sábado, 27 de setembro de 2025

Escrito por em 27.9.25 com 0 comentários

Namor

Enquanto eu estava escrevendo o post sobre Wolverine, fiquei pensando que, quando fiz a série sobre os filmes da Fase 4 do Universo Cinematográfico Marvel, e aproveitei para fazer posts sobre o Cavaleiro da Lua e Shang-Chi, poderia ter aproveitado e feito também um sobre Namor. Bom, antes tarde do que nunca, hoje é dia de Namor no átomo!

Namor é um dos personagens que a Marvel herdou de suas antecessoras, no caso a Timely Comics, que publicou revistas em quadrinhos entre 1939 e 1950, quando mudou de nome para Atlas Comics. Namor era um dos três principais personagens da Timely, junto com o Capitão América e o Tocha Humana original, e é considerado o primeiro anti-herói da história dos quadrinhos, já que, em suas aventuras, ele não combatia ameaças aos Estados Unidos, e sim os próprios Estados Unidos: em uma pegada meio ecológica, Namor atacava qualquer um que ameaçasse os oceanos, frequentemente afundando navios, destruindo arranha-céus de empresas poluidoras e até mesmo enfrentando o exército norte-americano; apesar disso, os leitores não o viam como um vilão, e argumentavam que, mesmo que seus atos fossem criminosos, através deles ele alcançava a justiça.

Namor foi uma criação do roteirista e desenhista Bill Everett, a pedido da empresa First Funnies, que prestava, nas décadas de 1930 e 1940, um serviço que não existiria mais após a Segunda Guerra Mundial: produzir histórias em quadrinhos sob demanda para que as editoras não precisassem contratar roteiristas e desenhistas. Basicamente, a First Funnies, e outras empresas do mesmo tipo, contratavam roteiristas e desenhistas a preço de banana, e eles produziam histórias sob encomenda que eram então vendidas para as editoras de revistas em quadrinhos, que as colocavam em suas publicações. A First Funnies produziria todo tipo de história, de comédia a romance adolescente, de faroeste a piratas, passando, evidentemente, por super-heróis - outro dos grandes heróis da Timely, o Tocha Humana, um androide com o poder de deixar seu próprio corpo em chamas, seria criado por Carl Burgos para a First Funnies, que, então, revenderia suas histórias para a Timely.

Em 1939, a First Funnies encomendaria a Everett um novo super-herói, mas que ela não revenderia a outra editora; ao invés disso, ele seria uma das estrelas da revista Motion Pictures Funnies Weekly, produzida pela própria First Funnies, que não seria vendida, e sim distribuída de graça em cinemas selecionados em todos os Estados Unidos - por isso o Motion Pictures no título. A ideia original era que, caso a revista fosse bem sucedida, a First Funnies se transformaria em uma editora ela mesma, publicando suas próprias revistas ao invés de vender suas histórias para as outras. Por algum motivo que se perdeu no tempo, contudo, o projeto foi cancelado, e apenas uma pequena quantidade de cópias - oito ou nove, dependendo de para quem você pergunte - foram impressas como teste. Essas cópias permaneceriam inéditas até 1974, quando Lloyd Jacquet, o dono da First Funnies, faleceria, e elas seriam encontradas em sua casa.

Mas Namor não ficaria inédito até 1974: gostando do personagem e achando que ele tinha potencial para ser um grande sucesso, Jacquet pediria para que Everett fizesse uma "versão estendida" da história publicada na Motion Pictures Funnies Weekly - que tinha apenas 8 páginas e terminava com um quadro dizendo "continua na próxima edição". Jacquet venderia essa história, de 12 páginas, para a Timely, que a publicaria na muito curiosamente chamada Marvel Comics número 1, de outubro de 1939. Como a Motion Pictures Funnies Weekly jamais foi publicada, a Marvel Comics 1 é considerada a estreia oficial de Namor nos quadrinhos. Também é interessante dizer que Namor estrearia nos quadrinhos mais de dois anos antes de outro super-herói muito parecido com ele, o Aquaman, caso alguém aí esteja disposto a discutir quem copiou quem.

Boatos dizem que, quando recebeu o encargo de criar um super-herói, Everett decidiria por um ligado aos oceanos porque Burgos havia inventado um que pega fogo, então ele quis fazer um contraponto entre o fogo e a água. Seja isso verdade ou não, ele se inspiraria no poema O Conto do Velho Marinheiro, escrito por Samuel Taylor Coleridge em 1798, e chegaria ao nome Namor após escrever uma lista de nomes "apropriados para nobres" e escrevê-los de trás para a frente, vendo qual soava melhor - sendo Namor a versão invertida do nome Roman. Em sua primeira aparição, Everett definiria Namor como "um ultra-homem", capaz de respirar na terra e sob a água, voar nos céus com a mesma facilidade com que nadava, de pele quase impenetrável e com a força de 100 homens da superfície. Embora nunca tenha assumido, e ele não voasse nessa época, Everett provavelmente se inspiraria no Superman, que havia estreado um ano e meio antes, para definir os poderes de Namor.

A origem de Namor também seria criada por Everett: ele era filho de um marinheiro, Leonard McKenzie, capitão do navio quebra-gelo Oracle, em missão na Antártida. Sem que a Marinha soubesse, sob o gelo antártico estava localizada a cidade perdida de Atlântida, e seu governante, o Imperador Thakorr, não gostou de ver um navio passando tão perto. Para espionar os intrusos, Thakorr enviaria sua própria filha, Fen, o que não se mostrou uma decisão acertada quando ela se apaixonou por McKenzie, decidindo se casar com ele e viver para sempre no mundo da superfície. Revoltado, Thakorr enviou guerreiros para matar toda a tripulação do navio, inclusive McKenzie, e levar Fen de volta para a Atlântida; sem que ele soubesse, porém, ela estava grávida, e Namor nasceria nove meses depois. Ao invés de rejeitado, ele seria criado como um verdadeiro Príncipe de Atlântida, ensinado a odiar o mundo da superfície e a proteger os oceanos a qualquer custo, se tornando o maior campeão do reino quando adulto.

Os atlantes possuem pele azul e não conseguem respirar fora da água, precisando de um capacete cheio d'água para poder visitar a superfície, mas Namor, sendo um híbrido (com mais tarde se tornando um mutante através de uma retcon, que é como se chama quando uma nova história altera alguma coisa do passado, sendo considerado que tudo sempre foi assim), possui pele rosada como a de seu pai e pode respirar tanto na superfície quanto sob a água indefinidamente; ele também herdaria a força dos atlantes, muito superior à dos humanos devido à grande pressão do fundo do oceano, e nasceria com asas nos tornozelos que lhe permitiam voar, algo que, antes de ele ser definido como mutante, jamais teve explicação, já que nem humanos, nem atlantes, voam. Everett também faria o rosto de Namor com uma aparência levemente alienígena, com orelhas pontudas, olhos pequenos e sobrancelhas arqueadas, para deixar claro que ele não era humano; esses traços acabariam suavizados nas histórias mais recentes.

A Marvel Comics teria apenas uma edição, o que levaria Namor a viver suas aventuras, junto com o Tocha Humana, Ka-Zar e outros heróis menos conhecidos, como o Anjo, o Cavaleiro Mascarado e American Ace, na revista Marvel Mystery Comics, lançada em dezembro de 1939. Como foi dito, em seu início, Namor era quase um vilão, frequentemente atacando os Estados Unidos; ele também seria o responsável pelo primeiro crossover da história dos quadrinhos, quando tentaria causar um tsunami para afundar toda a ilha de Manhattan, e acabaria sendo impedido pelo Tocha Humana. A principal coadjuvante do Príncipe Submarino - alcunha pela qual Namor era conhecido dentre os habitantes da superfície - nas primeiras histórias era a atlante Dorma, que, originalmente, era sua prima, confidente e melhor amiga de infância, mas, quando Namor estreasse na Marvel, também sofreria uma retcon e passaria a ser sua prometida e futura esposa.

Na Marvel Mystery Comics 3, de janeiro de 1940, Namor ganharia sua primeira aliada na superfície, a policial novaiorquina Betty Dean, e, na edição 82, de maio de 1947 estrearia Namora, outra prima de Namor, que tinha os mesmos poderes que ele e uma origem muito parecida (sendo filha de um atlante com uma humana), sendo mais uma das "versões femininas" dos heróis, como a Supergirl e a Batgirl, que começariam a se popularizar na época. Namora seria uma personagem bastante popular no final da década de 1940, e até chegaria a ganhar uma revista própria The Sea Beauty Namora, que acabaria tendo apenas três edições, publicadas em agosto, outubro e dezembro de 1948, após ser cancelada por baixas vendas.

O comportamento de Namor passaria a ser mais heroico quando os Estados Unidos entrassem na Segunda Guerra Mundial, e ele, assim como praticamente todos os demais super-heróis de todas as editoras, passassem a enfrentar as forças do Eixo ao lado dos Aliados. Nessa época, ele faria parte do Esquadrão Vitorioso, que contava também com o Capitão América, Bucky, Tocha Humana, Centelha, Ciclone, Miss América, a Fantasma Loura e o Anjo, e tinha suas aventuras publicadas na revista All-Winners Squad - de forma interessante, a história de que Namor teria feito parte de uma equipe conhecida como Os Invasores, com mais ou menos os mesmos mebros do Esquadrão Vitorioso, e que lutou na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, também é na verdade uma retcon, só tendo sido criada pela Marvel na década de 1970. Sendo membro do Esquadrão Vitorioso, não pegaria bem para Namor ficar atacando os Estados Unidos, de forma que, a partir de então, ele passaria a ser retratado como um super-herói clássico, que usava seus poderes para combater o crime e ajudar a humanidade.

Namor ganharia uma revista própria - ou quase, já que ela trazia sempre uma história dele e uma do Anjo - em março de 1941; a primeira edição se chamaria The Sub-Mariner and the Angel, mas, a partir da segunda, o título mudaria para Sub-Mariner Comics. Originalmente, a revista era trimestral, mas passaria a ter periodicidade indefinida (basicamente sendo lançada quando a Timely estava com vontade) em março de 1944, se tornando bimestral em abril de 1948, e sendo cancelada em junho de 1949, na edição 32. Ao longo desses oito anos, as vendas foram sempre boas quando comparadas a outras revistas da Timely, mas, em 1949, nenhuma revista de super-heróis vendia bem, o que motivou o cancelamento. A Atlas ainda faria uma tentativa de ressuscitar a revista, com o nome de Sub-Mariner, mas numeração continuando da 33, em abril de 1954; esse relançamento seria financiado por uma série de TV estrelada por Namor, que jamais sairia do papel, o que faria com que a Atlas decidisse cancelar a revista novamente após apenas dez edições, na 42, de outubro de 1955.

A década de 1950 não seria boa para os super-heróis, com várias editoras fechando as portas - para não fechar, a Timely se transformaria em Atlas - e somente peso-pesados como Superman, Batman e Mulher Maravilha conseguindo boas vendas. Nesse cenário, antes de relançar a Sub-Mariner, a Atlas tentaria trazer de volta Namor, o Tocha Humana e o Capitão América em histórias na revista Young Men, começando na edição 24, de dezembro de 1953 - seria essa, aliás, a infame versão do Capitão América que, quando o herói foi integrado ao Universo Marvel, descoberto congelado pelos Vingadores, sofreria uma retcon e passaria a ser um imitador. As histórias dos super-heróis na Young Men - que, originalmente, era uma revista com histórias de guerra, tanto que, até a edição 20, se chamava Young Men on the Battlefield - jamais teriam boas vendas, entretanto, e a revista, bimestral, seria cancelada na edição 28, de junho de 1954.

Após o cancelamento da Sub-Mariner, Namor ficaria fora dos quadrinhos até 1962, quando Stan Lee, que era um dos roteiristas da Young Men, e havia acabado de criar o Quarteto Fantástico, decidiria trazer de volta o personagem como um vilão - fazendo, de certa forma, com que ele voltasse às origens. Assim, na Fantastic Four número 4, de maio de 1962, da Marvel Comics, Johnny Storm, que herdou o nome de Tocha Humana, encontraria Namor vivendo nas ruas de Manhattan como mendigo e com amnésia. Após recuperar a memória, ele tentaria retornar à Atlântida - que, agora, já não ficava sob a Antártida, mas em algum lugar do Oceano Pacífico - mas descobriria que todo o reino foi destruído por testes nucleares, com a população atlante se espalhando pelo mundo. Namor, então, atacaria a humanidade motivado por vingança - com, inclusive, seu nome sendo explicado como significando "filho vingador" na língua atlante. Para piorar as coisas, ele ainda se apaixonaria por Sue Storm, a Mulher Invisível, o que faria com que ele e Reed Richards, o Sr. Fantástico e namorado de Sue, se tornassem ferrenhos rivais.

Namor logo se tornaria um dos personagens mais populares de Marvel e, aos poucos, deixaria de ser um vilão - que se aliava ao Dr. Destino e a Magneto para alcançar seus objetivos - para se tornar novamente um anti-herói - defendendo os oceanos com violência, mas sem atacar sem provocação e mantendo um rígido código de nobreza. Essa popularidade faria com que ele fosse convidado especial em histórias dos mais variados heróis, dos Vingadores ao Hulk, do Demolidor ao Homem-Aranha, mas problemas legais envolvendo a transformação da Atlas em Marvel fariam com que não fosse possível que ele tivesse uma revista própria. Em 1965, entretanto, os advogados da Marvel achariam uma brecha que permitiria que Namor dividisse a Tales to Astonish com outro personagem - no caso, o Hulk - com o Príncipe Submarino fazendo sua estreia na edição 70, de agosto de 1965.

Desde o início ficaria claro que o Namor da Marvel era o mesmo da Timely/Atlas, que estava na ativa desde 1939; para que isso fosse possível, ficaria subentendido que a vida dos atlantes é mais longa que a dos humanos, e Namor também tinha herdado essa longevidade. Mais velho, ele se comportava de forma ligeiramente diferente de sua versão anterior, não sendo tão impetuoso, sendo um estrategista melhor, se portando de forma mais autoritária, solene e arrogante, e, principalmente, falando de forma mais rebuscada, quase da mesma forma como falava o Thor - e ganhando, inclusive, um grito de guerra, Imperius Rex, que não significa nada em latim ("ordem real"?) mas Stan Lee achou que tinha a sonoridade apropriada.

A Tales to Astonish seguiria tendo uma história do Hulk e uma de Namor a cada edição até a 101, de março de 1968; na edição seguinte, ela passaria a ser exclusiva do Hulk, mudando de nome para The Incredible Hulk, mas mantendo a numeração. Em abril de 1968 seria lançada uma única edição de uma revista chamada Iron Man and Sub-Mariner, com uma história do Homem de Ferro e uma de Namor; enquanto ela estava na gráfica, as questões legais envolvendo a Atlas foram resolvidas, e, em maio de 1968, Namor finalmente ganharia sua revista solo na Marvel, Prince Namor, The Sub-Mariner - que, na edição 25, passaria a se chamar somente Sub-Mariner, na 65 mudaria para Prince Namor, The Savage Sub-Mariner, e, na 68, se tornaria The Savage Sub-Mariner, mas, oficialmente, seria registrada como Sub-Mariner do início ao fim.

A Sub-Mariner da Marvel começaria com roteiros de Roy Thomas e arte de John Buscema, que introduziriam vários novos vilões e heróis de temática marinha, como o vilão Tubarão Rei, que estreou na edição 5, e o herói Arraia, que estreou na 19 e, na década de 1980, chegou a fazer parte dos Vingadores. A revista também traria de volta Lady Dorma e Namora (que morreria na edição 50), integrando-as ao Universo Marvel, e introduziria a filha de Namora, Namorita, que tem os mesmos poderes da mãe e, mais tarde, faria parte do grupo de super-heróis adolescentes Novos Guerreiros. Muitas das edições da Sub-Mariner foram desenhadas por Everett, com a revista sendo o último trabalho do criador de Namor antes de ele falecer, em 1973. Também em 1973, cada revista teria duas histórias, com a primeira sendo a principal e a segunda se chamando Tales of Atlantis; com roteiro de Steve Gerber e arte primeiro de Howard Chaykin, então de Jim Mooney, essa série focaria na história e no passado de Atlântida.

Em fevereiro de 1970, a Sub-Mariner 22 publicaria a segunda de três partes de uma história de Thomas que havia começado na Doctor Strange 183, de novembro de 1969, mas ficaria sem conclusão após o cancelamento da revista do Dr. Estranho. Thomas aproveitaria ser o roteirista de Namor e do Hulk para fazer com que os dois se aliassem a Estranho em uma batalha contra demônios de outra dimensão - com a história se concluindo na The Incredible Hulk 126, de abril de 1970 - e decidindo formar uma equipe não-oficial chamada Os Defensores. Os Defensores voltariam à ativa, com a mesma formação, na Marvel Feature 1, de dezembro de 1971, com roteiros de Thomas e arte de Neal Adams, e, após mais duas edições, publicadas em março e junho de 1972, ganhariam sua própria revista, The Defenders, lançada em agosto de 1972, com roteiros de Steve Englehart e arte de Sal Buscema. A revista seria um grande sucesso, durando 152 edições e sendo cancelada apenas em fevereiro de 1986, mas Namor participaria apenas de 50 delas, com a formação da equipe variando muito ao longo dos anos.

Já a Sub-Mariner, ao todo, teria 72 edições, a última de setembro de 1974; desde pelo menos dois anos antes, a revista vinha sofrendo com vendas baixas, com a Tales of Atlantis tendo sido uma das tentativas de melhorar as vendas e salvá-la - outra seria dar a Namor um novo uniforme e um comportamento ainda mais heroico, a partir da edição 67, na qual Gerber assumiria os roteiros e Don Heck a arte. A última edição traria uma história pra lá de inusitada: o roteirista seria Steve Skeates, que havia sido contratado pela Marvel após anos na DC, onde trabalhou justamente na revista do Aquaman, que foi cancelada de repente em abril de 1971, deixando uma de suas histórias sem conclusão. Com a permissão da Marvel, Skeates usaria a última edição da Sub-Mariner para encerrar a história que vinha escrevendo em Aquaman, mas com Namor no lugar do Aquaman - em uma espécie de crossover não oficial entre a Marvel e a DC.

Após o cancelamento da Sub-Mariner, a Marvel tentaria duas táticas bem diferentes para investir em Namor. A primeira seria trazer de volta o Namor herói da Segunda Guerra Mundial, na revista The Invaders, lançada em agosto de 1975, que o colocava em uma equipe ao lado do Capitão América e do Tocha Humana original, dentre outros, vivendo aventuras e combatendo o Eixo na década de 1940; a revista teria vendas medianas e duraria 41 edições, sendo cancelada em setembro de 1979. A segunda seria trazer de volta o Namor vilão, colocando-o para dividir com o Dr. Destino uma revista chamada Super Villains Team-Up, lançada também em agosto de 1975; as vendas seriam baixíssimas desde o início, e Namor seria trocado pelo Caveira Vermelha na edição 11 - mas, como a história da edição 10 ficou sem final, ele retornou para encerrá-la na 13, de agosto de 1977. Depois disso, Namor ficaria até meados da década seguinte sem revista própria, aparecendo ocasionalmente em títulos de outros heróis, principalmente do Quarteto Fantástico, às vezes como aliado, às vezes como oponente.

O retorno de Namor a uma revista própria viria com uma minissérie chamada Prince Namor, The Sub-Mariner, com quatro edições mensais publicadas entre setembro e dezembro de 1984, roteiros de J.M. DeMatteis e arte de Bob Budiansky; totalmente ambientada em Atlântida, ela mostraria Namor tendo de sobreviver a um plano para removê-lo do trono e colocar em seu lugar um atlante de sangue puro. A minissérie seria um grande sucesso, e motivaria Thomas a sugerir uma "maxissérie", em 12 edições, contando pela primeira vez toda a história de Namor, desde seu nascimento até a época presente. Com roteiros de Roy e Dann Thomas (sua esposa) e arte de Rich Buckler, a série, chamada Saga of the Sub-Mariner e publicada entre novembro de 1988 e outubro de 1989, revisitava várias das histórias de Namor da Timely, da Atlas e da própria Marvel, fechando pontas soltas, tapando furos de continuidade e removendo contradições, para que o Namor da Marvel finalmente tivesse uma história contínua, ao invés de uma colcha de retalhos formada ao longo de 30 anos de publicações esporádicas.

O sucesso da maxissérie motivaria a Marvel a apostar em mais uma série mensal, com o nome de Namor, The Sub-Mariner. Lançada em abril de 1990, com roteiro e arte de John Byrne, ela atualizaria Namor para os anos 1990, colocando-o como presidente da empresa Oracle Inc., devotada a despoluir os oceanos, e enfrentando todos os desafios do mundo corporativo - dentre eles supervilões que querem tirar Namor do mercado. A série seria bastante bem sucedida, passando pelas mãos dos roteiristas Bob Harras e Glenn Herding e dos desenhistas Jae Lee e Geoff Isherwood após a saída de Byrne, e durando até maio de 1995, quando seria cancelada por decisão editorial, e não por baixas vendas, na edição 62. A ideia da Marvel era trazer Namor de volta em uma nova série mensal, sem os elementos corporativos, já no ano seguinte, mas a saga Heróis Renascem removeria o Príncipe Submarino da continuidade principal, o que faria com que ele ficasse quase dez anos mais uma vez apenas fazendo participações em histórias de outros heróis.

Em junho de 2003, seria lançada mais uma maxissérie em 12 edições, a última de maio de 2004 chamada simplesmente Namor; com roteiros de Andi Watson e Bill Jemas, e arte de Salvador Larroca, a série é ambientada no início do Século XX, quando um jovem Namor ainda é Príncipe da Atlântida e faz suas primeiras incursões pelo mundo da superfície, inclusive se apaixonando por uma humana, Sandy Pierce. No ano seguinte, seria lançada uma minissérie dos Defensores chamada simplesmente The Defenders, com roteiros de DeMatteis e Keith Giffen, arte de Kevin Maguire, e tom bem mais cômico que o usual, na qual Namor se une ao Hulk, o Dr. Estranho e o Surfista Prateado para derrotar uma aliança de Dormammu e Umar, em cinco edições publicadas entre setembro de 2005 e janeiro de 2006. Também em 2005, ficaria estabelecido que, junto com Homem de Ferro, Raio Negro, Sr. Fantástico, Dr. Estranho e Professor X, Namor fazia parte de um grupo chamado Illuminati, que agia nas sombras para avaliar eventos-chave do Universo Marvel e determinar a melhor forma de reagir a eles; o grupo seria criado por Brian Michael Bendis e apareceria pela primeira vez na revista New Avengers 7, o que faria com que Namor fizesse diversas participações nessa série.

Após ser parte importante de sagas como Guerra Civil e Guerra Mundial Hulk, Namor retornaria a um título próprio na minissérie Sub-Mariner, com 6 edições publicadas entre agosto de 2007 e janeiro de 2008, roteiros de Peter Johnson e Matt Cherniss e arte de Philippe Briones, na qual ele é acusado de comandar um ataque terrorista contra os Estados Unidos e deve provar sua inocência. A série seguinte do Príncipe Submarino viria dois anos depois, Namor: The First Mutant, com roteiros de Stuart Moore e arte de June Chung, na qual é revelado que ele é mutante, o que faz com que ele tenha de se posicionar na caótica sociedade mutante criada após a saga Dinastia M. A série mais uma vez teria baixas vendas desde o início, e seria publicada entre outubro de 2010 e agosto de 2011, com 11 edições mensais e uma anual. A última história teria um final aberto, e continuaria na minissérie Fear Itself: The Deep, ligada à saga A Essência do Medo, que teria quatro edições publicadas entre agosto e novembro de 2011.

Desde o início dos anos 2000, Namor tem sido mais aproveitado como coadjuvante em histórias de outros heróis ou como membro de equipes, como os Vingadores, os Invasores, os Defensores, os Illuminati ou até mesmo os X-Men, aos quais se juntou durante a saga Vingadores vs. X-Men, de 2012, quando recebeu uma parcela do poder da Fênix. Em fevereiro de 2012, seria lançada uma nova série The Defenders, com roteiros de Matt Fraction e arte de Terry Dodson, mas que não faria sucesso e acabaria cancelada após apenas 12 edições, a última de janeiro de 2013. A última revista solo de Namor seria um one shot publicada em fevereiro de 2019, Namor: The Best Defense, com roteiro de Chip Zdarsky e arte de Carlos Magno, na qual ele procura por uma tribo perdida de atlantes que possa ajudá-lo em mais uma guerra contra a superfície.
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sábado, 20 de setembro de 2025

Escrito por em 20.9.25 com 0 comentários

A Casa das Sete Mulheres

Já que mês passado eu falei sobre A Muralha, esse mês eu vou falar sobre a outra minissérie que eu havia cogitado em 2020 mas abandonado. Hoje é dia de A Casa das Sete Mulheres no átomo!


A Casa das Sete Mulheres é a adaptação de um livro de mesmo nome, escrito por Letícia Wierzchowski e publicado em abril de 2002 pela editora Record. A história é o que se costuma chamar de ficção histórica, trazendo fatos que realmente ocorreram, mas nem todos da forma como de fato ocorreram, misturando personagens reais e fictícios. A trama acompanha a Revolução Farroupilha, que, na época do Brasil Imperial, tentou conseguir a independência primeiro do Rio Grande do Sul, depois também de Santa Catarina, sob o nome de República Riograndense. Considerada a mais longa guerra civil da América do Sul, a Revolução Farroupilha durou dez anos, de 1835 a 1845, e terminou com a derrota dos Farrapos, como os revolucionários ficaram conhecidos, o que faz com que o conflito também seja conhecido como Guerra dos Farrapos. A Casa das Sete Mulheres tem sua história centrada na família de um dos principais líderes da Revolução, o General Bento Gonçalves, mas, no livro, as verdadeiras protagonistas são as mulheres da família, que passaram os dez anos da Revolução protegendo a estância onde moravam, muitas vezes sem saber o que estava acontecendo com os homens que lutavam contra as forças imperiais.

A minissérie é narrada através do diário de Manuela (Camila Morgado), sobrinha de Bento Gonçalves (Werner Schünemann), que fica com suas irmãs, tias e primas na estância, acompanhando de longe os eventos da guerra. A dona da estância é uma das irmãs de Bento Gonçalves, Ana Joaquina (Bete Mendes), mulher conciliadora, bondosa e disposta a tudo para manter a família unida, ao contrário de sua irmã, Maria (Nívea Maria), a mãe de Manuela, mulher fria e amarga que aparetemente não consegue encontrar alegria na vida. Maria é casada com Anselmo (Zé Carlos Machado), que também luta na Revolução, e tem outras duas filhas, a frágil e sonhadora Rosário (Mariana Ximenes) e a irreverente e bem-humorada Mariana (Samara Felippo). Já Bento Gonçalves é casado com a uruguaia Dona Caetana (Eliane Giardini), mulher belíssima, forte e corajosa, e tem uma filha, Perpétua (Daniela Escobar), que sonha viver um grande amor. As "sete mulheres" do título, portanto, são Manuela, Ana Joaquina, Maria, Rosário, Mariana, Perpétua e Dona Caetana.

Bento Gonçalves tem ainda uma terceira irmã, Antônia (Jandira Martini), que é dona de uma estância vizinha e só aparece na história eventualmente, quando vai visitar as irmãs ou quando alguma sobrinha vai visitá-la. Ele e Dona Caetana também têm filhos homens: Bentinho (Dado Dolabella), Joaquim (Rodrigo Faro), apelido Quincas, e Caetano (Bruno Gagliasso), que veem o pai como herói e desejam seguir seus passos no exército; Leão (primeiro Lucas Rocha, depois Sérgio Vieira) e Marco Antônio (primeiro Pedro Malta, depois Carlos Machado Filho), que são crianças e não podem ir à revolução; além de Angélica (primeiro Beatriz Browne, depois Carla Diaz), também criança e muito nova para entender os efeitos que o isolamento tem em suas primas e irmã. No livro, Maria e Anselmo também têm um filho homem, Antônio, que até é citado na minissérie, mas jamais aparece.

No livro, aliás, o isolamento das mulheres é total, e essencial para o desenvolvimento da história e psicológico dos personagens; o caráter conservador na educação das mulheres, bem como a pobreza em que viviam - que teria sido um dos catalisadores da Revolução - e a rotina tediosa de seu cotidiano são bastante enfatizados, com elas somente tomando conhecimento dos acontecimentos da Revolução através de cartas e mensageiros. Seria impossível, entretanto, fazer a minissérie assim - uma daquelas famosas coisas que "funciona num livro, mas não numa obra audivisual" - de forma que, na minissérie, as mulheres têm participação ativa nos eventos da Revolução, os homens voltam para casa constantemente, e a estância é palco de frequentes encontros e festas. Apesar do sucesso da minissérie, essa descaracterização da história seria alvo de muitas críticas, principalmente em relação ao comportamento de Manuela, Rosário, Mariana e Perpétua, que, segundo os críticos, em nada se diferenciava daquele das jovens das novelas ambientadas no Rio de Janeiro do século XXI, sendo totalmente inadequado a moças estancieiras do século XIX. Outra mudança foi em relação à idade das três sobrinhas de Bento Gonçalves: no livro (e na vida real), Manuela era a mais nova das três, enquanto na minissérie é a mais velha.

Na minissérie, Rosário tem um prometido, Afonso Corte Real (Murilo Rosa), que luta ao lado de Bento Gonçalves, mas se apaixona por Estêvão (Thiago Fragoso), um soldado das tropas imperiais, para desepero de toda família. Já Perpétua se apaixona por Inácio (Marcelo Novaes), dono da estância vizinha casado com uma mulher enferma, Teresa (Sabrina Greve), e luta contra o remorso, tanto por estar se relacionando com um homem casado, quanto por secretamente desejar que Teresa morra logo para que eles fiquem juntos. E Mariana parece não estar muito interessada no amor até conhecer o peão João Gutierrez (Heitor Martinez), por quem se apaixona perdidamente, para desespero de sua mãe, que o considera um bugre (indígena) inferior e deseja acabar com esse relacionamento a qualquer custo.

Para provar que todas as mulheres da família têm o dedo podre para o amor, Manuela se apaixona por ninguém menos que Giuseppe Garibaldi (Thiago Lacerda), revolucionário italiano que luta contra a tirania em todo o planeta, e vem ao Rio Grande do Sul ajudar Bento Gonçalves e sua causa, ficando hospedado na estância de Antônia. Garibaldi corresponde ao amor de Manuela, e chega a pedi-la em casamento a Bento Gonçalves, mas ele precisa recusar porque ela já está prometida a Joaquim. Convencido de que é melhor para ela se casar com o primo, Garibaldi parte para lutar em Santa Catarina, onde conhece Anita (Giovanna Antonelli), mulher guerreira e à frente de seu tempo, totalmente diferente de Manuela, com quem acaba se casando.

É importante nesse ponto dizer que Manuela não é uma personagem fictícia, mas real, e, no livro, assim como na vida, após saber que ela está prometida a Joaquim, Garibaldi propõe que os dois fujam para Santa Catarina para se casarem, mas ela não tem coragem e os dois acabam terminando. Manuela, tanto no livro, quanto na minissérie, quanto na vida real, jamais se casaria, vivendo solteira e solitária até o fim de seus dias, deixando registrado em diários seu arrependimento e sofrimento por não ter tido coragem para fugir com Garibaldi; nas ruas de Pelotas, onde foi morar na velhice, ela era apontada nas ruas e conhecida como "a noiva de Garibaldi". Outro ponto muito criticado da minissérie foi que nela, após saber de Anita - que no livro é apenas citada, não existindo como personagem - Manuela viaja a Santa Catarina, se envolve nos combates da Revolução e se torna uma personagem mais forte e decidida.

Outro personagem muito importante é Bento Manuel (Luís Melo), estancieiro rival de Bento Gonçalves que, por ser exímio estrategista, foi uma das peças principais e um dos grandes nomes da Revolução; na vida real, dizia-se que ele tinha um pacto com o diabo, e na minissérie ele é uma espécie de vilão, lutando na Revolução mas fazendo de tudo para prejudicar Bento Golçalves, incluindo ajudar o Império quando lhe é conveniente. Um dos motivos é que Bento Manuel é apaixonado por Dona Caetana, a quem corteja incessantemente, sempre sem sucesso. Ele chega a fazer um pacto com a feiticeira Teiniaguá (Juliana Paes), que usa forças ocultas para que Dona Caetana corresponda ao amor do general, em uma trama retirada de outra história, A Salamanca do Jarau, de Simões Lopes Neto.

Um dos pontos centrais da Revolução Farroupilha era a abolição da escravidão, que ainda existia no Império, mas os Revolucionários pretendiam extinguir na República Riograndense. Na minissérie, é mostrado que os negros, apesar de ainda escravizados, não estavam submetidos a estrita vigilância, punições constantes ou confinamento às senzalas como no restante do país, e tinham importante papel nas charqueadas, principal atividade econômica da região, com muitos deles lutando na Revolução por vontade própria. O principal núcleo de personagens negros da minissérie é formado por João Congo (Antônio Pompêo), criado pessoal de Bento Gonçalves; o capataz Terêncio (Maurício Gonçalves), sua esposa, Zefina (Viviane Porto), e seu filho, Netinho (André Luiz Miranda); e os criados Zé Pedra (Bukassa Kabengele), Viriata (Mariah da Penha) e Beata (Mary Sheila). Outros criados mostrados como membros da família são a mestiça Luzia (Amandha Lee), empregada da estância que fica amiga de Rosário, e Rosa (Ana Beatriz Nogueira), governanta e cozinheira de Ana Joaquina.

Outros personagens reais de nossa História presentes na minissérie são, pelo lado dos Farrapos, o General Antônio de Sousa Neto (Tarcísio Filho), o General Canabarro (Oscar Simch), o Coronel Onofre Pires (José de Abreu), o jornalista italiano Luigi Rossetti (Dalton Vigh), o revolucionário Tito Lívio (Ângelo Antônio), e o médico Francisco Sabino (Stepan Nercessian), e, do lado do Império, o Coronel Moringue (Gilson Moura), o Marechal Mena Barreto (Roberto Pirilo), o Presidente da Província do Rio Grande do Sul, José de Araújo Ribeiro (Ney Latorraca) e o Duque de Caxias (Nelson Diniz), que, na época, ainda era Barão. Outros personagens que merecem ser citados são Chico Mascate (José Victor Castiel), que visitava as estâncias com sua carroça cheia de produtos à venda, e teve importante papel nas comunicações entre os Revolucionários e suas famílias; Francisca (Ítala Nandi), esposa do Coronel Onofre; Joana (Manuela do Monte), filha bastarda do Coronel Onofre, criada em um convento desde criança; Bárbara (Arietha Corrêa), mulher de personalidade forte que luta pela emancipação feminina; o Padre Villar (Lafayette Galvão), que acompanha as tropas de Bento Gonçalves; e o Padre Cordeiro (Sérgio Viotti), que é a favor dos revolucionários, mas contra o relacionamento de Anita e Garibaldi, já que, quando eles se conheceram, ela ainda era casada com Manuel Aguiar (Roberto Bomtempo).

O elenco se completa com os revolucionários Antônio (Sebastião Vasconcelos), Gavião (Douglas Simon), João Grandão (Ricardo Herriot), Pedro (Teodoro Cochrane) e Eduardo (Gabriel Gracindo) e com as "chinas", mulheres que seguiam as tropas revolucionárias para se prostituir com os soldados, na esperança de se casar com um deles, lideradas por Consuelo (Rosi Campos), e que contavam, dentre outras, com Quitéria (Christiane Tricerri), Papagaia (Cinira Camargo) e Tina (Carla Regina). Vários atores famosos da Globo fariam participações especiais, muitas delas de um só capítulo, como Tonico Pereira como o Padre Roberto; Irene Ravache como Madalena Aguilar (que tem um caso com Bento Gonçalves enquanto ele está na Guerra); Cláudio Correia e Castro como um homem que vive isolado na mata e dá abrigo ao grupo de Garibaldi; Ariclê Perez como a Madre Cecília, responsável pelo convento onde Joana está internada, onde também vive a Irmã Damiana (Christiana Guinle); Carmo Dalla Vecchia como Batista; André Mattos como Pedro Boticário; Jandir Ferrari como João Silvério; Ilya São Paulo como um soldado imperial desertor; José Dumont como o comandante de um forte onde Bento Gonçalves passa um tempo preso; Othon Bastos como o Coronel Crescêncio; e Norma Geraldy como Manuela, idosa, no último capítulo.

A minissérie seria a estreia na Globo de dois atores que fariam muito sucesso nos anos seguintes, Werner Schünemann e Camila Morgado. Camila ganharia o Prêmio Austragésilo de Athayde de atriz revelação, e faria tanto sucesso que todos os dias a emissora recebia dezenas de cartas e e-mails pedindo para que o final da história fosse alterado e Manuela se casasse com Garibaldi. Outra atriz bastante elogiada pela crítica e pelo público, apesar de seu personagem detestável, seria Nívea Maria, que ganharia o prêmio de Melhor Atriz da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Outro ator premiado seria Thiago Lacerda, que receberia o Prêmio INTE, considerado o Oscar da televisão latino-americana, de melhor ator.

As filmagens ocorreriam no Rio de Janeiro e em quatro cidades gaúchas: Cambará do Sul, São José dos Ausentes, Pelotas e Uruguaiana - o que também levou a críticas de historiadores, já que as batalhas da Guerra dos Farrapos ocorreram próximo à Lagoa dos Patos, e não na Serra Gaúcha, e, na minissérie, os personagens cobriam distâncias de centenas de quilômetros, como de Pelotas a Laguna, em pouco tempo se comparado com o que realmente levava na época. Cerca de 2500 pessoas viajaram até o Rio Grande do Sul especialmente para as filmagens, que durariam 40 dias; os figurantes, cerca de 150 a cada cena de batalha, seriam contratados nas próprias cidades onde as filmagens estavam ocorrendo. Para representar a Estância da Barra, onde as mulheres da família de Bento Gonçalves ficaram em isolamento, seria usada a Charqueada São João, fazenda na cidade de Pelotas com um casarão colonial construído em 1810. Todos os atores do elenco principal tiveram aulas de equitação, esgrima, tiro, tradições gaúchas, prosódia (para que os que tinham sotaque de outras regiões do Brasil conseguirem amenizá-lo) e assistiram palestras sobre a Revolução Farroupilha.

Apesar de ter destaque na minissérie, a cidade catarinense de Laguna não seria usada como locação, com suas cenas sendo filmadas no Rio de Janeiro. No Projac, em Jacarepaguá, seriam construídas ruas que lembravam as históricas de Pelotas, Porto Alegre, Caçapava e Laguna, além das áreas externas das estâncias; para obter o tom amarelado característico da região, seriam espalhadas pelo chão cascas de arroz. O cenário que reproduzia a parte interna da estância também seria construído no Projac, ocuparia 400 m2, e era composto por cinco quartos, adega, cozinha, biblioteca, capela, pátio, sala de estar com lareira, sala de jantar e banheiro, todos com ornamentos e pinturas envelhecidos propositalmente, para parecer que foram desgastados pelo tempo. Todos os objetos de cena, desde os móveis até as cuias de chimarrão, passando pelas cerâmicas, flâmulas e bandeiras, seriam produzidos pela equipe de cenografia da Globo especialmente para a minissérie, sem ser usado qualquer objeto original de época. O maior destaque da cenografia foi o diário de Manuela, no qual a personagem aparecia escrevendo de forma intercalada com as cenas da minissérie; o diário realmente contava toda a história da minissérie, sendo mostrados em destaque os trechos narrados por Camila Morgado, e foi escrito por um calígrafo especialmente contratado para a função.

Uma das cenas mais complexas foi a de um grupo liderado por Garibaldi levando dois barcos por terra, com a ajuda de carros de boi. Seriam construídas para ela pesadas rodas de madeira, de 1,80 m de diâmetro, que seriam atreladas às embarcações, apenas um pouco menores que as originais da Revolução, e então puxadas por 48 bois. Um dos barcos, o Seival, seria construído no Rio de Janeiro e levado desmontado até Uruguaiana, onde ocorreria sua montagem; o outro, o Farroupilha era uma embarcação encontrada pela produção na região nos primeiros dias de filmagem, e adaptada para ficar mais parecida com o Farroupilha original. Dizem os registros históricos que, no dia do transporte, estava chovendo; para que não fosse necessário esperar um dia em que estivesse chovendo para filmar, seriam usados oito carros-pipa, que jogariam água para cima na direção dos atores e embarcações.

Escrita por Maria Adelaide Amaral e Walther Negrão, com colaboração de Lúcio Manfredi e Vincent Villari, direção de Teresa Lampreia e Marcos Schechtman, e direção geral de Jayme Monjardim, A Casa das Sete Mulheres teria 51 capítulos, exibidos entre 7 de janeiro e 8 de abril de 2003 - curiosamente, a data original prevista para a exibição do último capítulo seria 4 de abril, uma sexta-feira, como é convencional, mas problemas com a grade de programação causados pela exibição de jogos de futebol o acabariam empurrando para o dia 8, a terça-feira da semana seguinte. A minissérie seria uma das mais premiadas da história da televisão brasileira, levando o Grande Prêmio da Crítica da APCA, o Troféu Imprensa de Melhor Programa, e o INTE de Melhor Minissérie, com Monjardim levando o de Melhor Diretor.

A abertura imitava um mapa antigo, mostrando cenas da minissérie e os rostos dos principais atores junto a seus nomes, com o título trazendo a imagem das "sete mulheres" - Ana Joaquina, Maria e Rosário do lado esquerdo, Manuela, Perpétua, Dona Caetana e Mariana do lado direito, o que em sempre achei estranho, já que, na minha opinião, faria mais sentido as mais velhas de um lado e as mais novas do outro. A trilha sonora ficaria a cargo de Marcus Vianna, que também comporia o tema de abertura, executado pela Transfônika Oskestra. A trilha instrumental composta por Vianna acabaria sendo lançada pelo selo Sonhos e Sons, do próprio compositor, com o nome de Sete Vidas, Amores e Guerras, mas, para aproveitar o sucesso da minissérie, a Globo prepararia um CD de trilha sonora ao estilo dos das novelas, lançado pela Som Livre com Thiago Lacerda na capa, e que trazia, dentre outros, Gal Costa, Zizi Possi, Milton Nascimento, Flávio Venturini, Leila Pinheiro e Agnaldo Rayol. Duas curiosidades dessa trilha são a presença de duas músicas da peruana Adriana Mezzadri, e La Media Vuelta, cantada por Rodrigo Faro, no elenco como Joaquim.

O livro de Wierzchowski era um lançamento recente quando a minissérie foi produzida, e o sucesso desta ajudou alavancar suas vendas - até o início da exibição, o livro havia vendido 13 mil exemplares, mas, apenas nas três primeiras semanas da minissérie, vendeu mais 30 mil. A minissérie também aumentaria as vendas de livros que falavam sobre a Revolução Farroupilha e sobre a história do Rio Grande do Sul em geral, e estimularia o turismo no estado, especialmente na Serra Gaúcha. O sucesso da minissérie também levaria ao lançamento de uma série de cartões telefônicos com suas cenas, e ao de um outro livro chamado A Casa das Sete Mulheres, de Valentina Nunes, lançado pela Globo ainda em 2003, que trazia fotografias da minissérie de seus bastidores. A TV Bandeirantes também tentaria pegar uma carona nesse sucesso, reexibindo, ainda em 2003, em formato de minissérie, o filme A Guerra dos Farrapos, de 1985, que trazia Nelson Xavier como Bento Gonçalves e Herson Capri como Garibaldi.

A Casa das Sete Mulheres seria lançada em DVD, em forma condensada, em 2004. Dois anos depois, entre 15 de agosto e 22 de setembro de 2006, seria reexibida, também em versão compacta, pela Globo. Uma nova reexibição ocorreria entre 21 de agosto e 4 de outubro de 2012, mas apenas no Distrito Federal e no sinal captado por antenas parabólicas, para preencher um buraco na programação criado pelo Horário Eleitoral Gratuito - que não seria exibido no DF nem pelas parabólicas no período. A minissérie também seria exibida na íntegra pelo canal Viva três vezes, entre 18 de maio e 27 de julho de 2010, entre 26 de junho e 5 de setembro de 2013, e entre 3 de janeiro e 14 de março de 2022. Desde agosto de 2022, ela também pode ser encontrada no catálogo do serviço de streaming Globoplay.

Em 2024, foi anunciado que o livro de Wierzchowski ganharia uma nova adaptação, mais curta e talvez mais fiel, produzida pela Boutique Films e escrita por Angela Chaves, da série Pedaço de Mim, da Netflix. Até eu publicar esse texto ("até o fechamento dessa edição") eu ainda não havia encontrado mais informações sobre data de estreia, número de episódios, elenco, ou em qual canal essa nova versão seria exibida.
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sábado, 13 de setembro de 2025

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Studio Ghibli (VI)

E vamos a mais filmes do Studio Ghibli!

O Castelo Animado
Hauru no Ugoku Shiro
2004

Até 2004, todos os filmes do Studio Ghibli haviam sido produções originais ou adaptações de histórias originalmente escritas por autores japoneses; isso mudaria quando, em 2000, Hayao Miyazaki lesse O Castelo Animado, da autora inglesa Diana Wynne Jones, lançado em 1986. Ambientada em um reino semelhante aos do século XX antes da Primeira Guerra Mundial, mas com elementos fantásticos e uso corriqueiro de magia, a história conta com um castelo que fica perambulando pelas cercanias do reino, criado pelo mago Howl. O livro não descreve de que forma o castelo anda, e Miyazaki, enquanto estava lendo, imaginou que ele tinha pés de galinha, se interessando por adaptar o livro só para poder desenhar esse castelo.

A princípio, o filme seria escrito e dirigido por Mamoru Hosoda, um novo contratado do Studio Ghibli que anteriormente trabalhava para a Toei Animation, mas Toshio Suzuki e os executivos do Studio Ghibli não gostariam de suas ideias para a adaptação, considerando que a história se afastaria muito tanto da original quanto do estilo das demais produções Ghibli. Com o afastamento de Hosoda, o projeto seria engavetado até 2003, quando o próprio Miyazaki decidiria escrevê-lo e dirigi-lo. Miyazaki tomaria essa decisão após os Estados Unidos invadirem o Iraque naquele ano; contrário a qualquer tipo de guerra, mas achando essa em particular um absurdo, Miyazaki decidiria aproveitar que um dos temas do livro é que o reino no qual ele é ambientado está em guerra contra outro reino e fazer um filme fortemente anti-guerra, numa alegoria clara ao conflito iniciado pelos norte-americanos. Ele chegaria a declarar estar fazendo propositamente um filme que não seria bem recebido nos Estados Unidos.

Para se inspirar a criar as paisagens do reino, Miyazaki viajaria para a Alsácia, na França, onde desenharia e tomaria notas de várias construções antigas; como o reino tinha um componente fantástico, ele misturaria esses conceitos com a arte futurista do ilustrador francês Albert Robida. O castelo de Howl é na verdade uma espécie de colagem de vários tipos de construção, como se o mago tivesse juntado toda uma cidade num edifício só, e se move andando sobre dois gigantescos pés de galinha que possui em sua fundação, soltando fumaça por diversas chaminés enquanto se movimenta, ao melhor estilo steampunk. O Castelo Animado seria divulgado como uma produção totalmente digital, mas isso não seria verdade: todos os planos de fundo e todos os personagens seriam desenhados e pintados à mão pelos animadores do Studio Ghibli, usando cerca de 1400 folhas de papel e acetato, somente então digitalizadas e animadas por computação, num processo que levou seis meses.

A protagonista do filme é a jovem chapeleira Sophie, que, um dia, de forma totalmente acidental, conhece o mago Howl. Isso faz com que a Bruxa das Terras Desoladas, uma antiga namorada de Howl, fique com ciúmes, e lance em Sophie uma maldição, que a transforma em uma senhora de 90 anos. Para tentar quebrar a maldição, Sophie decide ir até o castelo de Howl, do qual a maioria da população de seu reino tem medo de chegar perto; no caminho, ela faz amizade com um espantalho que tem vida própria, com o jovem aprendiz de feiticeiro Markl; e com o demônio Calcifer, responsável por animar o castelo de Howl. Calcifer faz um trato com Sophie, prometendo remover a maldição se ela conseguir libertá-lo do domínio do mago, e ela decide se apresentar a Howl como a nova faxineira, trabalhando no castelo enquanto busca uma forma de libertar Calcifer. A história se complica devido ao fato de que o reino onde Sophie mora está em guerra contra o reino vizinho, que o culpa pelo desaparecimento de seu príncipe; Howl é convocado pelo Rei para usar seus poderes no esforço de guerra, mas se recusa terminantemente a participar do conflito, e pede para que Sophie vá ao palácio real fingindo ser sua mãe e dando uma desculpa qualquer para que ele não precise atender ao chamado, o que faz com que Sophie se enrede cada vez mais na vida de Howl.

Talvez mais do que qualquer outro filme do Studio Ghibli, O Castelo Animado tem uma forte mensagem pacifista; nele, a guerra é travada por um motivo fútil, fomentada pelo governo, interfere na vida de populações que não têm nada a ver com isso, e é mostrada de forma crua e direta, em contraponto, por exemplo, à forma nuanceada usada em Princesa Mononoke. Howl não somente se recusa terminantemente a tomar parte na guerra como é afetado fisicamente por ela, se transformando em uma espécie de monstro até mesmo quando usa seus poderes para defender seu castelo de ataques inimigos. O filme também ficaria famoso por não ter vilões claros: tanto Howl quanto a Bruxa das Terras Desoladas podem ser vistos como malginos em alguns momentos e heroicos em outros, e o reino vizinho, que ataca o de Sophie, o faz acreditando estar certo, para salvar seu príncipe.

Outra característica que chamaria atenção seria que Sophie, ao ser transformada em idosa, não ficaria desesperada ou achando que sua vida acabou, reuniria suas forças e iria em busca de uma solução, com sua idade avançada, mesmo tendo sido adquirida em segundos, a tornando mais sábia, resiliente e propensa a falar o que pensa; isso seria visto como uma forma positiva de abordar o envelhecimento. Sophie é considerada uma das heroínas mais fortes das produções do Studio Ghibli, mostrando não somente um espírito inabalável, mas também compaixão para com o vaidoso e egoista Howl e para com a Bruxa das Terras Desoladas, mesmo ela sendo responsável por sua atual situação. Curiosamente, conforme o filme vai chegando a seu final, Sophie rejuvenesce mais não totalmente, terminando a história com uma aparência semelhante à que tinha no início, mas com os cabelos brancos - talvez para mostrar que ela foi mudada pela experiência, e, mesmo recobrando sua aparência jovem, manteve sua sabedoria.

O filme acabaria tendo várias diferenças em relação ao livro, que possui mais personagens, mais tramas secundárias, e no qual Markl, que se chama Michael e é um adolescente, tem interesse romântico em Sophie. O castelo é descrito no livro como uma torre de mago alta, escura e sinistra, e Calcifer é muito mais demoníaco e sombrio, com Miyazaki preferindo fazer dele um elemental do fogo simpático no filme. No livro, Howl, que é mulherengo, conquistador e machista, algo que foi bastante atenuado no filme, nasceu no País de Gales, para onde os personagens viajam com frequência, mas Miyazaki preferiria não fazer qualquer referência ao mundo real no filme. E a Bruxa das Terras Desoladas é claramente a vilã do livro, enquanto no filme ela é apenas um personagem secundário, chegando a ajudar Sophie em alguns momentos.

Mas a principal diferença entre livro e filme é que o primeiro é muito menos focado na guerra, que só é citada brevemente na história, ao invés de retratada em detalhes. O foco do livro está em Sophie desafiar e subverter os papéis de classe e gênero, algo que fica bastante em segundo plano no filme. Jones, que faleceria em 2011, seria convidada para visitar a sede do Studio Ghibli, e conversaria com Miyazaki e Suzuki sobre a adaptação, embora não tenha tido nenhum envolvimento na produção. Miyazaki viajaria a Londres no início de 2004 para mostrar o filme finalizado a ela antes do lançamento nos cinemas; ela o aprovaria, dizendo que diferenças entre mídias não somente são naturais, como esperadas. Ainda assim, muitos críticos costumam considerar o filme uma espécie de fanfic: os personagens e cenários são os mesmos, mas a história é diferente.

O Castelo Animado seria exibido na mostra do Festival Internacional de Cinema de Veneza em setembro de 2004, e, distribuído pela Toho, estrearia nos cinemas japoneses em 20 de novembro do mesmo ano. Graças ao sucesso de A Viagem de Chihiro, ele seria exibido em vários países europeus já no início de 2005; no Brasil, estrearia em 5 de agosto de 2005, depois da estreia nos Estados Unidos, em 10 de junho. A dublagem em inglês seria supervisionada por Pete Docter, da Pixar, e traria Emily Mortimer como a Sophie jovem, Jean Simmons como a Sophie idosa, Christian Bale como Howl, Lauren Bacall como a Bruxa das Terras Desoladas, Billy Crystal como Calcifer, e Josh Hutcherson como Markl. O filme seria uma das produções japonesas mais rentáveis de todos os tempos, e, no Japão, seria o terceiro de maior bilheteria na história, atrás de Titanic e A Viagem de Chihiro.

A crítica também receberia o filme extremamente bem, elogiando a qualidade da arte e das animações, a aparência do castelo e o contraste entre as cenas belas e bucólicas dos tempos de paz com a violência da guerra. O Castelo Animado ganharia o prêmio de Escolha do Público no festival de cinema da Mainichi Shimbun, o de Animação do Ano no Tokyo Anime Awards, e seria indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação, perdendo para Wallace & Gromit - A Batalha dos Vegetais.

Contos de Terramar
Gedo Senki
2006

Hayao Miyazaki sempre foi admirador da série Terramar, escrita por Ursula K. Le Guin, e, desde a década de 1980, pensava em fazer uma adaptação de algum dos livros para um anime. A autora, entretanto, sempre negou qualquer pedido de adaptação de suas obras para filmes de animação, por causa de uma rusga que tinha com a Disney, e, quando a editora Iwanami Shoten, que havia publicado Terramar no Japão, a procurou a pedido de Miyazaki, ela sequer quis ouvir a proposta.

Em 2003, porém, durante uma conversa com a tradutora Masako Shimizu, que traduzia os livros de Le Guin para o japonês, a autora diria que, após ter assistido Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro, havia mudado de ideia, e pediria para que Shimizu tentasse entrar em contato com Miyazaki para saber se ele ainda estaria interessado em uma adaptação de Terramar. Na época trabalhando em O Castelo Animado, Miyazaki sentiria já não ter o mesmo entusiasmo para trabalhar na adaptação, já que havia se inspirado em Terramar para diversas outras criações suas, e diria a Suzuki que estava pensando em, dessa vez, ser ele a recusar a oferta.

Suzuki, contudo, não estava disposto a rejeitar uma oferta de adaptação feita pela própria autora da obra original, ainda mais essa autora sendo Ursula K. Le Guin e essa obra sendo Terramar, um grande sucesso de vendas no Japão. O produtor, então, criaria um plano para que o projeto fosse tocado pelo filho de Miyazaki, Goro, em sua estreia na direção. Ao descobrir o plano, Miyazaki seria terminantemente contra, dizendo a Suzuki que seu filho "não aguentaria" dirigir um filme de animação, e que, provavelmente, não sabia nem desenhar. Mas Suzuki, imaginando que algo assim pudesse ocorrer, já havia encomendado a Goro um storyboard do filme, buscando provar que ele estava à altura da tarefa.

Na assinatura do contrato, estariam presentes Hayao Miyazaki, Goro, Suzuki e Le Guin, que se confessaria desapontada pelo filme não ser dirigido pelo Miyazaki pai, e só aceitaria assinar após Suzuki lhe garantir que Hayao supervisionaria todo o projeto - na verdade, ainda irritado e achando que o filho não estava pronto, ele não quis nenhum ter envolvimento, sequer falando com Goro durante a produção. Ele aceitaria, entretanto, assistir a uma sessão privada do filme após sua conclusão, embora seu único comentário ao filho tenha sido "você não deve dirigir um filme sendo guiado por suas emoções". Mais tarde, ele deixaria uma nota na mesa de trabalho de Goro, que dizia apenas "foi feito de forma honesta, então é um bom filme".

Dirigido por Goro Miyazaki e com roteiro de Keiko Niwa, Contos de Terramar não é uma adaptação de nenhum dos livros da série Terramar, mas sim uma nova história que reúne elementos dos quatro primeiros - O Feiticeiro de Terramar, de 1968, As Tumbas de Atuan, de 1970, A Última Margem, de 1972, e Tehanu, de 1990 - com forte influência do mangá Shuna no Tabi, escrito por Hayao Miyazaki e publicado em 1983. Seu título seria o mesmo de uma coletânea de contos ambientada em Terramar e lançada em 2001, ou seja, o mais recente lançamento da série na época da estreia do filme, mas a história do filme não usa nada de nenhum desses contos. Essa colcha de retalhos acabaria fazendo com que o filme ficasse completamente diferente dos livros, o que desagradaria Le Guin - após assistir a uma sessão privada antes da estreia, ela diria a Goro "não é meu livro, é seu filme, embora seja um bom filme", mas, em entrevistas posteriores, se diria desapontada pelo resultado final.

Uma das principais críticas de Le Guin à adaptação seria a de que os livros são centrados em questões morais, enquanto o filme é focado na violência física - ela reclamaria especialmente de o filme contar com um vilão que personificava todo o mal da história, "podendo convenientemente ser morto para que todos os problemas dos heróis fossem resolvidos". Em entrevistas, ela se diria incomodada com o fato de que, na maior parte das histórias de fantasia, "matar alguém seja a solução para encerrar a chamada guerra entre o bem e o mal", e que ela procurava não oferecer soluções tão simplistas, com o filme seguindo o caminho mais fácil. Ela também diria ter se sentido confusa ao assistir o filme, já que os nomes dos personagens eram os mesmos dos que ela criou, mas seu comportamento e as histórias que viviam eram completamente diferentes - nesse sentido, o filme, assim como O Castelo Animado, também poderia ser considerado uma espécie de fanfic. Para não dizer que ela não gostou de nada, Le Guin elogiaria a estética do filme, mas diria acreditar que a produção não havia sido tão caprichada quanto as dos filmes dirigidos por Hayao Miyazaki.

O filme acompanha o Príncipe Arren, que, após roubar a espada de seu pai e fugir de seu reino, conhece o arquimago Gavião, com quem passa a viajar. Após salvar a jovem Theanu de um bando de mercenários, Arren envolve a si mesmo e a Gavião em um plano da feiticeira Kumo, que planeja abrir o portal que existe entre a vida e a morte para se tornar imortal, mas, com isso, pode destruir o equilíbrio do mundo. Gavião decide enfrentar Kumo sozinho, deixando Arren sob os cuidados de uma velha amiga sua, Tenar, mas ele logo descobrirá que o menino não é muito afeito a seguir ordens.

Distribuído pela Toho, Contos de Terramar estrearia nos cinemas japoneses em 29 de julho de 2006. O filme seria o líder de bilheteria no Japão já em sua semana de estreia, ficando um total de cinco semanas na primeira posição e fechando o ano como o filme japonês de maior bilheteria de 2006 e quarto se forem consideradas as produções de Hollywood - caso no qual o primeiro seria Piratas do Caribe: O Baú da Morte. A crítica ficaria bastante dividida, elogiando a animação e a trilha sonora e considerando a arte belíssima, mas criticando o enredo, o ritmo e as diferenças entre o filme e os livros. Um resultado dessa divisão da crítica seria que Contos de Terramar acabaria indicado tanto ao prêmio de Animação do Ano da Academia Japonesa de Cinema quanto ao de Pior Filme do Bunshun Kichigo - o Troféu Framboesa do Japão - no qual Goro Miyazaki também seria escolhido Pior Diretor. O filme seria considerado amplamente por crítica e público como o pior do Studio Ghibli até 2020, quando seria superado por Aya e a Bruxa - também dirigido por Goro, o que mostra que seu pai talvez não estivesse totalmente desprovido de razão.

Fora do Japão, Contos de Terramar seria exibido nos cinemas em 2007 no Reino Unido, onde renderia bem menos que e seria considerado inferior aos lançamentos anteriores do Studio Ghibli; na Austrália, mas apenas em poucos cinemas e somente legendado; e na Espanha, onde também seria exibido apenas legendado e apenas em dois cinemas, um em Madrid, um em Barcelona. Para irritação de Le Guin, a versão norte-americana seria produzida pela Disney, e estrearia nos Estados Unidos apenas em 2010, por causa de um entrevero jurídico envolvendo a RHI Entertainemnt, produtora da minissérie Legends of Earthsea, exibida pelo Sci-Fi Channel em 2004, que tinha os direitos de exclusividade nos Estados Unidos sobre qualquer produto baseado em Terramar até dezembro de 2008, com a Disney sendo obrigada a esperar esse tempo passar para poder lançar Contos de Terramar.

Como já havia se passado quatro anos, e o filme era universalmente considerado de baixa qualidade, a Disney o lançaria nos cinemas apenas por estar contratualmente obrigada a isso, o que faria com que Contos de Terramar, nos Estados Unidos, estreasse no fantástico número de 5 salas de cinema. Devido às cenas violentas, o filme receberia classificação PG-13 (menores de 13 anos só podem assistir acompanhados dos pais), se tornando o primeiro e único filme PG-13 da Disney a ser exibido nos cinemas dos Estados Unidos - Princesa Mononoke também receberia classificação PG-13, mas seria lançado nos cinemas pela Miramax. A dublagem da Disney traz Timothy Dalton como Gavião, Matt Levin como Arren, Mariska Hargitay como Tenar, e Willem Dafoe como Lorde Cob - que, no original japonês, é uma mulher chamada Kumo, com seios e dublada pela atriz Yuko Tanaka, mas que a Disney preferiu transformar em "um feiticeiro andrógino".

Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar
Ponyo
2008

Depois que Miyazaki terminou O Castelo Animado, Suzuki sugeriu que seu próximo filme fosse voltado para crianças pequenas, e ele gostou da ideia, imaginando criar uma história que misturasse fatos da vida real e fictícios, e vendo em sua mente "ondas maiores que uma casa, se chocando contra uma colina". Viajando para a cidade costeira de Tomonoura, ele tomaria notas sobre a comunidade local e o Parque Nacional de Setonaikai, imaginando utilizá-las nesse filme infantil, e leria as obras de Natsume Soseki, gostando especialmente de Mon, originalmente publicado em 1910, que tinha como protagonista um menino que morava em um penhasco, algo que combinava com sua visão inicial da história. Ao fim da viagem, ele decidiria que a história seria centrada em uma menina com poderes mágicos chamada Ponyo, palavra que, segundo ele, passava a impressão de ser "macia". Em entrevistas posteriores, Miyazaki também diria que, quando criança, pegou emprestado com um vizinho A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, e ficou intrigado com o fato de que a sereia não tinha alma, planejando abordar uma situação semelhante com Ponyo.

No filme, Ponyo (que originalmente se chama Brunhilde) é uma criatura fantástica parecida com um peixe, que vive no fundo do mar com centenas de irmãos e seu pai, Fujimoto, que nasceu humano, mas se tornou uma criatura marinha após um romance com Gran Mamare, a deusa da compaixão e dos oceanos. Fujimoto é extremamente rancoroso em relação aos seres humanos, que destroem os oceanos sem pensar nas consequências, mas Ponyo tem grande curiosidade para conhecer o mundo da superfície e, um dia, quando o pai não está olhando, se separa do cardume e vai até a praia, onde conhece o menino Sosuke, de cinco anos de idade. Sosuke vive em uma casa no alto de um penhasco com sua mãe, Lisa, que trabalha como cuidadora de idosos, e seu pai, Koichi, é marinheiro e passa a maior parte do tempo embarcado. É Sosuke quem decide chamar a criaturinha de Ponyo, colocando-a em um balde e levando-a para a escola; Fujimoto consegue recuperá-la e levá-la de volta para o fundo do mar, mas Ponyo não se conforma e quer voltar à companhia de Sosuke de qualquer jeito. Através de uma série de desaventuras, ela consegue assumir a forma de uma menina da idade de Sosuke, mas, no processo, libera um poder mágico que ameaça destruir todo o planeta, levando à intervenção de Gran Mamare.

Enquanto trabalhava no roteiro, Miyazaki teve um bloqueio criativo, ficando empacado. Durante uma viagem a Londres, ele visitaria a Tate Gallery, e ficaria impressionado com o quadro Ofélia, de John Everett Millials. Segundo Miyazaki, ele ficaria embasbacado com a riqueza dos detalhes, achando que seu trabalho era porco em comparação, e decidiria que o Studio Ghibli teria que mudar totalmente seu estilo de animação se quisesse seguir fazendo sucesso. Na época, Katsuya Kondo havia produzido um curta para o Studio Ghibli chamado Yadosagashi, sobre uma menina que se perde de seus pais e, enquanto procura o caminho para casa, conhece vários espíritos da natureza. Durante a produção do curta, Kondo discutiria com Miyazaki a possibilidade de dirigir um longa, mas diria que preferiria trabalhar junto a um diretor para ganhar mais experiência antes de se aventurar sozinho; ao ter sua epifania, Miyazaki concluiria que o estilo de Yadosagashi era justamente o que ele queria para Ponyo, e convidaria Kondo para ser o supervisor de animação, trabalhando a seu lado durante toda a produção.

Assim como Yadosagashi, Ponyo teria traços simples com linhas fortes, e seria totalmente desenhado e animado à mão, sem qualquer cena usando computação gráfica ou sendo animada no computador - para afastar a tentação, Miyazaki fecharia o setor de computação do estúdio quando a produção de Ponyo começou, somente reabrindo-o quando o filme estreou. Miyazaki também criaria novidades para a animação que seriam testadas pela primeira vez em Ponyo; a mais comentada seria a animação dos navios, que, tradicionalmente, são desenhados em um acetato e "deslizados" sobre o fundo, mas que, por ordem de Miyazaki, nesse filme seriam desenhados frame por frame, como se fossem personagens.

Durante a pré-produção, Miyazaki estava ouvindo A Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner, quando teve a inspiração para um desenho de Ponyo correndo sobre um enorme peixe - que, mais tarde, ele decidiria transformar em uma das cenas do filme. Isso também faria com que muitos elementos do filme fossem inspirados na ópera As Valquírias, começando pelo nome verdadeiro de Ponyo, Brunhilde. Já Sosuke seria inspirado no próprio filho de Miyazaki, Goro, quando ele tinha cinco anos.

A música-tema de Ponyo, chamada Gake no Ue no Ponyo, seria lançada sete meses antes do filme, e se tornaria um grande sucesso em todo o Japão. Criada pela dupla Takaaki Fujioka e Naoya Fujimaki - famosos na década de 1970 com a banda Marichans - sob o nome Fujioka Fujimaki, e cantada por Nozomi Ohashi, na época com 8 anos de idade, a música seria a primeira de uma produção do Studio Ghibli a entrar para o Top 100 das mais tocadas nas rádios japonesas, alcançando a terceira posição enquanto o filme estava em cartaz, e seu single fecharia o ano de 2008 na posição 14 dos mais vendidos no Japão. A música participaria do famoso programa de ano novo do canal de TV NHK Kohaku Uta Gassen, com Ohashi estabelecendo o recorde de participante mais jovem, anteriormente pertencente a Mai Hagiwara, do grupo Cute, que se apresentou quando tinha 11 anos.

Ponyo estrearia nos cinemas japoneses em 19 de julho de 2008, distribuído pela Toho, ocupando 481 salas, um recorde para um filme nacional; mesmo estreando no mesmo dia que Pokémon: Giratina e o Cavaleiro do Céu, seria o recordista de bilheteria no Japão no primeiro fim de semana, e fecharia o primeiro mês com uma bilheteria de 10 milhões de ienes, também um recorde. A crítica também seria quase que totalmente positiva, considerado o filme "um conto de fadas visualmente impactante" e comparando-o com Meu Amigo Totoro. Ponyo seria exibido fora de concurso no Festival Internacional de Cinema de Veneza e no Festival do Cinema do Futuro de Bologna; ganharia cinco prêmios no Tokyo Anime Awards, incluindo Anime do Ano e Melhor Filme Doméstico; ganharia o de Animação do Ano da Academia Japonesa de Cinema; e renderia a Miyazaki mais um Prêmio Ofuji Noburo - o quinto de sua carreira.

Nos Estados Unidos e Canadá, Ponyo estrearia em 14 de agosto de 2009, distribuído pela Disney, também com um recorde de salas, 927, o maior número já registrado não só para um filme do Studio Ghibli, mas também para qualquer anime - para efeitos de comparação, A Viagem de Chihiro estreou em 26 salas, O Castelo Animado em 36, e o recordista anterior do Studio Ghibli, Princesa Mononoke, em 38. Miyazaki viajaria aos Estados Unidos para promover o filme, e, enquanto estava lá, daria uma palestra sobre cinema na Universidade da Califórnia em Berkeley e participaria da San Diego Comic-Con. A dublagem em inglês mais uma vez ficaria a cargo da Pixar, dirigida por John Lasseter, Brad Lewis e Peter Sohn, e traria Noah Cyrus (irmã da Miley) como Ponyo, Frankie Jonas (irmão mais novo dos Jonas Brothers, que não faz parte do trio) como Sosuke, Tina Fey como Lisa, Matt Damon como Koichi, Liam Neeson como Fujimoto, Cate Blanchett como Gran Mamare, e Lily Tomlin, Betty White e Cloris Leachman como as idosas de quem Lisa cuida. Cyrus e Jonas também gravariam a versão em inglês da música-tema, que não chegaria nem perto de fazer o mesmo sucesso da japonesa.

Ponyo também seria o recordista do Studio Ghibli em estreias na Europa, sendo exibido nos cinemas de 36 países. Na França, ele teria uma exibição especial no Festival International de la Bande Dessinée d'Angoulême, o mais importante festival de filmes de animação em língua francesa, onde seria aplaudido de pé, em janeiro de 2009; na Itália, ele estrearia em março de 2009 em 186 salas, recorde para um anime, e fecharia seu primeiro fim de semana como o sexto filme mais assistido nos cinemas do país; e na Alemanha ele estrearia duas vezes, a primeira em 2009, em versão legendada, distribuída pela Constantin Film com o título Ponyo - Das Verzauberte Goldfischmädchen ("a menina peixinho dourado encantada"), e a segunda, com dublagem em alemão, em 2010, pela Universum Film, com o título Ponyo - Das große Abenteuer am Meer ("a grande aventura no mar"), que ficaria sendo o oficial no país. No Brasil, Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar estrearia nos cinemas em 2 de julho de 2010.

Para terminar, vale deixar registrada a curiosidade de que Ponyo seria o último filme do Studio Ghibli e último de todos os animes a ser lançado em VHS no Japão, em 3 de julho de 2009, bem como o primeiro filme do Studio Ghibli a ser lançado em Blu-ray, em 8 de dezembro de 2009.
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sábado, 6 de setembro de 2025

Escrito por em 6.9.25 com 0 comentários

Contos de Fadas BLOGuil (IX)

Sem maiores delongas, vamos a mais um dos Contos de Fadas BLOGuil.





O Gato de Botas

Era uma vez um jovem muito pobre, cujo pai morreu, e a única herança que lhe deixou fora um gato. Seu primeiro pensamento foi transformá-lo em um tamborim para tentar uma vaga na bateria da Mangueira, mas o gato, prevendo o triste destino que lhe acometeria, decidiu fazer-lhe uma proposta: se lhe desse um saco velho e um par de botas, faria dele o homem mais rico de todo o Reino.

O jovem achou um disparate aquilo tudo, mas pensou que, na pior das hipóteses, poderia levar seu gato falante ao Programa do Faustão e ganhar um bom dinheiro, e decidiu pagar para ver: deu ao felino seu único par de botas e um saco velho de batatas que costumava usar como cobertor. O gato então iniciou seu sórdido plano. Colocando dentro do saco um pedaço de cenoura, fingiu-se de morto em um trigal próximo, esperando que algum coelho caísse em sua armadilha. Após ter de se esconder de um caminhão do lixo que por pouco não parou para recolher sua carcaça, o gato conseguiu atrair um coelhinho para sua armadilha, que, imaginando que o gato estivesse morto, entrou no saco para comer a cenoura e acabou capturado.

O jovem dono do gato ficou maravilhado, crente que naquela noite iriam comer coelho, mas o bichano o garantiu que o coelho fazia parte de seu plano. No dia seguinte, o gato levou o coelho para o Rei, identificando-se como emissário do Marquês de Rabicó, e dizendo que tal coelho era uma caça com a qual seu amo pretendia presentear o monarca. O Rei adorava coelho, de forma que aceitou o presente de bom grado, e pôs-se a imaginar quem seria tal Marquês, de quem ele nunca ouvira falar.

Mas o plano do gato não acabava por aí. Dia após dia ele arrumava novas caças com a ajuda de sua armadilha. No dia seguinte, presenteou o Rei com uma perdiz. Em seguida, com uma preá. No quarto dia, com um cervo. Quando já havia uma semana que o gato caçava com seu saco e entregava a caça ao Rei, seu jovem dono já estava desesperado, sem entender por que o gato não se utilizava de seus talentos para levar comida para casa, e sim para dá-la a um Rei que já tinha um bando de caçadores à sua disposição. O jovem chegou a ameaçar comer o gato se ele fizesse isso novamente, mas, para sorte do felídeo, a última etapa de seu plano já estava em andamento.

O ardiloso gato, além de bom caçador, era um excelente repórter investigativo. Perguntando aqui e ali, ele tomou conhecimento de um castelo que pertencia a um ogro, que tinha o poder mágico de se transformar em qualquer animal vertebrado não-extinto. Tal ogro também era um usineiro, dono de terras até onde a vista alcança, onde plantava cana, e se tornava cada vez mais rico devido à alta do álcool combustível e à exploração dos pobres bóias-frias que para ele trabalhavam. Por fim, o gato descobriu que o Rei iria fazer um passeio de carruagem com sua filha, a Princesa, passeio este que passaria por um lago e pelas fronteiras das terras do ogro, do qual o Rei não tinha conhecimento. Imediatamente, o gato viu ali a oportunidade perfeita, e pôs-se a trabalhar.

O primeiro passo foi oferecer uma refeição a cada bóia-fria, para que, quando o Rei os perguntasse de quem eram aquelas terras, respondessem que pertenciam ao Marquês de Rabicó. Como eles não faziam a menor idéia de quem fosse o dono daquelas terras, já que o ogro jamais saía de seu castelo, e ainda ganhariam comida de graça, aceitaram. O segundo passo foi fazer um complicado cálculo matemático para descobrir a que hora exata a comitiva real passaria pelo lago. Daí bastava apenas se livrar do ogro, coisa para a qual o gato também já tinha um plano.

Isto posto, o gato levou seu amo para o lago, e pediu para que ele tirasse a roupa e entrasse na água. Como estava precisando mesmo de um banho, o jovem obedeceu. Quando a comitiva real se aproximou, o gato correu para a estrada fazendo um grande escândalo, dizendo que o Marquês de Rabicó tivera suas vestes roubadas enquanto se banhava. O Rei, reconhecendo aquele gato tão gentil que lhe levara tantos presentes, ordenou que seus guardas o ajudassem. O jovem então foi arrastado para fora do lago por seis guardas reais, sem entender o que estava acontecendo, e achando que o gato tinha aprontado alguma e que o levariam para a cadeia para enchê-lo de porrada. Qual não foi sua surpresa ao se ver sendo vestido com as roupas mais finas que já vira na vida, as quais o Rei tinha enviado um batedor ao castelo especialmente para apanhá-las de sua pilha de roupas velhas. Depois disso, o jovem foi saudado e cumprimentado pelo Rei, que o convidou a entrar em sua carruagem, sentar-se ao lado de sua filha, e aproveitar o passeio. O jovem não estava entendendo nada, mas sem dúvida aquilo era melhor do que ir para a prisão, então aceitou.

Enquanto isso, o gato foi ao lado do cocheiro, e o convenceu a passar pelas terras do ogro. O Rei ficou encantado com tamanha plantação de cana, e de vez em quando perguntava a quem ela pertencia, ao que era respondido que as terras eram do Marquês de Rabicó, fazendo com que o Rei, impressionado, cumprimentasse o jovem, que cada vez entendia menos o que acontecia. Para completar seu plano, o gato correu para o castelo do ogro, ao qual iria pedir para se transformar em um camundongo e comê-lo. Um plano perfeito.

Lá chegando, o gato pôs-se a conversar com o ogro, dizendo que duvidava que ele tivesse tal poder de se transformar em animais. Irritado, o ogro pegou um machado para matar o gato, mas depois reconsiderou e achou que seria bom se transformar em uns dois ou três animaizinhos para desenferrujar, já que não fazia isso há muito tempo. O ogro então perguntou que tipo de animal o gato gostaria de ver, ao que o felino respondeu um camundongo. Mas o ogro retrucou que camundongo era muito sem graça, e se transformou em um elefante. O gato retrucou que elefante era fácil, e que ele queria ver uma lagartixa. O ogro disse que não gostava de se transformar em répteis, pois eles tinham os pés gelados, e se transformou em hipopótamo. O gato riu e disse que qualquer um se transformava em hipopótamo, que ele queria ver o ogro se transformar em canário. O ogro replicou que canário era coisa de frutinha, e que ele ia se transformar em dodô, que na época ainda não estava extinto. Nisto, estava passando por ali um nobre inglês, que, ao ver o dodô, não pensou duas vezes, sacou de sua espingarda e o matou, para fazer um lindo troféu.

Assim, quando a comitiva real chegou ao castelo, o gato anunciou que aquele era o castelo do Marquês de Rabicó. O Rei, maravilhado, aceitou entregar a mão de sua única filha em casamento ao jovem amo do gato, que até hoje não sabe como aquilo aconteceu, nem quem seria esse tal de Marquês de Rabicó. Mas todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 30 de agosto de 2025

Escrito por em 30.8.25 com 0 comentários

A Muralha

Como eu disse aqui recentemente, em 2020 eu fiz uma série sobre novelas, que não foi planejada, no sentido de que eu não escolhi antecipadamente sobre quais novelas eu iria falar a cada mês, as escolhendo quando estava na hora de escrever cada post. Mas eu me lembro que, em determinado momento, eu cogitei falar sobre A Muralha e A Casa das Sete Mulheres, que não foram novelas, mas minisséries, marcando os posts na categoria Novelas mesmo assim. Não me lembro bem o porquê de eu ter desistido, provavelmente eu lembrei de novelas sobre as quais eu gostaria mais de falar do que dessas minisséries, mas o fato é que, como eu não falei mais sobre novelas, também não cogitei mais falar sobre as minisséries.

Quando eu estava escrevendo o post sobre Pantanal, entretanto, eu me lembrei desse fato, e achei que seria legal se, no próximo espaço disponível - ou seja, na primeira semana em que eu não tivesse um assunto escolhido com antecedência - eu realmente fizesse um post sobre A Muralha, uma minissérie que eu adorei, mesmo que realmente o colocasse na categoria Novelas. Pois bem, como vocês devem estar imaginando, o primeiro espaço disponível desde que eu tive essa ideia caiu no dia de hoje, que é dia de A Muralha no átomo!

No início da década de 1980, a Globo passaria a produzir minisséries, que seriam exibidas na faixa das 22h, substituindo séries e filmes norte-americanos que costumavam ocupar o horário, visando não somente economia, já que as taxas de licenciamento e os gastos com dublagem desses importados crescia a cada ano, mas também uma maior produção de material nacional que pudesse reverter em lucro e notoriedade para a emissora. As minisséries se diferenciariam das novelas não somente por terem bem menos capítulos - algumas têm apenas 4 ou 5, a maioria tem entre 20 e 30, enquanto uma novela pode ter mais de 200 - mas também por serem obras fechadas: uma novela vai sendo escrita e filmada enquanto seus capítulos estão indo ao ar, não sendo incomum que mudanças sejam feitas na história ou até mesmo no elenco no decorrer da exibição, motivadas por aceitação ou rejeição do público, ou aumento ou declínio dos índices de audiência; uma minissérie, por outro lado, já tem seu roteiro pronto quando as filmagens começam, e normalmente só vai ao ar depois que todos os episódios já foram filmados.

A primeira minissérie produzida pela Globo seria Lampião e Maria Bonita, de Aguinaldo Silva e Doc Comparato, estrelada por Nelson Xavier e Tânia Alves, com 8 capítulos exibidos entre 26 de abril e 5 de maio de 1982. Um grande sucesso de audiência e vencedora da medalha de ouro no Festival Internacional de Cinema e Televisão de Nova York, Lampião e Maria Bonita seria a primeira de três minisséries que a emissora havia programado para aquele ano, com Avenida Paulista, de Daniel Más e Leilah Assumpção, com 17 capítulos, estreando em 10 de maio, e Quem Ama Não Mata, de Euclydes Marinho, com 20 capítulos, estreando em 12 de julho, ambas também tendo boa audiência. Graças a elas, a produção de minisséries nos anos 1980 seria profícua, com uma média de três a cinco delas sendo exibidas por ano, dentre elas os grandes sucessos Rabo de Saia (1984), O Tempo e o Vento, Tenda dos Milagres, Grande Sertão: Veredas (as três de 1985) e Anos Dourados (1986). Como se pode notar, nem todas eram textos originais, com algumas sendo adaptações para a TV de clássicos da literatura brasileira.

A década de 1990 subiria ainda mais a barra: como as minisséries de sucesso eram mais facilmente vendidas para o exterior que as novelas, principalmente por terem menos capítulos, a Globo decidiria caprichar ainda mais em sua produção, com as minisséries dessa década, na qual as novelas ainda eram um produto, digamos, artesanal, não devendo em nada a grandes produções internacionais. Se destacam na década de 1990 as minisséries Desejo, Riacho Doce (ambas de 1990), O Sorriso do Lagarto (1991), As Noivas de Copacabana, Anos Rebeldes (ambas de 1992), Agosto (1993), Engraçadinha: Seus Amores e Seus Pecados (1995), Guerra de Canudos (1997), Dona Flor e Seus Dois Maridos, Hilda Furacão (ambas de 1998) e Chiquinha Gonzaga (1999). Algumas das minisséries da década de 1990 também eram quase "mininovelas", já que tinham bem mais capítulos que o normal para esse tipo de produção - Hilda Furacão teve 32, Chiquinha Gonzaga, 38, Riacho Doce, 40, e a mais longa da década foi O Sorriso do Lagarto, com 52.

Aqui chegamos no ponto que interessa, já que Chiquinha Gonzaga, exibida entre 12 de janeiro e 19 de março de 1999, inauguraria uma espécie de "faixa fixa de minisséries", entre janeiro e março, no que eram consideradas as "férias" da programação da Globo - desde meados da década de 1980, a faixa das 22h já não era majoritariamente ocupada por importados, e sim por programas produzidos pela própria Globo, a maioria deles humorísticos, que, entre janeiro e março, não eram exibidos, para que seus atores e equipes de produção não precisassem trabalhar 12 meses por ano. A Muralha, sobre a qual eu prometo que vou começar a falar daqui a pouco, seria a segunda a ocupar essa faixa, em 2000; nos anos seguintes, teríamos Os Maias (2001), O Quinto dos Infernos (2002), A Casa das Sete Mulheres (2003), Um Só Coração (2004), Mad Maria (2005), JK (2006) e Amazônia, de Galvez a Chico Mendes (2007). Como precisavam ficar no ar por três meses, essas minisséries também eram mais longas que o normal, tendo em torno de 50 capítulos cada; e é importante salientar que sua produção não implicava que outras minisséries também não fossem produzidas com outros destaques da década sendo Presença de Anita (2001, 16 capítulos), Hoje é Dia de Maria (2005, 8 capítulos), A Pedra do Reino (2007, 5 capítulos) e Aquarela do Brasil, que teve nada menos que 60 capítulos, sendo a mais longa minissérie da história e ocupando quase todo o segundo semestre de 2000, quando foi exibida entre 22 de agosto e 1 de dezembro.

Em 2001, com a estreia do programa Big Brother Brasil na faixa das 22h, as minisséries seriam definitivamente movidas para uma faixa ainda mais tarde, a das 23h, já ocupada por algumas minisséries que estrearam entre abril e dezembro em anos anteriores. Em 2008, com o grande sucesso do BBB e um declínio na audiência das minisséries de janeiro-março, a Globo reformularia a faixa, com Queridos Amigos tendo apenas 25 capítulos e sendo exibida entre 18 de fevereiro e 28 de março; essa seria a última minissérie produzida especificamente para ocupar as férias da programação, encargo que recairia somente sobre o BBB nos anos seguintes, com a minissérie de 2009, Maysa: Quando Fala o Coração, tendo apenas 9 capítulos, exibidos entre 5 e 16 de janeiro. Desde então, a Globo produz minisséries de forma esparsa, sempre as levando ao ar na faixa das 23h, podendo ser citadas como destaques Som & Fúria (2009), O Canto da Sereia (2013), e Justiça (2016). Desde 2011, também é comum a Globo pegar um filme do qual foi co-produtora e dividi-lo em 4 episódios, exibindo-o como uma minissérie, como, por exemplo, Chico Xavier (2011), Xingu (2012), O Tempo e o Vento (2013), Tim Maia: Vale o que Vier (2015), Elis - Viver é Melhor que Sonhar (2019) e Marighella (2023).

Pois bem, A Muralha, de Maria Adelaide Amaral, que teve 51 capítulos exibidos entre 4 de janeiro e 31 de março de 2000, foi produzida para comemorar os 500 anos do então chamado Descobrimento do Brasil. A minissérie seria inspirada em um livro também chamado A Muralha, escrito por Dinah Silveira de Queiroz, publicado em 1954, e que, por sua vez, originalmente foi publicado em capítulos semanais na revista O Cruzeiro, que contratou a autora para escrevê-lo em homenagem aos 400 anos da cidade de São Paulo. A minissérie da Globo seria a quinta adaptação desse livro para a televisão, com as outras quatro sendo novelas, cada uma produzida por uma emissora diferente: a primeira, ainda de 1954, pela TV Record, a segunda, de 1958, pela TV Tupi, a terceira, de 1963, pela TV Cultura, e a quarta, de 1968 e escrita por Ivani Ribeiro, pela TV Excelsior.

A muralha que dá título ao livro, às novelas e à minissérie é a Serra do Mar, cadeia montanhosa que se estende por cerca de 1500 km desde o Rio de Janeiro até o Rio Grande do Sul, que podia ser vista pelos portugueses que estavam desembarcando de seus navios, e era considerada um obstáculo intransponível para a colonização do interior do Brasil até bandeirantes que se aliaram a indígenas, liderados por Borba Gato, encontrarem uma trilha, que levou à descoberta de ouro e à Guerra dos Emboabas, um dos episódios mais sangrentos da história de nosso país, na qual centenas de indígenas morreram em um conflito travado de 1707 a 1709 entre dois grupos diferentes de colonizadores, um formado pelos bandeirantes paulistas que descobriram o caminho e outro por portugueses que vieram depois de olho nas riquezas recém-descobertas e se aliaram a colonos que viviam no nordeste. Muitos detalhes da Guerra dos Emboabas são obscuros devido à falta de registros, incluindo o próprio nome do conflito - sendo a teoria mais aceita a de que emboaba seria uma corruptela do termo em tupi para "invasores".

A Muralha é ambientada pouco antes da Guerra dos Emboabas, e narra os eventos que levaram ao conflito, mas de forma fictícia, usando apenas personagens inventados e situações que não temos como saber se realmente aconteceram ou não. A trama gira em torno da família do bandeirante Dom Braz Olinto, que mora na fazenda Lagoa Serena, já após transpor a Muralha, na então Vila de São Paulo dos Campos de Piratininga, que viria a evoluir até se tornar a cidade de São Paulo. Por opção da autora do livro, as verdadeiras protagonistas da histórias eram as mulheres; o papel das mulheres na colonização do Brasil jamais foi verdadeiramente abordado em nenhuma produção, o que fez com que o livro fosse considerado revolucionário na época, se tornando objeto de estudos das ciências sociais.

Na minissérie, Dom Braz (Mauro Mendonça) tem como principal negócio a captura e venda de indígenas como escravos, e, para isso, ele conseguiu fazer aliança com uma das tribos, que o guia pelos caminhos da floresta até terras jamais visitadas pelos colonizadores, onde ele ataca e sequestra indígenas que jamais tiveram contato com a chamada civilização. Dom Braz é casado com Mãe Cândida (Vera Holtz), que assume a administração da fazenda quando os homens estão fora; afetuosa porém contida, ela busca atender a todas as necessidades do marido e dos filhos, colocando as prioridades dos homens da fazenda acima de tudo, até mesmo da justiça e da religião, pois crê que essa é a única forma pela qual os Olinto conseguirão triunfar nessa terra inóspita.

Dom Braz e Mãe Cândida possuem quatro filhos. O mais velho, Leonel (Leonardo Medeiros), tem o pai como herói, segue todos os seus passos e acredita que essa é a chave para que a família tenha prosperidade; Leonel é casado com a meiga e sensível Margarida (Maria Luísa Mendonça), que tem saúde frágil e se ressente por não conseguir engravidar, já que, por seus critérios, seu casamento só será completo quando o casal tiver um filho. A segunda filha de Dom Braz, Basília (Deborah Evelyn), é mais forte e decidida, mas carrega uma mágoa muito maior: seu filho, Pedro, desapareceu na floresta quando tinha 13 anos de idade, acompanhando Dom Braz numa expedição; Basília culpa o pai pelo infortúnio, e, mesmo já tendo se passado muito tempo, acredita que o filho está vivo e será encontrado. Basília é casada com Afonso Góis (Celso Frateschi), melhor amigo de Leonel e que também acha que o método de Dom Braz é o melhor para obter sucesso na colônia. Já a caçula de Dom Braz, Rosália (Regiane Alves), é uma adolescente romântica e sem nada na cabeça, que não se importa com indígenas ou colônias, e quer viver um grande amor.

O filho que eu deixei por último é Tiago (Leonardo Brício), de certa forma o mais importante para a história. Educado pelos Jesuítas, Tiago tem pensamentos renascentistas e é contra a exploração dos indígenas, frequentemente entrando em conflito com o pai. Tiago também acredita que o futuro da família está na exploração do ouro, que ninguém nunca viu na colônia, sendo considerado, portanto, uma lenda e uma busca desnecessária. Com medo de que Tiago se case com uma mestiça, ou, pior ainda, com uma indígena, Dom Braz manda vir uma noiva para ele de Portugal, a doce Beatriz (Leandra Leal), que desembarca cheia de sonhos e completamente apaixonada pelo noivo que nunca viu - e que a despreza, vendo no casamento mais uma imposição estúpida de seu pai. Inicialmente pouco talhada à vida na colônia, ao longo da minissérie Beatriz vai se mostrando uma mulher de muita fibra, disposta a tudo para alcançar seus objetivos.

A família de Dom Braz se completa com Isabel (Alessandra Negrini), considerada por todos como sua sobrinha, mas com a suspeita de que seja sua filha. Mestiça de um português com uma indígena, Isabel é linda, forte e muito brava, se vestindo de armadura e indo para a floresta acompanhar Dom Braz, que a considera "seu melhor soldado", mais valente e competente que qualquer um dos homens do grupo. Isabel é apaixonada por Tiago, com quem tem uma relação de amor e ódio, já que, livre das amarras da sociedade, ela não se importa em demonstrar que quer ter relações sexuais com ele, que, a vendo como prima (e talvez irmã) e mulher solteira, fica incomodado com esse comportamento. Também merecem ser citados o indígena Apingorá (André Gonçalves), melhor amigo de Tiago e líder da tribo que fez aliança com os Olinto, que sabe ler e escrever em português e serve como guia de Dom Braz em suas expedições; e Aimbé (Enrique Diaz), mestiço e meio-irmão de Isabel por parte de mãe, que trabalha para Dom Braz mas se ressente de não ser tratado como branco como ela.

No mesmo navio que traz Beatriz (no primeiro capítulo) também vêm três outros personagens importantes: a prostituta Antônia (Cláudia Ohana), o ingênuo padre Miguel (Matheus Nachtergaele) e Ana (Letícia Sabatella), uma doce e meiga cristã-nova (nasceu judia mas se converteu ao cristianismo) que vem ao Brasil cumprir uma promessa e se casar com Dom Jerônimo (Tarcísio Meira), homem muito mais velho que ela e extremamente religioso. Vilão e um dos destaques da minissérie, Dom Jerônimo é um riquíssimo comerciante rival de Dom Braz, que, hipócrita, usa sua religiosidade como escudo para cometer todo tipo de perversão e ato indizível, sem que jamais suspeitas recaiam sobre ele. Em suas mãos, Ana sofrerá todo tipo de tortura, já que ele não acredita em sua conversão - de fato, o pai da moça se converteu e a entregou em casamento apenas para não ser queimado na fogueira - e planeja testar sua fé de formas que só a Inquisição sabe fazer, auxiliado por sua governanta, Leonor (Ada Chaseliov), tão cruel quanto ele.

Quando Ana chega ao Brasil, é recepcionada por Dom Guilherme (Alexandre Borges), dono de um engenho de açúcar que faz comércio com Dom Jerônimo e a abriga em sua casa antes de levá-la ao futuro marido; os dois se apaixonam, e, com a ajuda de Antônia, se encontram em segredo e tramam uma forma de libertar a moça de seu cativeiro. Antônia, que veio para a colônia achando que iria conseguir um bom casamento, já que aqui havia mais homens que mulheres brancas, consegue nada menos que cinco pretendentes: Mestre Davidão (Pedro Paulo Rangel), rico comerciante a quem ela rejeita por também ser cristão-novo; Dom Bartolomeu (Cecil Thiré), o ouvidor da capitania, enviado pela Coroa Portuguesa, que se orgulha de ter cursado Letras em Coimbra; Dom Gonçalo (Edwin Luisi), o barbeiro e dentista da Vila de São Paulo; Dom Cristóvão (Sérgio Mamberti), vereador que acredita que sua posição política lhe garante privilégios; e Dom Falcão (Emiliano Queiroz), o alfaiate e fofoqueiro local.

Enquanto não decide com quem vai se casar, Antônia se engraça com Bento Coutinho (Caco Ciocler), que vende os indígenas que Dom Braz captura; cafajeste e sedutor, Bento tem inveja da fortuna de Dom Braz, infiltra em sua equipe um espião (Irving São Paulo) e se aproveita de sua posição social para fazer negócios escusos com Frei Carmelo (Cacá Carvalho), religioso que adora mais ao dinheiro do que a Deus. Para desespero de Mãe Cândida, Rosália é perdidamente apaixonada por Bento, vendo nele seu príncipe no cavalo branco, que a levará para sua tão sonhada vida de princesa na colônia. Essa paixão faz com que a moça rejeite seu pretendente oficial, Vasco Antunes (Ângelo Antônio), filho de João Antunes (Carlos Eduardo Dolabella), bandeirante rival de Dom Braz, que planeja o casamento para unir as duas famílias; Vasco, porém, é apaixonado por Beatriz, e vive tentando convencê-la a abandonar Tiago, com o argumento de que ele não lhe dá atenção.

Já o Padre Miguel, que começa a trabalhar ao lado do mais velho e experiente Padre Simão (Paulo José), logo vê que sua ideia de como era a vida na colônia e a catequização dos indígenas estava em choque com a realidade, e acaba se apaixionando por Moatira (Maria Maya), indígena capturada durante uma das expedições de Dom Braz, vendida a Dom Jerônimo, que a estuprou seguidamente, e salva pelos padres, que a levaram para morar na igreja, onde planejavam ensiná-la a ler e escrever. No núcleo indígena, também merecem ser citados os personagens Genoveva (Ewriges Ribeiro), indígena que trabalha como empregada dos Olinto; os jovens Parati (João Pedro Roriz) e Tuiú (Patrick de Oliveira), que vivem em Lagoa Serena; e Caraíba (Stênio Garcia), pajé mitológico que viaja pelo Brasil visitando várias tribos e agindo como oráculo. Participações especiais incluem José de Abreu como o Inquisidor-Mór; José Wilker como Dom Diogo, governador geral da capitania; e Luís Melo como Dom Manuel Nunes Viana, português que vem ao Brasil lutar pelo fim da escravização dos indígenas, inspirado em um personagem real de nossa história.

Escrita por Maria Adelaide Amaral com colaboração de Vincent Villari e João Emanuel Carneiro, direção de núcleo de Denise Saraceni, e dirigida por Alexandre Avancini, Luiz Henrique Rios e Carlos Araújo, A Muralha contaria, em sua produção, com o apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), com diversos indígenas participando como figurantes e extras, e pajés e caciques atuando como consultores, principalmente para a confecção de objetos cênicos, de adereços e das ocas. A minissérie seria quase que integralmente filmada nos estúdios da Globo no Projac, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, onde seriam contruídas a Vila de São Paulo, que ocuparia uma área de 10 mil km2, com mais de 450 caminhões de terra sendo usados para corrigir um desnível no terreno, e três aldeias indígenas, uma delas com quatro ocas totalmente funcionais - para construir as ocas, teria de ser recuperada a técnica da taipa de pilão, usada na época para fazer as paredes desse tipo de construção, hoje em dia não mais encontrada.

Lagoa Serena, considerada o mais trabalhoso de todos os cenários, seria construída em uma fazenda no município de Cachoeira de Macacu, no interior do estado do Rio de Janeiro; seriam construídos lá, do zero, um depósito de munições, uma senzala e a casa da família Olinto, que ocupava 320 m2. Para cenas envolvendo animais da fauna nativa, como araras, capivaras, onças, macacos e cobras, a produção contaria com o apoio do Ibama, que disponibilizaria uma bióloga e um veterinário que acompanhavam os animais durante as gravações. A cena da caravela que traz Beatriz, Antônia, Ana e o Padre Miguel de Portugal para o Brasil, exibida no primeiro capítulo, seria gravada em Pensacola, Estados Unidos, onde se localiza a Fundação Colombo, voltada à construção de réplicas de embarcações usadas na época das Grandes Navegações; a nau usada na minissérie, considerada a mais perfeita de todas as réplicas, também havia sido usada no filme 1492: A Conquista do Paraíso, de 1992.

Originalmente, Tarcísio Meira seria convidado para interpretar Dom Braz, mas, após ler alguns capítulos, pediria para interpretar Dom Jerônimo, pela oportunidade de interpretar um vilão, algo raro em sua carreira. Tarcísio acabaria fazendo um vilão memorável, que entraria para a galeria dos mais detestáveis da história da televisão. Outros atores extremamente elogiados seriam Alessandra Negrini, Leonardo Brício, Matheus Nachtergaele, que, no ano anterior, já havia conquistado a crítica com sua interpretação de João Grilo em O Auto da Compadecida, e Maria Maya, inicialmente alvo de boatos de que só havia sido escolhida para o papel de Moatira por ser filha do diretor Wolf Maya, depois criticada por, aos 18 anos, estar em um papel de forte apelo sexual, já que aparecia em três quartos de suas cenas com os seios à mostra, mas que, ao final, seria incensada e reconhecida como atriz de talento, infelizmente conseguindo poucos papéis de destaque depois de A Muralha.

A opção de Tarcísio pelo papel do vilão levaria a Globo a chamar Mauro Mendonça, que já havia interpretado Dom Braz na versão da TV Excelsior, de 1968, o que levaria à diferença de que, na versão da Excelsior, Dom Braz e Mãe Cândida seriam bem mais jovens, já que Mendonça tinha 37 anos e Fernanda Montenegro, que então interpretava sua esposa, 38, enquanto, na versão da Globo, Mendonça tinha 68 anos, e Vera Holtz, 46. Vale citar também como curiosidade que, na versão da Excelsior, Isabel era interpretada pela atriz Rosamaria Murtinho, na época com 35 anos (Alessandra Negrini na versão da Globo tinha 29), que era esposa de Medonça na vida real desde 1959. Outros nomes famosos da versão da Excelsior foram Gianfrancesco Guarnieri como Leonel, Nicette Bruno como Margarida, Nathalia Thimberg como Basília, Paulo Goulart como Bento Coutinho, Paulo Celestino como Mestre Davidão, Cláudio Corrêa e Castro como Dom Manuel, e Stênio Garcia, único além de Mendonça a participar de ambas as versões, como Aimbé.

A trilha sonora, inteiramente instrumental, seria composta por Sérgio Saraceni especialmente para a minissérie, com exceção da música de abertura, Floresta do Amazonas, de Heitor Villa-Lobos - a abertura, aliás, era bastante simples, mostrando um sobrevoo da Serra do Mar enquanto os nomes do elenco "passavam voando" em ordem alfabética; o logotipo mostrava a Serra do Mar conforme vista do litoral de São Paulo, com o nome "A Muralha" acompanhando a cadeia de montanhas. De forma incomum para uma trilha instrumental de uma minissérie, a trilha sonora de A Muralha seria lançada pela Som Livre, com o logotipo da minissérie na capa.

A Muralha superaria todas as expectativas da Globo em termos de repercussão e audiência, e acabaria vendida para Costa Rica, Chile, Guatemala, Letônia, Moçambique, Nicarágua, Paraguai, Peru, Portugal, República Dominicana e Venezuela. Em 2002, como parte de um teste da Globo para o formato, que acabaria não vingando, seria oferecida on demand em serviço de pay per view; no mesmo ano, seria lançada, de forma compactada, em DVD. A minissérie seria reexibida três vezes, a primeira em 2004, na própria Globo, em um compacto de 39 capítulos, e as outras duas, na íntegra, no canal Viva, em 2011 e 2013. Desde 2023, ela também se encontra na íntegra no catálogo do Globoplay.
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