sábado, 4 de janeiro de 2025

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Contos de Fadas BLOGuil (I)

Talvez vocês não reparassem se eu não dissesse nada, mas já faz algum tempo que eu venho tendo dificuldade para escrever para o átomo, tanto em relação a encontrar novos assuntos quanto em relação a gerenciar meu tempo livre para escrever os posts de forma que sempre tenha uns quatro ou cinco já escritos quando coloco um novo no ar. Foi por causa disso, aliás, que eu decidi, nos cinco últimos meses, postar aqui mais alguns dos contos que escrevi para o Crônicas de Categoria. Além disso, desde que eu revisei e expandi os posts do Almanaque BLOGuil para postar aqui no átomo que eu tenho vontade de fazer o mesmo com os Contos de Fadas BLOGuil, versões que eu escrevi de famosos contos de fadas, que eu sempre achei bem criativas e divertidas, e não gostaria que sumissem quando o BLOGuil, o primeiro blog que eu tive, entre 2002 e 2006, saiu do ar, tanto que revisei e alterei alguns deles para postar no Crônicas de Categoria, mas a vontade de postá-los aqui permaneceu.

Assim, peço desculpas se você faz parte do meu contingente de leitores que não gosta quando eu republico contos, mas, para atender a esses dois interesses que citei no parágrafo anterior - me ajudar a encontrar assunto e tempo para mais posts, e repostar os Contos de Fadas BLOGuil aqui no átomo - nesse ano de 2025 teremos uma nova série mensal, que trará 12 Contos de Fadas BLOGuil. Os que foram republicados no Crônicas de Categoria estarão aqui com essa nova versão do texto; os demais eu vou revisar e alterar - porque eu era jovem e inconsequente na época em que os escrevi, e não gosto de alguns detalhes de suas versões originais, além de que uma ou outra coisa era muito específica da época e ficou datada. Para evitar confusão com as histórias originais, todos eles terão como título "Contos de Fadas BLOGuil (número em romanos)", mas sem tabelinha de navegação no final ou uma categoria própria, ficando todos na categoria Contos. E eles não serão apresentados na mesma ordem em que os postei no BLOGuil nem na mesma ordem do Crônicas de Categoria, e sim numa nova ordem que criei agora seguindo critérios que só fazem sentido na minha cabeça. Começando hoje pelo único que já havia sido, de certa forma, repostado aqui no átomo, no post sobre o BLOGuil.





A Pequena Sereia

Era uma vez uma sereiazinha chamada Ariel. Filha de Netuno, Rei das Profundezas, Ariel levava uma vida de princesa, mas não estava feliz. Além de ter de aturar suas coleguinhas de colégio zoando que ela era a Sereia que Lava Mais Branco, Ariel não via graça alguma no fundo do mar, muito escuro e cheio de peixes. Seu sonho era conhecer as praias paradisíacas de Cancún, tomar água de coco e jogar vôlei de praia. Mas um pequeno obstáculo se colocava entre a sereiazinha e seu sonho: Ariel não tinha pernas, mas um grande rabo de baleia, tal qual na música de Gilberto Gil.

Próximo ao Palácio Real, porém, morava um ser grotesco. Seu nome era Úrsula, e ela detestava toda a sociedade sereiense. Graças a uma pulada de cerca de sua mãe, Úrsula não nascera com um rabo de peixe, mas sim com um rabo de urso, daí seu nome. Como ursos comem peixes, isto fez com que Úrsula não ficasse bem-vista na cidade, que a expulsou para uma escura e fria caverna. Sem ter mais o que fazer, Úrsula começou a estudar magia negra, e um dia encontrou um feitiço capaz de transformar rabo de sereia em pernas humanas. Era o que ela precisava para ludibriar Ariel. Atraindo-a à sua caverna, ela fez um pacto com a ingênua sereiazinha adolescente: daria a ela um par de pernas, capazes de andar na praia e jogar vôlei, como ela sempre sonhara. Em troca, tudo o que Úrsula queria era sua voz melodiosa de sereia, pois seu sonho sempre fora se tornar cover de Madonna e fazer carreira internacional. Achando que uma voz não iria lhe servir de nada na superfície mesmo, Ariel aceitou.

Assim, privada de sua voz, mas com um par de pernas novinho em folha, Ariel ascendeu à superfície e nadou até a praia. Lá, ela conheceu um lindo príncipe, mas jamais pôde dizer a ele seu nome, pois estava muda e não sabia escrever. Ainda assim, os dois tiveram um tórrido romance e viveram apaixonados, até o dia em que o príncipe ouviu a voz de Ariel. Ariel a princípio estranhou, pois não havia dito nada, mas, como era a primeira da classe na Escola de Sereias, rapidamente percebeu do que se tratava: Úrsula estava usando sua bela voz para atrair seu príncipe para uma cilada! Ariel tentou gritar por socorro, mas estava muda. Tentou chamar pelo príncipe, mas, conforme já foi dito, estava muda. Tentou chamar a polícia, mas, adivinhem, estava muda. Pobre coitada, nem mesmo xingar um palavrão bem feio ela podia.

Mas nem tudo estava perdido. Como já havia se passado 48 horas de seu desaparecimento, a Polícia do Fundo do Mar começou a procurar Ariel. Graças a um atum informante, descobriram que ela estava na praia, e o Rei Netuno foi em pessoa atrás de sua filha fujona. Ao chegar em Cancún, o Rei viu Úrsula imitando a voz de sua filha e atraindo o príncipe para se afogar no fundo do mar. Como, após vários naufrágios na Idade Antiga que resultaram em vultosas indenizaçõies a serem pagas pela Corte Real Marítima, esta prática deixou de ser permitida entre as sereias, o Rei ordenou que prendessem a vilã, e utilizou os poderes de seu Tridente Encantado Real para devolver a voz a Ariel. Infelizmente, no processo, Ariel perdeu as pernas, e o príncipe viu que na verdade ela era um ser mitológico.

Ao ver que sua filha estava infeliz, entretanto, o Rei Netuno compreendeu que os filhos são criados não para os pais, mas para o mundo, e aceitou que seu lugar era junto ao príncipe. Além do mais, deveria haver alguma vantagem em casar sua filha com um príncipe da superfície, e melhor ele do que aquele tritão que só queria fazer artesanato de conchas por quem Ariel havia se apaixonado no verão passado. Assim, o bom Rei usou seu já famoso Tridente Encantado para devolver-lhe as pernas, para que ela pudesse viver como qualquer garota normal. O príncipe mal acreditou quando viu sua amada retornando. E igualmente mal acreditou quando descobriu que ela era uma tagarela, fofoqueira e reclamona, que não calava a boca nem por um decreto.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 21 de dezembro de 2024

Escrito por em 21.12.24 com 0 comentários

The Wire

Antes que o ano acabe, eu vou falar sobre uma das melhores séries da história da TV. Hoje é dia de The Wire no átomo!


The Wire, que até tem um título em português que ninguém usa, A Escuta, foi uma criação de David Simon, originalmente um jornalista que trabalhou para o jornal The Baltimore Sun entre 1982 e 1995. Durante esse tempo, ele escreveria dois livros; o primeiro, Homicide: A Year on the Killing Streets (algo como "homicídio: um ano nas ruas assassinas"), lançado em 1991, para o qual acompanhou durante um ano os detetives da divisão de homicídios da polícia de Baltimore. O livro seria um grande sucesso, e Simon tentaria convencer o produtor Barry Levinson, nascido e criado em Baltimore, a adaptar o filme para o cinema. Levinson leria o livro e acharia que seria melhor adaptar para uma série, pela maior possibilidade de contar histórias, e apresentaria essa ideia ao roteirista Paul Attanasio, que compraria os direitos sobre o livro e criaria uma série, chamada Homicide: Life on the Street (simplesmente Homicídio aqui no Brasil), que seria exibida pela NBC durante 7 temporadas, entre 1993 e 1999, com um total de 122 episódios, mais um filme para a TV (Homicide: The Movie) que estrearia em 2000 e seria o encerramento da série. Simon atuaria apenas como consultor, com Attanasio sendo creditado como o criador da série.

Durante o tempo em que passou com a polícia para escrever Homicide, Simon conheceria o detetive Ed Burns, e os dois escreveriam juntos The Corner: A Year in the Life of an Inner-City Neighborhood (algo como "a esquina: um ano na vida de uma vizinhança da parte pobre da cidade"), lançado em 1997. O livro acompanhava a vida de dois viciados em drogas que moravam num bairro próximo ao centro de Baltimore, onde ficam as comunidades mais pobres, e sua relação com os traficantes e a polícia, e seria adaptado para uma minissérie em seis episódios, também chamada The Corner, exibida pela HBO em 2000, que ganharia três Emmys, de Melhor Minissérie, Melhor Direção para uma Minissérie, Filme para a TV ou Especial, e Melhor Roteiro para uma Minissérie ou Filme para a TV.

Após a estreia da minissérie, Simon pensaria em escrever uma série policial baseada nas experiências que viveu ao lado de Burns nesses anos que levaram ao lançamento de seus dois livros. Burns trabalhava investigando traficantes de drogas que se envolviam em violentas guerras de gangues, e planejava usar modernos equipamentos de vigilância eletrônica em suas investigações, sempre sendo prejudicado pela burocracia da polícia; Simon pensaria que esse poderia ser o ponto de partida perfeito, mostrando em sua série que o combate ao crime na cidade era prejudicado pela burocracia e pela incompetência das pessoas nas posições de comando. No início dos anos 2000, as escutas telefônicas autorizadas pela justiça também começavam a se popularizar, e ele pensaria em fazer com que esse fosse o objeto central da história, que, então, chamaria de The Wire.

Enquanto Homicídio estava no ar, a NBC diversas vezes se queixaria com Simon sobre o "tom pessimista" da série, e ele sempre respondia que não podia fazer nada, primeiro porque o tom do livro era pessimista mesmo, segundo porque ele era apenas um consultor, ficando as histórias a cargo de Attanasio e sua equipe. Após criar sua nova série, portanto, Simon decidiria oferecê-la à HBO, com quem teve uma experiência mais agradável durante a produção de The Corner, da qual foi roteirista, junto com David Mills. A HBO a princípio não gostaria da ideia de exibir uma série policial, algo que já existia aos montes na TV aberta, mas seria convencida após Simon conseguir autorização do Prefeito de Baltimore para retratar a cidade e suas instituições da forma como quisesse, mesmo que ela fosse pessimista e desagradável - na opinião do prefeito, isso não mudaria a opinião dos moradores da cidade sobre ela, nem teria impacto sobre a forma como a polícia faz seu trabalho. Além de criador da série e um de seus roteiristas, Simon seria um dos produtores da série, ao lado de Robert F. Colesberry e Nina Kostroff Noble, também co-produtores de The Corner.

Simon apostaria no realismo para o sucesso da série; embora todos os personagens principais fossem fictícios, assim como as situações enfrentadas por eles, alguns dos personagens secundários eram inspirados em moradores reais de Baltimore, e vários atores amadores seriam escalados para pequenos papéis, com Simon dizendo que isso "contribuía para a sensação de pertencimento". Os procedimentos da polícia eram mostrados de forma tão realista que criminosos presos na Baltimore real confessaram assistir à série para aprender como enganar a polícia; da mesma forma, moradores das comunidades pobres declarariam reconhecer várias das situações enfrentadas pelos personagens, de uma forma que jamais havia sido mostrada na TV. O jornal The Baltimore Sun, no qual Simon trabalhou, também é mostrado na série, e jornalistas diriam ter visto a representação mais realística de uma redação de jornal em toda a história da televisão norte-americana.

Cada episódio seguia uma estrutura própria, que começava com uma cena muitas vezes de pouca importância para o episódio em questão, mas que fazia andar a história como um todo. Em seguida vinha a abertura, composta por várias cenas de episódios daquela temporada ou das anteriores, com cada temporada contando com cenas diferentes, enquanto os nomes do elenco e da equipe apareciam escritos. Após a abertura, vinha uma tela preta com uma frase falada por algum personagem ao longo daquele episódio, e que tinha a ver com a história central daquele episódio. Apesar de todos os episódios fazerem parte de um mesmo arco de história - com cada temporada tendo seu próprio arco, mas existindo um arco maior que permeia toda a série - cada episódio tinha também uma história central própria, e, por isso, raramente os episódios acabavam em cliffhangers, com cada um tendo uma espécie de final próprio, terminando com a tela escurecendo e os créditos sendo mostrados ao som da música-tema da série.

The Wire seria descrita por muitos críticos como um "romance visual", no sentido de que, assim como em um livro, muitas histórias paralelas acontecem ao mesmo tempo, e é preciso que o espectador preste atenção em todos os diálogos para compreender a história central. Eventos que ocorrem "fora de tela" são subentendidos pelos diálogos dos personagens, sem uso de narração ou de flashbacks, com a única exceção sendo um flashback no piloto. A série chamaria atenção por ser muito mais densa e cheia de detalhes do que outras séries policiais da época, e os temas abordados também seriam mais profundos e de maior relevância social até mesmo em relação ao que os espectadores da HBO estavam acostumados. Subvertendo os clichês dos seriados dessa temática, muitos dos policiais eram movidos não pelo "desejo de proteger e servir", mas porque queriam provar ser mais espertos que os criminosos, ou porque precisavam de dinheiro; da mesma forma, nem todos os criminosos tinham como objetivo ganhar dinheiro ou causar o mal a outras pessoas, com alguns estando presos à vida de crimes sem conseguir uma saída, às vezes até tentando conseguir um emprego honesto, mas mantendo a vida de crimes ao seu alcance como Plano B. Também chama atenção a forma como os problemas da cidade são mostrados como sendo interligados e sem fácil solução - apesar de haver a gratificação tradicional dos seriados policiais, como a prisão ou morte dos bandidos, fica sempre no ar a impressão de que os problemas enfrentados pelos policiais jamais serão solucionados.

A trilha sonora da série também chamaria atenção por ser no estilo diegético - exceto em montagens, como as que ocorriam nos últimos episódios de cada temporada, todas as músicas que tocavam nos episódios eram escutadas também pelos personagens, através de um rádio do carro, rádio portátil ou jukebox, por exemplo, nunca sendo músicas inseridas apenas para que a audiência ouvisse. A música da abertura seria Way Down in the Hole, gravada por Tom Waits em 1987; cada temporada, além de imagens diferentes na abertura, teria uma versão diferente da música, com um arranjo diferente e interpretada por um artista diferente - The Blind Boys of Alabama, Waits, The Neville Brothers, DoMaJe e Steve Earle, respectivamente. A música tocada nos créditos, considerada a música-tema da série, se chama The Fall, é instrumental, e foi composta por Blake Leyh, o diretor musical da série. Dois álbuns de trilha sonora da série seriam lançados em 2008, The Wire: And All the Pieces Matter - Five Years of Music from The Wire, somente com canções que tocaram durante os episódios, e Beyond Hamsterdam, somente com canções de artistas e bandas iniciantes, todos originários da Grande Baltimore - a primeira música desse álbum seria a versão de Way Down in the Hole de DoMaJe, um coral de cinco adolescentes de 15 anos estudantes de escolas públicas de Baltimore, criado especificamente para gravar a abertura da quarta temporada.

A série possui seis instituições principais: o departamento de polícia, a prefeitura, o sistema escolar público, o sindicato dos estivadores, o jornal The Baltimore Sun e a operação de tráfico de drogas comandada pelos criminosos. Simon diria que essas instituições eram comparáveis umas às outras, no sentido de que todas eram disfuncionais e tinham problemas com os quais seus integrantes tinham de se acostumar para conseguir realizar seu trabalho - muitos deles sendo traídos por elas quando estavam prestes a alcançar algum resultado de importância. Também segundo Simon, uma das principais mensagens da série era a de que nem sempre o trabalho duro é recompensado. O conflito entre os objetivos individuais dos personagens e os objetivos gerais das instituições às quais eles serviam também estava sempre presente.

Simon seria o principal roteirista da série, co-escrevendo a maioria dos roteiros com Burns, que também seria produtor nas duas últimas temporadas. Três aclamados escritores de roteiros policiais de fora de Baltimore também fariam parte da equipe: Richard Price, de Nova Iorque, Dennis Lehane, de Boston, e George Pelecanos, de Washington, que também seria um dos produtores da terceira temporada. Colesberry não seria roteirista, mas, segundo a equipe, contribuiria de forma inestimável com as histórias das duas primeiras temporadas; ele também interpretaria o policial Ray Cole e seria o diretor do último episódio da segunda temporada, mas infelizmente faleceria de complicações após uma cirurgia cardíaca antes de começarem as gravações da terceira. Um jornalista colega de Simon no Baltimore Sun, Rafael Alvarez, também contribuiria com roteiros, além de escrever um livro sobre a série, The Wire: Truth Be Told (algo como "que a verdade seja contada"); outro jornalista, William F. Zorzi, especialista em política, se uniria à equipe de roteiristas na terceira temporada. Mills, co-roteista de The Corner, se uniria à equipe na quarta temporada.

Ao escolher o elenco, Simon rejeitaria nomes famosos, preferindo escolher atores que achava que combinavam com os personagens; Baltimore é uma das cidades dos Estados Unidos de maior população negra, então ele também fez questão de que isso se refletisse na série, com a maior parte do elenco sendo de atores negros. A maioria dos atores viria da série Oz, também da HBO, ou de The Corner, através da qual Simon conheceria seus trabalhos. Dentre os atores amadores, podem ser citados o policial Ed Norris, que interpretou uma versão ficcional de si mesmo; Little Melvin Williams, ex-traficante que foi preso por Burns na década de 1980, que interpreta um diácono; e o ex-delegado de polícia Gary D'Addario, que serviu como consultor nas duas primeiras temporadas, e interpretava o escrivão Gary DiPasquale. Pela própria natureza da série, o elenco mudaria bastante de uma temporada para a outra, mantendo um punhado de personagens principais mas removendo os que não teriam destaque na nova história e adicionando outros que poderiam seguir ou não.

A primeira temporada teria 13 episódios, exibidos entre 2 de junho e 8 de setembro de 2002. As duas principais instituições retratadas são o departamento de polícia de Baltimore e a Família Barksdale, responsável pelo controle do tráfico de drogas na zona oeste da cidade. O protagonista é o detetive Jimmy McNulty (Dominic West), conhecido por ser insubordinado, levemente alcoólatra e um tanto irresponsável, que está cansado de prender traficantes ligados a Barksdale e eles serem soltos durante o julgamento por falta de provas. Um dia, conversando casualmente com o Juiz Daniel Phelan (Peter Gerety), ele dá a entender que ninguém está investigando Avon Barksdale (Wood Harris), o cabeça da organização, e que ninguém na polícia nem sabe qual é a aparência dele. Revoltado, o juiz ordena que a polícia crie uma equipe especial voltada apenas para investigar Barksdale, o que irrita o vice-comissário de polícia, Ervin Burrell (Frankie Faison), mais preocupado com a imagem da polícia junto à população do que em efetivamente resolver crimes. Burrell passa a tarefa ao chefe de McNulty, o major William Rawls (John Doman), que decide montar uma unidade só pra mostrar serviço, com uma equipe formada em sua maioria por policiais incompetentes ou que caíram em desgraça junto aos chefes, apenas para prestar satisfação ao juiz, sem nenhuma intenção real de investigar ou prender Barksdale.

McNulty, porém, é ardiloso, e decide usar até mesmo métodos pouco convencionais, como passar por cima da hierarquia ou fingir não estar interessado em um determinado policial apenas para que Rawls o coloque na equipe, para não somente montar a melhor equipe possível como também fechar o cerco em volta de Barksdale sem que seus superiores sequer percebam que ele está fazendo isso. Através da procuradora Ronnie Perlman (Deirdre Lovejoy), com quem teve um caso no passado, ele também consegue convencer o juiz a autorizar vigilância eletrônica, incluindo escutas nos telefones públicos usados pelos traficantes dos Barksdale, o que dá nome à série e acaba por fim levando à prisão do criminoso.

A equipe montada pela polícia, da qual McNulty também faz parte, é comandada pelo Tenente Cedric Daniels (Lance Reddick), policial honesto que está pensando em pedir demissão por nunca conseguir fazer as coisas do jeito correto, de quem Burrell não vai com a cara, e dá a ele o comando da unidade como uma espécie de castigo. Originalmente, Daniels era da delegacia de narcóticos, e, de lá, traz com ele três outros policiais: a tenente Shakima Greggs, apelido Kima (Sonja Sohn), que, assim como McNulty, tem problemas com álcool e infidelidade, mas é uma espécie de contraponto a ele, sendo extremamente focada, determinada, e sempre querendo fazer as coisas conforme o regulamento; Ellis Carver (Seth Gilliam), que é honesto e competente, mas se ressente de nunca conseguir um caso que valha a pena, passando seus dias prendendo menores de idade que trabalham para o tráfico; e Thomas Hauk, apelido Herc (Domenick Lombardozzi), que se diverte sendo policial, intimidando os bandidos, e nem sempre está exatamente dentro da lei.

Outra figura-chave da unidade é Lester Freamon (Clarke Peters), detetive extremamente inteligente, metódico e paciente, que tem como hobby criar móveis para casinhas de bonecas, mas estava subaproveitado na unidade de penhores por ter irritado um superior. O único policial que o comando considera competente e vai parar na unidade é Leander Sydnor (Corey Parker Robinson), que McNulty consegue cobrando um favor; do integrante restante da unidade, Roland Pryzbylewski, apelido Prez (Jim True-Frost), já não se pode dizer o mesmo, já que ele não leva o menor jeito para policial, só está empregado por ser genro de um major, e a unidade pareceu ser o lugar perfeito para ele não atrapalhar ninguém. Completam o "time dos mocinhos" o melhor amigo de McNulty e detetive de homicídios, o bonachão Bunk Moreland (Wendell Pierce), que, apesar de estar sempre fazendo piada, leva seu trabalho muito a sério, e não quer nem saber de ser arrastado para uma unidade montada só para agradar um juiz; o agente do FBI Terrance Fitzhugh, apelido Fitz (Doug Olear), amigo de longa data de McNulty, que dá a ele a ideia de usar as escutas; e Reginald Cousins, apelido Bubbles (Andre Royo), viciado em heroína que mora nas ruas e atua como informante para Greggs.

Do lado dos bandidos, Avon Barksdale é o chefe da operação, mas raramente dá as caras, tanto que a polícia realmente sequer conhece sua aparência. A face da organização é seu melhor amigo e braço-direito, Russell Bell, apelido Stringer (Idris Elba), extremamente inteligente, que faz faculdade de administração e sonha criar uma empresa de fachada para acobertar todos os crimes da organização. Também merecem destaque D'Angelo Barksdale (Lawrence Gilliard, Jr.), sobrinho de Avon, que tem bom coração e nem sempre está confortável com os atos da organização, mas que não conhece outra vida além do crime e é da opinião de que tem de fazer de tudo para proteger sua família; Roland Brice, apelido Wee-Bay (Hassan Johnson), mais confiável soldado de Avon; e os adolescentes Preston Broadus, apelido Broadie (J.D. Williams), Malik Carr, apelido Poot (Tray Chaney), e Wallace (Michael B. Jordan), que vendem drogas para Avon em um conjunto habitacional pobre. Outro bandido de grande importância para a história é Joseph Stewart, apelido Proposition Joe (Robert F. Chew), rival de Avon que controla o tráfico da zona leste, tem esse apelido (o "zé da proposta") por ter fama de apaziguador, sempre fazendo propostas para selar a paz entre rivais, e sonha liderar uma cooperativa que reuniria todos os traficantes da cidade, acabando de vez com as guerras pelas drogas.

Outros personagens de destaque que estreiam na primeira temporada são Omar Little (Michael K. Williams), bandido que ataca somente traficantes, roubando suas drogas e seu dinheiro, jamais ameaçando a população; o senador estadual Clay Davis (Isiah Whitlock, Jr.), que tem fama de corrupto e de ter ligações com o crime organizado; o advogado Maurice Levy (Michael Kostroff), que defende a família Barksdale, Proposition Joe e todos os bandidos que possam pagar, estando mais preocupado com o dinheiro do que com sua reputação ou com a segurança da cidade; Brianna Barksdale (Michael Hyatt), irmã de Avon e mãe de D'Angelo; o major Howard Colvin, apelido Bunny (Robert Wisdom), antigo comandante de McNulty, que também é revoltado por não conseguir fazer as coisas da forma como deseja, mas prefere dançar conforme a música; o major Stan Valchek (Al Brown), sogro de Prez; e o sargento Jay Landsman (Delaney Williams), a quem McNulty e Bunk são subordinados, que prefere passar seus dias lendo Playboy e comendo do que resolvendo crimes.

Landsman tem o mesmo nome, mas não é inspirado, em um policial da Baltimore real também chamado Jay Landsman, que atuou como consultor na primeira temporada, e também é ator amador, tendo interpretado o tenente Dennis Mello, segundo em comando de Bunny Colvin. Outros personagens de menor destaque incluem os policiais Michael Santangelo, apelido Sanny (Michael Salconi), Vernon Holley (Brian Anthony Wilson), Augustus Polk (Nat Benchley), Patrick Mahon (Tom Quinn), Frank Barlow (Michael Stone Forrest) e Bobby Reed (Tony D. Head); o coronel Raymond Forester (Richard DeAngelis), que está prestes a se aposentar, com sua vaga sendo cobiçada por Rawls; a promotora Ilene Nathan (Susan Rome); a esposa de Daniels, Marla (Maria Broom); a esposa de Kima, Cheryl (Melanie Nicholls-King); o melhor amigo de Bubbles, Johnny Weeks (Leo Fitzpatrick); o padrinho de Bubbles nos Narcóticos Anônimos, Walon (Steve Earle); a esposa de D'Angelo, Donette (Shamyl Brown); Shardene Innes (Wendy Grantham), dançarina que trabalha na Orlando's, uma boate que é fachada para os negócios de Avon, e que se apaixona por Lester; Wendell Blocker (Clayton LeBouef), para todos os efeitos o dono da Orlando's; o Dr. Randall Frazier (Erik Dellums), médico-legista da polícia; a supervisora do FBI Amanda Reese (Benay Berger); e a ex-esposa de McNulty, Elena (Callie Thorne), que se separou dele por causa do álcool e dos casos extraconjugais, conseguindo a guarda de seus dois filhos, Michael (Antonio Cordova) e Sean (Eric G. Ryan).

Por causa dos números da audiência, Simon imaginou que The Wire não seria renovada para uma segunda temporada, e fez um episódio final para a primeira, que, apesar de deixar uma pequena margem para novas histórias, fechava todas as pontas da apresentada até então. Quando a HBO anunciou sua intenção de renovar a série, portanto, ele precisava de uma nova história, e decidiu abordar um problema conhecido dos moradores de Baltimore, mas sem relação com o tráfico de drogas: a decadência da região portuária e a dificuldade de alguns trabalhadores em continuar empregados na transição da sociedade industrial para a pós-industrial, na qual tudo é informatizado.

Assim, na segunda temporada, que teve 12 episódios, exibidos entre 1 de junho e 24 de agosto de 2003, entra em cena o sindicato dos estivadores, cujo presidente é Frank Sobotka (Chris Bauer). Como o trabalho de estivador já não é tão lucrativo como costumava ser, Sobotka decide fazer negócios com um homem conhecido como Vondas (Paul Ben-Victor), que traz contrabando da Europa: Vondas informa qual contêiner trará o contrabando e, se aproveitando de uma falha no sistema, recém-informatizado, os estivadores fazem com que ele "desapareça", sendo entregue aos homens de Vondas antes que seja processado, fiscalizado e pague os impostos; em troca, Sobotka fica com parte do lucro, que repassa aos estivadores. A história da segunda temporada começa quando um desses contêineres deveria trazer mulheres da Europa Oriental para se prostituírem nos Estados Unidos, mas algo dá errado, todas chegam mortas, e Vondas decide abandonar o contêiner no porto ao invés de retirá-lo.

Quem descobre as moças mortas é a policial Beatrice Russell, apelido Beadie (Amy Ryan), que faz parte da autoridade portuária. McNulty, que mais para o final da temporada vai formar com ela um casal, esbarra sem querer no caso, e vê a oportunidade perfeita para que a unidade especial da polícia seja reativada - e, por consequência, ele volte a investigar crimes importantes, ao invés de ficar só fingindo que trabalha o dia inteiro, o que Rawls, promovido a coronel, lhe determinou como punição após suas estripulias da primeira temporada. Paralelamente à história dos estivadores, a história da família Barksdale avança mais um pouco, com Avon comandando os negócios de dentro da prisão, e Stringer, sem seu conhecimento, fazendo uma aliança com Proposition Joe - que também recebe suas drogas através do contrabando de Vondas - para garantir que o mercado se mantenha aquecido.

Novos personagens da segunda temporada incluem o filho de Sobotka, Ziggy (James Ransone), que é incompetente, mulherengo, só pensa em dinheiro e mais atrapalha do que ajuda o pai; o sobrinho de Sobotka e primo de Ziggy, Nick (Pablo Schreiber), que teve um filho com a namorada, Aimee (Kristin Proctor), mora com ela e os pais, Joan (Elizabeth Noone) e Louis (Robert Hogan), e quer de qualquer jeito uma participação maior no esquema criminoso, para ganhar mais dinheiro; Sergei Malatov (Chris Ashworth), que todo mundo insiste em chamar de Boris, algo que o irrita, ucraniano que faz parte da organização criminosa de Vondas, de vez em quando atuando como o motorista que tira do porto os contêineres com contrabando; Eton Ben-Eleazer (Lev Gorn), israelense que faz parte da organização de Vondas; George Glekas (Teddy Cañez), dono de uma loja que vende material contrabandeado pela organização de Vondas; o policial veterano amigo de McNulty Claude Diggins (Jeffrey Fugitt); Andy Krawczyk (Michael Wills), um empreendedor imobiliário picareta que se aproveita do fato de que Stringer Bell quer se tornar empresário para tirar dinheiro dele; Sean McGinty, apelido Shamrock (Richard Burton), braço-direito de Stringer; o traficante Melvin Wagstaff, apelido Cheese (o rapper Method Man), sobrinho de Proposition Joe, que não é muito inteligente mas é muito ambicioso, uma combinação perigosa no mundo do crime; Kimmy (Kelli R. Brown) e Tosha (Edwina Findley), duas mulheres que ajudam Omar em seus crimes; Butchie (S. Robert Morgan), cego dono de um bar que tem um passado criminoso em comum com Omar e o ajuda sempre que preciso; o Irmão Mouzone (Michael Potts), assassino de aluguel que Avon contrata para expulsar os homens de Proposition Joe de seu território, e seu assistente meio incompetente, Lamar (DeAndre McCullough); e os estivadores Johnny Fifty (Jeffrey Pat Gordon), Vernon Motley, apelido Ott (Bus Howard), Nat Coxson (Luray Cooper), rival político de Sobotka, e Thomas Pakusa, apelido Cara de Cavalo (Charley Scalles), braço-direito de Sobotka. Também vale citar um homem conhecido apenas como "O Grego" (Bill Raymond), o verdadeiro chefe da organização criminosa de Vondas.

Na terceira temporada, Simon decidiria retomar com força total a história da primeira, com Avon recebendo liberdade condicional e declarando guerra não somente a Proposition Joe, mas também ao novato Marlo Stanfield (Jamie Hector), que, com a ajuda de seus tenentes, Chris Partlow (Gbenga Akinnagbe) e Snoop (Felicia Pearson), decide impor um novo reinado de terror à cidade, se considerando o sangue novo que vai tomar o poder de todos os criminosos antigos já estabelecidos. A instituição que recebe os holofotes é a da prefeitura, com quatro novos personagens de peso: o prefeito, Clarence Royce (Glynn Turman); os vereadores Tommy Carcetti (Aidan Gillen) e Tony Gray (Christopher Mann), que pretendem se lançar candidatos a prefeito; e o deputado Odell Watkins (Frederick Strother), um dos mais influentes nas comunidades negras da cidade, com quem conseguir seu apoio tendo a vitória quase certa na eleição. Uma história paralela de destaque é a de Dennis Wise, apelido Cutty (Chad L. Coleman), ex-presidiário que tem dificuldades para voltar ao mercado de trabalho. Mas a história principal da terceira temporada envolve Bunny Colvin cansando de tomar atitudes inúteis para diminuir a venda de drogas e decidindo tomar uma medida drástica: inventar a Cracolândia - ele dá ordem para que os policiais não incomodem os traficantes e usuários que concordarem em ficar em apenas uma determinada parte da cidade, apelidada pelos bandidos de Hamsterdam, conseguindo reduzir a zero o tráfico e a violência nas demais, evidentemente sem que Burrell ou Royce possam ficar sabendo disso.

A terceira temporada teria mais 12 episódios, exibidos entre 19 de setembro e 19 de dezembro de 2004. Novos personagens incluem Theresa D'Agostino (Brandy Burre), coordenadora da campanha de Carcetti; Coleman Parker (Cleo Reginald Pizna), chefe de gabinete do prefeito Royce; a esposa de Carcetti, Jen (Megan Anderson); os policiais Kenneth Dozerman, apelido Doze (Rick Otto), Caroline Massey (Joilet Harris), Michael Crutchfield (Gregory L. Williams), Anthony Colicchio (Benjamin Busch) e Lloyd Garrick, apelido Truck (Ryan Sands); Grace Sampson (Dravon James), ex-namorada de Cutty que agora é professora; Slim Charles (Anwan Glover), tenente de Avon que depois passa a ocupar a mesma posição para Proposition Joe; Bernard (Melvin Jackson Jr.) e sua namorada, Squeak (Mia Arnice Chambers), que têm a missão de comprar celulares pré-pagos para os Barksdale; o traficante Fruit (Brandon Fobbs), da equipe de Marlo; Jamal (Melvin T. Russell), adolescente que vende drogas para os Barksdale; Kenard (Thuniso Dingwall), menininho que ainda não tem nem dez anos e já está envolvido com o mundo do crime; Sherrod (Rashad Orange), adolescente que mora nas ruas e é meio que adotado por Bubbles; e Spider (Edward Bernard Green, Jr.) e Justin (Justin Burley), adolescentes que Cutty convence a largar o crime para praticar boxe.

Com a morte de Colesberry, as negociações com a HBO para que The Wire fosse renovada para uma quarta temporada se tornariam extremamente difíceis; para piorar as coisas, West pediria por um aumento salarial absurdo e seria cortado do elenco. A série quase seria cancelada, e Simon só conseguiria convencer os executivos do canal a renová-la depois que a terceira temporada já havia ido ao ar. Por causa disso, não haveria temporada nova em 2005, e a quarta temporada, que teria mais 13 episódios, seria exibida entre 10 de setembro e 10 de dezembro de 2006. Quando as gravações começaram, West mudou de ideia e perguntou se poderia estar na série, mesmo que em um papel reduzido, para que os roteiros não tivessem de ser reescritos; por essa razão, McNulty quase não apareceria na quarta temporada, com o maior protagonismo ficando com Prez.

A instituição em foco na quarta temporada é o sistema escolar público da cidade, com Prez decidindo deixar a polícia e se tornar professor de matemática, e enfrentando desafios com as crianças maiores dos que tinha com os criminosos. Paralelamente a isso, ocorre a campanha para prefeito, com Carcetti e Royce disputando os eleitores voto a voto e seus aliados políticos promessa a promessa, e Gray correndo por fora. Bubbles decide abandonar o vício, e, junto com Sherrod, monta um negócio de vendas ambulante, com produtos de procedência duvidosa em um carrinho de supermercado, mas abandonar as drogas e a antiga vida se mostrará mais difícil do que ele imaginava. E Marlo trabalha para consolidar sua posição como maior traficante da cidade, superando Barksdale e chegando a ameaçar Proposition Joe; apesar do reinado de terror que impõe, ele consegue criar com Chris e Snoop um método através do qual a polícia não consegue ter provas de que ele está atacando e assassinando seus rivais, o que faz com que ele fique quase intocável - e com que a equipe especial da polícia, que não consegue chegar a nenhum resultado em relação a ele, seja redirecionada para crimes sem importância, o que causa revolta em Lester e Kima.

A quarta temporada tem muitos personagens novos, a começar pelos alunos da escola onde Prez vai trabalhar: o filho de Wee-Bay, Namond Brice (Julito McCullum), extremamente inteligente, que não quer seguir a vida de crimes do pai, apesar da insistência da mãe, De'Londa (Sandi McCree), mas também não vê outra alternativa para progredir; Michael Lee (Tristan Mack Wilds), que mora com uma mãe drogada (Shamika Cotton) e um irmão mais novo, Bug (Keenon Brice), é revoltado com a vida e quer ascender financeiramente a qualquer custo; Duquan Weems, apelido Dukie (Jermaine Crawford), que vem de uma família miserável e sofre bullying por estar sempre com as roupas sujas; Randy Wagstaff (Maestro Harrell), que mora com Anna (Denise Hart), uma mãe adotiva (no esquema que nos Estados Unidos é conhecido como foster parenting), e ganha dinheiro vendendo biscoitos e chocolates para os outros alunos; e Donut (Nathan Corbett), que rouba carros quando não está na escola.

Um personagem novo de extrema importância é Norman Wilson (Reg E. Cathey), conselheiro político de Carcetti. Outros personagens novos incluem Michael Steintorf (Neal Huff), chefe de gabinete de Carcetti; a vereadora Nerese Campbell (Marlyne Barrett), que se via como sucessora natural de Royce, e, portanto, passa a ser adversária política de Carcetti, mesmo sem estar concorrendo; o procurador do estado, Rupert Bond (Dion Graham); o Dr. David Parenti (Dan de Luca), que tenta implementar na escola uma classe especial somente com alunos problemáticos; o Tenente linha-dura Charles Marimow (Boris McGiver); o policial corrupto Eddie Walker (Jonnie Brown); o namorado de Omar, Renaldo (Ramón Rodríguez); Monk Metcalf (Kwame Patterson), traficante ligado a Marlo; o traficante Little Kelvin (Tyrell Baker), amigo de Bodie; e a vice-diretora da escola, Marcia Donnelly (Susan Duvall).

Mais uma vez, a HBO quis cancelar a série após a quarta temporada, e somente depois que todos os episódios haviam ido ao ar Simon conseguiu convencer os executivos a fazer uma última, apenas para fechar as pontas que ainda estavam soltas na história. Isso levaria mais uma vez a um ano sabático, e com que a quinta temporada, que teria apenas 10 episódios, fosse exibida entre 6 de janeiro e 9 de março de 2008. Enquanto a temporada estava no ar, Simon ainda tentaria convencer a HBO a renovar a série para uma sexta, mas, sem sucesso, escreveria um episódio final, de uma hora e meia, que encerraria The Wire definitivamente.

McNulty voltaria ao protagonismo na quinta temporada, determinado a não medir esforços para fazer com que os muitos cortes feitos pela prefeitura no orçamento da polícia impeçam que Marlo seja preso. A nova instituição retratada é uma versão ficcional da redação do jornal The Baltimore Sun, com novos personagens incluindo o editor Augustus Haynes, apelido Gus (Clark Johnson, que foi diretor de alguns episódios da série, incluindo o piloto e o final); o repórter Scott Templeton (Tom McCarthy), que tem o hábito de florear suas histórias; a repórter novata Alma Gutierrez (Michelle Paress); o editor-chefe, Thomas Klebanow (David Costabile); o editor executivo, James C. Whiting III (Sam Freed); e os jornalistas Mike Fletcher (Brandon Young), Roger Twigg (Bruce Kirkpatrick), Tim Phelps (Thomas J. McCarthty), Steve Luxenberg (Robert Poletick), Rebecca Corbett (Kara Lee Duncan) e Jay Spry (Donald Neal).

Enquanto estava no ar, The Wire teve audiência nunca melhor que mediana, e jamais ganhou nenhum prêmio de importância, tendo sido indicada ao Emmy apenas duas vezes, ambas por Melhor Roteiro em Uma Série de Drama, uma na terceira temporada, outra pelo episódio final. A crítica, por outro lado, sempre a definiu como uma das melhores séries da história da televisão norte-americana, com as temporadas a partir da segunda sendo especialmente aclamadas. Nos anos seguintes ao seu término, várias universidades dos Estados Unidos, como Johns Hopkins, Brown e Harvard, passaram a usar seus episódios em aulas de seus cursos de sociologia, serviço social e direito, com um dos motivos sendo que, ao contrário dos livros, que abordam um assunto de cada vez, a série conseguia unir, por exemplo, desemprego, educação pública e sistema carcerário em um único episódio, mostrando que tudo estava interligado e seria difícil solucionar um problema sem apresentar soluções para os demais. Atualmente, vários estudos científicos no mundo inteiro são escritos e publicados partindo de premissas estabelecidas pelos episódios da série, com alguns sendo considerados mais efetivos do que estudos caros conduzidos com moradores de cidades com altos índices de criminalidade.
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sábado, 14 de dezembro de 2024

Escrito por em 14.12.24 com 0 comentários

Lutas Tradicionais Turcas

Faz tempo que eu não escrevo um post sobre esportes, e um dos motivos é que às vezes eu acho que já falei de todos os "normais", só tendo sobrado aqueles super exóticos e difíceis de encontrar as informações que eu preciso. Essa semana, entretanto, eu estava pensando que seria legal fazer mais um post sobre esportes antes de o ano acabar, e me lembrei de que, quando fiz o post sobre os Jogos Mundiais Nômades, lá no início de 2022, comecei a reunir informações para escrever um post sobre as lutas tradicionais turcas, já que uma delas estava no programa das edições de 2016 e 2018, e pelo menos duas estavam confirmadas no programa da edição de 2022 (que acabou tendo quatro). Em determinado momento eu achei que estava ficando muito difícil reunir as informações e desisti, mas hoje resolvi tentar de novo, e, mesmo sem conseguir achar tudo o que eu queria, decidi escrever o post. Assim, hoje é dia de lutas tradicionais turcas no átomo!

Eu não faço ideia de quantas lutas tradicionais turcas existam - a Wikipédia lista 16, embora de 14 só cite o nome - mas, nesse post, eu vou falar de seis - não por acaso, as seis que são atualmente reguladas pela Federação Turca de Lutas Tradicionais (TGGF, da sigla em turco). Duas delas são disputadas em âmbito nacional e, até 2021, eram reguladas pela Federação Turca de Luta (TGF), mesmo órgão que regula a luta olímpica (luta livre e luta greco-romana) na Turquia; as outras quatro são disputadas somente a nível regional, e até 2021 eram reguladas pela Federação Turca de Esportes Tradicionais (GSDF), que regula vários esportes tradicionais da Turquia, como o okçuluk (tiro com arco tradicional turco) e o kizak (trenó tradicional turco). Todas as seis possuem praticantes fora da Turquia, mas não são populares internacionalmente a ponto de permitir a realização de campeonatos mundiais, de forma que a maior parte de seus campeonatos ocorre na Turquia, com a participação ou não de estrangeiros.

Todas as seis lutas que veremos hoje compartilham algumas características em comum. Pra começar, todas são exclusivamente masculinas e disputadas sobre grama natural, que ocupa um quadrado de 30 x 30 m, que pode ser delimitado por estacas e cordas, como se fosse um ringue de boxe, ou por uma linha branca pintada no chão, como as de um campo de futebol. Cada luta conta com apenas um árbitro, que acompanha os lutadores de perto, mas costuma ter também uma mesa, para contabilizar pontos, cronometrar o tempo, e, em alguns casos, chamar a atenção do árbitro para alguma falta ou conduta inadequada que ele deixou passar. Cada uma das lutas possui rituais que são realizados antes de os lutadores começarem a lutar, com esses rituais sendo diferentes dependendo da luta.

Outra coisa: "luta", em turco, é güreşi, por isso os nomes de todas as seis vão ter essa palavra no final; como nem sempre é possível escrever um ş, ela também costuma ser grafada gures, guresi ou gureshi. Eu vou usar gureshi porque é a grafia usada pela World Ethnogames Confederation (WEC), co-organizadora dos Jogos Mundiais Nômades, sendo, portanto, a grafia com a qual eu estou mais acostumado. Finalmente, no idioma turco existe i com pingo e i sem pingo, cada um com um som diferente; a WEC substitui todos os i sem pingo nos nomes das lutas e de alguns termos relacionados a elas por y, então eu vou fazer isso também - mas fiquem sabendo que, ao procurar por essas lutas na internet, vocês podem encontrar seus nomes escritos com i, com ou sem pingo, ao invés de y.

Tudo isso esclarecido, vamos começar por uma das duas lutas nacionais, que também é a mais conhecida fora da Turquia. Essa luta se chama yagli gureshi, nome que pode ser traduzido para "luta do óleo" - e que vem do fato de que os lutadores se lambuzam de óleo (na verdade, de azeite) antes da luta. Vale citar como curiosidade que, segundo a Capcom, esse é o estilo de luta praticado por Hakan, de Street Fighter IV.

A luta do óleo é considerada uma das formas de luta mais antigas do mundo, com registros históricos mostrando que ela era praticada na Suméria e na Babilônia. Ao longo dos anos, ela teria chegado à Grécia, e no século III a.C. teria um surto de popularidade no Império Romano. Segundo conta a história, mais ou menos nessa época ela seria extremamente popular nos Balcãs, que seriam invadidos pelo Império Otomano. Ao invés de como esporte, entretanto, os otomanos, antepassados dos atuais turcos, usavam a luta de forma cerimonial, durante festivais. Seria apenas por volta do século XIII, já na atual Turquia, que a yagli gureshi ganharia regras para poder ser disputada de forma competitiva.

O único uniforme que os lutadores da yagli guresh usam é uma calça feita de couro, com uma tira reforçada na cintura e pernas que acabam no meio das panturrilhas, de cor preta, chamada kisbet ou kispet. Originalmente, o kisbet era feito de couro de búfalo e podia pesar até 13 kg; atualmente, ele é feito de couro de boi, e pesa entre 1,8 e 2,5 kg quando untado - antes da luta, os lutadores untam todo o seu corpo, incluindo seus kisbets, com azeite de oliva, sendo que um lutador deve untar o outro, em sinal de respeito.

Um lutador é declarado vencedor caso alcance uma das seguintes condições de vitória: fazer com que o oponente se deite de costas no chão, com a barriga virada para cima; fazer com que o oponente se sente apoiando ambas as mãos no chão simultaneamente; fazer o oponente apoiar ambos os cotovelos no chão simultaneamente; fazer o oponente tocar o chão com o cotovelo e a mão do mesmo braço; levantar o oponente do chão e ou caminhar três passos ou fazer um giro de 360 graus. Curiosamente, as regras também dizem que, se um lutador conseguir abaixar o kisbet do oponente, expondo suas genitais, ele ganha a luta, embora atualmente essa prática seja desencorajada e já faça um bom tempo que ninguém ganha assim.

Existe ainda uma forma de ganhar a luta chamada paça kazyk, que seria equivalente a um nocaute ou ippon, e consiste em colocar os braços ao redor da cintura do adversário, em contato com a faixa do kisbet, durante três segundos, o que, como ambos estão lambuzados de óleo, é mais fácil de explicar do que de fazer. Originalmente, essa era a única forma de ganhar a luta, que não tinha duração pré-determinada, mas, em 1975, após uma luta que durou, acreditem ou não, dois dias, a TGF decidiu estabelecer novas condições de vitória e um limite de tempo para que a luta tenha um vencedor. A yagli gureshi é dividida em duas categorias, pehlivan ("lutadores", voltada aos iniciantes) e bashpehlivan ("mestres", voltada aos veteranos). Na categoria pehlivan, a duração máxima de uma luta é de 30 minutos, enquanto na bashpehlivan é de 40 minutos - ainda assim um tempo absurdo, se considerarmos que a maioria das lutas esportivas dura um décimo disso.

Assim como em qualquer luta esportiva, não basta o lutador chegar lá e querer agarrar oponente de qualquer jeito; há uma técnica própria para se fazer isso, com movimentos válidos e inválidos. Um lutador que insista em usar movimentos inválidos é advertido, e, dependendo do caso, desclassificado, sendo a desclassificação do oponente também uma forma de vencer a luta. Caso o tempo regulamentar termine sem vencedor, é feito um intervalo de cinco minutos após o qual começa uma prorrogação, de 10 minutos para pehlivan e 15 minutos para bashpehlivan. Durante essa prorrogação, os lutadores receberão pontos pela aplicação dos golpes, e, se nenhum dos lutadores alcançar uma condição de vitória, o lutador com mais pontos será o vencedor.

Torneios de yagli gureshi, amadores e profissionais, são disputados em toda a Turquia durante todo o ano, exceto durante o inverno, mas o mais famoso é o chamado Kyrkpynar, realizado anualmente no final de junho, durante três dias, na cidade de Edirne (antiga Adrianópolis). Com registros que comprovam que ele é disputado anualmente desde 1362, só não tendo sido realizado cerca de 70 vezes ao longo de 663 anos, o Kyrkpynar está no Livro Guinness dos Recordes como a competição esportiva mais antiga ainda continuamente realizada. Somente turcos podem participar, e, diferentemente de outras lutas esportivas, não há categorias de peso, sendo a divisão feita apenas entre pehlivan e bashpehlivan. O campeão da bashpehlivan recebe o título de "lutador chefe", que mantém até o torneio do ano seguinte, e quem ganha três anos seguidos recebe um cinturão de ouro 18 quilates.

Além da Turquia, outros países que possuem campeonatos profissionais de yagli gureshi são Japão, Bulgária, Grécia e Holanda - esse último, por incrível que pareça, o mais desenvolvido no yagli gureshi após a Turquia. Desde 1997, a Holanda realiza, em Amsterdã, o Campeonato Europeu, considerado o segundo torneio mais importante da yagli gureshi após o Kyrkpynar. Como, em 2000, o campeão europeu foi proibido de participar do Kyrkpynar por não ser turco, desde 2001 o Campeonato Europeu é aberto a lutadores de todas as nacionalidades, inclusive não-europeus, mas exceto turcos. De forma semelhante a outros torneios de luta, o Campeonato Europeu divide os lutadores em categorias de peso, que atualmente são até 80 kg, até 95 kg, até 110 kg e acima de 110 kg. A yagli gureshi fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022, disputados em Izmir, Turquia, com essas mesmas categorias de peso, e aberta a lutadores de todas as nacionalidades.

A segunda luta disputada em âmbito nacional é a karakucak gureshi, que surgiu dentre o povo oghuz, que se formou na Ásia Central por volta do século VIII e migrou para a Anatólia no século XIII; hoje, a maior parte da população da Turquia é descendente dos orghuz, que se converteram ao islamismo no século XI. Graças a uma revisão das regras feita pela TGF em 1975, atualmente a karakucak gureshi é bastante parecida com a yagli gureshi, com a principal diferença sendo que, na karakucak gureshi, não é usado qualquer tipo de óleo. O uniforme da karakucak gureshi também é diferente, embora semelhante: chamado pirpit, se parece com uma bermuda, é feito de lona, e normalmente são usadas as cores azul ou verde.

Outra diferença notável é que, na karakucak gureshi, não basta agarrar o pirpit do adversário (nem baixá-lo e deixar seu pirpit à mostra, desculpem o trocadilho), sendo essencial conseguir uma das seis outras condições de vitória. Uma luta da karakucak gureshi também é bem mais curta, durando apenas seis minutos, com uma prorrogação de três minutos caso não haja vencedor. Assim como na yagli gureshi, durante a prorrogação os lutadores ganham pontos, que também determinarão o resultado caso nenhum dos dois consiga uma condição de vitória. A karakucak gureshi possui categorias de peso, com a TGGF definindo nada menos que dez delas: até 48 kg, até 53 kg, até 57 kg, até 62 kg, até 68 kg, até 74 kg, até 82 kg, até 90 kg, até 100 kg e até 130 kg.

Campeonatos de karakucak gureshi são disputados em todas as regiões da Turquia, e servem como classificatórias para o Campeonato Nacional, disputado anualmente - mas cuja popularidade não chega nem perto da do Kyrkpynar. Falando nisso, embora ambas sejam reguladas pela mesma federação e disputadas nacionalmente, a yagli gureshi é infinitamente mais popular que a karakucak gureshi, tanto em termos de praticantes quanto de público, por ser considerada a verdadeira luta tradicional do povo turco. Além de na Turquia, a karakucak gureshi é disputada profissionalmente na Mongólia, Azerbaijão, Turcomenistão e na Rùssia, mais especificamente nas repúblicas autônomas da Iacútia, Tataristão e Crimeia. Diferentemente do que ocorre com a yagli gureshi, estrangeiros podem participar do Campeonato Nacional de karakucak gureshi, mas devem se classificar através de um regional turco antes, o que acaba desanimando a maioria dos lutadores, que prefere lutar somente em seus países de origem.

De uns tempos pra cá, a karakucak gureshi vem tendo uma relação de amor e ódio com a luta olímpica: muitos dos lutadores turcos mais bem sucedidos na luta livre e na luta greco-romana, incluindo campeões europeus, mundiais e medalhistas olímpicos, começaram suas carreiras na karakucak gureshi, passando depois para a luta olímpica, existindo inclusive quem defenda que o treinamento na karakucak gureshi dá alguma vantagem na luta olímpica; o fato de a karakucak gureshi ser disputada em um gramado, mais barato que um mat, também torna mais fácil a iniciação dos jovens nesse tipo de luta. O problema é que, justamente pelo sucesso dos turcos na luta olímpica, a maioria dos jovens quer iniciar já nela, com o número de iniciantes na karakucak gureshi diminuindo a cada ano, e a TGF já fazendo campanhas para que ela não desapareça.

Vamos passar agora para as quatro lutas que eram antigamente reguladas pela GSDF. Como foi dito, essas são lutas regionais, e não são praticadas em todo o território da Turquia, embora duas delas sejam disputadas fora do país. A mais famosa das quatro é a ashyrtmaly aba gureshi, disputada nas regiões de Gaziantep, Adana e Osmaniye, além de no Azerbaijão, Turcomenistão, Tajiquistão e Rússia. Por causa disso, a ashyrtmaly aba gureshi seria a primeira das lutas tradicionais turcas a ser incluída no programa dos Jogos Mundiais Nômades, estando presente nas edições de 2016, 2018, 2022 e 2024. A ashyrtmaly aba gureshi é uma luta de cinturão, com muitas semelhanças com as que eu já abordei aqui no átomo; por causa disso, praticantes de outras lutas de cinturão às vezes se arriscam em torneios de ashyrtmaly aba gureshi.

O aba do nome da luta também é o nome do uniforme, que consiste em uma espécie de colete aberto na frente e uma bermuda, ambos feitos de couro e tradicionalmente de cor preta, embora possam ter detalhes em outras cores. Na ashyrtmaly aba gureshi, o colete é curto, terminando antes da cintura, e o cinturão é amarrado entre o colete e a bermuda. O colete e o cinturão, que possui uma forma própria para ser amarrado, não são fáceis de serem vestidos, e devem ser colocados e removidos à vista de todos, com cada lutador contando com um membro da arbitragem que o ajuda a se vestir antes da luta e se despir ao final.

Na ashyrtmaly aba gureshi só é permitido segurar o cinturão do adversário com a mão direita. No início da luta, um dos lutadores é sorteado, e já começa segurando o cinturão do adversário, mas com seu braço passando por cima do ombro esquerdo do outro. Cada lutador só pode usar as mãos para segurar o cinturão ou o colete do adversário, sendo proibido segurar braços, pernas, pescoço ou usar a mão para empurrar o oponente. A ashyrtmaly aba gureshi possui movimentos válidos tanto para a luta de pé quanto com os dois lutadores no solo, mas, se o árbitro decidir que a luta de solo está se prolongando sem que dela vá resultar um vencedor, ele pode interromper a luta e recomeçá-la com ambos os lutadores de pé. A luta de solo deve sempre começar em decorrência de um arremesso; um lutador se jogar no chão de propósito para forçá-la é considerado conduta antidesportiva.

Uma luta de ashyrtmaly aba gureshi é dividida em três sets de 10 minutos cada. O vencedor da luta será o lutador que vencer mais sets, mas não necessariamente dois, já que, caso o tempo se esgote sem que haja um vencedor, o set é considerado empatado - é possível vencer, portanto, com um set e dois empates. Caso todos os três sets terminem empatados, é disputada uma prorrogação sem limite de tempo, até sair um vencedor. Ainda é comum em alguns torneios da Turquia que a ashyrtmaly aba gureshi seja disputada sem limite de tempo; nesse caso, cada set só acaba quando um dos lutadores vence, e quem vencer dois sets primeiro ganha a luta. A ashyrtmaly aba gureshi possui categorias de peso, que, segundo a TGGF, são oito: até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 90 kg e até 120 kg.

Um lutador será vencedor de um set caso consiga fazer com que o oponente se deite de bruços, com sua barriga tocando totalmente o chão; fazer com que o oponente toque com ambos os ombros simultaneamente no chão; ou fazer com que o oponente se deite de lado no chão, tocando com o quadril e o ombro do mesmo lado no chão. Caso o lutador que começou com o oponente segurando seu cinturão consiga fazer com que o oponente solte antes de ele mesmo segurar o cinturão do oponente, ele também ganha o set. Um lutador que insista em usar movimentos inválidos pode perder o set automaticamente, ou, se esse comportamento colocar a vida ou a integridade física do oponente em risco, pode perder toda a luta, independentemente de em qual set estava e quantos ele tinha ganhado.

A ashyrtmaly aba gureshi possui uma "parente" chamada kapyshmaly aba gureshi, disputada principalmente na região de Hatay; ambas descendem da mesma luta original, mas, ao longo dos anos, foram se tornando bem diferentes. Chamada muitas vezes apenas de aba gureshi, a kapyshmaly aba gureshi, que também é uma luta de cinturão, possui muito menos praticantes dentro da Turquia do que a ashyrtmaly aba gureshi, e também é bem menos popular internacionalmente, não sendo especialmente popular em nenhum outro país. A kapyshmaly aba gureshi fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022.

Na kapyshmaly aba gureshi, o colete é feito de feltro e lã, sendo mais macio e mais comprido, terminando na altura das nádegas do lutador, e o cinturão é amarrado para fechar o colete, que pode ser de várias cores - normalmente com cada um dos lutadores usando um colete de um cor. Os lutadores podem segurar o cinturão com as duas mãos, e a luta de solo, que começa assim que um dos lutadores toca com pelo menos um de seus joelhos no chão por qualquer motivo, tem duração máxima de 1 minuto, com a luta sendo interrompida e recomeçando com os lutadores de pé. Também é proibido segurar qualquer parte do oponente que não seja o colete ou o cinturão, bem como empurrá-lo. Para ganhar um set, o lutador tem que fazer com que o oponente toque o chão com ambos os ombros simultaneamente, ou com que ele caia de costas, com a barriga virada para cima. Ninguém perde o set por soltar a mão do adversário, mas pode perder o set ou a luta caso insista em conduta faltosa. As categorias de peso são as mesmas da ashyrtmaly aba gureshi, mas a duração padrão de uma luta é a metade: três sets de cinco minutos cada, com prorrogação sem limite de tempo caso todos os três terminem empatados.

A terceira luta regional que veremos é a shalvar gureshi, originária da região de Kahramanmarash, mas também praticada no Irã, Mongólia, Azerbaijão, Quirguistão, Turcomenistão e Rússia. O nome da luta também vem de seu uniforme, o shalvar, uma bermuda bem justa feita de pelo de cabra, tradicionalmente tingida na cor verde; se a luta não for na grama, os lutadores também usam meias e sapatilhas. Falando nisso, a shalvar gureshi é a única das lutas que veremos hoje que não precisa obrigatoriamente ser disputada na grama, com a TGGF permitindo que ela seja disputada em ambiente interno, com piso antiderrapante e não abrasivo, na areia, ou até mesmo na neve, o que faz com que ela possa ser disputada durante todo o ano. Também é a única que veremos hoje que já teve um campeonato mundial, disputado em 2020 em Kahramanmarash. A shalvar gureshi também fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022.

A shalvar gureshi é uma luta de submissão, na qual os lutadores, que durante toda a luta ficarão meio curvados para a frente, tentarão utilizar os movimentos válidos para colocar os oponentes deitados no chão e imobilizá-los, ganhando pontos de acordo com o tipo de imobilização. Se um dos lutadores conseguir imobilizar o oponente deitado de costas, de barriga para cima, ele ganha a luta instantaneamente. Lutadores que infrinjam as regras recebem advertências e penalidades, que podem fazer com que eles percam pontos. Uma luta dura 10 minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos vence; se, ao final do tempo, a luta estiver empatada, começa uma prorrogação que dura até um dos lutadores pontuar. É obrigatório lutar de pé; se os lutadores forem ao solo e uma imobilização não começar imediatamente, o árbitro interrompe a luta e manda eles recomeçarem de pé. As categorias de peso são as mesmas da karakucak gureshi.

Aliás, exceto por alguns movimentos que são válidos em uma das lutas mas não são na outra, pelo fato de haver pontuação desde o início, e por só haver uma condição de vitória instantânea, a shalvar gureshi é bem parecida com a karakucak gureshi, o que é apontado como principal entrave à sua popularização no restante da Turquia; recentemente, entretanto, devido ao fato de poder ser praticada em ambiente fechado, a shalvar gureshi vem se popularizando no restante da Europa, principalmente em países com muitos imigrantes turcos, como a Alemanha, o que pode levar à curiosa situação de a luta ter mais praticantes fora da Turquia do que dentro dela. Apesar das semelhanças entre os estilos, lutadores turcos de shalvar gureshi não costumam migrar nem para a karakucak gureshi, nem para a luta olímpica, se orgulhando de defender uma luta tradicional turca com raízes culturais em sua região.

A última luta que veremos hoje é a kushak gureshi, que, de certa forma é a mais diferente: enquanto as outras três lutas regionais se originaram e hoje são praticadas em regiões do sul da Turquia, próximas à fronteira com a Síria e o Iraque, a kushak gureshi é praticada na região de Eskishehir, no norte, próxima à porção europeia da Turquia. A kushak gureshi teria nascido na Crimeia e sido levada por imigrantes da etnia tatar para a Turquia; por causa disso, na Turquia, fora de Eskishehir, ela também é conhecida como tatar gureshi. Ela também é praticada no Turcomenistão, na Romênia, onde por alguma razão é bastante popular, e nas repúblicas autônomas russas da Iacútia e do Tataristão.

A kushak gureshi é uma luta de cinturão; o uniforme dos lutadores consiste de um camisão de mangas curtas e gola em V, uma calça do mesmo tecido, ambos levemente folgados, e uma faixa do mesmo tecido, o cinturão, amarrado na cintura. No início da luta, um lutador segura o cinturão do outro com ambas as mãos, posicionando a mão direita pelo lado de dentro da faixa e a mão esquerda pelo lado de fora. Um lutador que solte qualquer uma das mãos, exceto se em decorrência de uma ordem do árbitro, é imediatamente desclassificado, com a vitória indo para o outro. Mas o objetivo principal da luta não é desclassificar o oponente, e sim derrubá-lo. Derrubar o oponente de forma que ambos os seus ombros toquem o chão simultaneamente resulta em vitória automática, mas derrubá-lo de forma com que ele caia de costas, de lado ou sentado também vale pontos. A luta dura três minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos vence. Caso não haja um vencedor, é disputada uma prorrogação que dura até alguém pontuar. As categorias de peso são as mesmas da ashyrtmaly aba gureshi.

De todas as lutas tradicionais turcas da TGGF, a kushak gureshi é a mais ameaçada. Devido ao grande número de lutas de cinturão populares na Ásia, como o kurash, o alysh, o koresh e o guresh, muitos lutadores de kushak gureshi preferem participar de torneios internacionais dessas lutas ao invés de dos torneios regionais e nacional turcos, que, ano após ano, se veem esvaziados. Os maiores investimentos da TGGF, atualmente, são voltados à yagli gureshi, à ashyrtmaly aba gureshi e à shalvar gureshi, talvez por eles considerarem essas lutas mais legitimamente turcas que as demais. Muitos pedem para que, assim como a shalvar gureshi, a kushak gureshi possa ser disputada oficialmente em ambiente fechado, mas os puristas argumentam que ela então se tornaria muito parecida com as lutas de cinturão da Ásia Central, perdendo sua identidade. Talvez a inesperada popularidade da luta na Romênia seja boa para sua preservação.
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sábado, 7 de dezembro de 2024

Escrito por em 7.12.24 com 0 comentários

Moby & Dick

E hoje encerraremos essa segunda rodada de contos que eu escrevi para o Crônicas de Categoria, com mais uma homenagem - dessa vez, acreditem ou não, a um livro do qual eu nem gosto, tanto que jamais escrevi sobre ele aqui. Mas eu acho a história interessante, e quis fazer uma paródia.





Moby & Dick

Em uma pequena cidade do interior, moravam dois irmãos gêmeos. Os nomes deles não são importantes para a história. O que importa é que, como eles eram muito grandes, gordos e brancos, seus apelidos eram Moby e Dick.

Moby e Dick tinham 12 anos e eram o terror da escola. Incomodavam todos os outros meninos, colavam chiclete no cabelo das meninas, roubavam a merenda dos menores, colocavam apelidos, enfim, viviam para o bullying. Como seu pai era um importante político da cidade, e sua mãe jurava que, em casa, ambos eram santos, e que todas as reclamações eram perseguições da escola a seus anjinhos, não havia muito o que se fazer. Os outros meninos evitavam Moby e Dick, mas não havia quem nunca tivesse sido atacado por eles.

Um dia, entrou um aluno novo no colégio, chamado Ismael. Ismael era pequeno e franzino, mas muito inteligente, o que fazia com que ele tivesse dificuldade em fazer amigos. Logo em seu primeiro dia, seu primeiríssimo diálogo com Moby e Dick foi o seguinte:

– Qual seu nome?

– Me chamam Ismael. Quantos anos vocês têm?

– Doze.

– Seis cada ou 24 no total?

E bastou. Dizendo que Ismael queria ser “engraçadinho”, Moby e Dick decidiram que iriam fazer dele seu novo alvo preferencial. A vida do menino virou um inferno, ao ponto de ele, sempre tão assíduo e estudioso, não querer mais frequentar a escola.

Ismael ouviu todos os conselhos sobre bullying possíveis: é só ignorar que passa (não passava), quem faz bullying é porque não gosta de si mesmo e faz com os outros antes que façam com ele (não servia de consolo), e, o mais legal de todos, é só enfiar a porrada que eles param, o que era impossível porque Ismael devia pesar uns 30 kg, e os irmãos, juntos, provavelmente pesavam mais de cem. Tentando ajudar, a escola fez um teatrinho sobre bullying, mas a emenda ficou pior que o soneto, pois Moby e Dick passaram a usar todos os exemplos da peça contra suas vítimas.

Um dia, Ismael conseguiu um estranho aliado: Ahab, um menino de família árabe que havia sido vítima de Moby e Dick no passado. Durante uma briga feia, um dos irmãos mordeu a perna de Ahab, e sua mãe, revoltada, decidiu tirá-lo da escola e se mudar para outro bairro. Ahab nunca esqueceu a ofensa, porém, e vivia procurando uma forma de se vingar de suas nêmeses. Ao ver que Ismael era muito inteligente, propôs que ambos se unissem para derrotar os irmãos para sempre.

Ahab sabia de cor toda a rotina dos irmãos – durante anos, pesquisou suas vidas, sempre tentando encontrar um ponto fraco ou uma oportunidade de vingança. Com a ajuda de Ismael, Ahab conseguiu o plano perfeito: ambos iriam atacar os irmãos durante sua aula de natação no Clube Pequod, roubar suas roupas e obrigá-los a voltar para casa pelados. A humilhação que sofreriam seria troco suficiente para uma vida inteira de bullying.

No dia estipulado, tudo corria de forma perfeita. Ahab e Ismael conseguiram entrar nos vestiários sem que ninguém visse, e, enquanto Moby e Dick estavam no banho, roubaram as roupas dos irmãos. Ao ver a vingança tão próxima, porém, Ahab enlouqueceu, e quis retribuir a mordida que um dos irmãos lhe havia dado. Abrindo a porta do chuveiro, investiu contra seu inimigo, mordendo sua perna com toda força.

Com o berro de Moby, Dick abriu a porta de seu chuveiro para ver o que ocorria, e viu Ismael ainda correndo levando suas roupas. Ao perceber que Ahab estava agarrado à perna de seu irmão, porém, decidiu ajudá-lo a se livrar do mordedor. Temendo que o pior pudesse acontecer a seu amigo, Ismael voltou ao vestiário trazendo um professor, que salvou Ahab de ser afogado no vaso sanitário.

Mesmo após quase morrer, Ahab não desistiu de sua vingança, e continuou chamando Ismael para seus planos. Vendo que aquilo não ia dar certo, Ismael decidiu se afastar do amigo, focar em seus estudos, e, após concluir o colégio, ganhou uma bolsa para fazer faculdade na Europa. Moby e Dick continuaram fazendo bullying com todo mundo, sempre tendo sua cara livrada por seu pai político, e atualmente são vereadores. De Ahab ninguém nunca mais soube. Dizem que, até hoje, ele conta a história de como quase se vingou da baleia branca que mordeu sua perna.
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sábado, 30 de novembro de 2024

Escrito por em 30.11.24 com 0 comentários

Kull da Atlântida

Conan é o personagem mais famoso de Robert E. Howard, mas não foi seu primeiro. Na verdade, ele não foi nem seu primeiro bárbaro. Na verdade mesmo, existe outro personagem que, sem ele, Conan nem teria existido. Esse personagem se chama Kull da Atlântida, e é o tema do post de hoje.

A versão mais famosa sobre a origem de Conan conta que, em 1932, aos 26 anos, Howard estava viajando por seu Texas natal e teve uma inspiração súbita, criando uma terra fictícia habitada por bárbaros destemidos, a qual chamou de Ciméria, e, pensando em como aproveitá-la, criou toda uma época mítica, chamada Era Hiboriana, fazendo de um cimério o herói que iria viver aventuras nesse tempo. O que acontece, e que muita gente não sabe, é que o nome Ciméria não foi uma criação de Howard, sendo antigamente usado para se referir à região hoje conhecida como Crimeia, aquela que está em disputa entre a Ucrânia e a Rússia. A Ciméria de Howard, evidentemente, não tem nada a ver com a Crimeia, sendo um criação própria. Só que, alguns anos antes, ele tinha feito a mesmíssima coisa, apenas usando uma terra fictícia ao invés de uma real, e não obtendo o mesmo sucesso.

No final da década de 1920, pouco após completar 20 anos, Howard já era considerado um autor de sucesso, podendo viver exclusivamente da venda de suas histórias e fazendo amizade com outros dois famosos escritores da época, H.P. Lovecraft e Clark Ashton Smith. As histórias de Howard diferiam das de Lovecraft e Smith, entretanto, principalmente porque as dos dois tinham muitos elementos de horror, enquanto as de Howard eram pura ação, tendo como protagonistas espadachins, soldados, piratas, pistoleiros, e até mesmo marinheiros brigões. Um dia, porém, Howard estava conversando com Lovecraft, e teve a ideia de uma história de ação com elementos de terror, protagonizada por um bárbaro que enfrentaria feitiçaria, tendo que contar também com sua inteligência para sobrepujar seus inimigos, ao invés de apenas com sua espada. Assim surgiria O Reino das Sombras.

O Reino das Sombras era protagonizada pelo Rei Kull, governante da Valúsia, mas que não era natural de lá, tendo chegado ao trono após derrotar em combate o rei anterior. Com a ajuda de Brule, um lanceiro picto, ele descobre uma conspiração para não somente removê-lo do trono, mas também para escravizar toda a humanidade; por trás dela, estão os homens-serpente, que governavam o mundo antes da ascensão dos humanos, e agora querem voltar ao lugar que consideram seu por direito. Os homens-serpente, que em sua forma original têm corpo humano mas cabeça de serpente, são criaturas de feitiçaria, capazes de assumir a aparência de qualquer ser humano. Usando desse poder, eles planejam substituir a corte de Kull pouco a pouco, até conseguir matá-lo, substituí-lo, e governar a Valúsia, partindo, então para a conquista dos demais reinos humanos, até se tornarem os governantes de tudo. Os pictos descobrem esse estratagema e enviam Brule para alertar Kull, com a dupla precisando descobrir quais conselheiros de Kull já foram substituídos e impedir os homens-serpente antes que seja tarde demais.

Publicada na revista Weird Tales em agosto de 1929, O Reino das Sombras seria aclamada, considerada uma das melhores histórias já apresentadas na revista, e se tornando o primeiro exemplar do estilo que posteriormente, ao ser popularizado por Conan, receberia o nome de Espada e Magia. Com o sucesso da história, Howard passaria a desenvolver o personagem Kull, determinando os acontecimentos mais relevantes de seu passado, e delimitando como seria o mundo no qual ele vive.

Kull é nascido na Atlântida, segundo o próprio Howard, cerca de 100 mil anos antes do nascimento de Cristo. Nas histórias de Kull, não somente a Atlântida era uma ilha normal, e não um reino submarino, como também a Atlântida de Howard é completamente diferente de suas descrições feitas por outros autores: ao invés de uma civilização altamente avançada para a sua época, a ilha é esparsamente povoada e habitada por tribos bárbaras que rejeitam a civilização. A oeste da Atlântida fica um continente conhecido como Thúria, onde estão localizados os reinos humanos civilizados, com o mais poderoso deles sendo a Valúsia. Outras ilhas de destaque, também com nomes inspirados em civilizações que podem ter existido ou não, são a Lemúria, terra de piratas sanguinários, e a distante Mu. E, a leste da Atlântida, ficam as ilhas habitadas pelos pictos, que, ao contrário de nas histórias de Conan, onde são selvagens que servem apenas como antagonistas, nas histórias de Kull são um povo bárbaro semelhante aos atlantes e inspirados nos indígenas norte-americanos. Brule, um picto eloquente e corajoso, após os eventos de O Reino das Sombras se tornaria o melhor amigo de Kull.

Antes de prosseguirmos, vale explicar que, após criar Conan e a Era Hiboriana, Howard definiria que as épocas de Kull e de Conan estariam separadas por alguns milhares de anos. Nesse intervalo de tempo, ocorreria um cataclisma (o que faria com que a época de Kull se tornasse oficialmente a "pré-cataclísmica") que levaria ao afundamento da Atlântida e à derrocada das civilizações humanas, que reverteriam à selvageria e levariam séculos para se tornar civilizadas novamente, com os pictos jamais passando do estágio de selvageria ao qual foram regredidos, e povos como os aquilônios e hirkanianos sendo descendentes diretos dos antigos thuranianos. Em termos gerais, portanto, a época de Kull está tão distante da época de Conan quanto a época de Conan está distante da nossa.

Voltando à história de Kull, ele nasceu na Atlântida, mas um evento ocorrido em sua adolescência faria com que ele fosse exilado, tendo de fugir para o continente. No meio do caminho, ele seria capturado e escravizado, forçado a trabalhar como remador em um navio. Depois disso, ele seria vendido como gladiador, e, ao recuperar sua liberdade, se tornaria mercenário, e então soldado no exército da Valúsia, onde iria subindo na hierarquia até se tornar general. Envolvido em uma trama para derrubar o rei, ele mataria o monarca e decidiria ele mesmo assumir a coroa, se tornando o novo Rei da Valúsia. Quase todas as histórias escritas por Howard são ambientadas nessa última fase da vida do personagem, o que faz com que ele seja bastante conhecido como Rei Kull - embora atualmente o nome Kull da Atlântida seja considerado o oficial, principalmente porque, na década de 1950, a Fawcett Comics criaria um vilão para o Capitão Marvel também chamado King Kull.

Também vale citar que o arqui-inimigo de Kull é o feiticeiro Thulsa Doom - que, curiosamente, seria o vilão do primeiro filme do Conan. Um feiticeiro que tem no lugar da cabeça uma caveira com fogo dentro das órbitas, Doom é aparentemente invulnerável, com Kull jamais conseguindo destruí-lo, apenas aprisioná-lo até que ele escape e volte a atormentá-lo. O objetivo de Doom, assim como o dos homens-serpente, é tomar para si o trono da Valúsia e então conquistar o restante do continente, se tornando praticamente o governante do mundo.

Apesar de toda a aclamação conseguida por O Reino das Sombras, Howard só conseguiria vender duas outras histórias de Kull em vida: Os Espelhos de Tuzun Thune, publicada pela Weird Tales no mês seguinte, em setembro de 1929, não faria muito sucesso, o que levaria a revista a rejeitar todas as histórias de Kull seguintes que ele enviasse, exceto Os Reis da Noite, publicada em novembro de 1930.

Seria por causa dessa rejeição que Howard pegaria uma história de Kull, Por esse Machado eu Reino, e a transformaria em A Fênix na Espada, história que marcaria a estreia de Conan. A história de Conan tem mais ação, mais elementos sobrenaturais e menos debates filosóficos, mas algumas passagens de ambas são idênticas; é por essa razão, inclusive, que, em sua primeira história, Conan é Rei da Aquilônia, e somente nas seguintes é mostrada sua carreira como ladrão, pirata e soldado. Aliás, nesse ponto as "carreiras" de Kull e Conan também se assemelham, com ambos tendo tido várias "profissões" antes de matar um rei tirano e assumir o trono. Não há registro sobre se isso foi proposital, ou seja, se Howard quis fazer de Conan o "novo Kull", ou se ele simplesmente achou que esse era o método mais interessante para contar histórias.

Apesar das semelhanças, Kull e Conan são personagens muito diferentes. O cimério é proativo, sempre em busca de aventura, entre uma e outra se diverte em tavernas, com cerveja e mulheres, e está sempre acompanhado de uma bela dama, com a qual planeja ter envolvimento romântico. Já o atlante é soturno, reservado, e costuma ser levado pela vida, apenas reagindo aos desafios que são colocados diante dele, além de não mostrar interesse em suas parceiras femininas, embora em algumas histórias seja seduzido. Após se tornarem reis, Conan vê o trono como seu direito, planeja mantê-lo a qualquer custo, e pensa em conquistar uma rainha e formar uma dinastia, enquanto Kull vê o trono como um fardo, parece mantê-lo apenas para que a humanidade não seja dominada, e não pretende se casar nem constituir família. Finalmente, Conan é solitário, e, exceto por Bêlit, jamais teve um parceiro duradouro, enquanto Kull tem em Brule seu melhor amigo, confidente e irmão em armas, pelo qual daria a vida se necessário.

Ao todo, Howard escreveria apenas 14 histórias protagonizadas por Kull - para efeitos de comparação, de Conan ele escreveria 21 completas e 4 incompletas. Das 14 de Kull, três estavam incompletas, sendo concluídas para publicação por Lin Carter; essas três, mais Por esse Machado eu Reino e as outras sete que não foram publicadas pela Weird Tales fariam sua estreia em um livro, chamado King Kull, lançado pela Lancer Books em 1967, e que também incluía Os Espelhos de Tuzun Thune e O Reino das Sombras. As demais ficariam inéditas até 1978, à exceção de A Maldição do Crânio Dourado, publicada no fanzine The Howard Collector também em 1967. Desde a década de 1980, todas as 14 histórias de Kull foram republicadas por várias editoras em diversos países, mas jamais alcançaram o mesmo nível de popularidade que as de Conan.

No final da década de 1960, quando a Marvel começou a procurar por um herói de espada e magia, o preferido de Stan Lee para o cargo era Thongor, bárbaro que vivia em uma espécie de mundo pré-histórico criado por Carter. O roteirista escolhido para a empreitada, Roy Thomas, entraria em contato com Carter, mas jamais obteria uma resposta. Stan Lee, então, pediria para que ele tentasse obter os direitos de Kull, que estava em voga porque King Kull havia acabado de ser lançado, por razões puramente estéticas: ele achava que o nome Kull chamaria atenção no título de uma revista. Nem Stan Lee, nem Thomas pensariam em Conan de primeira porque, na época, ele já era o personagem mais famoso de Howard, Thomas imaginou que ele seria muito caro, e Martin Goodman, o editor-chefe da Marvel, reservaria uma quantia muito baixa pelo licenciamento - porém, ao entrar em contato com o então detentor dos direitos, o advogado Glen Lord, Thomas conseguiria licenciar Conan, e o resto é história.

O enorme sucesso que Conan fez nos quadrinhos, que inclusive ajudaria a popularizar o personagem de forma jamais vista, levaria a Marvel a se interessar por outros personagens de Howard, e assim, mais uma vez, Thomas se viu com a missão de negociar os direitos de Kull. A estreia do atlante na Marvel seria na revista Creatures on the Loose! 10, de março de 1971, em uma história curta, dividindo a revista com uma reimpressão, curiosamente chamada Trull the Inhuman, sobre uma criatura que vivia na selva. Com roteiro de Thomas e arte de Bernie Wrightson, a história de Kull seria uma adaptação de O Crânio do Silêncio, uma das histórias que Howard escreveu mas não conseguiu publicar em vida, tendo sido publicada pela primeira vez em King Kull.

O sucesso da revista convenceria a Marvel a lançar uma série regular de Kull; como a de Conan era Conan the Barbarian, eles optariam por chamá-la de Kull the Conqueror. Com roteiros de Thomas até a quinta edição e de Gerry Conway a partir da sexta, e arte dos irmãos John e Marie Severin, a revista, totalmente em cores e seguindo os preceitos do Comics Code Authority, seria lançada em junho de 1971, e traria apenas histórias inéditas - ou seja, nenhuma delas adaptação das de Howard - ambientadas já na época em que Kull era Rei da Valúsia. Infelizmente a revista não teve as boas vendas que a Marvel esperava, e chegou a ser cancelada após apenas duas edições (a segunda de setembro de 1971); contudo, muitas cartas continuaram chegando à redação pedindo por mais histórias de Kull, e, após testar as águas publicando uma, com roteiro de Thomas e arte dos Severin, na revista Monsters in the Prowl 16, de abril de 1972, a Marvel decidiria retomar a Kull the Conqueror, recomeçando da edição 3, em julho de 1972.

A revista seria publicada de forma bimestral, mas ainda com baixas vendas, até ser cancelada em setembro de 1973, após apenas 10 edições. Kull não ficaria de fora do mercado das revistas coloridas por muito tempo, entretanto: o cancelamento na verdade fazia parte de uma estratégia, com uma nova revista, Kull the Destroyer, sendo lançada já em novembro de 1973 - o mês no qual a Kull the Conqueror 11 deveria ter sido lançada se não tivesse sido cancelada. Assim como a de Conan fazia originalmente, essa revista apostaria em adaptações das histórias de Howard - começando já por Por esse Machado eu Reino - e na rivalidade entre Kull e Thulsa Doom, com inclusive uma saga que abrangeria três edições.

A Kull the Destroyer seguiria a numeração da Kull the Conqueror, ou seja, seu primeiro número seria o 11. O número 12 atrasaria, e seria lançado apenas em fevereiro de 1974; a partir daí, a revista seria bimestral, mas, como as vendas não subiriam, seria novamente cancelada, após a edição 15, de agosto de 1974. A edição 11 teria roteiro de Thomas, as outras quatro de Steve Englehart, e a arte em todas as cinco edições seria de Mike Ploog.

Entre a Kull the Conqueror e a Kull the Destroyer, em outubro de 1973, a adaptação de O Crânio do Silêncio seria republicada na revista Savage Tales, voltada para o público adulto, em preto e branco, e sem a censura do CCA, em sua segunda edição. Quando a nova revista em preto e branco voltada para o público adulto de Conan, The Savage Sword of Conan the Barbarian, fosse lançada, em agosto de 1974 - mesmo mês do cancelamento da Kull the Destroyer - Kull passaria a ser habitué dela, com histórias publicadas em várias edições. As primeiras seriam continuação direta das publicadas em Kull the Destroyer, encerrando a história na qual Kull confronta Doom pelo trono da Valúsia, que havia ficado sem final, mas logo Kull passaria a ter histórias curtas de oito páginas, usadas para preencher o espaço que sobrava na revista após as histórias de Conan, bem mais longas e que eram o chamariz principal de cada edição.

Duas fases de Kull na Savage Sword ficariam famosas. A primeira contaria com roteiros de Chuck Dixon, o roteirista que mais escreveu Kull em preto e branco, e arte de Geoff Isherwood; essas histórias eram mais ou menos seguidas e lidavam com um novo plano dos homens-serpente, que chegaram a sitiar a capital da Valúsia. A outra tinha roteiros de John Arcudi e arte de Dale Eaglesham; Arcudi introduziria um novo personagem, Bakas, que foi escravo remador junto com Kull, e o tratava como se fosse seu irmão mais novo. Perto do fim da revista, já na década de 1990, Thomas retornaria aos roteiros, mas escreveria apenas histórias que contavam o passado de Kull, antes de ele se tornar rei, que cobriram sua infância e adolescência em Atlântida e parte de sua juventude como escravo remador; seria com essas histórias que o nome Kull da Atlântida se popularizaria, já que elas não podiam trazer no título o nome "Rei Kull", pois Kull ainda não era Rei.

Além de suas muitas aparições na Savage Sword, em 1975 Kull ganharia uma revista em preto e branco com seu nome no título, graças a um mal-entendido: após o cancelamento da Kull the Destroyer, Thomas pediria autorização a Stan Lee para lançar quatro minisséries, em preto e branco e voltadas para o público adulto, cada uma estrelada por um personagem criado por Howard: Kull, Red Sonja, Solomon Kane e Bran Mak Morn. Stan Lee daria autorização e informaria o editor da Marvel na época, Jim Steranko, do projeto. Por alguma falha na comunicação, Steranko entendeu que Thomas estava trabalhando em uma nova revista em preto e branco para adultos que, a cada edição, traria histórias desses quatro personagens, e publicaria essa informação em seu fanzine, Mediascene. Logo começariam a chegar na redação da Marvel cartas querendo saber mais sobre essa nova revista, e Thomas, achando que essa era uma ideia melhor do que as quatro minisséries, decidiria trabalhar nessa ideia. Assim nasceria a revista Kull and the Barbarians.

A primeira edição da Kull and the Barbarians traria apenas material republicado, sendo três histórias em quadrinhos, duas delas de Kull (sendo uma O Reino das Sombras) e uma adaptação de O Vale do Verme, considerada uma das melhores histórias escritas por Howard, protagonizada pelo bárbaro Niord, além das matérias costumeiramente apresentadas nesse tipo de revista, como resenhas e pin ups. A segunda edição, de julho, e a terceira, de setembro, trariam apenas material inédito, incluindo, em cada uma, uma história de Kull, uma de Solomon Kane e uma de Red Sonja, e, na segunda, um trecho de um livro ainda inédito do herói Blackmark, criado por Gil Kane. As vendas seriam dentro do esperado, mas, mesmo assim, após a terceira edição a Marvel decidiria cancelar a revista, alegando que ela era muito cara. A história de Kull da segunda edição teria roteiro de Gerry Conway e arte de Jess Jodloman, e a da terceira roteiro de Doug Moench e arte de Vicente Alcalzar.

O sucesso de Kull nas revistas em preto e branco, entretanto, motivaria a Marvel a relançar a Kull the Destroyer, como se nada tivesse acontecido, em agosto de 1976, recomeçando da edição 16. Com roteiros de Doug Moench e arte de Ed Hannigan até a edição 20, e roteiros de Don Glut e arte de vários artistas, dentre eles dois nomes conhecidos dos fãs de Conan, Ernie Chan e Alfredo Alcalá, a partir da 21, a revista voltaria a investir apenas em histórias inéditas, mas a maioria delas tendo Thulsa Doom como antagonista. Ela seguiria sendo bimestral até outubro de 1978, quando seria definitivamente cancelada, na edição 29.

Em junho de 1979, Kull seria o astro da Marvel Preview 19, outra revista em preto e branco voltada para o público adulto, em uma história com roteiro de Thomas e arte de Sal Buscema, que prometia ser seu embate definitivo contra Thulsa Doom. Após a edição 24, a Marvel Preview seria renomeada para Bizarre Adventures, mantendo a numeração. Kull estrelaria a edição 26, de maio de 1981, com roteiro de Moench e belíssima arte de John Bolton, na qual o Rei da Valúsia deve frustrar mais um plano dos homens-serpente para tomar seu trono. Ainda em 1981, Kull participaria da revista Marvel Team Up, nas edições 111 e 112, de novembro e dezembro, em uma história na qual os homens-serpente tentam dominar o mundo na época atual, com o Homem-Aranha tentando detê-los e o Doutor Estranho usando um feitiço para enviar sua forma astral ao passado e conseguir a ajuda de Kull.

Essa história traria Kull de volta aos holofotes, e faria com que a Marvel planejasse o lançamento de uma minissérie em quatro partes estrelada pelo herói, que seria lançada em 1982. Sucessivos atrasos, entretanto, fariam com que a minissérie, chamada, assim como a primeira revista do atlante, Kull the Conqueror, tivesse apenas duas edições, uma lançada em dezembro de 1982, com roteiro de Alan Zelenetz e arte de John Buscema, a outra em março de 1983, com roteiro de Moench e arte de Bolton. As vendas seriam acima do esperado, e a Marvel decidiria transformar a minissérie em uma série regular, mas, por algum motivo, decidiria recomeçar a numeração do 1, com uma nova Kull the Conqueror sendo lançada em maio de 1983. A periodicidade também não era lá muito forte, com a edição 2 sendo lançada em julho, mas a 3 apenas em dezembro, da 4 a 7 em fevereiro, agosto, outubro e dezembro de 1984, e as três últimas em fevereiro, abril e junho de 1985. As vendas nunca agradaram à Marvel, que decidiria cancelar a revista após a décima edição. Em quase todas as edições, os roteiros seriam de Zelenetz e a arte de John Buscema.

A última revista estrelada por Kull publicada pela Marvel seria a graphic novel Kull: The Vale of Shadow, de novembro de 1989, com roteiro de Zelenetz e arte de Tony DeZuniga, na qual o Rei Kull é dado como morto e seus conselheiros mais próximos relembram suas histórias favoritas vividas ao lado do monarca. Depois disso, ele teria histórias publicadas apenas na Savage Sword, até o cancelamento da revista, em 1995, quando a série de aventuras de Kull antes de se tornar rei seria interrompida antes de chegar na parte em que ele matava o antigo rei e assumia o trono. Vale citar também que, nas décadas de 1970 e 1980, Kull faria algumas improváveis participações especiais em histórias do Conan publicadas na Conan the Barbarian - normalmente em flashbacks, mas houve uma história que envolveu uma viagem no tempo, que fez com que Conan e Kull se enfrentassem.

Assim como Conan, após deixar a Marvel, Kull iria para a Dark Horse, onde protagonizaria três minisséries: Kull, com roteiro de Arvid Nelson e arte de Will Conrad e José Villarubia, em seis edições lançadas entre novembro de 2008 e maio de 2009, adaptando O Reino das Sombras; Kull: The Hate Witch, em quatro edições entre novembro de 2010 e fevereiro de 2011, com uma história inédita de David Lapham e arte de Gabriel Guzman; e Kull: The Cat and the Skull, que adaptava a história de Howard A Gata de Delcardes em quatro edições lançadas entre outubro de 2011 e janeiro de 2012, mais uma vez por Lapham e Guzman. Em 2017, Kull estrelaria Kull Eternal, da IDW Publishing, na qual ele viajava no tempo e vivia aventuras em vários períodos da história; com roteiro de Tom Waltz e arte de Luca Pizzari, a revista não faria sucesso, e teria apenas três edições, lançadas entre junho e agosto. Hoje, os direitos sobre Kull pertencem à Kull Productions Inc., mas o personagem não é tão procurado quanto Conan, com seu principal material atualmente sendo republicações das histórias de Howard em livros, incluindo um lançado recentemente no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim.

Kull também foi astro de um filme para o cinema, lançado em 1997, sobre o qual eu falei brevemente quando fiz o post sobre os filmes de Conan - e que é tão ruim que eu prefiro não ter que abordar novamente, então vamos encerrar por aqui.
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