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sábado, 6 de setembro de 2025

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Contos de Fadas BLOGuil (IX)

Sem maiores delongas, vamos a mais um dos Contos de Fadas BLOGuil.





O Gato de Botas

Era uma vez um jovem muito pobre, cujo pai morreu, e a única herança que lhe deixou fora um gato. Seu primeiro pensamento foi transformá-lo em um tamborim para tentar uma vaga na bateria da Mangueira, mas o gato, prevendo o triste destino que lhe acometeria, decidiu fazer-lhe uma proposta: se lhe desse um saco velho e um par de botas, faria dele o homem mais rico de todo o Reino.

O jovem achou um disparate aquilo tudo, mas pensou que, na pior das hipóteses, poderia levar seu gato falante ao Programa do Faustão e ganhar um bom dinheiro, e decidiu pagar para ver: deu ao felino seu único par de botas e um saco velho de batatas que costumava usar como cobertor. O gato então iniciou seu sórdido plano. Colocando dentro do saco um pedaço de cenoura, fingiu-se de morto em um trigal próximo, esperando que algum coelho caísse em sua armadilha. Após ter de se esconder de um caminhão do lixo que por pouco não parou para recolher sua carcaça, o gato conseguiu atrair um coelhinho para sua armadilha, que, imaginando que o gato estivesse morto, entrou no saco para comer a cenoura e acabou capturado.

O jovem dono do gato ficou maravilhado, crente que naquela noite iriam comer coelho, mas o bichano o garantiu que o coelho fazia parte de seu plano. No dia seguinte, o gato levou o coelho para o Rei, identificando-se como emissário do Marquês de Rabicó, e dizendo que tal coelho era uma caça com a qual seu amo pretendia presentear o monarca. O Rei adorava coelho, de forma que aceitou o presente de bom grado, e pôs-se a imaginar quem seria tal Marquês, de quem ele nunca ouvira falar.

Mas o plano do gato não acabava por aí. Dia após dia ele arrumava novas caças com a ajuda de sua armadilha. No dia seguinte, presenteou o Rei com uma perdiz. Em seguida, com uma preá. No quarto dia, com um cervo. Quando já havia uma semana que o gato caçava com seu saco e entregava a caça ao Rei, seu jovem dono já estava desesperado, sem entender por que o gato não se utilizava de seus talentos para levar comida para casa, e sim para dá-la a um Rei que já tinha um bando de caçadores à sua disposição. O jovem chegou a ameaçar comer o gato se ele fizesse isso novamente, mas, para sorte do felídeo, a última etapa de seu plano já estava em andamento.

O ardiloso gato, além de bom caçador, era um excelente repórter investigativo. Perguntando aqui e ali, ele tomou conhecimento de um castelo que pertencia a um ogro, que tinha o poder mágico de se transformar em qualquer animal vertebrado não-extinto. Tal ogro também era um usineiro, dono de terras até onde a vista alcança, onde plantava cana, e se tornava cada vez mais rico devido à alta do álcool combustível e à exploração dos pobres bóias-frias que para ele trabalhavam. Por fim, o gato descobriu que o Rei iria fazer um passeio de carruagem com sua filha, a Princesa, passeio este que passaria por um lago e pelas fronteiras das terras do ogro, do qual o Rei não tinha conhecimento. Imediatamente, o gato viu ali a oportunidade perfeita, e pôs-se a trabalhar.

O primeiro passo foi oferecer uma refeição a cada bóia-fria, para que, quando o Rei os perguntasse de quem eram aquelas terras, respondessem que pertenciam ao Marquês de Rabicó. Como eles não faziam a menor idéia de quem fosse o dono daquelas terras, já que o ogro jamais saía de seu castelo, e ainda ganhariam comida de graça, aceitaram. O segundo passo foi fazer um complicado cálculo matemático para descobrir a que hora exata a comitiva real passaria pelo lago. Daí bastava apenas se livrar do ogro, coisa para a qual o gato também já tinha um plano.

Isto posto, o gato levou seu amo para o lago, e pediu para que ele tirasse a roupa e entrasse na água. Como estava precisando mesmo de um banho, o jovem obedeceu. Quando a comitiva real se aproximou, o gato correu para a estrada fazendo um grande escândalo, dizendo que o Marquês de Rabicó tivera suas vestes roubadas enquanto se banhava. O Rei, reconhecendo aquele gato tão gentil que lhe levara tantos presentes, ordenou que seus guardas o ajudassem. O jovem então foi arrastado para fora do lago por seis guardas reais, sem entender o que estava acontecendo, e achando que o gato tinha aprontado alguma e que o levariam para a cadeia para enchê-lo de porrada. Qual não foi sua surpresa ao se ver sendo vestido com as roupas mais finas que já vira na vida, as quais o Rei tinha enviado um batedor ao castelo especialmente para apanhá-las de sua pilha de roupas velhas. Depois disso, o jovem foi saudado e cumprimentado pelo Rei, que o convidou a entrar em sua carruagem, sentar-se ao lado de sua filha, e aproveitar o passeio. O jovem não estava entendendo nada, mas sem dúvida aquilo era melhor do que ir para a prisão, então aceitou.

Enquanto isso, o gato foi ao lado do cocheiro, e o convenceu a passar pelas terras do ogro. O Rei ficou encantado com tamanha plantação de cana, e de vez em quando perguntava a quem ela pertencia, ao que era respondido que as terras eram do Marquês de Rabicó, fazendo com que o Rei, impressionado, cumprimentasse o jovem, que cada vez entendia menos o que acontecia. Para completar seu plano, o gato correu para o castelo do ogro, ao qual iria pedir para se transformar em um camundongo e comê-lo. Um plano perfeito.

Lá chegando, o gato pôs-se a conversar com o ogro, dizendo que duvidava que ele tivesse tal poder de se transformar em animais. Irritado, o ogro pegou um machado para matar o gato, mas depois reconsiderou e achou que seria bom se transformar em uns dois ou três animaizinhos para desenferrujar, já que não fazia isso há muito tempo. O ogro então perguntou que tipo de animal o gato gostaria de ver, ao que o felino respondeu um camundongo. Mas o ogro retrucou que camundongo era muito sem graça, e se transformou em um elefante. O gato retrucou que elefante era fácil, e que ele queria ver uma lagartixa. O ogro disse que não gostava de se transformar em répteis, pois eles tinham os pés gelados, e se transformou em hipopótamo. O gato riu e disse que qualquer um se transformava em hipopótamo, que ele queria ver o ogro se transformar em canário. O ogro replicou que canário era coisa de frutinha, e que ele ia se transformar em dodô, que na época ainda não estava extinto. Nisto, estava passando por ali um nobre inglês, que, ao ver o dodô, não pensou duas vezes, sacou de sua espingarda e o matou, para fazer um lindo troféu.

Assim, quando a comitiva real chegou ao castelo, o gato anunciou que aquele era o castelo do Marquês de Rabicó. O Rei, maravilhado, aceitou entregar a mão de sua única filha em casamento ao jovem amo do gato, que até hoje não sabe como aquilo aconteceu, nem quem seria esse tal de Marquês de Rabicó. Mas todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 2 de agosto de 2025

Escrito por em 2.8.25 com 0 comentários

Contos de Fadas BLOGuil (VIII)

E vamos a mais um dos Contos de Fadas BLOGuil, que, para quem está chegando agora, são versões bem-humoradas de contos de fadas que eu escrevi para meu primeiro blog, o BLOGuil, e posteriormente revisei e modifiquei para serem republicados no Crônicas de Categoria, sendo apresentados aqui no átomo em sua versão mais recente.





Chapeuzinho Vermelho

Era uma vez uma menininha muito bonitinha, que vivia do Lado de Cá da Floresta. O nome dessa menininha não é importante para a história, mas seu apelido era Chapeuzinho Vermelho, pois ela sempre ia a todo lugar com um boné do MST, que ganhara de um menino com quem fez amizade quando as terras de seu vizinho Coronel Totonho foram ocupadas no último verão. A polícia chegou e expulsou todo mundo a bala, mas Chapeuzinho guardou o boné como lembrança daquela época tão feliz.

Mas isso também não é importante para a história. O que importa é que Chapeuzinho recebeu de sua mãe, Dona Chapeuzona, uma importante missão: levar para sua Vovó uma Cesta de Café da Manhã, como presente de aniversário por seus inúmeros anos que nem mesmo a família sabia mais quantos eram. A Vovó de Chapeuzinho decidiu morar do Lado de Lá da Floresta, onde o aluguel era mais barato, portanto, para cumprir sua missão, Chapeuzinho teria de atravessar a floresta, que não tinha nome e era conhecida simplesmente como Floresta, em uma caminhada de várias horas. Provavelmente isso constitui exploração infantil, mas os pais de Chapeuzinho estariam trabalhando naquele dia, então sobrou para a doce garotinha levar a doce cesta para a doce Vovó. Que também não tem nome, sendo conhecida simplesmente como Vovó.

Mas, além da caminhada extenuante, havia outra complicação: na Floresta, morava um lobo, que também não tinha nome, e era conhecido simplesmente como Lobo. Este Lobo era chocólatra, de forma que, ao sentir o aroma das guloseimas presentes na cesta, fatalmente viria ao encontro de Chapeuzinho, e, como todo mundo sabe, Lobos, além de chocólatras, possuem o péssimo hábito de comer criancinhas. A mãe de Chapeuzinho, temendo pela integridade física de sua pimpolha, recomendou que ela não desse trela a qualquer criatura estranha que se aproximasse, principalmente se tal criatura perguntasse sobre o conteúdo da cesta e a finalidade de sua viagem. Só para garantir, ela também deu a chapeuzinho um spray de pimenta.

E assim lá se foi Chapeuzinho. Ao invés de ir quieta para não chamar atenção, a burralda decidiu ir berrando aos quatro ventos que ia sozinha, levava doces para a vovozinha, e que o caminho era longo e deserto. Isto acabou por chamar a atenção do Lobo, que se aproximou sorrateiramente e tentou descobrir o conteúdo da cesta. Chapeuzinho, lembrando-se das recomendações de sua mãe, sprayzou a cara do Lobo, que saiu correndo urrando de dor. Mal sabia chapeuzinho que isso só iria maximizar a ira do canídeo, que agora tramava uma vingança: ele sabia onde morava a Vovó, e iria até lá esperar por Chapeuzinho.

Ao chegar à casa da Vovó, o Lobo bateu à porta, e se identificou como vendedor do Carnê do Baú da Felicidade. Animada com a possibilidade de ganhar prêmios, a Vovó abriu a porta. Foi quando o Lobo saltou sobre ela e a engoliu inteira. Muitos se perguntam como um Lobo pode engolir um ser humano bem maior que ele inteiro, mas a verdade é que a mãe do Lobo era uma Cobra, portanto ele possuía mandíbulas flexíveis e um estômago dilatado. Muitos também se perguntam se depois de comer um ser humano inteiro o Lobo não teria que ir hibernar ou coisa parecida, mas ele estava tão sedento de vingança contra a Chapeuzinho insolente que nem considerou este pormenor. O Lobo simplesmente foi até o guarda-roupa da Vovó, escolheu uma camisola, e se deitou na cama, esperando por sua vítima.

Após alguns momentos, Chapeuzinho chegou à Casa da Vovó e bateu à porta, recebendo instruções para entrar. A "Vovó" estava deitada na cama, alegando que estava muito doente, e pediu para que Chapeuzinho se aproximasse. A menina sentiu que algo estava estranho. Tudo bem que ela não via a avó há anos, mas ela parecia muito gorda e peluda. Ao se aproximar, Chapeuzinho teve uma surpresa: não se tratava da Vovó, mas do Lobo! Ao saltar da cama, a primeira providência do Lobo foi zunir o spray de pimenta de Chapeuzinho pela janela. A segunda foi começar a correr atrás da menina, buscando devorá-la. Felizmente, por ter acabado de engolir a Vovó, o Lobo estava pesado, o que dava uma vantagem a Chapeuzinho na corrida.

Para sorte da menina, passava ali por perto um caçador, que também não tinha nome, e era conhecido simplesmente como Caçador. Após um dia inteiro no mato sem encontrar nenhuma caça, o Caçador estava com sede, e foi até a Casa da Vovó para beber um copo d'água e bater um papinho, quem sabe até assistir a uma novela. Aproximando-se, porém, o Caçador ouviu os gritos desesperados de Chapeuzinho e a risada maligna do Lobo. Compreendendo o que acontecia, o Caçador enfiou o pé na porta e deu um tiro de escopeta no meio dos cornos do Lobo, em uma cena de violência desnecessária jamais vista naquela Floresta. Cansada, suja de sangue e miolos, e traumatizada para toda a vida, Chapeuzinho correu para abraçar seu salvador. Foi quando todos ouviram os gritos da Vovó, que ainda estava viva na barriga do Lobo. Sacando de sua faca estilo Rambo, o Caçador, que também era um exímio cirurgião obstetra, abriu a barriga do vilão, salvando a Vovó antes que esta fosse digerida.

Após um longo banho, Vovó, Chapeuzinho e Caçador desfrutaram de um belo café da manhã com o conteúdo da cesta. E todos viveram felizes para sempre. Exceto o Lobo.
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sábado, 5 de julho de 2025

Escrito por em 5.7.25 com 1 comentário

Contos de Fadas BLOGuil (VII)

E hoje seguiremos com os Contos de Fadas BLOGuil, com a segunda parte da Trilogia do João - que não tem absolutamente nada a ver com as outras duas, exceto o nome do protagonista.





Trilogia do João - Episódio II: João, o Matador de Gigantes

Era uma vez, um rapaz chamado João. Que não é o mesmo João do pé de feijão. Nem é seu parente. É apenas um homônimo. Este João, diferentemente do anterior, não era dono de parque temático, mas alfaiate. Um alfaiate muito pobre, em uma cidade muito pequena. As grandes confecções ofereciam uma concorrência desleal, de modo que João estava sempre endividado. Além disso, por ter uma clientela parca e reduzida, João passava a maior parte do tempo coçando. O que ele coçava não é importante para a história.

Enfim, enquanto esperava por um eventual cliente, João gastava seu tempo jogando Candy Crush. Um dia, preocupado com as contas que estavam vencendo e sem ninguém aparecendo para fazer uma bainha, João não estava conseguindo se concentrar no jogo. Para atrapalhar, surgiram aqueles irritantes bichinhos de luz, que costumam nos atazanar quando está muito quente. Com a cabeça fervendo, perdendo no jogo, e um esquadrão de insetos o atacando, João não estava exatamente calmo. No auge de sua fúria, alcançou uma régua que pousava ao lado de sua poltrona e investiu contra seus agressores.

Em um fato inédito na história da matança de insetos, e graças ao fato de ser uma régua de sessenta centímetros, ao contar os cadáveres, João viu que eram sete. Mais que rapidamente, João alcançou sua cópia do Guiness Book, e conferiu se tratar de seis o maior número de bichinhos de luz mortos de uma vez só com uma régua por uma única pessoa. Praguejando a falta de um auditor do Guiness por perto, João decidiu que não ia deixar esta proeza passar em branco. Como tinha um monte de pano sobrando, João fez uma camiseta especial, onde se dizia "sete com uma paulada só".

No dia seguinte, João saiu pelas ruas feliz da vida, ostentando sua nova camiseta. Muita gente pensou se tratar do samba-enredo de alguma escola de samba do ano seguinte, afinal, "sete com uma paulada só" não é uma frase que diz muito, mas gastar tinta escrevendo "sete bichinhos de luz com um único golpe de régua" seria um prejuízo maior que o já combalido João poderia suportar.

Para complementar sua maré de sorte, João recebeu um telefonema para fazer um trabalho em uma cidade próxima. Enquanto se dirigia para lá, porém, o ônibus teve um problema, e João teve de pernoitar em um vilarejo próximo. Ao acordar no dia seguinte, decidiu vestir sua incrível camiseta, para fazer sua proeza conhecida em outras paragens.

Acontece que a pequenina cidade onde João pernoitara estava sendo achacada por um gigante. Que não era o mesmo gigante da história anterior, já que este morrera ao cair do pé de feijão. Também não era um homônimo, mas isto não é importante para a história. De qualquer forma, o Prefeito já havia telefonado para um matador de gigantes e, ao ver João com a camiseta onde dizia "sete com uma paulada só", imaginou tratar-se do próprio, e que João era capaz de matar sete gigantes com uma paulada só. Não me perguntem que torto raciocínio teria levado o Prefeito a esta surreal conclusão, mas logo o boato se espalhou, e toda a cidade via em João seu salvador.

Alheio ao que acontecia, João ficou muito contente de ser recebido tão calorosamente, crente que a notícia de seu feito como matador de insetos já havia se espalhado. Somente ao receber um porrete e ser colocado em frente a uma caverna é que ele se deu conta de que não eram exatamente bichinhos de luz que a população queria que ele exterminasse. De dentro da caverna veio uma gargalhada em stereo surround, seguida de um gigante gigantesco, cuja clava fazia o porrete de João parecer um palito de fósforo.

Já que não estava recebendo nada para virar comida de gigante, João largou o porrete e saiu correndo. Divertido pelo homenzinho indolente, o gigante pôs-se a correr atrás dele. Incapaz de fugir em velocidade adequada das passadas de seu algoz, e sentindo que este já preparava a clava para golpeá-lo, João teve uma idéia inusitada: ao invés de correr para longe, correu na direção do gigante, começando a escalá-lo. O gigante, em ato reflexo, começou a golpear o próprio corpo. Isto demonstrou não ser uma idéia das mais brilhantes quando João chegou à sua cabeça, e o gigante acabou por nocautear a si próprio.

Com o oponente fora de combate, João chamou a população da cidade, que levou treze horas o amarrando. Incapaz de achar uma cela condizente com o tamanho do criminoso, o delegado ordenou que se colocassem grades na caverna, e assim o anterior esconderijo do gigante passou a ser sua prisão.

Quanto a João, o ex-alfaiate se tornou uma celebridade instantânea na cidade, e foi nomeado pelo Prefeito seu caçador de gigantes oficial. Hoje ele vive com um confortável salário pago pelo erário público e, enquanto joga Candy Crush, torce para que aquele seja o único gigante da face da Terra.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 7 de junho de 2025

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Contos de Fadas BLOGuil (VI)

Mais um início de mês, mas um dos Contos de Fadas BLOGuil, hoje com o último que foi publicado no Crônicas de Categoria.





A Bela e a Fera

Era uma vez uma jovem muito, mas muito, mas muito muito muito muito bonita. Tão bonita que, quando nasceu, ela era um bebê muito, mas muito, mas muito muito muito muito bonito. De tão bonita que a nenenzinha era, seu pai ficou com medo de que ela atraísse maus espíritos, e decidiu colocar seu nome de Feia. Sua mãe, porém, não concordou, já que Feia não era um nome que constasse em seu Manual dos Cinco Milhões de Nomes de Bebê. Assim, eles decidiram chamá-la de Gislaine, mas todos a conheciam como Bela.

Bela foi uma criança tão normal quanto a criança mais bonita da cidade poderia ser. Em sua adolescência, era a garota mais bonita de todos os lugares que ia, paquerada por todos os rapazes, invejada por todas as moças. Ao se formar, Bela jamais conseguiu um emprego, pois seus patrões ou ficavam com segundas intenções, ou tinham pena de colocar uma criatura tão bonita e delicada para pegar no batente. Assim, Bela cresceu muito bela, mas extremamente infeliz.

Tudo mudou num belo dia, quando Bela estava indo ao mercado e passou por um grupo de homens hétero-cis de auto estima inflada e aparência duvidosa, que imediatamente começou a mexer com ela. Como já estava acostumada, Bela simplesmente não dava bola, e continuava seu trajeto como se nada houvesse acontecido. Um dos machos, porém, já vinha secando Bela há algum tempo e, neste dia, após encher a cara de goró para criar coragem, decidiu passar uma cantada nela. Para não perder tempo, também decidiu passar a mão em sua bunda.

Nossa heroína, evidentemente, não ficou nada satisfeita com aquele comportamento machista e sexista, e enfiou sua bolsa na fuça do exótico pretendente. Enfurecido e com um dente quebrado pelo celular da doce moça, o trabalhador braçal decidiu partir para as vias de fato, chamado seus companheiros para segurar a rapariga enquanto ele a beijava à força. Ao perceber o destino pior que a morte que restava sobre ela, Bela correu com todas as suas forças, sendo seguida pela horda de criaturas enlouquecidas de desejo por seu corpo tenro.

Sem escolha, Bela entrou na primeira casa com a porta aberta que encontrou, uma espécie de castelo da época colonial, provavelmente agora transformado em boate, templo evangélico ou coisa que o valha. Sua esperança era pedir ajuda às caridosas almas que ali habitavam. Seus perseguidores começaram a rir, imaginando que a tinham encurralado, e a seguiram. Perdida dentro da enorme casa, Bela começou a rezar para todos os Santos que conhecia, procurando por um telefone com o qual pudesse chamar a polícia. Foi então que ela se deparou com o dono da casa: diante de Bela, surgiu uma enorme fera, peluda, corcunda, chifruda, de caninos protuberantes, babando e cheirando a enxofre. Para espanto da moça, a Fera se pôs entre ela e seus algozes, rugindo e assustando-os para todo o sempre. Todos fugiram, berrando algo sobre um pacto com o Demo, e jurando jamais importuná-la novamente enquanto vivessem.

No canto da sala, após mijar-se toda, Bela começava a racionalizar sobre o que vira. Foi quando a Fera dirigiu-se a ela e, com uma voz doce e um olhar suave, perguntou se estava tudo bem, e se ela aceitava um chá.

Bela acordou algumas horas depois, e imediatamente começou a rir histericamente do estranho sonho que tivera. Após alguns momentos, porém, ela percebeu que não estava em seu quarto, mas ainda na casa da Fera, cercada por lençóis de cetim e travesseiros de penas de ganso. A Fera estava sentada em frente a uma lareira no canto oposto do quarto, lendo a versão original em russo de Guerra e Paz, e abriu um largo sorriso quando viu que sua hóspede havia acordado. Ele pediu desculpas por tê-la feito desmaiar, e declarou-se feliz, pois jamais recebia visitas. A Fera convidou Bela a comer com ele, pois todos os dias ele fazia suas refeições sozinho, e isso era muito chato. Ele também havia separado um lindo vestido bordado com fios de ouro, que desejava que sua hóspede usasse durante o banquete. Confusa, Bela concordou, e a Fera se retirou para que ela se vestisse.

Imaginando que tudo aquilo poderia ser uma pegadinha do João Kléber, Bela começou a procurar pela câmera oculta, quando encontrou um estranho retrato. Era um jovem muito bonito, vestido com as mesmas roupas da Fera, posando naquele mesmo quarto. A Fera retornou para buscar seus óculos, que havia esquecido junto à lareira, quando viu Bela observando seu quadro. Perturbada, ela olhou para o os olhos do monstro, e neles viu muita ternura, mas também muita tristeza. A Fera então lhe contou sua triste história.

Durante muito tempo, ele fora um jovem muito rico e muito bonito, mas também muito fútil, vivendo uma vida de luxo, sexo, gastança e prazeres desmedidos, até que se meteu com a pessoa errada: uma feiticeira. Imaginando que aquela seria apenas mais uma aventura adolescente, a então-ainda-não-Fera deu uma ficada com a feiticeira, mas se esqueceu de ligar no dia seguinte. O troco veio na mesma moeda: ela o amaldiçoou, tirando dele tudo o que mais prezava. Sua beleza, riqueza, vida de luxúria, tudo havia acabado. Somente encontrando um amor puro e verdadeiro ele conseguiria se livrar da maldição e voltar a ser belo novamente.

Bela se compadeceu da história do triste monstro, mas não sabia como ajudá-lo. Foi quando a os machos de orgulho ferido que a haviam perseguido retornaram, agora em maior número, carregando tochas, pedras e forcados. Eles começaram a apedrejar a casa da Fera, buscando atear fogo e acabar de uma vez por todas com a aberração da natureza que ali residia. Bela ficou presa entre as chamas, e a Fera partiu para cima de seus agressores, mesmo tomando pedradas e espetadas, até espantá-los todos. Então, ele enfrentou o incêndio, chamuscando seu pelo, para salvar sua nova amiga. Exausto, após retirar Bela da casa a Fera desmaiou, pedindo perdão por tê-la feito passar por esta encrenca. Com lágrimas nos olhos, Bela deu um beijo na Fera, buscando livrá-lo da terrível maldição, já que agora ele havia demonstrado ter um coração puro e nobre.

E nada aconteceu.

De longe, a feiticeira vingativa observava, e não conseguiu se furtar uma gargalhada ao ver a patética cena. Sem compreender o que se passava, Bela demandou uma explicação. Na verdade, a Fera ainda não merecia se livrar de seu castigo, pois a condição imposta era que ele encontrasse um amor puro e verdadeiro, alguém com quem se importasse sem levar em conta seus valores materiais de outrora. Sendo Bela a mulher mais linda da face da Terra, obviamente ele havia se aproximado dela por sua aparência, e isso não qualifica um amor puro e verdadeiro.

Irritada, Bela se dirigiu à feiticeira, dizendo que ela é que não entendia nada de amor. Provando que era tão bela por dentro quanto por fora, Bela tomou uma atitude impensável: pediu para que a feiticeira a transformasse também em monstro, pois assim ela e seu amado poderiam compartilhar suas dores e temores, medos e fraquezas, tornando sua vida una por toda a eternidade, sem a maldição de possuir uma bela aparência. Comovida por tal declaração de amor, a feiticeira decidiu rever seus conceitos, e anulou a maldição da Fera. Tornado novamente homem, e profundamente mudado pela experiência que passara, a ex-Fera prometeu jamais deixar influenciar-se pelas coisas materiais novamente, pedindo Bela em casamento. A moça aceitou, mas com uma condição: que ele tomasse um banho o mais rápido possível, para tirar aquele cheiro horroroso de enxofre.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 3 de maio de 2025

Escrito por em 3.5.25 com 0 comentários

Contos de Fadas BLOGuil (V)

E hoje veremos mais um dos Contos de Fadas BLOGuil, dessa vez com um que eu revisei para o Crônicas de Categoria mas acabou não sendo publicado lá.





A Bela Adormecida

Era uma vez, há muito, muito tempo, um reino mágico, onde tudo era alegria e felicidade. Bem, nem tudo. Havia a Floresta do Terror Eterno, onde morava a Bruxa Malvada, e ninguém se atrevia a entrar. Fora isso, era um reino de paz e prosperidade, com um Rei adorado por seu povo.

Um dia, o Rei e a Rainha tiveram uma linda filha, que nasceu ao raiar da manhã. Eles decidiram chamá-la Aurora, e fizeram um imenso banquete para comemorar seu nascimento, para o qual todo o povo do reino estava convidado. Arautos reais iam de casa em casa, entregando um pequeno convite que solicitava sua presença em tão suntuosa comemoração. Traje esporte fino.

No dia do banquete, porém, ocorreu um acontecimento inesperado. A Bruxa Malvada, furiosa por não ter sido convidada, irrompeu castelo adentro, praguejando e transformando quem cruzasse seu caminho em sapos. Chegando ao Salão Central, onde estavam o Rei, a Rainha e a Princesa, ela expressou seu descontentamento por ter sido excluída, já que, como todos os outros, também era uma súdita daquele monarca.

De nada adiantou o Rei explicar que os três arautos que enviara para a Floresta do Terror Eterno desapareceram sem deixar vestígios. A Bruxa Malvada estava irredutível. Para se vingar da falta de consideração Real, a Bruxa decidiu rogar uma praga sobre a Princesa: um dia, ela espetaria o dedo em um fuso, e morreria.

Após explicarem para o Rei o que era um fuso, ele ficou indignado. Afinal de contas, era uma medida muito drástica por um simples esquecimento e, afinal de contas, a Bruxa Malvada estava ali comendo e bebendo como se convidada fosse. Sem ter a quem mais recorrer, ele ingressou na Justiça Real, e conseguiu uma liminar suspendendo a morte da Princesa até que o caso fosse julgado. No dia da audiência, a Bruxa Malvada apresentou uma nova proposta: a Princesa Aurora não morreria ao espetar seu dedo em um fuso, mas sim dormiria para sempre. Achando que a Bruxa estava a fim de engambelá-lo, já que morrer e dormir para sempre é praticamente a mesma coisa, o Rei não aceitou. Após uma breve conciliação, ficou decidido que ela espetaria o dedo no fuso e dormiria, mas apenas até um Príncipe apaixonado beijá-la nos lábios, o que quebraria o encanto.

Querendo dar uma volta na Bruxa, já na saída da audiência o Rei começou a pôr seu plano em prática: ordenou a destruição imediata de todos os fusos do reino, e proibiu a importação e fabricação de fusos em todo o Território Nacional. Simultaneamente, como Plano B, Aurora foi criada para ser a Princesa mais bela e prendada da História, para que não faltassem pretendentes apaixonados. Infelizmente, esta parte não saiu tão bem quanto se previa: na adolescência, a Princesa teve um sério problema de acne, desenvolveu oito graus de miopia, e as dietas às quais ela fora submetida durante toda a sua vida para que fosse sempre esbelta acabaram por conferi-la o apelido de Princesa Caniço. Nenhum Príncipe jamais se interessou por ela, mas o Rei estava tranqüilo, pois não havia um único fuso em um raio de mil quilômetros.

Mas a Bruxa Malvada não iria desistir tão fácil. Prevendo que o Rei poderia fazer algo para impedir sua praga de pegar, ela montou um esquema de contrabando de fusos, que eram espalhados pelo Reino em locais estratégicos.

No dia de seu aniversário de dezoito anos, a Princesa estava passeando feliz pelo bosque. Graças a um tratamento com cremes importados, sua pele já estava bem melhor. Ela também havia passado a usar lentes de contato, e estava começando a ganhar peso novamente. Era só uma questão de tempo até aparecer um belo Príncipe que iria pedi-la em casamento. Afinal, ela era a única Princesa encalhada do Reinado, e algum outro Reino devia ter um filho homem precisando se casar.

Durante seu passeio, Aurora encontrou uma construção abandonada. Lá dentro, havia um objeto que ela nunca havia visto em sua vida: uma roda de madeira enorme, com uma coisa pontuda na frente. Querendo vê-lo com as mãos, como é típico dos curiosos, Aurora acabou por espetar um dedo na coisa pontuda. Para desgraça de Vossa Alteza, era um fuso. Aurora caiu desmaiada, mergulhada em sono eterno. A Guarda Real encontrou seu corpo inerte após três dias de buscas, e o levou para o palácio. Uma procura desesperada por um Príncipe apaixonado teve início, mas não havia nenhum disponível. Só restava ao Rei e à Rainha aguardar, enquanto a Bruxa Malvada se desfazia em gargalhadas.

Mil anos se passaram, até que, durante uma escavação arqueológica, uma equipe descobriu o corpo da Princesa. Pensando tratar-se da mais bem conservada múmia jamais encontrada, eles a levaram para o acampamento. Após uma imensa festa, para comemorar a descoberta e imaginar os milhões de dólares que ela valeria, o chefe da missão voltou meio bêbado para a tenda onde a Princesa havia sido depositada e, sem conseguir conter sua felicidade, beijou-lhe os lábios.

Por uma dessas coincidências que só ocorrem nos contos de fadas, o chefe da missão era justamente um Príncipe, e estava apaixonado por sua descoberta arqueológica - no caso, a Princesa Aurora. Isso fez com que a Princesa despertasse de seu longo sono, e com que vários trabalhadores fugissem sob gritos de ritual demoníaco.

Após ser situada sobre o que estava acontecendo, Aurora contou sua triste história para o Príncipe. Os dois se apaixonaram perdidamente, se casaram e foram morar nos Estados Unidos, onde Aurora se tornou uma celebridade instantânea, e dá entrevistas em vários programas de televisão. Sua história é contestada por muitos céticos, que acham que ela e o Príncipe inventaram isso só para aparecer. Aurora nem liga: outrora esquálida, está se fartando após ter descoberto os cheeseburgers e milk shakes da América.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 5 de abril de 2025

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Contos de Fadas BLOGuil (IV)

Hoje teremos mais um dos Contos de Fadas BLOGuil. Quando eu escrevi esse para o BLOGuil, decidi colocar no título uma piada em referência ao fato de que, em muitos dos contos de fadas em português, há um menino chamado João. Quando eu o republiquei no Crônicas de Categoria, entretanto, causei revolta em algumas pessoas que acharam que seria uma história em três partes, e não três histórias diferentes com protagonistas homônimos. Portanto, fiquem avisados: essa história tem começo, meio e fim e, em breve, teremos uma "parte 2" que não tem absolutamente nada a ver com ela além de uma pessoa chamada João.





Trilogia do João - Episódio I: João e o Pé de Feijão

Era uma vez um menino muito pobre, chamado João. João morava em um barraco de papelão na periferia de Pirapopoquara, no sertão do Piauí, com sua mãe e seus cinco irmãos, Kledwasley, Walcleson, Gleituwson, Klebsmardley e Jadslewya Regina. Todos os dias, João agradecia por ter sido o primeiro filho e recebido o nome de seu avô, mas isto não é importante para a história. O que importa é que o pai de João deixara a família há muitos anos para tentar a sorte em São Paulo, mas sumira, jamais dando qualquer notícia ou mandando qualquer dinheiro. Assim, a família de João sobreviveu durante anos nesta pobreza miserável, até que um dia não havia mais jeito: não tinham o que comer.

No quintal, a mãe de João mantinha uma vaquinha, que agora já estava pele e osso, sempre na esperança de que o pai retornasse e eles pudessem fazer um churrasco para comemorar. Se vendo em uma encruzilhada, e já tendo se afeiçoado à vaquinha, a quem toda a família chamava de Mumuca, a mãe de João não teve coragem de matá-la, e pediu que o garoto a levasse até a cidade mais próxima e tentasse convencer seu Nonô, o dono do armazém, a trocá-la por alguns mantimentos.

Assim, João saiu em sua odisseia para buscar comida para a família. Mas, no meio do caminho, ele encontrou um homem misterioso, que lhe ofereceu trocar sua vaquinha por um punhado de feijões mágicos. Tais feijões, dizia ele, se plantados, se transformariam em um imenso feijoeiro, que daria feijão para sempre, e sua família nunca mais passaria fome. Com lágrimas nos olhos diante de tamanha generosidade do desconhecido, João aceitou a troca. Ao chegar em casa, porém, recebeu um cachação de sua mãe, que pôs-se a chorar, acreditando que seu filho burro havia selado o destino de toda a família.

João, entretanto, não se fez de rogado e plantou os feijões. Como não havia água em um raio de cem quilômetros, eles ficaram ali, naquele chão seco, esturricando, e o pobre menino viu suas esperanças se esvaírem pouco a pouco.

Mas nem tudo estava perdido: o dia das eleições se aproximava, e o Prefeito contratou um caminhão-pipa para fazer propaganda e angariar votos para sua reeleição. Assim que o caminhão passou espalhando água para tudo o que é lado, os feijões magicamente brotaram, dando origem ao pé de feijão mais colossal que já havia surgido em qualquer região do Brasil. Infelizmente, esquecendo-se de onde plantara os vegetais, João restava parado exatamente sobre o local da brota quando esta teve início. Enquanto o pessoal do Guinness era chamado às pressas, e o Prefeito chamava a imprensa para documentar o incrível feito de sua administração, que imediatamente batizou de Feijão Para Todos, o pobre menino era erguido em direção à troposfera, com sua bermuda agarrada no topo do feijoeiro.

Ao chegar aos céus, porém, João descobriu que podia pisar nas nuvens, ao contrário do que Tia Siarinha, sua professora da primeira série, havia lhe ensinado. Não somente isso, ele também viu um imenso castelo, para o qual se dirigiu imediatamente. Após descobrir que de fato o castelo era muito mais imenso do que ele pensava, João se esgueirou por debaixo da porta, e, seguindo o cheiro de comida, foi parar na sala de jantar.

Havia comida suficiente sobre a mesa para alimentar um batalhão. Não somente em quantidade, mas também em tamanho, pois cada ervilha era maior que a cabeça do pobre menino. Maravilhado, João pôs-se a comer, tentando compensar todos os anos que passara na penúria. Enquanto comia, João imaginava uma forma de descer com aquela comida toda para poder alimentar seus irmãos, e nem viu quando o dono do castelo se aproximou.

O proprietário era um gigante gigantesco, muito maior que qualquer ser vivo que João já tivesse visto, à exceção do pé de feijão. Balbuciando algo como "fin-fó-fum", o mastodôntico humanoide pegou um mata-moscas, e estava prestes a acabar com a vida de João, quando este percebeu o que acontecia e fugiu por entre os quitutes. O gigante passou a persegui-lo freneticamente, enquanto João descia da mesa e buscava se esconder entre os imensos pelos do carpete. A diferença desproporcional de altura favorecia o gigante, que podia alcançar o minúsculo menino sem qualquer esforço. Mas João era mais inteligente: enquanto o gigante buscava o aspirador de pó, para sugar de uma vez por todas aquele inseto indolente, ele se agarrou à barra de sua calça. Enquanto o gigante aspirava o chão em busca do menino, este escalava suas roupas, sem que o vilão se desse conta. Bastava esperar o anoitecer para que João pudesse por seu plano em prática e vencer seu oponente.

Alcançando os ouvidos do gigante, João começou a falar frases assustadoras, o que despertou e desesperou o gigante, que passou a crer que sua casa era mal-assombrada. Fugindo sem rumo, o gigante acabou por tropeçar no pé de feijão, indo em direção a uma queda de milhares de quilômetros que terminaria por encerrar sua vida. João, ao ver que o gigante tropeçara, pulou e se agarrou a uma das folhas do pé de feijão, descendo em segurança, usando a enorme folha qual um pára-quedas.

Ao chegar ao solo, João descobriu que, no local onde o gigante caíra, existia um lençol freático. Após trinta guindastes retirarem o corpo do gigante, a cratera criada pela queda se enchera de água, criando um belo açude para a cidade. A queda também criou um tsunami no sudeste asiático devido ao deslocamento de terra, mas isso não é importante para a história.

Tendo agora, dentro de sua propriedade, um açude e um pé de feijão gigante, João fez um acordo com o Prefeito para transformar suas terras em um parque temático. Com o dinheiro proveniente de turistas do mundo inteiro, João pôde buscar seu pai no sul e dar uma vida boa à sua família. E o prefeito se reelegeu, embora tenha tido o contratempo de ter que arrumar um local apropriado para sepultar o gigante.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 8 de março de 2025

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Contos de Fadas BLOGuil (III)

Hoje teremos o terceiro dos Contos de Fadas BLOGuil, trazendo o primeiro que eu escrevi para o BLOGuil. E tudo começou com uma brincadeira enquanto a equipe de colunistas do BLOGuil jogava uma partida do jogo de tabuleiro Master, durante a qual foi sorteada a pergunta "Quem são Medicullus, Severus, Somniculosus, Verecundus, Beatus, Sternuens e Fatuus?", sendo a resposta "os anões da Branca de Neve", já que esses são seus nomes em latim. Após não lembro mais quem responder, outro alguém comentou que achou que se tratavam dos Sete Pecados Capitais, e eu falei de palhaçada "Branca de Neve e os Sete Anões Capitais". Gostei tanto desse título que no mesmo dia, ao voltar pra casa, escrevi o conto.





Branca de Neve e os Sete Anões Capitais

Era uma vez uma madrasta muito malvada, que não se conformava pelo título de Mulher Mais Bela do Mundo Inteiro Edição 2025 pertencer à sua enteada Branca de Neve. Revoltada, a cruel madrasta contratou um caçador sanguinário para matar Branca de Neve e desovar o presunto em local ermo e não sabido. O caçador sanguinário, porém, comovido com a beleza de Branca de Neve, compadeceu-se de sua alma e decidiu poupar sua vida, entregando o coração de um viado (sic) para que a madrasta imaginasse que a tarefa havia sido cumprida e ele pudesse receber os US$ 100,000.00 previamente acordados.

Branca de Neve, porém, estando oficialmente morta, não poderia mais ter crédito na praça, e sua única alternativa seria fugir para o meio do mato e viver como hippie. Em suas andanças, a bela moçoila encontrou uma pequena casa, cuja porta mal dava para que ela entrasse, e que parecia totalmente deserta e desprovida de residentes permanentes. Curiosa sobre quem poderia habitar tão diminuta moradia, a belíssima dama invadiu a propriedade, almejando tomá-la em usucapião, já que o IPTU deveria ser bem baratinho. Os pequeninos cômodos, porém, não satisfaziam às suas necessidades, já que tudo dentro da casa era planejado para habitantes de tamanho P.

Mal sabia Branca de Neve, todavia, que a casa tinha dono. Ou melhor, donos. Tratava-se da residência de verão dos Sete Anões Capitais: Preguiçoso, Guloso, Furioso, Vaidoso, Orgulhoso, Invejoso e Libidinoso. No momento, os nanicos heróis estavam em sua mina de diamantes, prontos para enviar mais uma remessa para a Suíça, disfarçada de tonéis de cachaça tipo "A" exportação, para pagar menos impostos e tarifas bancárias.

Qual não foi a surpresa dos pequeninos humanoides quando retornaram à sua casa e viram aquela mulher enorme comendo de sua comida, bebendo de sua água e dormindo em suas sete camas ao mesmo tempo. Furioso sugeriu esquartejar a bela dama. Guloso aprovou a ideia, desde que eles pudessem transformá-la em bifes. Invejoso ficou revoltado por não ter tido esta ideia antes. Orgulhoso se recusou a chamar qualquer ajuda, dizendo que poderia resolver a situação sozinho. Vaidoso estava muito ocupado fazendo escova progressiva em sua barba para tomar qualquer decisão. Preguiçoso não se manifestou, e a ideia de Libidinoso não pode ser revelada neste horário.

Enquanto os sete confabulavam sobre o melhor curso de ação, Branca de Neve acordou e, levantando-se assustada sem se lembrar de onde estava, deu com a cabeça no teto, caindo desmaiada em seguida. Somente o beijo de um belo Príncipe poderia despertá-la de seu sono eterno.

Por um golpe de sorte, um belo Príncipe estava passando por ali bem no momento, a caminho de mais uma caça à raposa, antes que esta fosse proibida pela Câmara dos Lordes. Os Anões correram, agarraram o Príncipe, e prometeram alguns diamantes de sua coleção particular caso o ele beijasse Branca de Neve e a levasse dali para sempre, para que eles pudessem continuar vivendo suas vidas normalmente, antes que alguém descobrisse o cassino clandestino que havia sob a casa. Ao ver a estonteante beleza da inconsciente jovem, o Príncipe declarou que a beijaria até de graça, mas, ao ver a estonteante beleza dos diamantes selecionados como recompensa, mudou de ideia mais uma vez, o que deu origem a uma imensa discussão sobre qual palavra deveria ser cumprida: a dos Anões que prometeram pagamento, ou a do Príncipe que havia declarado sua intenção em beijar gratuitamente.

Quatro horas depois, a discussão foi finalmente encerrada quando o Príncipe ameaçou chamar seus pretórios para prender os Anões como Inimigos da Coroa. O Príncipe beijou Branca de Neve, que acordou e viu naquela situação uma ótima oportunidade de voltar para a cidade sem precisar se preocupar com seu Atestado de Óbito, a raiva de sua madrasta ou o Imposto de Renda pelo resto de sua vida. Imediatamente, ela providenciou um bebê para segurar o Príncipe e garantir seu Golpe do Baú.

Assim, Branca de Neve se tornou Princesa, os Anões continuaram com suas atividades ilegais, a madrasta teve de se conformar com o vice, e o caçador sanguinário perdeu sua licença na Guilda de Caçadores Sanguinários do Reino, por não ter cumprido um contrato e ainda ter tentado engambelar seu empregador.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 1 de fevereiro de 2025

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Contos de Fadas BLOGuil (II)

Hoje teremos mais um dos já famosos Contos de Fadas BLOGuil, dessa vez com o meu preferido, o primeiro que eu revisei para postar no Crônicas de Categoria. Espero que vocês gostem dele tanto quanto eu.





Sinderélia

Era uma vez Sinderélia da Silva, uma menina muito bonita e simpática que morava no Morro do Besourão. Sua mãe havia morrido quando ela era muito pequena, mas seu pai, graças a uma van que comprou de segunda mão, sempre havia conseguido dar a ela uma vida boa e confortável, com muito carinho e amor. Tudo o que ela mais gostava na vida era dançar no baile funk, tirar selfie com as amigas e postar no Instagram, onde, graças à sua beleza, já havia conquistado 3k seguidores. Um dia, porém, seu pai resolveu se casar de novo, e a vida de Sinderélia começou a mudar.

A madrasta malvada de Sinderélia obrigava a pobre adolescente a fazer todo o trabalho doméstico, enquanto ela passava o dia inteiro no salão, fazendo as unhas e o cabelo. Sinderélia era obrigada a lavar, passar, cozinhar, limpar o banheiro, faxinar a casa, tirar o lixo, consertar o liquidificador que vivia dando problema e ainda cuidar de Réqui, um vira-latas manco que sua madrasta havia trazido de sua antiga casa. Para piorar, Sinderélia ganhou duas irmãs feias e invejosas de sua graça e beleza, que usaram todas as suas calças da Korova e sandálias Anabela, tornando-as imprestáveis. Seu pai, ocupado pilotando a van o dia inteiro, não sabia o que se passava, e ainda era enganado pela cruel madrasta, que sempre lhe dizia que estava tudo bem com sua filha quando chegava à noite em casa. Para que Sinderélia não desse com a língua nos dentes e revelasse seus maus tratos, a madrasta a chantageava, ameaçando trocar a senha do wifi caso o pai descobrisse alguma coisa. A pobre Sinderélia sofria calada, e nem mesmo dormir em sua confortável cama podia, já que as irmãs feias haviam se apoderado dela, obrigando nossa heroína a dormir sobre um monte de tijolos que sobraram do último puxadinho que seu pai construíra.

Um dia, aconteceria um mega baile funk, com a presença do MC Príncipe, o mais famoso e cobiçado da comunidade. MC Príncipe havia declarado em seu canal do YouTube que sempre sonhara em se casar com uma das meninas da comunidade em que nasceu, e que este baile poderia ser a oportunidade perfeita para que ele conhecesse sua futura noiva. Evidentemente, as irmãs feias de Sinderélia se assanharam, e pediram para que a mãe as levasse ao baile. Sinderélia também queria ir, mas, como mesmo toda arrebentada da labuta desumana diária à qual era submetida ela ainda era muito mais bonita que as irmãs, a madrasta ficou com medo da concorrência, e a amarrou ao pé da cama. O pai de Sinderélia não estaria em casa para salvá-la, pois havia se comprometido a levar um grupo de turistas até Caxias.

Assim, a pobre Sinderélia chorou e chorou, e seus lamentos foram ouvidos por sua fada-madrinha: Kaylane, esposa de número três de Andrezinho Fortinaite, o traficante local. Amiga de infância de Sinderélia, Kaylane ouviu seus lamentos e decidiu ajudá-la. Chamou imediatamente sua manicure, cabeleireira e dermatologista particulares para dar um trato na menina, além de emprestar para ela várias roupas de grife, tudo do bom e do melhor ainda, para que Sinderélia fosse a tchutchuca mais glamourosa do baile. Kaylane ainda pediu para que Gorilão, seu motorista particular, a levasse ao baile em seu Mercedes cor de abóbora. Tudo isto tinha apenas uma ressalva: Sinderélia deveria estar de volta até meia-noite, pois, neste horário, Fortinaite estaria retornando de sua invasão ao morro vizinho, e, se soubesse que ela ajudou alguém sem sua permissão, iria tirar o couro dela.

Assim que Sinderélia chegou ao baile, todos os homens colocaram os olhos nela, inclusive o MC Príncipe, que ordenou a seus seguranças que a levassem imediatamente ao palco. Sinderélia estava tão deslumbrante que suas irmãs feias nem a reconheceram. Ela dançou com Príncipe a noite toda, enquanto ele cantava seus maiores sucessos. À meia-noite, MC Príncipe já estava pronto para anunciar que finalmente havia encontrado sua Princesa, mas Sinderélia teve de fugir pela porta dos fundos. Na pressa, ela deixou para trás um dos pés da exclusiva Melissinha Crystal que Kaylane lhe emprestara, que foi recolhida e guardada com muito carinho pelo funkeiro.

Sinderélia voltou à sua vida de escravidão, enquanto o MC Príncipe procurava casa por casa pela dona daquele sapatinho tão especial. Ao chegar na casa de Sinderélia, as irmãs feias imediatamente disseram que era delas, mas não colou, pois a Melissinha era 35, e elas calçavam 40. Príncipe então viu Sinderélia vestida com trapos, toda suja e arranhada, esfregando o chão da cozinha. Algo em seu rosto o fez lembrar de sua musa do baile anterior, e ele decidiu dar a Melissinha para que ela experimentasse.

Assim que Sinderélia calçou a sandalhinha, como que por um passe de mágica, Andrezinho Fortinaite meteu o pé na porta, furioso atrás da safada que tinha roubado a exclusivíssima Melissinha Crystal de sua esposa Kaylane. Mais do que depressa, Príncipe jogou a Melissinha nas mãos da madrasta malvada, que foi levada para destino incerto e não sabido pelos capangas do traficante.

Sob as bênçãos da comunidade, MC Príncipe se casou com sua Sinderélia, e todos viveram felizes para sempre. Menos a madrasta, talvez.
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sábado, 4 de janeiro de 2025

Escrito por em 4.1.25 com 0 comentários

Contos de Fadas BLOGuil (I)

Talvez vocês não reparassem se eu não dissesse nada, mas já faz algum tempo que eu venho tendo dificuldade para escrever para o átomo, tanto em relação a encontrar novos assuntos quanto em relação a gerenciar meu tempo livre para escrever os posts de forma que sempre tenha uns quatro ou cinco já escritos quando coloco um novo no ar. Foi por causa disso, aliás, que eu decidi, nos cinco últimos meses, postar aqui mais alguns dos contos que escrevi para o Crônicas de Categoria. Além disso, desde que eu revisei e expandi os posts do Almanaque BLOGuil para postar aqui no átomo que eu tenho vontade de fazer o mesmo com os Contos de Fadas BLOGuil, versões que eu escrevi de famosos contos de fadas, que eu sempre achei bem criativas e divertidas, e não gostaria que sumissem quando o BLOGuil, o primeiro blog que eu tive, entre 2002 e 2006, saiu do ar, tanto que revisei e alterei alguns deles para postar no Crônicas de Categoria, mas a vontade de postá-los aqui permaneceu.

Assim, peço desculpas se você faz parte do meu contingente de leitores que não gosta quando eu republico contos, mas, para atender a esses dois interesses que citei no parágrafo anterior - me ajudar a encontrar assunto e tempo para mais posts, e repostar os Contos de Fadas BLOGuil aqui no átomo - nesse ano de 2025 teremos uma nova série mensal, que trará 12 Contos de Fadas BLOGuil. Os que foram republicados no Crônicas de Categoria estarão aqui com essa nova versão do texto; os demais eu vou revisar e alterar - porque eu era jovem e inconsequente na época em que os escrevi, e não gosto de alguns detalhes de suas versões originais, além de que uma ou outra coisa era muito específica da época e ficou datada. Para evitar confusão com as histórias originais, todos eles terão como título "Contos de Fadas BLOGuil (número em romanos)", mas sem tabelinha de navegação no final ou uma categoria própria, ficando todos na categoria Contos. E eles não serão apresentados na mesma ordem em que os postei no BLOGuil nem na mesma ordem do Crônicas de Categoria, e sim numa nova ordem que criei agora seguindo critérios que só fazem sentido na minha cabeça. Começando hoje pelo único que já havia sido, de certa forma, repostado aqui no átomo, no post sobre o BLOGuil.





A Pequena Sereia

Era uma vez uma sereiazinha chamada Ariel. Filha de Netuno, Rei das Profundezas, Ariel levava uma vida de princesa, mas não estava feliz. Além de ter de aturar suas coleguinhas de colégio zoando que ela era a Sereia que Lava Mais Branco, Ariel não via graça alguma no fundo do mar, muito escuro e cheio de peixes. Seu sonho era conhecer as praias paradisíacas de Cancún, tomar água de coco e jogar vôlei de praia. Mas um pequeno obstáculo se colocava entre a sereiazinha e seu sonho: Ariel não tinha pernas, mas um grande rabo de baleia, tal qual na música de Gilberto Gil.

Próximo ao Palácio Real, porém, morava um ser grotesco. Seu nome era Úrsula, e ela detestava toda a sociedade sereiense. Graças a uma pulada de cerca de sua mãe, Úrsula não nascera com um rabo de peixe, mas sim com um rabo de urso, daí seu nome. Como ursos comem peixes, isto fez com que Úrsula não ficasse bem-vista na cidade, que a expulsou para uma escura e fria caverna. Sem ter mais o que fazer, Úrsula começou a estudar magia negra, e um dia encontrou um feitiço capaz de transformar rabo de sereia em pernas humanas. Era o que ela precisava para ludibriar Ariel. Atraindo-a à sua caverna, ela fez um pacto com a ingênua sereiazinha adolescente: daria a ela um par de pernas, capazes de andar na praia e jogar vôlei, como ela sempre sonhara. Em troca, tudo o que Úrsula queria era sua voz melodiosa de sereia, pois seu sonho sempre fora se tornar cover de Madonna e fazer carreira internacional. Achando que uma voz não iria lhe servir de nada na superfície mesmo, Ariel aceitou.

Assim, privada de sua voz, mas com um par de pernas novinho em folha, Ariel ascendeu à superfície e nadou até a praia. Lá, ela conheceu um lindo príncipe, mas jamais pôde dizer a ele seu nome, pois estava muda e não sabia escrever. Ainda assim, os dois tiveram um tórrido romance e viveram apaixonados, até o dia em que o príncipe ouviu a voz de Ariel. Ariel a princípio estranhou, pois não havia dito nada, mas, como era a primeira da classe na Escola de Sereias, rapidamente percebeu do que se tratava: Úrsula estava usando sua bela voz para atrair seu príncipe para uma cilada! Ariel tentou gritar por socorro, mas estava muda. Tentou chamar pelo príncipe, mas, conforme já foi dito, estava muda. Tentou chamar a polícia, mas, adivinhem, estava muda. Pobre coitada, nem mesmo xingar um palavrão bem feio ela podia.

Mas nem tudo estava perdido. Como já havia se passado 48 horas de seu desaparecimento, a Polícia do Fundo do Mar começou a procurar Ariel. Graças a um atum informante, descobriram que ela estava na praia, e o Rei Netuno foi em pessoa atrás de sua filha fujona. Ao chegar em Cancún, o Rei viu Úrsula imitando a voz de sua filha e atraindo o príncipe para se afogar no fundo do mar. Como, após vários naufrágios na Idade Antiga que resultaram em vultosas indenizaçõies a serem pagas pela Corte Real Marítima, esta prática deixou de ser permitida entre as sereias, o Rei ordenou que prendessem a vilã, e utilizou os poderes de seu Tridente Encantado Real para devolver a voz a Ariel. Infelizmente, no processo, Ariel perdeu as pernas, e o príncipe viu que na verdade ela era um ser mitológico.

Ao ver que sua filha estava infeliz, entretanto, o Rei Netuno compreendeu que os filhos são criados não para os pais, mas para o mundo, e aceitou que seu lugar era junto ao príncipe. Além do mais, deveria haver alguma vantagem em casar sua filha com um príncipe da superfície, e melhor ele do que aquele tritão que só queria fazer artesanato de conchas por quem Ariel havia se apaixonado no verão passado. Assim, o bom Rei usou seu já famoso Tridente Encantado para devolver-lhe as pernas, para que ela pudesse viver como qualquer garota normal. O príncipe mal acreditou quando viu sua amada retornando. E igualmente mal acreditou quando descobriu que ela era uma tagarela, fofoqueira e reclamona, que não calava a boca nem por um decreto.

E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 7 de dezembro de 2024

Escrito por em 7.12.24 com 0 comentários

Moby & Dick

E hoje encerraremos essa segunda rodada de contos que eu escrevi para o Crônicas de Categoria, com mais uma homenagem - dessa vez, acreditem ou não, a um livro do qual eu nem gosto, tanto que jamais escrevi sobre ele aqui. Mas eu acho a história interessante, e quis fazer uma paródia.





Moby & Dick

Em uma pequena cidade do interior, moravam dois irmãos gêmeos. Os nomes deles não são importantes para a história. O que importa é que, como eles eram muito grandes, gordos e brancos, seus apelidos eram Moby e Dick.

Moby e Dick tinham 12 anos e eram o terror da escola. Incomodavam todos os outros meninos, colavam chiclete no cabelo das meninas, roubavam a merenda dos menores, colocavam apelidos, enfim, viviam para o bullying. Como seu pai era um importante político da cidade, e sua mãe jurava que, em casa, ambos eram santos, e que todas as reclamações eram perseguições da escola a seus anjinhos, não havia muito o que se fazer. Os outros meninos evitavam Moby e Dick, mas não havia quem nunca tivesse sido atacado por eles.

Um dia, entrou um aluno novo no colégio, chamado Ismael. Ismael era pequeno e franzino, mas muito inteligente, o que fazia com que ele tivesse dificuldade em fazer amigos. Logo em seu primeiro dia, seu primeiríssimo diálogo com Moby e Dick foi o seguinte:

– Qual seu nome?

– Me chamam Ismael. Quantos anos vocês têm?

– Doze.

– Seis cada ou 24 no total?

E bastou. Dizendo que Ismael queria ser “engraçadinho”, Moby e Dick decidiram que iriam fazer dele seu novo alvo preferencial. A vida do menino virou um inferno, ao ponto de ele, sempre tão assíduo e estudioso, não querer mais frequentar a escola.

Ismael ouviu todos os conselhos sobre bullying possíveis: é só ignorar que passa (não passava), quem faz bullying é porque não gosta de si mesmo e faz com os outros antes que façam com ele (não servia de consolo), e, o mais legal de todos, é só enfiar a porrada que eles param, o que era impossível porque Ismael devia pesar uns 30 kg, e os irmãos, juntos, provavelmente pesavam mais de cem. Tentando ajudar, a escola fez um teatrinho sobre bullying, mas a emenda ficou pior que o soneto, pois Moby e Dick passaram a usar todos os exemplos da peça contra suas vítimas.

Um dia, Ismael conseguiu um estranho aliado: Ahab, um menino de família árabe que havia sido vítima de Moby e Dick no passado. Durante uma briga feia, um dos irmãos mordeu a perna de Ahab, e sua mãe, revoltada, decidiu tirá-lo da escola e se mudar para outro bairro. Ahab nunca esqueceu a ofensa, porém, e vivia procurando uma forma de se vingar de suas nêmeses. Ao ver que Ismael era muito inteligente, propôs que ambos se unissem para derrotar os irmãos para sempre.

Ahab sabia de cor toda a rotina dos irmãos – durante anos, pesquisou suas vidas, sempre tentando encontrar um ponto fraco ou uma oportunidade de vingança. Com a ajuda de Ismael, Ahab conseguiu o plano perfeito: ambos iriam atacar os irmãos durante sua aula de natação no Clube Pequod, roubar suas roupas e obrigá-los a voltar para casa pelados. A humilhação que sofreriam seria troco suficiente para uma vida inteira de bullying.

No dia estipulado, tudo corria de forma perfeita. Ahab e Ismael conseguiram entrar nos vestiários sem que ninguém visse, e, enquanto Moby e Dick estavam no banho, roubaram as roupas dos irmãos. Ao ver a vingança tão próxima, porém, Ahab enlouqueceu, e quis retribuir a mordida que um dos irmãos lhe havia dado. Abrindo a porta do chuveiro, investiu contra seu inimigo, mordendo sua perna com toda força.

Com o berro de Moby, Dick abriu a porta de seu chuveiro para ver o que ocorria, e viu Ismael ainda correndo levando suas roupas. Ao perceber que Ahab estava agarrado à perna de seu irmão, porém, decidiu ajudá-lo a se livrar do mordedor. Temendo que o pior pudesse acontecer a seu amigo, Ismael voltou ao vestiário trazendo um professor, que salvou Ahab de ser afogado no vaso sanitário.

Mesmo após quase morrer, Ahab não desistiu de sua vingança, e continuou chamando Ismael para seus planos. Vendo que aquilo não ia dar certo, Ismael decidiu se afastar do amigo, focar em seus estudos, e, após concluir o colégio, ganhou uma bolsa para fazer faculdade na Europa. Moby e Dick continuaram fazendo bullying com todo mundo, sempre tendo sua cara livrada por seu pai político, e atualmente são vereadores. De Ahab ninguém nunca mais soube. Dizem que, até hoje, ele conta a história de como quase se vingou da baleia branca que mordeu sua perna.
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sábado, 2 de novembro de 2024

Escrito por em 2.11.24 com 0 comentários

Snafu

Hoje veremos mais um post que eu escrevi para o Crônicas de Categoria - ou quase. Na verdade eu escrevi esse muito tempo atrás, não me lembro exatamente quando, e, quando comecei a escrever para o Crônicas, decidi publicá-lo lá.





Snafu

João estava apaixonado, daquelas paixões que deixam a cabeça da gente nas nuvens. Andando pela rua, viu o carro de sua amada, e quis fazer-lhe uma surpresa. Pegou um pedaço de papel, rabiscou um bilhete, e o prendeu ao para-brisa:

“Anseio por teus beijos. J.”

Acontece que o carro não era da amada de João, e sim de Bárbara, que estava no mercado com o marido, extremamente ciumento. Ela chegou ao carro primeiro, e, quando viu o bilhete, imaginou ser de seu amante, que se chamava Jeremias. Antes que o marido, que vinha logo atrás, percebesse, jogou o papel dentro de uma das sacolas.

Ao chegar em casa, Bárbara deixou as sacolas na cozinha para que Neide, a empregada da família, as guardasse. Encontrando o bilhete, ela achou que fosse de Júnior, o filho do casal, que de vez em quando dava umas investidas nela. Levou o bilhete até o quarto do atrevido para confrontá-lo, mas ele não estava lá, e, ao ouvir Bárbara chamá-la, acabou deixando-o sobre a cama do rapaz.

Júnior chegou da rua, viu o bilhete, e achou que havia sido escrito por Jennifer, secretária gostosona de seu pai que de vez em quando ia até lá buscar documentos, e estava na sala quando ele chegou. Não acreditando em sua sorte, foi até ela e já saiu agarrando a moça.

Jennifer muito propriamente fez um escândalo, e toda a família correu para ver o que era. Neide fez coro com a secretária, dizendo que o moleque era tarado, e, para se defender, Júnior mostrou o bilhete. Em pânico, Bárbara confessou que tinha um amante, suposto autor do bilhete, e, quando seu marido ficou irado, Jennifer falou que ele não tinha moral para reclamar, pois mantinha um caso com ela há anos.

Enquanto isso, no telefone com sua amada, João ria da confusão que fizera. O carro dela era azul, não vermelho.
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sábado, 5 de outubro de 2024

Escrito por em 5.10.24 com 0 comentários

Uma Noite Inesquecível

E vamos a mais um conto que eu originalmente escrevi para o Crônicas de Categoria. Esse é curtinho, mas é de coração.





Uma Noite Inesquecível

Alan nunca teve muita sorte com as mulheres. Por isso estranhou quando, naquela noite, no bar do hotel, uma verdadeira deusa parecia estar dando mole pra ele. Era a primeira vez em que ele visitava aquela cidade, não conhecia ninguém, e decidiu arriscar. Retribuiu seus olhares, sentou-se perto dela, pagou-lhe um drink. Conversaram, descobriram ter afinidades, decidiram subir para o quarto de Alan, que mal acreditava que aquilo pudesse estar acontecendo.

Tiveram uma noite mágica, pareciam feitos um para o outro. Ela gostava de tudo o que ele fazia, e retribuía fazendo-o sentir coisas que sequer julgava serem possíveis. Após horas de entrega, tomaram banho juntos, o que foi ligeiramente atrapalhado pelo fato de que a água saía quente demais, e ele não conseguia regulá-la de forma alguma.

Após o banho, com fome, decidiram pedir serviço de quarto. Enquanto aguardavam, sentaram-se na cama para assistir TV, o que levou Alan a descobrir que só estavam disponíveis dois canais. Mais de uma hora se passou e nada da comida. Alan telefonou para reclamar duas vezes, cada uma mais irritado que a anterior, dizendo que não era possível a refeição demorar tanto, que era um absurdo a TV só ter dois canais, que mal tinha tomado banho por causa da água quente demais, e que iria fazer uma resenha bem malcriada no site de avaliação.

Após desligar o telefone pela segunda vez, Alan reclamou com a moça que, se soubesse que o hotel tinha todos esses problemas, não teria se hospedado lá. Olhando em seus olhos com um sorriso malicioso no rosto, ela respondeu:

– Ih, relaxa. Sempre foi assim, desde que eu ainda era viva.
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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Escrito por em 6.9.24 com 0 comentários

O Fantasma do Ópera

Hoje temos um conto que eu escrevi para o Crônicas de Categoria. Não é exatamente original, mas uma homenagem a uma das minhas histórias preferidas.




O Fantasma do Ópera

Era uma vez Christine Daaéeg, que não aguentava mais ter de soletrar seu nome pra todo mundo – culpa de seu avô, que era holandês. O sonho de Christine era ser cantora lírica, mas, como nem sempre a gente alcança nossos sonhos, ela era garçonete no Ópera, o mais popular restaurante do centro da cidade.

Acontece que um dos motivos pelos quais o Ópera era tão popular era que as pessoas diziam que ele era assombrado. Vira e mexe aconteciam lá umas coisas estranhas, tipo lustres caindo e pedidos saindo errados, e todo mundo punha a culpa no Fantasma, uma entidade sobrenatural que, segundo diziam, trocava batata frita por purê quando ninguém estava olhando para prejudicar o dono do Ópera, o Sr. Ricardo Firmino. Por causa disso, o Ópera vivia lotado de jovens com seus smartphones, todos tentando tirar umas fotos do Fantasma ou de seus atos sobrenaturais.

O que ninguém sabia era que o Fantasma não era só uma lenda, sendo uma pessoa verdadeira de verdade. Seu nome era Eric, e, um dia, ele foi um chef. Foi ele quem inventou a receita do mais famoso prato do Ópera, o escondidinho de batata baroa com alho poró e kafta, o qual Firmino, com a cara mais deslavada do mundo, inscreveu no Comida di Buteco dizendo ser sua criação, e sagrou-se vencedor. Quando Eric viu que o movimento do Ópera triplicou e ele não ganharia um tostão por isso, enlouqueceu, tentou colocar fogo no restaurante, mas acabou horrivelmente desfigurado, escondendo parte de seu rosto com um pão de hambúrguer e vivendo sob catacumbas que existiam abaixo do Ópera desde tempos imemoriais.

Desde que enlouqueceu, Eric devotou sua vida a destruir Firmino, se utilizando de túneis secretos para realizar suas traquinagens sem que ninguém percebesse. Seu objetivo era irritar os clientes para que eles nunca mais voltassem. Como já vimos, o tiro saiu pela culatra, mas Eric era um Fantasma muito insistente, e não desistia de seu intento.

Em uma triste armadilha do destino, entretanto, Eric se apaixonou por Christine, e, determinado a fazer dela a melhor garçonete de todos os tempos, começou a falar com ela de dentro dos túneis secretos, fingindo ser um anjo e dando dicas de como poderia melhorar em seu serviço. Em sua loucura, Eric até mesmo fez com que Carlota, a garçonete mais popular do Ópera, tropeçasse e caísse derrubando toda a comida em cima de dignitários estrangeiros que lá se encontravam para um almoço, para que ela fosse demitida e Christine assumisse seu lugar. A vida de Christine ia de vento em popa, graças a seu anjo, e Eric cada vez julgava estar mais próximo o dia em que ele se revelaria e ambos viveriam seu amor proibido.

Todavia, sem que Eric soubesse, Christine tinha um noivo, chamado Raul. Justamente no dia em que Eric decidiu se revelar para Christine, Raul foi buscá-la após o expediente, e eis que nosso Fantasma se revela no exato momento em que o doce casal se encontrava aos beijos. Tomado de fúria insana, Eric decidiu sequestrar Christine e levá-la para suas catacumbas, onde fez para ela uma belíssima receita de bolo de cenoura com sour cream vegano, a coisa mais linda que ela já havia visto na vida.

Enquanto isso, o corno, digo, Raul, desesperado com o sequestro, recorreu à polícia, que riu de sua cara, pois até mesmo uma criança de cinco anos sabe que a polícia não pode prender um fantasma. Andando pela rua com as mãos nos bolsos e chutando pedrinhas em revolta, Raul passou por um túnel e sentiu um cheiro de comida. Ligando uma coisa à outra, imaginou que tal túnel daria nas catacumbas do Ópera, e decidiu adentrá-lo para salvar sua amada. Chegou bem no momento em que o Fantasma treinava Christine para que ela conseguisse carregar uma bandeja maior que a do Outback, equilibrando todos os pratos, copos e jarras com maestria.

Christine regozijou-se ao ver Raul, mas o Fantasma foi tomado por um ódio primal, e o atacou com uma escumadeira. Durante a luta, o pão de hambúrguer caiu, e Christine vislumbrou o rosto desfigurado de seu tutor. Eric pensou que tudo estava arruinado, mas, em uma demonstração de ternura jamais vista na face da Terra, Christine lhe beijou candidamente os lábios e explicou que seu lugar era na friendzone, pois seu coração pertencia a Raul, podendo o Fantasminha Camarada continuar se encontrando com ela como seu amigo, desde que isso compreendesse. Tocado pela sinceridade de sua amada, o Fantasma deu a ela seu WhatsApp, cumprimentou Raul com o tradicional "você é um homem de sorte", e mostrou a saída das catacumbas ao casal.

Mas esperem! Alas! Não é aqui que a história acaba! No dia seguinte, Christine voltou ao trabalho e quem surge? Carlota! Tendo creditado a Christine a culpa de seu infortúnio, eis que a prima dona retorna para se vingar, e planeja derrubar todo o óleo fervente da fritura das batatas sobre a moçoila. Porém, nosso herói, o Fantasma, a tudo observava de seu túnel secreto, e, ao perceber o maligno intuito da vingativa garçonete, se adiantou rapidamente, recebendo em seu corpo as chagas destinadas à sua amada. Christine correu para salvá-lo, mas chegou somente a tempo de vê-lo morrer em seus braços, mãos entrelaçadas com o agora genuíno fantasma. Ao abrir a mão, Christine encontraria uma rosa murcha com um bilhete que dizia alguma coisa que ninguém nunca conseguiu ler porque foi borrado pelo óleo.

E todos viveram felizes para sempre. Assim, todos, toooooodos não, porque, depois de uma tragédia dessas, só vive feliz quem tem problema. Mas o Ópera ficou ainda mais famoso, e sem as peraltices do Fantasma, então pelo menos um dos personagens se deu bem.
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sábado, 3 de agosto de 2024

Escrito por em 3.8.24 com 0 comentários

Penélope e o Escritor

Em 2022, eu fiz aqui uma série mensal de posts com contos que eu escrevi para o Crônicas de Categoria. Obviamente não postei todos os contos que escrevi para lá, escolhi apenas os melhores, e, desde então, não pensei em trazer mais deles para cá. Nas últimas semanas, entretanto, devido a outros compromissos, tenho tido uma certa dificuldade para escrever um post novo por semana, e decidi que, ao invés de pular semanas, ou de, como fazia lá nos primórdios do átomo, fazer posts tapa-buraco com letras de música, vou postar mais contos, novamente um por mês. Selecionei quatro, mas, para abrir essa nova série, como uma forma de me desculpar pelo subterfúgio, escrevi um inédito, jamais publicado em lugar algum. Espero que vocês gostem.





Penélope e o Escritor

Penélope viu o anúncio de emprego na internet: precisa-se de pessoa para cuidar de idosa, poucas horas por dia, trabalho fácil, um salário mínimo. Reconheceu o nome de quem anunciava: um escritor de meia-idade que havia conhecido alguns anos antes, na Bienal do Livro, durante uma sessão de autógrafos. Estudante de Letras, Penélope havia se interessado pelo tema do livro e, ao conhecer o autor, se surpreendeu com como ele era bonito e simpático, e até sentiu por ele uma certa atração, apesar de ele ter idade para ser seu pai. Agora já formada, pensou que talvez tivesse a oportunidade de ficar próxima ao escritor se conseguisse o emprego, e resolveu ir até lá se candidatar.

O escritor morava em uma casa afastada, em um dos últimos bairros da cidade, praticamente na zona rural. Segundo ele, era o melhor para se concentrar em seus livros, mas trazia algumas dificuldades, principalmente com sua mãe idosa. Ele abriu a porta para Penélope, mas não a reconheceu, e, após passar brevemente o que esperava que ela fizesse no trabalho, a levou até o quarto de Dona Dulce, sua mãe, de quem Penélope deveria cuidar.

Após uma rápida apresentação, o escritor disse que precisava voltar a seu estúdio, o cômodo da casa no qual escrevia seus livros, e deixou Penélope sozinha com Dona Dulce. A idosa senhora fez imediatamente uma expressão de comiseração, e, com uma voz sussurrante, pediu a Penélope que não aceitasse o emprego. Compadecida da fragilidade da velhinha, e animada por estar tão perto do escritor, Penélope apenas abriu um sorriso, pegou na mão de Dona Dulce e garantiu que tudo iria dar certo.

Os dias se passaram, e o trabalho de Penélope correu sem percalços. Dona Dulce era um amor de pessoa e não dava trabalho, apesar de, vez por outra, insistir que Penélope não deveria estar ali, e praticamente implorar para que ela deixasse o emprego. A jovem sempre a confortava, entretanto, e garantia que sabia o que estava fazendo.

Aos poucos, Penélope aproveitava sua presença na casa para se aproximar do escritor. Levava um café para seu estúdio no meio do expediente, passava por lá no fim do dia para se despedir, perguntava coisas das quais já sabia a resposta, só para falar com ele. Aos poucos, foi ganhando sua confiança, conversando cada vez mais com ele, até que ele passou a permitir sua presença no estúdio durante todo o tempo em que ela não estava atendendo às necessidades de Dona Dulce, até mesmo mostrando para ela alguns trechos do livro no qual ele trabalhava e pedindo sua opinião.

Penélope passaria a chegar mais cedo para tomar café da manhã com o escritor, a almoçar com ele, e a jantar com ele antes de ir embora. Logo os dois ficariam extremamente próximos, e, apesar da diferença de idade, um romance começaria a se desenhar. Dona Dulce, sempre em seu quarto, praticamente acamada, não acompanharia, mas sempre insistiria que Penélope deveria deixar o emprego, sempre sendo reconfortada pela jovem, que lhe dava um beijo na testa ou nas mãos, e afirmava que ela não precisava se preocupar.

Apesar da grande confiança que começava a se construir entre Penélope e o escritor, alguns assuntos eram proibidos. Como, por exemplo, por que ele nunca se casou. Ou o que aconteceu com a moça que tomava conta de Dona Dulce antes da chegada de Penélope, da qual a jovem ficou sabendo quando, em um raro momento de lucidez, a idosa havia mencionado, apenas para ser calada pelo filho antes mesmo que pudesse dizer seu nome. Para não estressar Dona Dulce, Penélope nunca conversava sobre esses assuntos com ela, e, sempre que tentava abordá-los com o escritor, percebia o quão desconfortável ele ficava, mudando logo de assunto. A conclusão lógica era que o desespero de Dona Dulce em fazer Penélope deixar o emprego tinha a ver com o destino dessa moça anterior, mas, aparentemente apaixonada, Penélope parecia não se importar que sua vida também poderia estar em risco.

Um dia, quando foi levar o lanche da tarde ao estúdio, Penélope encontrou o escritor meio transtornado. Após beber o café, ele começou a falar qualquer coisa sobre todas as mulheres serem interesseiras, todas apenas estarem de olho no dinheiro dele. Disse também que ela não deveria tê-lo provocado, ele sabia que aquilo não iria acabar bem, mas ele era fraco e não conseguia resistir aos avanços da jovem. Enquanto se encaminhava para pegar um abridor de cartas semelhante a um punhal, confessou que drogava a mãe para que ela não pudesse delatá-lo, pois havia matado não somente a moça que tomava conta de Dona Dulce antes de Penélope, mas também a anterior a ela, enterrado ambas no quintal, e que agora Penélope teria o mesmo destino.

Entretanto, conforme ele se aproximava, punhal na mão, para tirar a vida de Penélope, sentiu uma vertigem e teve de se apoiar na cadeira. Se aproximando, a jovem revelou que também tinha uma confissão a fazer: durante todo esse tempo, estava envenenando seu café, e naquele dia, ao ver que Dona Dulce estava especialmente agitada, havia colocado uma dose extra. Perguntou se ele não se lembrava daquele dia na Bienal do Livro, quando estavam ela e sua melhor amiga, ela havia se interessado por ele, mas foi a amiga quem chamou sua atenção. O escritor e a amiga de Penélope tiveram um breve romance, que resultou em uma gravidez, com o escritor abandonando-a assim que soube, e a amiga morrendo ao tentar fazer um aborto clandestino. Penélope havia jurado vingar a amiga, mas jamais imaginaria que o escritor também seria responsável por duas outras mortes.

Conforme o corpo sem vida do escritor desabava ao chão, Penélope sentia-se triplamente vingada.
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domingo, 4 de dezembro de 2022

Escrito por em 4.12.22 com 0 comentários

Duas Ilhas

E hoje encerraremos a série mensal de 12 contos que eu publiquei anteriormente no Crônicas de Categoria. Espero que vocês tenham gostado.





Duas Ilhas

Eram duas ilhas vizinhas, separadas por um mar bravio. Do ponto de maior proximidade entre elas, os moradores de uma das ilhas podiam avistar os da outra, fazer gestos para eles, mas não conversar; isso porque, além de cada ilha falar seu próprio idioma, incompreensível para os habitantes da outra ilha, o mar, como já foi dito, era bravio, e, nesse ponto específico, se chocava com violência contra altíssimos paredões de rocha, presentes somente nesse lado, em ambas as ilhas, fazendo um barulho ensurdecedor.

Fora esse paredão altíssimo, o restante do litoral de cada ilha era composto por praias, baías e enseadas, e na grande maioria delas o mar era calmo o suficiente para a pesca e o banho de mar. Ainda assim, nenhum dos habitantes das ilhas jamais havia visitado sua vizinha, porque, além da distância, era preciso atravessar o trecho de mar bravio, algo que ninguém havia conseguido fazer, tendo sido muitos barcos destruídos e muitas vidas de corajosos nadadores perdidas durante as tentativas.

Um dia, uma das ilhas recebeu um curioso visitante. Ele simplesmente saiu da água, como se tivesse vindo nadando, e caminhou até a praia. Trajava roupas estranhas, não tinha traços comuns aos nascidos nas ilhas, e parecia não ser capaz de falar. Houve quem achasse que ele havia vindo da outra ilha, mas, ao ser levado ao ponto dos paredões, a expressão em seu rosto deu a entender que ele sequer imaginava que havia outra ilha. O homem foi acolhido pela comunidade, que lhe deu novas roupas, lhe tratou bem, e começou com as tentativas de comunicação. Com o tempo, ele aprendeu a se comunicar com gestos, arrumou uma ocupação, e se tornou um membro perfeitamente integrado à comunidade.

Semanas se passaram, até que um grupo que passeava pelo lado de onde dava para ver a outra ilha notou uma movimentação estranha. O homem que saiu do mar foi chamado para ver, mas soltou apenas um longo suspiro, baixou a cabeça e retornou para o interior da ilha. O grupo que ficou lá acompanhando a movimentação logo entendeu do que se tratava: os habitantes da outra ilha iriam tentar construir uma ponte. Não seria a primeira tentativa do tipo, mas, como a distância entre as duas ilhas era maior do que a maior árvore que eles conseguiam encontrar, as tentativas anteriores também jamais haviam sido bem sucedidas. Dessa vez, entretanto, parece que eles usariam novas técnicas, pois estavam construindo coisas que os habitantes da ilha de cá não compreendiam para que serviriam, mas que claramente ajudariam na construção da ponte.

Enquanto a ponte era construída, o forasteiro não quis se aproximar daquele lado. Parecia tomado por uma tristeza infinita, e frequentemente era visto sentado na praia, olhando para o mar, como se quisesse voltar lá pra dentro. Quanto mais a construção da ponte avançava, mais taciturno ele ficava, e, nos últimos dias, quando a ponte finalmente iria ficar pronta, se trancou em sua cabana, não saindo de lá nem mesmo para comer.

Finalmente, chegou o dia em que a ponte seria concluída. Os habitantes da ilha de cá já se aglomeravam, aguardando o tão esperado contato com seus vizinhos. Quando a última parte ficou pronta, e os primeiros habitantes da ilha de lá pisaram no solo de cá, houve uma grande festa. Abraços, música, finalmente aqueles vizinhos, separados durante tantos anos, poderiam se tornar uma única comunidade.

Em meio aos festejos, poucos repararam que o misterioso homem do fundo do mar havia se juntado ao grupo. Ele estava meio afastado, vestindo as roupas que trajava quando chegou, mãos nos bolsos, olhar resignado. De repente, a razão de seu tormento pareceu clara: atravessando a ponte, passando em meio aos habitantes das ilhas que se felicitavam e travavam o tão esperado primeiro contato, surgiu outro homem, parecido com ele, trajado como ele, indo em sua direção.

Todos pararam e observaram os dois homens, curiosos quanto ao que ocorreria. O homem da ilha de cá deu um sorriso com o canto da boca e abriu os braços, como que esperando um abraço do amigo, enquanto o que vinha da da ilha de lá caminhava com passos resolutos em sua direção. No meio do caminho, sacou uma arma e o matou.

E, após matá-lo, antes mesmo que seu corpo tocasse o chão, deu meia-volta, atravessou a ponte, e retornou para a ilha de lá. Os moradores de ambas as ilhas olhavam perplexos, sem compreender o que tinha acabado de acontecer. Ninguém nunca mais o viu.

Hoje, ambas as ilhas são uma única comunidade, ligada por uma bela ponte, reforçada e melhorada ao longo dos anos. Os habitantes vivem felizes e tranquilos, e contam a seus filhos a história de como a ponte foi construída: um casal foi vítima de um naufrágio, com cada um tendo ido parar em uma das ilhas. Sem aguentar ficar longe um do outro, imediatamente inventaram uma forma de construir uma ponte, e convenceram os nativos a ajudá-los. É por isso, inclusive, que a ponte se chama Ponte dos Amores.

Ninguém mais se lembra da história original. Não há necessidade.
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domingo, 6 de novembro de 2022

Escrito por em 6.11.22 com 0 comentários

As 30 Famílias da Pathfinder

O ano está acabando, e, com ele, a série na qual estou republicando contos que eu já havia publicado no Crônicas de Categoria. Hoje, teremos um de ficção científica.





As 30 Famílias da Pathfinder

Dizem que a Pathfinder foi a primeira nave a deixar a Terra, rumo a um planeta bastante semelhante ao nosso, quando um grupo de milionários decidiu se unir e viabilizar o projeto, que levaria 30 famílias para fora de nosso sistema solar e monitoraria seu desenvolvimento. Infelizmente, ela jamais chegou a seu destino: atingida por uma chuva de meteoros, se desviou de seu caminho e acabou naufragando em um planeta extremamente inóspito. Como saiu muito de sua rota, os equipamentos na Terra não conseguiram rastreá-la, e, durante 30 anos, suas 30 famílias tiveram de lutar sozinhas por sua sobrevivência, esperando por um resgate que nunca chegava.

Os mais velhos diziam que a única forma que essas 30 famílias encontraram para sobreviver foi dividindo tarefas. Havia os turnos no rádio, para tentar mandar uma mensagem para a Terra; os turnos no radar, para tentar encontrar outras naves que estivessem passando; os turnos para conseguir comida; para alertar sobre ataques de animais selvagens; para manter o equipamento sempre funcionando; e muitos outros. Cada um recebia uma função, e deveria desempenhá-la com o máximo esmero, para não por em risco toda a comunidade. De fato, muitos não resistiram e sucumbiram, aos animais, ao clima, ou ao seu próprio desespero. A cada ano, eram menos os membros das 30 famílias da Pathfinder.

Por outro lado, enquanto o resgate não chegava, nasceu toda uma geração que jamais havia posto os pés na Terra; que só a conhecia pelas histórias que os tripulantes originais da Pathfinder contavam. O problema é que essa geração que nunca viu a Terra também não acreditava que todo o trabalho para tentar conseguir um resgate serviria de alguma coisa. Queriam sair explorando, acreditavam que deveria haver outras partes do planeta mais agradáveis para se estabelecer uma colônia.

Os mais velhos diziam que já haviam tentado, que não havia qualquer lugar para onde se pudesse ir em segurança, e que o melhor curso de ação era continuar tentando contato com a Terra, que enviaria uma nave para nos resgatar. Eles achavam que era mentira, que os mais velhos sentiam algum prazer mórbido em controlar nossas vidas. Eu era apenas uma criança, não entendia o que estava acontecendo, mas me lembro de quando tudo começou a mudar.

Um dia, alguns jovens quiseram furar a fila do almoço. Mais tarde, um grupo se afastou do acampamento sem autorização. No dia seguinte, um deles não se apresentou para seu posto, e alegou que não concordava com aquele esquema ditatorial. Logo, todos os jovens se revoltaram, e começou uma grande batalha. Nosso radar foi destruído, muitos dos mais velhos foram mortos. Um dos jovens assumiu o comando, e disse que o melhor a se fazer era cada um cuidar de si, assumir seus próprios riscos, e, como todos queriam o melhor para a comunidade, tudo se ajeitaria sozinho. Tudo passou a ser voluntário, sem turnos, sem obrigações. Um grande grupo partiu em busca de um local para uma colônia, prometendo nos buscar caso o encontrassem. Jamais retornaram.

Sem a divisão de tarefas, aquilo que foi considerado “menos importante” acabou abandonado – como o rádio, já que praticamente ninguém mais acreditava que conseguiria se comunicar com a Terra. Os mais fortes dominaram todos os serviços essenciais, como a produção de comida e a manutenção da nave, e logo estabeleceram um sistema segundo o qual os mais fracos, principalmente os mais velhos, não tinham acesso à maior parte do que era produzido. O pior é que eles achavam isso certo, e viviam repetindo que somente os que merecessem deveriam sobreviver. Houve uma segunda revolta, e mais da metade dos que restavam morreu nos combates. Os demais morreriam de frio, de fome ou comidos pelos animais. Quando a nave do resgate finalmente chegou, éramos apenas cinco. Nem eu sei direito como sobrevivemos.

Outros dois morreram durante a viagem de volta. Quando chegamos à Terra, os três que ainda restávamos fomos tratados como heróis. Celebridades. Praticamente todos os dias tínhamos convites para entrevistas. Jornais, revistas, televisão. Todos queriam saber nossa história, todos queriam saber como estava sendo nossa adaptação.

Dos outros que chegaram comigo, um não aguentou a pressão diária a que éramos submetidos e tirou a própria vida. A outra, uma moça, desapareceu – dizem que mudou de identidade e foi viver na América Central, em um local de condições mais parecidas com as do planeta onde nasceu e cresceu.

Do que se passou no planeta distante, nunca revelamos muito. Já recebi inúmeras ofertas para contar a verdadeira história das 30 famílias da Pathfinder em um livro. Já fui procurado até por estúdios de cinema. Nunca aceitei. Sempre digo que era muito jovem, que não me lembro de quase nada. Mas a verdade é que eu tenho vergonha.
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