Seguindo com a série sobre as produções do Studio Ghibli, chegando hoje ao seu primeiro vencedor do Oscar!
Meus Vizinhos, os Yamadas
Hohokekyo Tonari no Yamada-kun
1999
Nono-Chan é uma das tirinhas em quadrinhos mais famosas do Japão. Criada por Hisaichi Ishii, ela acompanha a vida da família Yamada, composta pelo pai, Takashi, a mãe, Matsuko, a avó, Shige, o filho mais velho, Noboru, e a filha mais nova, Nonoko, apelido Nono-Chan. Publicada até hoje na revista Asahi Shimbun, onde estreou em de outubro de 1991, originalmente a tirinha se chamava Tonari no Yamada-kun, e acompanhava as desventuras da família como um todo. Nonoko, entretanto, era a personagem mais popular dentre os leitores, e, querendo capitalizar sobre essa popularidade, em abril de 1997 Ishii mudaria o nome da tirinha para Nono-chan e faria dela a personagem principal - o estilo das histórias, na verdade, continuaria o mesmo, mas agora elas eram narradas sob a ótica de Nonoko, sem que fossem publicadas novas tirinhas nas quais ela não estava presente.
Seria justamente em 1997 que Isao Takahata decidiria que seu próximo projeto no Studio Ghibli seria uma adaptação de Tonari no Yamada-kun. A ideia não surgiria do nada, já que, depois de Pom Poko, Takahata queria trabalhar em um filme com a temática de família, mas que não fosse de drama, e achou que a comédia nonsense da tirinha era justamente o que ele estava procurando. Ele inclusive faria questão de que os personagens tivessem o mesmo visual caricato da tirinha, com o estilo de Ishii sendo imitado pelos animadores do Studio Ghibli, ao invés de fazer versões dos personagens mais de acordo com o visual das produções anteriores do estúdio.
Os Yamadas são uma estereotípica família de classe média japonesa: Takashi trabalha em um escritório, tem de pegar o trem para chegar ao trabalho, ao chegar em casa quer ler seu jornal, fumar um cigarro e fazer suas refeições em paz, e é viciado em pachinko. Matsuko é dona de casa e não trabalha fora; infelizmente ela não é muito competente em nenhuma de suas tarefas, com a casa normalmente estando bagunçada e as refeições frequentemente sendo arroz com curry. Shige, que é mãe de Matsuko, tem 70 anos e é bastante ativa, mas igualmente teimosa e conservadora. Noboru, que tem cerca de 15 anos, não é muito brilhante na escola, não gosta de esportes, e está começando a se interessar por garotas. E Nonoko, que tem cerca de 10 anos, é um espírito livre, cheia de imaginação e criatividade, extremamente simpática e sociável. A família também tem um cachorro, Pochi, que parece estar sempre emburrado, mas aparece pouco no filme.
O filme é dividido em vários episódios (chamados pelo Studio Ghibli de "vinhetas"), cada um deles adaptação de uma ou mais tirinhas de Tonari no Yamada-kun publicadas até então, com o roteiro ficando a cargo do próprio Takahata. Antes de cada episódio aparece na tela um título, e ao final um haikai, um poema japonês curto, sempre relacionado ao tema do episódio. No início do filme, que inclui a abertura e o episódio mais comprido, no qual Nonoko se perde no shopping, Nonoko atua como narradora, em uma referência ao estilo de Nono-Chan, mas, no restante da produção, o narrador é um observador onipresente sem relação com a família. Vale citar que um dos episódios faz referência a um antigo e popular super-herói da TV japonesa, Gekko Kamen.
Meus Vizinhos, os Yamadas costuma ser citado como "o primeiro filme do Studio Ghibli a ser 100% produzido por computação gráfica", mas isso não é verdade. Tonari no Yamada-kun, assim como muitas outras tirinhas japonesas, é desenhada e pintada com aquarelas, e Takahata queria que o filme tivesse a mesma aparência. Para que o efeito fosse obtido, os animadores teriam de produzir o triplo de ilustrações de uma animação comum, já que cada frame precisava de três ilustrações quase idênticas, que então seriam digitalizadas, combinadas e coloridas por computação gráfica, ao invés de filmadas usando a técnica tradicional - vindo daí a confusão e a informação de que o filme não teria usado desenhos feitos à mão. Meus Vizinhos, os Yamadas seria até então a produção do Studio Ghibli com o maior número de ilustrações produzidas, e também a segunda mais cara, ficando atrás apenas de Princesa Mononoke; a maior parte dos custos seria coberta pela Walt Disney Japan, que, sabedora do sucesso da tirinha, tinha fé no potencial do filme.
Por incrível que pareça, entretanto, o filme, que estrearia em 17 de julho de 1999, foi um grande fracasso de bilheteria: com orçamento de 2 bilhões de ienes, renderia somente 1,56 bilhão, e não se pagaria nem mesmo com a renda do home video e do merchandising associado. Ao ser perguntado sobre as razões do fracasso, o produtor Toshio Suzuki diria que a bilheteria estava dentro do esperado, e que a sensação de fracasso veio de uma "má impressão" causada por "expectativas altas demais". A crítica, pelo menos, elogiaria bastante o filme, destacando seu estilo visual, sua "sensação de tranquilidade" e seu humor típico das tirinhas japonesas.
Um dos motivos para a baixa bilheteria apontados pela imprensa especializada seria que, na época, a Tokuma Shoten, a quem o Studio Ghibli pertencia, estava em uma disputa comercial com a Toho, que havia distribuído todos os filmes do estúdio desde Memórias de Ontem, e não queria que eles distribuíssem mais esse; a Toei, opção mais óbvia, alegaria já estar com muitos filmes para distribuir e não saber se daria conta de mais um, o que faria com que a distribuição coubesse à Shochiku, responsável pela distribuição dos filmes da Bandai-Namco, que teria metido os pés pelas mãos ao fazer seu trabalho - por exemplo, muitos espectadores relataram que as salas dos cinemas estavam muito vazias, o que pode ter se revertido em propaganda boca a boca negativa, mas, segundo Suzuki, pode ter sido resultado de a Shochiku ter programado o filme para salas grandes demais, diferentemente da Toho, que preferia programar os filmes do Studio Ghibli para um número maior de salas, mas todas de pequena ou média capacidade.
Bizarramente, Meus Vizinhos, os Yamadas seria um grande sucesso fora do Japão, se tornando inclusive a única animação japonesa selecionada para o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA). O diretor francês Armandine Fourdon e o roteirista norte-americano Michael Arndt declarariam terem sido bastante influenciados pelo filme, com Arndt chegando a declarar que Pequena Miss Sunshine e Toy Story 3 não existiriam se ele não tivesse assistido Meus Vizinhos, os Yamadas. Por causa do fracasso nos cinemas japoneses, o filme não seria lançado nos cinemas em mais lugar nenhum; nos Estados Unidos, ele seria lançado em DVD em 2005 pela Disney, em um combo com Pom Poko, e na Europa seria lançado em DVD e Blu-ray em 2010 pela Buena Vista - vale citar também que Meus Vizinhos, os Yamadas seria o primeiro filme do Studio Ghibli a ser lançado em DVD no Japão, em 2000, com os anteriores somente tendo sido lançados até então em VHS. A dublagem da Disney conta com James Belushi como Takashi, Molly Shannon como Matsuko, Daryl Sabara como Noboru, Liliana Mumy como Nonoko, Tress MacNeille como Shige, e David Ogden Stiers como o narrador.
Além de ser adaptada para um filme do Studio Ghibli, Nono-Chan daria origem a uma série em anime produzida pela Toei, exibida pela TV Asahi entre 7 de julho de 2001 e 28 de setembro de 2002, para um total de 61 episódios, alguns deles adaptando tirinhas famosas, outros trazendo histórias inéditas. Talvez provando que o sucesso em quadrinhos não garante o sucesso em mídia audiovisual, a série também não teria boa audiência.
A Viagem de Chihiro
Sen to Chihiro no Kamikakushi
2001
Quando criança, Hayao Miyazaki morou próximo a uma casa de banhos, a qual ele via como um local mágico e cheio de segredos, principalmente porque, ao lado de cada banheira, havia uma pequena porta, que ele sempre imaginou onde iria dar. Após Princesa Mononoke, ele pensaria em escrever uma história ambientada em uma casa de banhos, mas suas duas primeiras tentativas, uma delas uma adaptação do livro Kiri no Muko no Fushigi na Machi, de Sachiko Kashiwaba, seriam rejeitadas por Suzuki, que acharia que as histórias não atrairiam o interesse do público.
Todo verão, entretanto, Miyazaki viajava para uma casa de sua propriedade nas montanhas, com a esposa, filhos e, por vezes, amigos dos filhos. Em 1999, ele levaria com a família cinco amigas de sua filha, todas por volta dos dez anos de idade, e decidiria escrever um filme com cuja protagonista elas pudessem se identificar. Para buscar inspiração, ele leria várias das revistas que elas levariam para a viagem, como a Nakayoshi e a Ribon, mas ficaria frustrado ao perceber que todas as histórias eram de romance, que ele imaginava não ser o estilo preferido das meninas. Ele, então, decidiria escrever uma história de aventura, pontuada por elementos da cultura japonesa, protagonizada por uma menina de dez anos - e ambientado em uma casa de banhos.
A Viagem de Chihiro é um isekai, história na qual o protagonista vai parar em um mundo estranho e tem de se adaptar às suas regras - sendo o melhor exemplo no Ocidente Alice no País das Maravilhas. Sua protagonista é a menina Chihiro, que está se mudando de cidade com os pais, e não está nada satisfeita com isso. Quando seu pai erra o caminho, os três se veem diante de um antigo templo, que decidem explorar, indo parar, sem saber, no mundo espiritual. Os pais de Chihiro são feitos prisioneiros, e a menina recebe a ajuda do dragão Haku, que consegue para ela um emprego na casa de banhos da bruxa Yubaba, para que ela não tenha o mesmo destino. A princípio revoltada, Chihiro acaba descobrindo uma grande força interior, e decide tentar resgatar seus pais para que a família possa retornar ao mundo material.
A produção começaria em fevereiro de 2000, com orçamento de 1,9 bilhão de ienes, o padrão na época para uma nova produção, já que, com o uso cada vez maior da computação gráfica, os filmes de animação haviam ficado bem mais caros. Todos os personagens do filme seriam desenhados à mão, depois passados para o computador e então aprimorados, o que faria com que o resultado final fosse belíssimo, diferente de tudo o que já havia se visto em animação japonesa desde então. Uma preocupação de Miyazaki seria que a computação gráfica "roubasse o show", então ele coordenaria pessoalmente o processo, para garantir que, mesmo com o uso da computação, o filme se parecesse com uma animação totalmente tradicional; ele também evitaria que o filme tivesse personagens, cenários ou outros elementos apenas por sua beleza, querendo que tudo tivesse uma função na história, para não desviar o foco das plateias - até mesmo Chihiro deveria ser uma menina totalmente normal, sem beleza acima da média ou qualquer coisa em sua aparência que chamasse atenção.
Outra preocupação de Miyazaki seria com a duração do filme: ele se empolgaria com o roteiro, e, durante as filmagens, concluiria que, se fizesse toda a história do jeito que estava, o filme teria mais de três horas. Ele cortaria várias cenas e condensaria outras durante as filmagens, sempre tentando manter o que já estava pronto e descartar o que ainda não havia sido produzido. Mesmo com todos esses esforços, o filme ainda terminaria com 125 minutos, menos que Princesa Mononoke, mas ainda assim mais que o normal para um filme de animação, principalmente para o mercado internacional.
Falando nisso, a Disney concordaria em financiar 10% do filme em troca do "direito de primeira recusa" para sua distribuição nos Estados Unidos - o que significava que o Studio Ghibli só poderia negociar com outro distribuidor após a Disney dizer que não iria fazê-lo. O primeiro executivo da Disney a assistir o filme seria John Lasseter, animador da Pixar que havia ficado amigo pessoal de Miyazaki, e tinha como principal função encontrar "elementos problemáticos" em produções estrangeiras que a Disney quisesse lançar nos Estados Unidos. Após assistir A Viagem de Chihiro, Lasseter ficaria boquiaberto, e diria ao CEO da Disney, Michael Eisner, que eles tinham de lançar o filme o mais rápido possível. Eisner nomearia Lasseter produtor executivo para a versão em inglês do filme, e ele reuniria uma equipe jamais vista antes para uma dublagem, que incluía Kirk Wise, co-diretor de A Bela e a Fera, Donald W. Ernst, produtor de Aladdin, e os roteiristas Cindy Davis Hewitt e Donald H. Hewitt, que tinham duas missões ingratas: "americanizar" o filme o menos possível e fazer com que os diálogos em inglês se encaixassem com as bocas dos personagens falando em japonês, para que erros de sincronia, comuns nesses casos, não distraíssem a atenção do público. Os dois fariam um trabalho elogiadíssimo, com o roteiro sendo considerado um dos pontos altos da versão em inglês. O elenco da versão dublada conta com Daveigh Chase como Chihiro, Jason Marsden como Haku, Susan Egan como Lin, e, como Yubaba, Suzanne Pleshette, em seu último trabalho antes de sua morte, além dos regulares da Disney David Ogden Stiers e John Ratzenberger, respectivamente como Kamaji e Aniyaku.
A Viagem de Chihiro é fortemente inspirado pelo folclore xinto-budista. Seu principal cenário é uma casa de banhos frequentada por várias criaturas folclóricas japonesas, incluindo kami, os espíritos que, segundo o xintoísmo, habitam todas as coisas, vivas ou não. O fato de Chihiro ter de se adequar ao ritmo do mundo espiritual serve como um rito de passagem, com a personagem amadurecendo, como se deixasse de ser criança e se tornasse adulta. O filme também faz uma crítica à influência do ambiente sobre as pessoas, com personagens como os pais de Chihiro, o Sem-Face e até mesmo, de uma certa maneira, Yubaba, se comportando de forma contrária à sua verdadeira natureza apenas por estarem cercados de más influências ou por se verem em situações nas quais imaginam que as regras sociais não se aplicam. O consumismo ocidental também é fortemente criticado no filme, com o dinheiro tendo o poder de mudar a forma de agir das pessoas e a maneira como elas veem o mundo - o pai de Chihiro fala para ela várias vezes que eles não vão ter nenhum problema explorando o templo abandonado porque ele "tem cartões de crédito e dinheiro".
Dois princípios fundamentais da sociedade japonesa também podem ser identificados no filme: o mottainai, ou "arrependimento pelo desperdício", segundo o qual todos os recursos devem ser utilizados plenamente, sem que nada ainda útil seja descartado; e o on, a "dívida moral", segundo o qual uma pessoa se sente obrigada a retribuir quando alguém a ajuda - mesmo Yubaba sendo uma péssima chefe, Chihiro tenta ajudá-la de várias formas. Yubaba se veste com roupas ocidentais e seu escritório é decorado como se fosse europeu, em contraste com o restante da casa de banhos, tradicionalmente japonesa; isso é visto como uma crítica à influência europeia na sociedade japonesa, principalmente em relação ao capitalismo e à exploração econômica - ao contratar Chihiro, Yubaba decide chamá-la de Sen, que significa "mil", e é uma outra forma de se ler o ideograma que representa a primeira sílaba de seu nome, chi, palavra ligada à evolução espiritual, o que é visto como uma alegoria do pensamento capitalista de que tudo deve ter um valor. Mudando o nome da menina, a bruxa também obtém poder sobre ela, o que é outra crença japonesa.
Miyazaki é conhecido por ser radicalmente contra a ocidentalização da cultura japonesa, e muitos dos elementos do filme podem ser vistos como um posicionamento do autor nesse sentido, como os letreiros em neon próximos à casa de banho, e o fato de o pai de Chihiro dirigir um Audi e vestir camisas polo. Finalmente, o filme mais uma vez possui um forte apelo ecológico, criticando a poluição das águas, o descarte indiscriminado de lixo, e a destruição de áreas naturais para a expansão das cidades.
A Viagem de Chihiro estrearia nos cinemas japoneses em 20 de julho de 2001, distribuído pela Toho. Somente nos primeiros três dias, renderia 1,6 bilhão de ienes, um recorde até hoje. Ele também seria recordista no número de semanas seguidas em primeiro lugar nas bilheterias japonesas, ficando onze (16 no total), e o primeiro filme japonês a render mais de 200 milhões de dólares em bilheteria internacional sem contar os Estados Unidos. Somando a bilheteria do mundo inteiro, ele renderia 31,68 bilhões de ienes, sendo até hoje o filme de maior bilheteria internacional da história do Japão. Além de nos Estados Unidos e Canadá, a Disney distribuiria o filme na França, Hong Kong, Cingapura e Taiwan; ele também estrearia em diversos outros países da Europa, Ásia e América do Sul, se tornando o filme do Studio Ghibli a ser exibido nos cinemas de mais países diferentes - no Brasil, ele estrearia em 18 de julho de 2003, distribuído pela Europa Filmes. A Viagem de Chihiro também seria o segundo filme do Studio Ghibli a estrear nos cinemas da China, em 21 de junho de 2019.
O filme também seria aclamado pela crítica, sendo hoje considerado um dos melhores e mais bonitos filmes de animação de toda a história. Uma de suas características que mais chama atenção é que ele pode ser aproveitado, com igual intensidade tanto por crianças quanto por adultos. A Viagem de Chihiro venceria os prêmios de Melhor Filme e Melhor Filme Animado no festival de cinema da Mainichi Shimbun e o de Melhor Filme da Academia de Cinema Japonesa, mas a que é considerada sua maior conquista e principal responsável pelo seu sucesso internacional foi o Oscar de Melhor Filme de Animação, na segunda vez em que o prêmio foi conferido (na primeira, quem ganhou foi Shrek), derrotando A Era do Gelo, Spirit: O Corcel Indomável, e duas produções Disney, Planeta do Tesouro e Lilo & Stitch.
Ainda hoje, mais de 20 anos após seu lançamento, A Viagem de Chihiro é considerado um trabalho de qualidade tamanha, em termos de roteiro e animação, que nenhum outro estúdio no planeta conseguiu igualar. John Lasseter confessaria que ele se tornaria uma de suas maiores inspirações, influenciando Valente e Frozen; Harley Jessup declararia ter usado o filme como inspiração para o mundo espiritual de Viva: A Vida é uma Festa, e Domee Shi o citaria como a principal influência de Red: Crescer é uma Fera - até mesmo os roteiristas Ken e Ryan Firpo citariam A Viagem de Chihiro como sua principal fonte de inspiração para abordar questões de moralidade e dualidade humana em Eternos, da Marvel. O maior mérito do filme, entretanto, foi ele ter sido lançado numa época em que, no ocidente, filmes de animação ainda eram vistos como algo exclusivamente para crianças, que os adultos iriam assistir apenas para acompanhá-las - "animações para adultos" costumavam ser desastrosas, cheias de alusão a sexo e cenas eróticas. Se hoje temos filmes da Pixar que são grandes sucessos tanto dentre crianças quanto adultos, A Viagem de Chihiro pode ser considerado o maior responsável.
O Reino dos Gatos
Neko no Ongaeshi
2002
Em 1999, um parque de diversões japonês entrou em contato com o Studio Ghibli, querendo encomendar um curta-metragem, de cerca de 20 minutos de duração, que seria exibido como parte de uma de suas atrações; a única exigência que o parque faria seria que o curta deveria ser estrelado por gatos. Imediatamente, Miyazaki se lembrou de Sussurros do Coração, que contava com os gatos Moon e Barão - esse último, na verdade, uma estátua de gato presente numa loja de antiguidades. Ao invés de criar uma história original com os personagens, Miyazaki entraria em contato com Aoi Hiiragi, autora de Mimi wo Sumaseba, mangá que deu origem a Sussurros do Coração, e perguntou se ela poderia escrever uma nova história, protagonizada por Moon e Barão. Embora nem Mimi wo Sumaseba, nem Sussurros do Coração tivessem qualquer elemento fantástico, Hiiragi decidiria que essa nova história seria de fantasia, escrevendo o mangá Baron the Cat, publicado em março de 2002 pela Tokuma Shoten.
Enquanto Hiiragi estava escrevendo o mangá, Miyazaki daria a Hiroyuki Morita, que havia sido um dos animadores de Meus Vizinhos, os Yamadas, a tarefa de transformar a história que ela estava escrevendo em storyboards que seriam usados na produção do filme. Ao longo de nove meses, Morita criaria 525 storyboards, suficientes para a produção de um filme de 45 minutos. Enquanto esses storyboards estavam em produção, o parque de diversões, alegando dificuldades financeiras, cancelaria o projeto; Miyazaki e Suzuki, entretanto, gostaram tanto do trabalho de Hiiragi e Morita, principalmente da protagonista Haru, que decidiram não só bancar o projeto, mas também transformá-lo em um longa-metragem para lançamento nos cinemas, incumbindo Morita da direção e Reiko Yoshida de escrever o roteiro.
Assim, O Reino dos Gatos se tornaria não somente o primeiro longa-metragem do Studio Ghibli a ser continuação de outro de seus longa-metragens, mas também o primeiro longa-metragem para os cinemas do estúdio a não contar nem com Miyazaki, nem com Takahata, nem no roteiro, nem na direção - Sussurros do Coração foi dirigido por Yoshifumi Kondo, mas tinha roteiro de Miyazaki, e Eu Posso Ouvir o Oceano, dirigido por Tomomi Mochizuki com roteiro de Keiko Niwa, foi produzido para a televisão. Um detalhe interessante é que, além de creditar Yoshida como roteirista, os créditos iniciais do filme trazem a frase "uma história de Shizuku Tsukishima", a protagonista de Sussurros do Coração, motivo pelo qual o Studio Ghibli considera O Reino dos Gatos como uma sequência ou continuação deste, enquanto, no ocidente, ele costuma ser descrito como um spin-off.
A protagonista de O Reino dos Gatos é a tímida estudante do ensino médio Haru Yoshioka, que, um dia, salva um gato de ser atropelado, e tem a impressão de que ele falou com ela e a agradeceu. Acontece que esse gato que ela salvou era ninguém menos que Lune, Príncipe do Reino dos Gatos, o que faz com que o Rei dos Gatos em pessoa vá com uma comitiva até sua casa presenteá-la com itens de muito valor, como ratos mortos e erva de gato, e ofereça a ela a mão de Lune em casamento. Pensando se tratar de um sonho, Haru dá uma resposta confusa, interpretada por Natori, secretário do Rei, como um "sim".
Cada vez mais interpelada pelos gatos, que não param de lhe dar presentes e começam os preparativos de seu casamento, Haru se desespera, até que ouve uma voz que a guia até o gato Muta, que, por sua vez, a leva até o Barão Humbert von Gikkingen, uma estátua de gato animada por poderes mágicos que mora em uma loja de antiguidades, à frente da qual há uma estátua de corvo que, graças aos mesmos poderes, se transforma no melhor amigo do Barão, Toto. O Barão aconselha Haru a não ir até o Reino dos Gatos de forma nenhuma, mas ela é sequestrada por Natori, o que faz com que o Barão, Toto e Muta também tenham de ir ao Reino dos Gatos para salvá-la - já que, se ela ficar lá tempo demais, se transformará em um gato.
O Reino dos Gatos estrearia nos cinemas japoneses em 20 de julho de 2022; com orçamento de 750 milhões de ienes, renderia 2,55 bilhões, se tornando o filme nacional mais assistido no país naquele ano, e sétimo mais assistido se forem considerados os internacionais. A crítica o consideraria "charmoso e lindamente animado", e consideraria que Morita quis "fazer uma homenagem a Miyazaki", já que o filme guarda muitas semelhanças com A Viagem de Chihiro, embora seja mais realístico e menos denso. Falando nisso, O Reino dos Gatos estrearia nos cinemas do Brasil em 13 de fevereiro de 2004, pegando carona no sucesso de Chihiro, sendo exibido também nos cinemas de vários países da Ásia e Europa.
Nos Estados Unidos, entretanto, ele seria lançado diretamente em DVD, em fevereiro de 2005, junto com Nausicaä do Vale do Vento e Porco Rosso, pela Disney. Sua dublagem contaria com um elenco estelar, trazendo Anne Hathaway como Haru, Cary Elwes como o Barão, Peter Boyle como Muta, Elliott Gould como Toto, Tim Curry como o Rei dos Gatos, Judy Greer como a gata Yuki, René Auberjonois como Natori, Kristen Bell como a amiga de Haru, Hiromi, e Kristine Sutherland como a mãe de Haru, Naoko.
Para terminar, vale citar que existem diferenças entre a história do mangá e a do filme, algumas causadas pelo fato de que Hiiragi ainda estava escrevendo o mangá enquanto Yoshida escrevia o roteiro, algumas por decisão de Yoshida; a principal é que, no mangá, o Reino dos Gatos é como se fosse o céu dos felinos, para onde os gatos vão quando morrem, sendo os súditos do Rei dos Gatos todos espíritos, e, se ficar lá, além de virar gato, Haru também vai virar espírito, jamais sendo capaz de retornar ao plano terreno, enquanto no filme o Reino dos Gatos é uma dimensão paralela, da qual os gatos podem sair e entrar à vontade. Também foram feitas mudanças no Barão (apenas estéticas, já que, no mangá, ele tem a mesma aparência que tinha em Mimi wo Sumaseba, mas, no filme, por uma questão de coerência, tem que ter a mesma aparência de Sussurros do Coração) e em Muta - que é o gato Moon de Mimi wo Sumaseba e Sussurros do Coração: em Sussurros do Coração ele tem apenas um papel coadjuvante, sem participação ativa na história, mas, em Mimi wo Sumaseba, ele é um vilão, o que motivou uma cena em O Reino dos Gatos na qual ele revela que Muta é uma alcunha, e seu nome verdadeiro é Lunardo Moon, procurado criminoso internacional.
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Hohokekyo Tonari no Yamada-kun
1999
Nono-Chan é uma das tirinhas em quadrinhos mais famosas do Japão. Criada por Hisaichi Ishii, ela acompanha a vida da família Yamada, composta pelo pai, Takashi, a mãe, Matsuko, a avó, Shige, o filho mais velho, Noboru, e a filha mais nova, Nonoko, apelido Nono-Chan. Publicada até hoje na revista Asahi Shimbun, onde estreou em de outubro de 1991, originalmente a tirinha se chamava Tonari no Yamada-kun, e acompanhava as desventuras da família como um todo. Nonoko, entretanto, era a personagem mais popular dentre os leitores, e, querendo capitalizar sobre essa popularidade, em abril de 1997 Ishii mudaria o nome da tirinha para Nono-chan e faria dela a personagem principal - o estilo das histórias, na verdade, continuaria o mesmo, mas agora elas eram narradas sob a ótica de Nonoko, sem que fossem publicadas novas tirinhas nas quais ela não estava presente.
Seria justamente em 1997 que Isao Takahata decidiria que seu próximo projeto no Studio Ghibli seria uma adaptação de Tonari no Yamada-kun. A ideia não surgiria do nada, já que, depois de Pom Poko, Takahata queria trabalhar em um filme com a temática de família, mas que não fosse de drama, e achou que a comédia nonsense da tirinha era justamente o que ele estava procurando. Ele inclusive faria questão de que os personagens tivessem o mesmo visual caricato da tirinha, com o estilo de Ishii sendo imitado pelos animadores do Studio Ghibli, ao invés de fazer versões dos personagens mais de acordo com o visual das produções anteriores do estúdio.
Os Yamadas são uma estereotípica família de classe média japonesa: Takashi trabalha em um escritório, tem de pegar o trem para chegar ao trabalho, ao chegar em casa quer ler seu jornal, fumar um cigarro e fazer suas refeições em paz, e é viciado em pachinko. Matsuko é dona de casa e não trabalha fora; infelizmente ela não é muito competente em nenhuma de suas tarefas, com a casa normalmente estando bagunçada e as refeições frequentemente sendo arroz com curry. Shige, que é mãe de Matsuko, tem 70 anos e é bastante ativa, mas igualmente teimosa e conservadora. Noboru, que tem cerca de 15 anos, não é muito brilhante na escola, não gosta de esportes, e está começando a se interessar por garotas. E Nonoko, que tem cerca de 10 anos, é um espírito livre, cheia de imaginação e criatividade, extremamente simpática e sociável. A família também tem um cachorro, Pochi, que parece estar sempre emburrado, mas aparece pouco no filme.
O filme é dividido em vários episódios (chamados pelo Studio Ghibli de "vinhetas"), cada um deles adaptação de uma ou mais tirinhas de Tonari no Yamada-kun publicadas até então, com o roteiro ficando a cargo do próprio Takahata. Antes de cada episódio aparece na tela um título, e ao final um haikai, um poema japonês curto, sempre relacionado ao tema do episódio. No início do filme, que inclui a abertura e o episódio mais comprido, no qual Nonoko se perde no shopping, Nonoko atua como narradora, em uma referência ao estilo de Nono-Chan, mas, no restante da produção, o narrador é um observador onipresente sem relação com a família. Vale citar que um dos episódios faz referência a um antigo e popular super-herói da TV japonesa, Gekko Kamen.
Meus Vizinhos, os Yamadas costuma ser citado como "o primeiro filme do Studio Ghibli a ser 100% produzido por computação gráfica", mas isso não é verdade. Tonari no Yamada-kun, assim como muitas outras tirinhas japonesas, é desenhada e pintada com aquarelas, e Takahata queria que o filme tivesse a mesma aparência. Para que o efeito fosse obtido, os animadores teriam de produzir o triplo de ilustrações de uma animação comum, já que cada frame precisava de três ilustrações quase idênticas, que então seriam digitalizadas, combinadas e coloridas por computação gráfica, ao invés de filmadas usando a técnica tradicional - vindo daí a confusão e a informação de que o filme não teria usado desenhos feitos à mão. Meus Vizinhos, os Yamadas seria até então a produção do Studio Ghibli com o maior número de ilustrações produzidas, e também a segunda mais cara, ficando atrás apenas de Princesa Mononoke; a maior parte dos custos seria coberta pela Walt Disney Japan, que, sabedora do sucesso da tirinha, tinha fé no potencial do filme.
Por incrível que pareça, entretanto, o filme, que estrearia em 17 de julho de 1999, foi um grande fracasso de bilheteria: com orçamento de 2 bilhões de ienes, renderia somente 1,56 bilhão, e não se pagaria nem mesmo com a renda do home video e do merchandising associado. Ao ser perguntado sobre as razões do fracasso, o produtor Toshio Suzuki diria que a bilheteria estava dentro do esperado, e que a sensação de fracasso veio de uma "má impressão" causada por "expectativas altas demais". A crítica, pelo menos, elogiaria bastante o filme, destacando seu estilo visual, sua "sensação de tranquilidade" e seu humor típico das tirinhas japonesas.
Um dos motivos para a baixa bilheteria apontados pela imprensa especializada seria que, na época, a Tokuma Shoten, a quem o Studio Ghibli pertencia, estava em uma disputa comercial com a Toho, que havia distribuído todos os filmes do estúdio desde Memórias de Ontem, e não queria que eles distribuíssem mais esse; a Toei, opção mais óbvia, alegaria já estar com muitos filmes para distribuir e não saber se daria conta de mais um, o que faria com que a distribuição coubesse à Shochiku, responsável pela distribuição dos filmes da Bandai-Namco, que teria metido os pés pelas mãos ao fazer seu trabalho - por exemplo, muitos espectadores relataram que as salas dos cinemas estavam muito vazias, o que pode ter se revertido em propaganda boca a boca negativa, mas, segundo Suzuki, pode ter sido resultado de a Shochiku ter programado o filme para salas grandes demais, diferentemente da Toho, que preferia programar os filmes do Studio Ghibli para um número maior de salas, mas todas de pequena ou média capacidade.
Bizarramente, Meus Vizinhos, os Yamadas seria um grande sucesso fora do Japão, se tornando inclusive a única animação japonesa selecionada para o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA). O diretor francês Armandine Fourdon e o roteirista norte-americano Michael Arndt declarariam terem sido bastante influenciados pelo filme, com Arndt chegando a declarar que Pequena Miss Sunshine e Toy Story 3 não existiriam se ele não tivesse assistido Meus Vizinhos, os Yamadas. Por causa do fracasso nos cinemas japoneses, o filme não seria lançado nos cinemas em mais lugar nenhum; nos Estados Unidos, ele seria lançado em DVD em 2005 pela Disney, em um combo com Pom Poko, e na Europa seria lançado em DVD e Blu-ray em 2010 pela Buena Vista - vale citar também que Meus Vizinhos, os Yamadas seria o primeiro filme do Studio Ghibli a ser lançado em DVD no Japão, em 2000, com os anteriores somente tendo sido lançados até então em VHS. A dublagem da Disney conta com James Belushi como Takashi, Molly Shannon como Matsuko, Daryl Sabara como Noboru, Liliana Mumy como Nonoko, Tress MacNeille como Shige, e David Ogden Stiers como o narrador.
Além de ser adaptada para um filme do Studio Ghibli, Nono-Chan daria origem a uma série em anime produzida pela Toei, exibida pela TV Asahi entre 7 de julho de 2001 e 28 de setembro de 2002, para um total de 61 episódios, alguns deles adaptando tirinhas famosas, outros trazendo histórias inéditas. Talvez provando que o sucesso em quadrinhos não garante o sucesso em mídia audiovisual, a série também não teria boa audiência.
Sen to Chihiro no Kamikakushi
2001
Quando criança, Hayao Miyazaki morou próximo a uma casa de banhos, a qual ele via como um local mágico e cheio de segredos, principalmente porque, ao lado de cada banheira, havia uma pequena porta, que ele sempre imaginou onde iria dar. Após Princesa Mononoke, ele pensaria em escrever uma história ambientada em uma casa de banhos, mas suas duas primeiras tentativas, uma delas uma adaptação do livro Kiri no Muko no Fushigi na Machi, de Sachiko Kashiwaba, seriam rejeitadas por Suzuki, que acharia que as histórias não atrairiam o interesse do público.
Todo verão, entretanto, Miyazaki viajava para uma casa de sua propriedade nas montanhas, com a esposa, filhos e, por vezes, amigos dos filhos. Em 1999, ele levaria com a família cinco amigas de sua filha, todas por volta dos dez anos de idade, e decidiria escrever um filme com cuja protagonista elas pudessem se identificar. Para buscar inspiração, ele leria várias das revistas que elas levariam para a viagem, como a Nakayoshi e a Ribon, mas ficaria frustrado ao perceber que todas as histórias eram de romance, que ele imaginava não ser o estilo preferido das meninas. Ele, então, decidiria escrever uma história de aventura, pontuada por elementos da cultura japonesa, protagonizada por uma menina de dez anos - e ambientado em uma casa de banhos.
A Viagem de Chihiro é um isekai, história na qual o protagonista vai parar em um mundo estranho e tem de se adaptar às suas regras - sendo o melhor exemplo no Ocidente Alice no País das Maravilhas. Sua protagonista é a menina Chihiro, que está se mudando de cidade com os pais, e não está nada satisfeita com isso. Quando seu pai erra o caminho, os três se veem diante de um antigo templo, que decidem explorar, indo parar, sem saber, no mundo espiritual. Os pais de Chihiro são feitos prisioneiros, e a menina recebe a ajuda do dragão Haku, que consegue para ela um emprego na casa de banhos da bruxa Yubaba, para que ela não tenha o mesmo destino. A princípio revoltada, Chihiro acaba descobrindo uma grande força interior, e decide tentar resgatar seus pais para que a família possa retornar ao mundo material.
A produção começaria em fevereiro de 2000, com orçamento de 1,9 bilhão de ienes, o padrão na época para uma nova produção, já que, com o uso cada vez maior da computação gráfica, os filmes de animação haviam ficado bem mais caros. Todos os personagens do filme seriam desenhados à mão, depois passados para o computador e então aprimorados, o que faria com que o resultado final fosse belíssimo, diferente de tudo o que já havia se visto em animação japonesa desde então. Uma preocupação de Miyazaki seria que a computação gráfica "roubasse o show", então ele coordenaria pessoalmente o processo, para garantir que, mesmo com o uso da computação, o filme se parecesse com uma animação totalmente tradicional; ele também evitaria que o filme tivesse personagens, cenários ou outros elementos apenas por sua beleza, querendo que tudo tivesse uma função na história, para não desviar o foco das plateias - até mesmo Chihiro deveria ser uma menina totalmente normal, sem beleza acima da média ou qualquer coisa em sua aparência que chamasse atenção.
Outra preocupação de Miyazaki seria com a duração do filme: ele se empolgaria com o roteiro, e, durante as filmagens, concluiria que, se fizesse toda a história do jeito que estava, o filme teria mais de três horas. Ele cortaria várias cenas e condensaria outras durante as filmagens, sempre tentando manter o que já estava pronto e descartar o que ainda não havia sido produzido. Mesmo com todos esses esforços, o filme ainda terminaria com 125 minutos, menos que Princesa Mononoke, mas ainda assim mais que o normal para um filme de animação, principalmente para o mercado internacional.
Falando nisso, a Disney concordaria em financiar 10% do filme em troca do "direito de primeira recusa" para sua distribuição nos Estados Unidos - o que significava que o Studio Ghibli só poderia negociar com outro distribuidor após a Disney dizer que não iria fazê-lo. O primeiro executivo da Disney a assistir o filme seria John Lasseter, animador da Pixar que havia ficado amigo pessoal de Miyazaki, e tinha como principal função encontrar "elementos problemáticos" em produções estrangeiras que a Disney quisesse lançar nos Estados Unidos. Após assistir A Viagem de Chihiro, Lasseter ficaria boquiaberto, e diria ao CEO da Disney, Michael Eisner, que eles tinham de lançar o filme o mais rápido possível. Eisner nomearia Lasseter produtor executivo para a versão em inglês do filme, e ele reuniria uma equipe jamais vista antes para uma dublagem, que incluía Kirk Wise, co-diretor de A Bela e a Fera, Donald W. Ernst, produtor de Aladdin, e os roteiristas Cindy Davis Hewitt e Donald H. Hewitt, que tinham duas missões ingratas: "americanizar" o filme o menos possível e fazer com que os diálogos em inglês se encaixassem com as bocas dos personagens falando em japonês, para que erros de sincronia, comuns nesses casos, não distraíssem a atenção do público. Os dois fariam um trabalho elogiadíssimo, com o roteiro sendo considerado um dos pontos altos da versão em inglês. O elenco da versão dublada conta com Daveigh Chase como Chihiro, Jason Marsden como Haku, Susan Egan como Lin, e, como Yubaba, Suzanne Pleshette, em seu último trabalho antes de sua morte, além dos regulares da Disney David Ogden Stiers e John Ratzenberger, respectivamente como Kamaji e Aniyaku.
A Viagem de Chihiro é fortemente inspirado pelo folclore xinto-budista. Seu principal cenário é uma casa de banhos frequentada por várias criaturas folclóricas japonesas, incluindo kami, os espíritos que, segundo o xintoísmo, habitam todas as coisas, vivas ou não. O fato de Chihiro ter de se adequar ao ritmo do mundo espiritual serve como um rito de passagem, com a personagem amadurecendo, como se deixasse de ser criança e se tornasse adulta. O filme também faz uma crítica à influência do ambiente sobre as pessoas, com personagens como os pais de Chihiro, o Sem-Face e até mesmo, de uma certa maneira, Yubaba, se comportando de forma contrária à sua verdadeira natureza apenas por estarem cercados de más influências ou por se verem em situações nas quais imaginam que as regras sociais não se aplicam. O consumismo ocidental também é fortemente criticado no filme, com o dinheiro tendo o poder de mudar a forma de agir das pessoas e a maneira como elas veem o mundo - o pai de Chihiro fala para ela várias vezes que eles não vão ter nenhum problema explorando o templo abandonado porque ele "tem cartões de crédito e dinheiro".
Dois princípios fundamentais da sociedade japonesa também podem ser identificados no filme: o mottainai, ou "arrependimento pelo desperdício", segundo o qual todos os recursos devem ser utilizados plenamente, sem que nada ainda útil seja descartado; e o on, a "dívida moral", segundo o qual uma pessoa se sente obrigada a retribuir quando alguém a ajuda - mesmo Yubaba sendo uma péssima chefe, Chihiro tenta ajudá-la de várias formas. Yubaba se veste com roupas ocidentais e seu escritório é decorado como se fosse europeu, em contraste com o restante da casa de banhos, tradicionalmente japonesa; isso é visto como uma crítica à influência europeia na sociedade japonesa, principalmente em relação ao capitalismo e à exploração econômica - ao contratar Chihiro, Yubaba decide chamá-la de Sen, que significa "mil", e é uma outra forma de se ler o ideograma que representa a primeira sílaba de seu nome, chi, palavra ligada à evolução espiritual, o que é visto como uma alegoria do pensamento capitalista de que tudo deve ter um valor. Mudando o nome da menina, a bruxa também obtém poder sobre ela, o que é outra crença japonesa.
Miyazaki é conhecido por ser radicalmente contra a ocidentalização da cultura japonesa, e muitos dos elementos do filme podem ser vistos como um posicionamento do autor nesse sentido, como os letreiros em neon próximos à casa de banho, e o fato de o pai de Chihiro dirigir um Audi e vestir camisas polo. Finalmente, o filme mais uma vez possui um forte apelo ecológico, criticando a poluição das águas, o descarte indiscriminado de lixo, e a destruição de áreas naturais para a expansão das cidades.
A Viagem de Chihiro estrearia nos cinemas japoneses em 20 de julho de 2001, distribuído pela Toho. Somente nos primeiros três dias, renderia 1,6 bilhão de ienes, um recorde até hoje. Ele também seria recordista no número de semanas seguidas em primeiro lugar nas bilheterias japonesas, ficando onze (16 no total), e o primeiro filme japonês a render mais de 200 milhões de dólares em bilheteria internacional sem contar os Estados Unidos. Somando a bilheteria do mundo inteiro, ele renderia 31,68 bilhões de ienes, sendo até hoje o filme de maior bilheteria internacional da história do Japão. Além de nos Estados Unidos e Canadá, a Disney distribuiria o filme na França, Hong Kong, Cingapura e Taiwan; ele também estrearia em diversos outros países da Europa, Ásia e América do Sul, se tornando o filme do Studio Ghibli a ser exibido nos cinemas de mais países diferentes - no Brasil, ele estrearia em 18 de julho de 2003, distribuído pela Europa Filmes. A Viagem de Chihiro também seria o segundo filme do Studio Ghibli a estrear nos cinemas da China, em 21 de junho de 2019.
O filme também seria aclamado pela crítica, sendo hoje considerado um dos melhores e mais bonitos filmes de animação de toda a história. Uma de suas características que mais chama atenção é que ele pode ser aproveitado, com igual intensidade tanto por crianças quanto por adultos. A Viagem de Chihiro venceria os prêmios de Melhor Filme e Melhor Filme Animado no festival de cinema da Mainichi Shimbun e o de Melhor Filme da Academia de Cinema Japonesa, mas a que é considerada sua maior conquista e principal responsável pelo seu sucesso internacional foi o Oscar de Melhor Filme de Animação, na segunda vez em que o prêmio foi conferido (na primeira, quem ganhou foi Shrek), derrotando A Era do Gelo, Spirit: O Corcel Indomável, e duas produções Disney, Planeta do Tesouro e Lilo & Stitch.
Ainda hoje, mais de 20 anos após seu lançamento, A Viagem de Chihiro é considerado um trabalho de qualidade tamanha, em termos de roteiro e animação, que nenhum outro estúdio no planeta conseguiu igualar. John Lasseter confessaria que ele se tornaria uma de suas maiores inspirações, influenciando Valente e Frozen; Harley Jessup declararia ter usado o filme como inspiração para o mundo espiritual de Viva: A Vida é uma Festa, e Domee Shi o citaria como a principal influência de Red: Crescer é uma Fera - até mesmo os roteiristas Ken e Ryan Firpo citariam A Viagem de Chihiro como sua principal fonte de inspiração para abordar questões de moralidade e dualidade humana em Eternos, da Marvel. O maior mérito do filme, entretanto, foi ele ter sido lançado numa época em que, no ocidente, filmes de animação ainda eram vistos como algo exclusivamente para crianças, que os adultos iriam assistir apenas para acompanhá-las - "animações para adultos" costumavam ser desastrosas, cheias de alusão a sexo e cenas eróticas. Se hoje temos filmes da Pixar que são grandes sucessos tanto dentre crianças quanto adultos, A Viagem de Chihiro pode ser considerado o maior responsável.
Neko no Ongaeshi
2002
Em 1999, um parque de diversões japonês entrou em contato com o Studio Ghibli, querendo encomendar um curta-metragem, de cerca de 20 minutos de duração, que seria exibido como parte de uma de suas atrações; a única exigência que o parque faria seria que o curta deveria ser estrelado por gatos. Imediatamente, Miyazaki se lembrou de Sussurros do Coração, que contava com os gatos Moon e Barão - esse último, na verdade, uma estátua de gato presente numa loja de antiguidades. Ao invés de criar uma história original com os personagens, Miyazaki entraria em contato com Aoi Hiiragi, autora de Mimi wo Sumaseba, mangá que deu origem a Sussurros do Coração, e perguntou se ela poderia escrever uma nova história, protagonizada por Moon e Barão. Embora nem Mimi wo Sumaseba, nem Sussurros do Coração tivessem qualquer elemento fantástico, Hiiragi decidiria que essa nova história seria de fantasia, escrevendo o mangá Baron the Cat, publicado em março de 2002 pela Tokuma Shoten.
Enquanto Hiiragi estava escrevendo o mangá, Miyazaki daria a Hiroyuki Morita, que havia sido um dos animadores de Meus Vizinhos, os Yamadas, a tarefa de transformar a história que ela estava escrevendo em storyboards que seriam usados na produção do filme. Ao longo de nove meses, Morita criaria 525 storyboards, suficientes para a produção de um filme de 45 minutos. Enquanto esses storyboards estavam em produção, o parque de diversões, alegando dificuldades financeiras, cancelaria o projeto; Miyazaki e Suzuki, entretanto, gostaram tanto do trabalho de Hiiragi e Morita, principalmente da protagonista Haru, que decidiram não só bancar o projeto, mas também transformá-lo em um longa-metragem para lançamento nos cinemas, incumbindo Morita da direção e Reiko Yoshida de escrever o roteiro.
Assim, O Reino dos Gatos se tornaria não somente o primeiro longa-metragem do Studio Ghibli a ser continuação de outro de seus longa-metragens, mas também o primeiro longa-metragem para os cinemas do estúdio a não contar nem com Miyazaki, nem com Takahata, nem no roteiro, nem na direção - Sussurros do Coração foi dirigido por Yoshifumi Kondo, mas tinha roteiro de Miyazaki, e Eu Posso Ouvir o Oceano, dirigido por Tomomi Mochizuki com roteiro de Keiko Niwa, foi produzido para a televisão. Um detalhe interessante é que, além de creditar Yoshida como roteirista, os créditos iniciais do filme trazem a frase "uma história de Shizuku Tsukishima", a protagonista de Sussurros do Coração, motivo pelo qual o Studio Ghibli considera O Reino dos Gatos como uma sequência ou continuação deste, enquanto, no ocidente, ele costuma ser descrito como um spin-off.
A protagonista de O Reino dos Gatos é a tímida estudante do ensino médio Haru Yoshioka, que, um dia, salva um gato de ser atropelado, e tem a impressão de que ele falou com ela e a agradeceu. Acontece que esse gato que ela salvou era ninguém menos que Lune, Príncipe do Reino dos Gatos, o que faz com que o Rei dos Gatos em pessoa vá com uma comitiva até sua casa presenteá-la com itens de muito valor, como ratos mortos e erva de gato, e ofereça a ela a mão de Lune em casamento. Pensando se tratar de um sonho, Haru dá uma resposta confusa, interpretada por Natori, secretário do Rei, como um "sim".
Cada vez mais interpelada pelos gatos, que não param de lhe dar presentes e começam os preparativos de seu casamento, Haru se desespera, até que ouve uma voz que a guia até o gato Muta, que, por sua vez, a leva até o Barão Humbert von Gikkingen, uma estátua de gato animada por poderes mágicos que mora em uma loja de antiguidades, à frente da qual há uma estátua de corvo que, graças aos mesmos poderes, se transforma no melhor amigo do Barão, Toto. O Barão aconselha Haru a não ir até o Reino dos Gatos de forma nenhuma, mas ela é sequestrada por Natori, o que faz com que o Barão, Toto e Muta também tenham de ir ao Reino dos Gatos para salvá-la - já que, se ela ficar lá tempo demais, se transformará em um gato.
O Reino dos Gatos estrearia nos cinemas japoneses em 20 de julho de 2022; com orçamento de 750 milhões de ienes, renderia 2,55 bilhões, se tornando o filme nacional mais assistido no país naquele ano, e sétimo mais assistido se forem considerados os internacionais. A crítica o consideraria "charmoso e lindamente animado", e consideraria que Morita quis "fazer uma homenagem a Miyazaki", já que o filme guarda muitas semelhanças com A Viagem de Chihiro, embora seja mais realístico e menos denso. Falando nisso, O Reino dos Gatos estrearia nos cinemas do Brasil em 13 de fevereiro de 2004, pegando carona no sucesso de Chihiro, sendo exibido também nos cinemas de vários países da Ásia e Europa.
Nos Estados Unidos, entretanto, ele seria lançado diretamente em DVD, em fevereiro de 2005, junto com Nausicaä do Vale do Vento e Porco Rosso, pela Disney. Sua dublagem contaria com um elenco estelar, trazendo Anne Hathaway como Haru, Cary Elwes como o Barão, Peter Boyle como Muta, Elliott Gould como Toto, Tim Curry como o Rei dos Gatos, Judy Greer como a gata Yuki, René Auberjonois como Natori, Kristen Bell como a amiga de Haru, Hiromi, e Kristine Sutherland como a mãe de Haru, Naoko.
Para terminar, vale citar que existem diferenças entre a história do mangá e a do filme, algumas causadas pelo fato de que Hiiragi ainda estava escrevendo o mangá enquanto Yoshida escrevia o roteiro, algumas por decisão de Yoshida; a principal é que, no mangá, o Reino dos Gatos é como se fosse o céu dos felinos, para onde os gatos vão quando morrem, sendo os súditos do Rei dos Gatos todos espíritos, e, se ficar lá, além de virar gato, Haru também vai virar espírito, jamais sendo capaz de retornar ao plano terreno, enquanto no filme o Reino dos Gatos é uma dimensão paralela, da qual os gatos podem sair e entrar à vontade. Também foram feitas mudanças no Barão (apenas estéticas, já que, no mangá, ele tem a mesma aparência que tinha em Mimi wo Sumaseba, mas, no filme, por uma questão de coerência, tem que ter a mesma aparência de Sussurros do Coração) e em Muta - que é o gato Moon de Mimi wo Sumaseba e Sussurros do Coração: em Sussurros do Coração ele tem apenas um papel coadjuvante, sem participação ativa na história, mas, em Mimi wo Sumaseba, ele é um vilão, o que motivou uma cena em O Reino dos Gatos na qual ele revela que Muta é uma alcunha, e seu nome verdadeiro é Lunardo Moon, procurado criminoso internacional.