltos ornamentais, tiro esportivo e vela, além de beisebol e futebol australiano como esportes de demonstração (clique aqui para ver todas as provas do programa). Mesmo com os boicotes e a imensa distância, 67 nações enviaram delegações, entre elas a Alemanha Unida, em sua primeira participação em uma Olimpíada de Verão.

Como era impossível levar a Tocha Olímpica da Grécia para a Austrália a pé, foi encontrada uma solução alternativa: o fogo da Tocha foi usado para acender um lampião, que atravessou o oceano em um avião da companhia australiana Qantas, sendo novamente usado para acender uma Tocha já em solo australiano. A honra de acender a pira coube ao corredor Ron Clarke, que entre 1963 e 1968 ganharia quase todas as provas de meio-fundo e fundo que disputasse - ironicamente, exceto em Olimpíadas. Detalhe curioso: enquanto carregava a tocha, um vazamento de querosene pôs o braço de Clarke em chamas, mas mesmo assim ele não parou até cumprir sua missão.

Clarke ainda era uma promessa em 1956, mas isso não significa que os donos da casa não tenham brilhado: ao todo, a Austrália conseguiu 13 medalhas de ouro, oito delas apenas na natação. No masculino, Murray Rose se tornou o primeiro atleta a ganhar mais de um ouro no estilo livre desde Johnny Weissmuller em 1924; no feminino, surgiu uma verdadeira lenda das piscinas, Dawn Fraser, de apenas 19 anos. Nadadora excepcional, Fraser crescia ainda mais quando competia contra sua compatriota Lorraine Crapp, de apenas 17 anos, a quem odiava com todas as suas forças. Nos 100 metros livre, Crapp e Fraser quebrariam os recordes olímpico e mundial várias vezes durante as eliminatórias, até o ouro ficar com Fraser. Nos 200 metros foi a vez de Crapp ganhar, novamente quebrando o recorde olímpico. E no revezamento 4 x 100 metros livre, com as duas na piscina, a Austrália não tomou conhecimento das rivais, ganhando o ouro e batendo os recordes olímpico e mundial, dois segundos à frente das norte-americanas. A alegria pela conquista foi tanta que Fraser e Crapp até se abraçaram no pódio. Curiosidade: em 1956 finalmente foi incluída na natação a categoria borboleta, até então uma variação do nado peito, inventada pela brasileira Maria Lenk.

Outras quatro medalhas de ouro australianas vieram do atletismo, três delas com Betty Cuthbert, nos 100 metros, 200 metros, e no revezamento 4 x 100 metros. Nesta última, Betty, de apenas 18 anos, fez parte da mesma equipe de Shirley Strickland, 31 anos, que também ganhou o ouro dos 80 metros com barreiras. Caso alguém aí esteja curioso, o ouro que falta na conta da Austrália veio no ciclismo, 2.000 metros tandem, categoria disputada naquela curiosa bicicleta onde duas pessoas pedalam ao mesmo tempo, com Joey Browne e Tony Marchant.

Voltando ao atletismo, novos ídolos surgiram, enquanto antigos tentaram manter seus primados. Emil Zatopek, já com 34 anos, decidiu se dedicar exclusivamente à maratona, planejando se aposentar com uma vitória na prova. Seu maior rival, o francês Alain Mimoun, também teve a mesma idéia, acreditando que, se dedicando apenas à maratona, teria chances de vencer Zatopek. Talvez devido a um acentuado aclive no percurso, Zatopek não conseguiu aplicar sua arrancada destruidora, e terminou apenas em sexto lugar. O aplicado e supersticioso Mimoun, que notou que um francês ganhava o ouro na maratona a cada intervalo de 28 anos - Michel Théato em 1900, Boughèra El Ouafi em 1928 - finalmente conseguiu seu tão sonhado ouro.

Nos 5.000 metros e 10.000 metros, Zatopek teve um substituto à altura, o soviético Vladimir Kuts, que possuía a curiosa tática de disparar com um sprint monumental logo após o tiro de largada, apenas conservando a distância obtida durante o restante da prova, aumentando-a com novas arrancadas se necessário. O estilo de Kuts era tão inusitado que ninguém conseguia acompanhá-lo. O britânico Roger Bannister certa vez comentou sobre ele que "é impossível vencer um homem em quem a natureza resolveu implantar dois motores nos pés". Bannister não sabia, mas o vigor de Kuts não vinha de motores nos pés, mas de um programa atlético experimental desenvolvido pelos médicos da marinha soviética. Através apenas de exercícios físicos, a capacidade cardíaca de Kuts foi elevada ao extremo, o que lhe proporcionava uma oxigenação fantástica, e permitia suas arrancadas impressionantes. Estes exercícios, porém, cobraram um alto preço: seu coração crescera de forma descomunal, e, em 1960, aos 33 anos de idade, Kuts teve um infarto fortíssimo, que o deixou com sérios problemas de pressão, respiração e locomoção. Ele ainda teria mais três infartos até 1975, quando teve um fulminante. Até hoje, Kuts é citado como exemplo dos detratores da política esportiva comunista, onde os resultados importavam mais do que os atletas.

Falando em comunismo, no futebol a Hungria não pôde enviar seu fabuloso time dos Jogos anteriores, a esta altura já exilado na Espanha. Somando isso à ausência de seleções de prestígio como Suécia, Itália, Uruguai e Argentina, o torneio de 1956 foi dominado pelo Leste, com União Soviética, Iugoslávia, Bulgária e seus amadores de fachada ficando com as três medalhas. A Hungria poderia se vingar de seus invasores soviéticos no Pólo Aquático, em uma semifinal sangrenta - não apenas no sentido figurado. Após muitas agressões subaquáticas, o soviético Valentin Prokopov acertou o olho do húngaro Ervin Zador, que começou a sangrar na piscina. A platéia, que já estava vaiando os soviéticos por causa da invasão à Hungria, começou a ameaçá-los verbalmente, e daí para que começasse uma briga de torcidas que se alastrou para um combate entre os jogadores foi um pulo. A questão só se resolveu com a chegada da tropa de choque da polícia de Melbourne. Sem condições de terminar a partida, os juízes deram a vitória para a Hungria, que já estava ganhando por 4 a 0. A Hungria acabou ficando com o ouro, ao derrotar a Iugoslávia na final por 4 a 2.

Mas nem tudo entre Hungria e União Soviética foi porrada. A húngara Agnes Keleti, 35 anos, ganhou três ouros na ginástica, nas barras assimétricas, equilíbrio na trave e nos exercícios de solo. Sua maior rival, a soviética Larissa Latynina, de apenas 21, ganhou o ouro no salto sobre o cavalo, e dividiu com Keleti o ouro do solo, graças a um empate. Keleti, no pódio, fez questão de dar um caloroso abraço em Latynina. Elas eram de países inimigos, mas amigas entre si, como ditava o ideal olímpico.

Outra bela história neste estilo envolveu o norte-americano Harold Connolly, do arremesso do martelo, e a tchecoslovaca Dana Fitokova, do arremesso do disco. Ele, um atleta singular, que possuía o braço esquerdo mais curto que o direito devido a uma complicação no parto, competia calçado com enormes sapatilhas de balé - que, segundo ele, ajudavam no lançamento - e fazia questão de paquerar todas as moças bonitas da Vila Olímpica, não importando sua nacionalidade. Ela, uma bailarina que havia se interessado pelo esporte para melhorar sua capacidade pulmonar, muito bonita para os padrões dos esportes de arremesso, que gostava de prender os cabelos com maria-chiquinhas, usar shorts mais cavados que o convencional, e treinar ao som de Richard Strauss. Ambos ganharam o ouro em suas modalidades, e, durante uma troca de olhares na Vila, se apaixonaram. Ele não falava tcheco, ela não falava inglês, mas mesmo assim eles conseguiam burlar a vigilância das delegações e se encontrar para namorar. Fitokova teve várias chances para fugir de sua delegação, mas temia represálias a seus parentes. Após os jogos, eles continuaram a se corresponder, e Connolly decidiu pedir uma permissão ao Governo da Tchecoslováquia para se casar com ela. Apoiado pelo Departamento de Estado dos EUA e pela imprensa internacional, que adorou a história, em 1957 ele finalmente conseguiu o visto, e no dia 27 de março eles se casaram em Praga, tendo Dana e Emil Zatopek como padrinhos. Fitokova se naturalizou americana, se mudou para Boston, e teve quatro filhos. Infelizmente, com o tempo o casamento começou a ter problemas, e eles se divorciaram em 1974.

Do atletismo também viria o primeiro ouro da Grã-Bretanha desde 1932, com Christopher Brasher nos 3.000 metros steeplechase. Pouco cotado para vencer a prova, Brasher ganhou a prova ao se espremer entre o norueguês Ernst Larsen e o húngaro Sandor Rozsnyoi para pular uma barreira de madeira. Graças a esta atitude, os juízes decidiram desclassificá-lo, sob a alegação de que tinha atrapalhado Larsen, e dar o ouro para Rozsnyoi. Em um gesto de esportividade, tanto Larsen quanto Rozsnyoi procuraram os juízes, alegando que não se sentiram nem um pouco prejudicados com a manobra de Brasher. Ainda assim, os juízes só anunciaram a vitória de Brasher após uma reunião de três horas.

O Brasil trouxe de Melbourne uma única medalha, de ouro, de Adhemar Ferreira da Silva no salto triplo, o primeiro brasileiro bicampeão olímpico. Com uma delegação reduzida, de apenas 48 atletas, o país até que obteve boas colocações, mas não tão boas quanto nos Jogos anteriores. José Telles da Conceição, decidindo competir nos 200 metros do atletismo, chegou em sexto lugar, a quatro décimos do bronze; Severino Pereira, no tiro, modalidade carabina atirador deitado, também chegou perto, ficando em oitavo, mas apenas a um acerto do bronze; e nos 1.000 metros do ciclismo, Anésio Argenton perdeu nas oitavas-de-final. No basquete, o Brasil novamente caiu, na segunda fase, no mesmo grupo de Estados Unidos e União Soviética, o que acabou causando sua eliminação do torneio. Este time, pelo menos, revelaria jogadores como Wlamir e Amaury, que seriam campeões do mundo em 1959.

Outro brasileiro que merece destaque, mesmo sem ter ganho medalha, é o pugilista Éder Jofre, que perdeu nas quartas-de-final da categoria galo para o chileno Claudio Barrientos, em uma controvertida decisão dos jurados. Jofre, no futuro, se tornaria um dos maiores ídolos do boxe brasileiro, sendo campeão mundial dos galos em 1960, unificando o cinturão em 1963, e sendo campeão dos penas, a categoria imediatamente superior, dez anos depois, em 1973. Hoje, Jofre é considerado por muitos como o maior boxeador que o Brasil já teve.

Por fim, um dos momentos mais marcantes dos Jogos de 1956 foi a Cerimônia de Encerramento. Atendendo à sugestão de uma carta enviada por John Ian Wing, um jovem australiano aprendiz de marceneiro e descendente de chineses, o desfile das delegações não ocorreu como na Cerimônia de Abertura, com cada delegação marchando alinhada após sua bandeira. No encerramento, todos os atletas entraram no Cricket Ground misturados, sem obrigação de bandeira, marcha ou uniforme, em uma verdadeira festa, onde eles eram os homenageados principais. Dizia a carta: "Durante os jogos, existe apenas uma nação. Guerras, política e nacionalidades são esquecidas. O que mais poderia qualquer um querer se o mundo todo se fizesse em uma só nação?". Faz sentido. Tanto que até hoje o Encerramento é assim, com todos os atletas misturados em uma só nação.

Série Olimpíadas

Cortina d'Ampezzo 1956
Melbourne 1956

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