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quinta-feira, 18 de março de 2010

Escrito por em 18.3.10 com 0 comentários

Call of Cthulhu

Desde criança, eu sempre gostei de ler. Meus pais sempre incentivaram esse hábito, e minha casa sempre foi cheia dos mais variados livros infantis. Como meus pais também sempre gostaram de ler, livros "adultos" também jamais faltaram, o que propiciou milhares de horas de leitura agradável, que ultimamente têm sido interrompidas por afazeres da vida adulta. Ano passado inteiro, por exemlo, eu só me lembro de ter lido um único livro do início até o final, enquanto nos áureos tempos da minha adolescência eu chegava a ler uns vinte livros por ano.

Foi apenas durante a minha adolescência, aliás, que eu fui descobrir meus autores preferidos, não por influência de meus pais, mas de meus amigos. Foi graças a eles que eu conheci, através de O Senhor dos Anéis, J.R.R. Tolkien. Foi graças a uma amiga que eu li o Alice no País das Maravilhas original - até então, eu só conhecia a versão Disney. E foi jogando RPG com meus amigos que eu descobri H.P. Lovecraft.

Se eu tivesse de apontar apenas um autor preferido, apontaria Lovecraft. Não me arrisco a dizer que já li tudo o que ele escreveu porque ele escreveu coisa pra caramba, mas já devo ter lido a maioria de suas histórias, algumas delas mais de uma vez, e sempre me impressiono com o talento com o qual ele constrói um horror crescente, que aumenta conforme a história se desenrola, até culminar em um final terrível. Sua imaginação para criar tais horrores também é impressionante, com monstros e situações tão variadas que parece até difícil acreditar que saíram da cabeça de uma só pessoa. Ainda mais de uma pessoa que só escreveu durante 19 anos.

Diante dessa admiração toda, e de uma obra tão extensa, eu mesmo estranhei quando me dei conta de que só escrevi uma vez sobre Lovecraft, lá no início do blog, quando falei sobre sua vida. Ao perceber esse estranho fato, imaginei que hoje seria um bom dia para falar sobre uma de suas obras. E decidi começar logo pela mais famosa, O Chamado de Cthulhu.

Cthulhu fhtagnPausa para uma aula sobre como se pronuncia "Cthulhu": o "c" não tem som de "s", o "th" é aquele do inglês, com a língua entre os dentes, o segundo "h" é mudo, e a sílaba tônica é a última, o que resulta em algo como "kfulú". Segundo Lovecraft, o nome de Cthulhu provém de uma língua alienígena, e o mais próximo que conseguiríamos chegar de pronunciá-lo seria "krlourrlú". Ao longo dos anos, várias pessoas tentaram encontrar pronúncias mais simples, como "tulú", "klulú", "sigulú", "kafulú", "kutulú", "kifuliú", "kitulú", "kuliú", "kuitiliú", e até "tchutchú" ("O Chamado de Tchutchú"?), até que, no início da década de 1980, a pronúncia "kfulú" se popularizou, sendo a mais aceita pelos fãs hoje. Eu, pessoalmente, prefiro "kutulú", mas é uma questão de gosto.

Escrito em 1926, The Call of Cthulhu foi originalmente publicado na revista Weird Tales, na edição de fevereiro de 1928. É um conto dividido em três partes, e narrado como se fossem anotações do falecido Francis Wayland Thurston, da cidade de Nova Iorque. Na primeira parte, ele conta sobre o falecimento de seu tio-avô George Gammell Angell, um professor de linguística na Universidade de Brown, em Providence, Rhode Island - não por acaso, mesma cidade onde Lovecraft nasceu e viveu quase toda sua vida - morto subitamente após trombar com um marinheiro no meio da rua, e sobre os objetos pessoais que recebera como herança, dentre eles uma estranha escultura de argila em baixo-relevo de uma criatura humanóide parte polvo, parte dragão, e anotações sobre uma pesquisa que Angell fazia com o estudante Henry Anthony Wilcox, que, durante treze dias, viveu um período de delírio no qual sonhava com uma cidade ancestral e com os nomes Cthulhu e R'lyeh.

Na segunda parte, através de outras anotações do tio, Thurston descobre que o professor já havia escutado essas palavras antes, ao se encontrar com o inspetor John Raymond Legrasse em 1908. Legrasse possuía uma estátua similar à escultura de argila, obtida quando desbaratou um culto de mestiços que usava mulheres e crianças sequestradas em rituais profanos. Na terceira parte, Thurston acaba se envolvendo mais com a história do que sua sanidade gostaria, ao descobrir, acidentalmente, através de um recorte de jornal, um terceiro caso envolvendo uma estátua de Cthulhu, encontrada por um marinheiro norueguês cujo navio fora atacado por uma estranha embarcação na costa da Nova Zelândia. Movido pela curiosidade, Thurston viaja até a Nova Zelândia, depois até a Austrália, e finalmente até a Noruega, onde tem acesso a um manuscrito deixado pelo tal marinheiro. Lê-lo, porém, será uma decisão nada acertada, pois revelará segredos que a mente humana não está preparada para descobrir.

O Chamado de Cthulhu é amplamente considerado como a obra-prima de Lovecraft, e até mesmo como uma das melhores histórias de horror de todos os tempos. O próprio Lovecraft, porém, não gostou muito dela após publicá-la, declarando que não era ruim, mas também não era boa, e que era cheia de clichês. O editor da Weird Tales também não gostou depois que leu, e só a publicou porque um grande amigo de Lovecraft, Donald Wandrei, sem que este soubesse, disse ao editor que Lovecraft estava pensando em oferecê-la a uma revista concorrente. O editor aceitou, mas colocou o conto como secundário, sem direito à capa.

Mesmo assim, depois que a história foi publicada, a Weird Tales recebeu uma enxurrada de cartas elogiando o conto, inclusive uma de Robert E. Howard, criador de Conan e habitual colaborador da Weird Tales, que disse estar Lovecraft em um patamar completamente diferente dos demais escritores da época. Ao longo dos anos, críticos e estudiosos não foram menos elogiosos, considerando O Chamado de Cthulhu um dos melhores exemplos de como a literatura de Lovecraft define o papel do homem em relação ao universo.

Depois da morte de Lovecraft, O Chamado de Cthulhu foi relançado em várias coletâneas de suas obras. Aqui no Brasil, ele pode ser encontrado nos livros Um Sussurro nas Trevas (Francisco Alves, 1982), O Horror em Red Hook (Iluminuras, 2000) e, é claro, O Chamado de Cthulhu (Campanário, 2000) e O Chamado de Cthulhu e Outros Contos (Hedra, 2009).

a capa da Weird Tales que trazia o conto de CThulhuGraças ao enorme sucesso alcançado pelo conto ao longo dos anos, "Cthulhu" e "Lovecraft" se tornaram, praticamente, sinônimos. Por causa disso, quando a editora Chaosium decidiu lançar um RPG baseado no universo fantástico criado por Lovecraft, ela decidiu dar a ele um nome quase igual ao do conto: Call of Cthulhu. Foi graças a este RPG que eu descobri Lovecraft, e, portanto, creio que não custe nada falar um pouco dele aqui também. Aliás, também foi graças a esse RPG que a pronúncia "kfulú" se popularizou, já que a editora tinha de falar o nome de seu produto para anunciá-lo e vendê-lo.

Call of Cthulhu é um dos RPGs mais antigos do mercado, com sua primeira edição datando de 1981. Originalmente, ele não seria um jogo próprio, mas um suplemento para o RPG mais famoso da Chaosium na época, RuneQuest, ambientado no universo criado por Lovecraft e escrito por Sandy Petersen, grande fã do escritor e mais tarde um dos designers dos jogos Doom, Doom II e Quake. O trabalho de Petersen ficou tão bom que a Chaosium decidiu lançá-lo como um RPG à parte, utilizando uma versão simplificada do Basic Role Playing System, o sistema de jogo de RuneQuest. Call of Cthulhu acabou se tornando um dos RPGs mais famosos da história, e ganhando o Origins Award de Melhor RPG de 1982.

Ambientado na década de 1920 - não por acaso a época em que a maioria das histórias de Lovecraft também acontece - Call of Cthulhu colocava os jogadores no papel de pessoas comuns que, acidentalmente, descobriam o que não deviam, e, se aprofundando nesses mistérios, colocavam em risco sua vida e sanidade. O jogo se tornou famoso exatamente por medir a sanidade dos personagens através de um atributo, que diminuía conforme eles se encontravam com monstros ou segredos inimagináveis. Diferentemente de outros RPGs, onde os jogadores sabem que seus heróis vão acabar vencendo e progredindo, em Call of Cthulhu todo jogador já sabia que seu personagem iria acabar em um hospício ou no necrotério. Até por causa disso, o jogo não trazia um sistema de avanço dos personagens através de níveis de experiência, mas através do uso bem sucedido de suas habilidades - ou seja, quanto mais sucessos um personagem conseguisse no uso de uma de suas habilidades, melhor ele ficava nela, aumentando alguns níveis naquele atributo.

Call of Cthulhu também se tornou rapidamente famoso pelo formato de suas aventuras: na época, todos os RPGs que existiam eram praticamente cópias de Dungeons and Dragons, onde os personagens se aventuravam em masmorras e castelos matando monstro após monstro. Petersen, porém, desenvolveu um formato no qual os personagens iam descobrindo e seguindo pistas, visitando diversas cidades e países até se deparar com aquilo que estavam perseguindo. A primeira aventura com esse formato, Shadows of Yog-Sothoth, no qual os personagens descobrem acidentalmente um esquema para destruir a humanidade, e seguem pistas para tentar impedir os responsáveis, foi um gigantesco sucesso, e influenciou até mesmo aventuras de outros RPGs, inclusive de D&D. As aventuras seguintes se esforçaram para aperfeiçoar esse sistema, com algumas trazendo, junto com os livros, as pistas que os jogadores deveriam seguir, como mapas e recortes de jornal. Masks of Nyarlathotep ficou famosa por trazer caixas de fósforos, cartões de visita e outros itens originalmente pertencentes aos antagonistas, alguns inclusive meio destruídos para não poderem ser totalmente aproveitados pelos personagens dos jogadores, como se seus donos originais tivessem querido se livrar deles antes que fossem parar nas mãos dos investigadores. Horror on the Orient Express foi ainda mais além, e trouxe passaportes falsos nos quais os jogadores podiam inserir suas próprias fotos para se passar por investigadores (sem uso na vida real, evidentemente). Alguns fabricantes se especializaram em lançar apenas conjuntos de "pistas", que poderiam ser usados pelos mestres de Call of Cthulhu em diversas aventuras, inclusive as criadas por eles mesmos.

Curiosamente, as aventuras desenvolvidas para Call of Cthulhu foram um tanto criticadas por se parecerem mais com aventuras de Indiana Jones ou Sherlock Holmes do que com histórias escritas por Lovecraft, mas isso é perfeitamente compreensível - afinal, qual jogador quereria se envolver em uma aventura na qual só ficaria sonhando e elouquecendo, sem dar uma porrada em um cultista ou um tiro em um monstro inconcebível? Mesmo com essas críticas, muitas aventuras foram sucessos de vendas, e hoje são consideradas como clássicos do RPG por muitos jogadores.

Em 1987, a Chaosium decidiu trazer o jogo para a época atual, lançando o suplemento Cthulhu Now. O sucesso desse suplemento fez com que, no ano seguinte, a Chaosium criasse uma terceira ambientação, Cthulhu By Gaslight, que levava o jogo para a Inglaterra da Era Vitoriana. Atualmente, o livro básico já traz as três ambientações, permitindo que o mestre ambiente sua história na época atual, na década de 1920, ou na década de 1890. A edição mais recente do jogo é a Call of Cthulhu 25th Anniversary Edition, 12a versão do livro básico, lançada em 2006. Além de nas três épocas "tradicionais", suplementos agora permitem que os jogadores se envolvam com mistérios lovecraftianos na Idade Média (Cthulhu: Dark Ages), no Século XXIII (Cthulhu Rising) e até mesmo no Império Romano (Cthulhu Invictus).

Call of Cthulhu, 1a ediçãoNa época do lançamento da 3a edição de D&D, quando parecia que o sistema d20 iria dominar o mundo, Call of Cthulhu também ganhou uma versão d20, publicada pela Wizards of the Coast sob licença da Chaosium. Escrito por Monte Cook e John Tynes e lançado em 2001, Call of Cthulhu d20 não pretendia ser apenas uma versão do jogo da Chaosium para o sistema d20, mas uma forma de atrair jogadores de D&D para o cenário criado por Petersen. Por causa disso, muitos dos elementos de horror psicológico foram suprimidos - embora a perda de sanidade, felizmente, tenha ficado - ou substituídos por elementos de campanhas mais heroicas, como as de D&D. O livro possibilitava, inclusive, que os jogadores usassem seus personagens já existentes de D&D em aventuras de Call of Cthulhu, ou que o mestre usasse os monstros criados por Lovecraft como oponentes em uma campanha de D&D. Durante algum tempo, a Chaosium chegou a publicar regras para o sistema d20 junto com as regras para BRPS em alguns de seus suplementos, mas depois acabou desistindo - mais ou menos como a Alderac fez com Legend of the Five Rings. Hoje, Call of Cthulhu d20 está fora de catálogo, e, com a vigência da 4a edição de D&D, não há planos para que Cthulhu volte a esse sistema.

No meio da década de 1990, em meio ao boom dos card games, a Chaosium também decidiu tentar uma fatia do bolo lançando Mythos, um card game inspirado em seu RPG Call of Cthulhu. Lançado em 1996, Mythos foi bastante elogiado, principalmente por fugir da fórmula "colocar monstros para brigar uns contra os outros" que dominava os card games da época; nele, cada personagem assumia o papel de um investigador, envolvido com um dos mistérios típicos das histórias de Lovecraft. Conforme ia avançando na solução do mistério, através de cartas que jogava, o jogador ganhava "pontos de aventura", e, assim que um jogador atingia 20 pontos de aventura, o jogo terminava, e o vencedor era determinado. O jogo exigia um grande nível de interação entre os jogadores, e podia ser jogado por apenas dois, um contra o outro, ou em maior número, com os torneios oficiais sendo disputados em mesas de quatro jogadores cada; enquanto tentava solucionar seus próprios mistérios, cada jogador também podia tentar atrapalhar os outros, através do uso de cartas específicas. As cartas também deviam ser jogadas com cuidado, pois muitas delas custavam "pontos de sanidade", e, uma vez que um jogador chegasse a zero pontos de sanidade, era eliminado do jogo.

Mythos foi bastante premiado, ganhando o Origins Award de Melhor Card Game de 1996, e sendo eleito pela conceituada revista Pyramid como um dos melhores card games de todos os tempos. Infelizmente, essa boa recepção da crítica não se refletiu nos jogadores, e o jogo não vendeu quase nada, sendo cancelado após um ano e apenas três expansões, a básica, Dreamlands, que colocava os jogadores para resolver mistérios em uma dimensão paralela, e New Aeon, que trazia o jogo para a época atual - assim como o RPG, o card game era originalmente ambientado na década de 1920. O problema é que a Chaosium investiu muito de seu dinheiro na produção e divulgação do jogo, e seu cancelamento quase levou a editora à falência - durante anos, apenas um ou dois suplementos de Call of Cthulhu eram lançados por ano, até eles conseguirem se reerguer novamente em 2005.

Em 2004, a Chaosium decidiu licenciar a linha Cthulhu para a Fantasy Flight Games, que lançou um novo card game, chamado simplesmente de Call of Cthulhu Collectible Card Game. De mecânica parecida com Mythos, o jogo colocava os jogadores tentando resolver histórias enquanto atrapalhavam uns aos outros; a diferença, aqui, é que as histórias eram compartilhadas pelos jogadores - ou seja, todos tinham os mesmos objetivos - e representadas por "cartas de história", tiradas de um deck comum a todos os que estivessem jogando. Para tentar resolver a história, cada jogador usava seu próprio deck, sendo que, se suas cartas se esgotassem, ele era eliminado do jogo. Cada objetivo cumprido pelo jogador dava a ele o direito de colocar um marcador na carta de história, e o primeiro a colocar cinco marcadores concluía a história, ganhando o direito de se beneficiar de uma habilidade conferida pela carta. O primeiro jogador a concluir três histórias ganhava o jogo.

Call of Cthulhu CCG foi mais uma vez elogiadíssimo pela crítica, e, felizmente, dessa vez os jogadores acompanharam. Ao todo, foram lançados dois sets básicos (Arkham Edition, de 2004, e Eldtrich Edition, de 2006), quatro expansões (Unspeakable Tales, Forbidden Relics, Masks of Nyarlathotep e Forgotten Cities) e quatro dos chamados Asylum Packs (Spawn of Madness, Kingsport Dreams, Conspiracies of Chaos e Dunwich Denizens), conjuntos de vinte cartas cada, que já eram comprados completos, sem a necessidade de se ficar "colecionando", além de um deck promocional distribuído aos organizadores de torneios (o Yithian Deck).

Os Asylum Packs fizeram tanto sucesso que, em 2008, a Fantasy Flight Games decidiu mudar a direção do card game, renomeando-o para Call of Cthulhu Living Card Game, e lançando-o em um novo formato: agora, o card game é lançado completo, em uma caixa com 155 cartas e um tabuleiro. Essas cartas podem ser combinadas para formar um grande número de decks, o que significa que dois jogadores podem comprar uma caixa e sair jogando com várias cartas diferentes, sem a necessidade de ficar colecionando o jogo (daí a mudança no nome de Collectible para Living). De vez em quando, a Fantasy Flight também coloca no mercado novos Asylum Packs de 20 cartas cada, que o jogador pode comprar e somar às que já tem. As regras do jogo continuam exatamente as mesmas, o que significa que todas as cartas do CCG podem ser usadas em conjunto com as do LCG; o verso, porém, é diferente, decisão tomada para que apenas as do LCG sejam válidas em torneios oficiais. Sem dúvida foi uma decisão ousada da Fantasy Flight - criar um card game que não precisa ser colecionado para ser jogado - mas que, até agora vem dando certo, tanto que já foram lançados nada menos que oito Asylum Packs para o LCG (At the Mountains of Madness, Ancient Horrors, The Spawn of the Sleeper, The Horror Beneath the Surface, The Antediluvian Dreams, The Terror of the Tides, The Thing from the Shore e The Path to Y'ha-nthlei) e pelo menos mais dois (Twilight Horror e In Memory of Day) já estão a caminho.

My Little CthulhuEm 2005, Cthulhu também chegou ao mundo dos games, com Call of Cthulhu: Dark Corners of the Earth, lançado para PC e Xbox. Bem, na verdade ele quase chegou, já que o game na verdade é inspirado em uma aventura da Chaosium chamada Escape from Innsmouth, que, por sua vez, foi inspirada em um conto de Lovecraft chamado A Sombra Sobre Innsmouth. De Cthulhu mesmo, o game não tem quase nada, embora mereça crédito por fazer alusões e referências a quase todas as histórias de Lovecraft.

No papel do detetive particular Jack Walters, que posui um talento incomum para solucionar casos com poucas pistas, e passou alguns anos internado sofrendo de amnésia e esquizofrenia, o jogador deve ir até a cidade de Innsmouth solucionar o que parece ser um simples caso de pessoa desaparecida, mas envolve cultistas, monstros e horrores alienígenas. Uma das características mais peculiares do game é que ele não possui nenhum tipo de painel, com todas as informações sendo passadas aos jogadores através do comportamento de Walters: conforme ele recebe dano, sua respiração e batimentos cardíacos se tornam mais acelerados, sua visão fica desfocada e turva, e seus movimentos ficam mais difíceis. Ao se deparar com certos elementos do jogo, Walters também perde sanidade, e uma sanidade baixa resulta em alucinações visuais, distorções no som e dificuldade nos controles. Embora seja um jogo de primeira pessoa, não é exatamente de tiro, já que Walters passa a maior parte do tempo desarmado, e, quando acha uma arma, a munição é escassa e deve ser bem gerenciada.

Apesar de ter sido bem recebido pela crítica, Dark Corners of the Earth foi considerado muito difícil pelos jogadores, e ainda por cima era cheio de bugs e glitches que irritavam ao ponto de muita gente desistir de jogar antes do final. A Headfirst, que desenvolveu o jogo, chegou a assumir que ele foi lançado precipitadamente, e que o projeto inicial previa muito mais elementos e um melhor polimento do que o do game que chegou ao mercado. Esses elementos seria aproveitados em duas sequências, uma delas exclusiva para Playstation 2, mas a Headfirst faliu em 2006, e até hoje não há planos para que outra empresa assuma seu legado.

Além de chegar ao mundo dos games, em 2005 Cthulhu chegou também ao mundo dos filmes. Durante muitos anos, as histórias de Lovecraft foram consideradas "infilmáveis", não somente pela imensa quantidade de elementos surreais e fantásticos, mas também por serem muito curtas. Mas a H. P. Lovecraft Historical Society, organização originalmente fundada por jogadores do RPG Call of Cthulhu, e que hoje se dedica a preservar e difundir as obras de Lovecraft, decidiu pagar para ver, e produziu um curta de 45 minutos inspirado no conto O Chamado de Cthulhu. O filme é até bem fiel ao conto, com a única diferença de que Thurston acaba seus dias internado em um hospício, o que não é mencionado no conto em nenhum momento.

Curiosamente, The Call of Cthulhu, o filme, é mudo e em preto e branco. Isso foi feito de propósito, segundo a HPLHS, não somente para parecer que ele foi filmado pouco depois do lançamento do conto, mas também para diminuir custos com cenografia - como é em preto e branco, pouco importam as cores dos objetos filmados - e edição de som - encaixar uma trilha sonora contínua é muito mais fácil que encaixar diálogos e efeitos sonoros. A abertura do filme também foi feita para se parecer com a de um filme da década de 1920. The Call of Cthulhu foi lançado direto em DVD nos Estados Unidos, e pode ser encontrado até com facilidade nas lojas. Foi exibido em diversos festivais de cinema norte-americanos, e bastante bem recebido pela crítica, que o considerou como a melhor adaptação de uma obra de Lovecraft feita até hoje.

Além de ter aparecido nessas mídias todas, nos últimos anos Cthulhu se tornou uma verdadeira estrela pop, emprestando sua aparência a todo tipo de produtos, como posters, camisetas, bichos de pelúcia, pantufas e aos bonecos da série My Little Cthulhu. Talvez isso seja se desviar do originalmente imaginado por Lovecraft, mas mais uma vez prova que as grandes criações sempre fogem do controle de seus criadores.

Série Lovecraft

O Chamado de Cthulhu

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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Escrito por em 9.12.09 com 1 comentário

Wraith: The Oblivion

Em setembro, quando eu fiz o Mês das Coisas que eu Não Gosto Tanto Assim, escrevi um post sobre o RPG Vampire: The Masquerade, que até acabou rendendo um comentário interessante devido a uma frase que soou um tanto estranha. Apesar disso, ele me deixou com vontade de escrever mais um, pelos motivos que agora passo a expor.

Como eu disse naquele post, Vampire faz parte de um cenário conhecido em português como Mundo das Trevas. Mais que isso, ele inaugurou este cenário. Talvez vendo que fazer um RPG sobre vampiros tinha dado certo, ou talvez já tendo planejado isso desde o início, a editora White Wolf, que publicou Vampire, lançou outros quatro títulos, um por ano, todos tendo criaturas sobrenaturais como tema. Depois de um certo hiato eles lançaram mais alguns, mas, para mim, que joguei os "originais" na época em que foram lançados, estes cinco formavam o verdadeiro núcleo do Mundo das Trevas. Títulos como Hunter: The Reckoning e Mummy: The Resurrection, lançados depois do hiato, por mais interessantes que fossem, jamais conseguiram entrar na minha cabeça como "principais", no máximo eu os considerava "acessórios".

Pois bem, dos cinco títulos do Mundo das Trevas original, eu já falei de quatro: Mage: The Ascension, Werewolf: The Apocalypse, Changeling: The Dreaming, e o já citado Vampire: The Masquerade. Como eu disse semana passada, com o final do ano se aproximando, eu costumo começar a pensar nos temas sobre os quais eu gostaria de falar antes de um novo ano chegar. E, ao pensar, cheguei à conclusão de que seria interessante completar o quinteto. Hoje, portanto, é dia de falar sobre Wraith: The Oblivion.

Um dos motivos pelos quais eu nunca escrevi sobre Wraith é que ele não é exatamente um dos meus RPGs preferidos - embora ele também não esteja na lista dos RPGs que eu não goste. Na verdade, eu só joguei uma única vez, em uma sessão que nem chegou ao final, e só tenho um único livro, o livro básico da primeira edição. Wraith possui, porém, uma ambientação interessante - lembra um pouco as histórias de Clive Barker - e faz algumas modificações curiosas nas regras do storyteller, o sistema de jogo usado pelo Mundo das Trevas. Como tanto a ambientação quanto as regras me agradam bastante, às vezes acho que eu só não gosto mais dele porque não o conheço mais.

um Barqueiro"Wraith" é uma palavra de origem escocesa que costuma ser traduzida como "aparição", mas que originalmente significava "fantasma". Em Wraith, portanto, os jogadores serão fantasmas, almas desencarnadas de pessoas que morreram recentemente. Mas, ao invés de ficarem vagando por aí arrastando correntes e assombrando casarões, os fantasmas de Wraith vivem em sua própria sociedade, com seus próprios interesses e propósitos, embora ainda sejam, de várias formas, ligados ao mundo mortal.

No cenário de Wraith, apenas uma minúscula parcela dos que morrem alcança a Transcendência, indo para o "céu" e se tornando seres de luz. Outra pequena parcela é devorada pelo Oblívio, desaparecendo completamente da realidade para não mais voltar. A esmagadora maioria acaba em um local conhecido como Shadowlands, uma espécie de dimensão paralela à nossa. As Shadowlands são uma espécie de espelho do mundo mortal, o que significa que o que existe aqui existe lá também, embora nem sempre com a mesma aparência - já que os habitantes das Shadowlands, como nós, estão sempre modificando o local onde vivem. Além das Shadowlands, há uma tempestade gigantesca, dentro da qual conceitos como tempo e distância como os conhecemos não se aplicam. Conhecida como Tempest, esta tempestade abriga reinos e impérios habitados exclusivamente por fantasmas, que em nada se parecem com o nosso mundo, bem como as Praias Distantes (Far Shores), locais que seriam equivalentes aos céus e infernos de diferentes mitologias e religiões.

O livro básico de Wraith, lançado pela White Wolf em 1994, coloca os jogadores, recém-falecidos, no Império de Stygia, fundado por ninguém menos que o lendário Caronte, e que equivale às Shadowlands do mundo ocidental. O Império é governado com mão de ferro pela Hierarquia, um grupo autoritário que busca manter seu poder através dos séculos, evitando que os habitantes do Império transcendam ou sejam devorados pelo Oblívio - nas palavras do Império, aliás, a Transcendência ou não existe ou é tão perigosa quanto o Oblívio, e ambos devem ser evitados a qualquer custo. Nem todos os habitantes do Império se submetem a esse governo autoritário, porém: alguns corajosos decidem se afiliar aos Renegados, que buscam derrubar a Hierarquia e transformar o Império em um Estado Anárquico, ou aos Hereges, que buscam abertamente a Transcendência. Outros habitantes do Império incluem os Barqueiros (Ferrymen), entidades misteriosas que atuam como guias através da Tempestade, e os Espectros (Spectres), pobres fantasmas que foram corrompidos pelo Oblívio.

O motivo pelo qual os personagens jogadores - bem como quase todos os demais habitantes do Império - não conseguem atingir a transcendência é simples: para usar um clichê do cinema, eles possuem assuntos inacabados. Alguma coisa, quando eles morreram, ficou incompleta, e será impossível que eles encontrem o merecido descanso eterno enquanto este pormenor não for resolvido. Em termos de jogo, isso é representado por duas características, as Paixões (Passions) e os Grilhões (Fetters). Paixões são os eventos que impediram que o pobre defunto caminhasse em direção à luz, como por exemplo "impedir que meu sócio corrupto se case com a minha esposa", enquanto Grilhões são os objetos que o lembram daquele evento, como uma aliança de casamento, ou a caderneta onde o corrupto anotava seu caixa 2. Um mesmo personagem pode ter quantas Paixões e quantos Grilhões ele quiser, sendo eles ranqueados em ordem de importância, mas, quanto mais importantes ou em maior número eles forem, mais ancorado às Shadowlands ele estará, impedido de ascender para uma nova existência. Alguns personagens nem se lembram mais por que eles possuem esses Grilhões, mas se lembram que eles devem ser importantes de alguma forma, e continuam impedidos de transcender. Um personagem que resolva todas as suas paixões, ou destrua todos os seus grilhões, vê a luz, e pode finalmente descansar - embora este seja um evento raríssimo, é também um objetivo válido para qualquer jogador de Wraith.

Mas a Hierarquia e seus laços com o mundo mortal não são as únicas coisas com as quais um personagem de Wraith deve se preocupar: há também, e principalmente, o Oblívio, uma força destrutiva que tudo consome, e, quando devora um personagem, o apaga da existência para sempre - ou o transforma em um Espectro, o que é ainda pior. Originários de uma região da Tempestade conhecida como Labirinto, os Espectros são os agentes do Oblívio, fantasmas que foram maculados por ele mas não morreram, se transformando em agentes de sua vontade, capazes de espalhar seu poder destrutivo. Alguns Espectros um dia foram fantasmas comuns, que em determinado momento de suas existências entraram em contato com o Oblívio, mas alguns já se tornaram Espectros no momento de suas mortes, em especial aqueles que morreram de fome, genocídio ou outras atrocidades. A maioria dos Espectros acabam eles mesmos sendo consumidos pelo Oblívio e apagados da existência após algum tempo, mas alguns conseguem transcender para algo pior, os Malfeans. Líderes dos Espectros e mestres do Labirinto, os Malfeans se dividem em duas castas: aqueles que um dia foram vivos, e após sua morte foram corrompidos até este estágio, e aqueles que sempre foram Malfeans, desde o início do mundo, e, segundo as lendas, cavaram o Labirinto com seus próprios dentes na aurora da criação.

Um Espectro é um inimigo terrível, mas ainda assim não é a principal preocupação dos jogadores em relação ao Oblívio. Isso porque há uma razão para que cada personagem jogador seja especialmente suscetível à corrupção do Oblívio: ele já traz, desde sua morte, uma parcela desta corrupção dentro de si. Conhecida como Sombra (Shadow), esta parcela é praticamente uma segunda personalidade, que pode até dominar as ações e pensamentos do personagem durante algum tempo, em um episódio conhecido como Catarse. Somente com muita força de vontade um personagem consegue reassumir o controle e retornar de uma Catarse, embora nunca retorne idêntico a quando foi. Um personagen que não consiga escapar de uma Catarse acaba dominado pela sua Sombra, e se transforma em um Espectro.

As Sombras eram uma das coisas mais originais de Wraith, mas também uma das mais complicadas, e, segundo muitos, um dos motivos pelo qual o jogo não fez muito sucesso. Afinal, era preciso que cada jogador interpretasse não um, mas dois personagens totalmente opostos. Uma interessante regra alternativa dizia que, ao invés disso, cada jogador, além de seu personagem, podia ser responsável pela Sombra de outro jogador do grupo, o que podia dar o mesmo trabalho, mas devia ser mais divertido.

Em matéria de objetivos, nem todos os personagens de Wraith buscavam resolver seus assuntos inacabados ou se contentava em escapar do Oblívio pelo resto de sua existência; alguns se conformavam com sua nova situação, e buscavam obter prestígio, ou até mesmo poder, dentro da sociedade do Império - o que também não era nada fácil, já que, assim como os vampiros, os fantasmas mais antigos nutriam um certo preconceito pelos mais recentes, que sempre trazem novidades que acabarão por destruir a forma como eles "vivem" há séculos. Ainda assim, campanhas inteiras podiam ser jogadas dentro das próprias Shadowlands - ou até mesmo da Tempestade - o que transformava Wraith em um dos cenários com maiores possibilidades de exploração e objetivos diferentes para os jogadores.

Seguindo o esquema padrão da White Wolf, assim como os vampiros de Vampire são divididos em clãs, os lobisomens de Werewolf em tribos, e os magos de Mage em tradições, os fantasmas de Wraith são divididos em guildas. As guildas, porém, são bem menos rígidas, já que qualquer fantasma pode escolher a qual guilda irá pertencer, diferentemente do que acontece coms os vampiros, que sempre pertencem ao mesmo clã de quem os criou, ou os lobisomens, que já nascem pertencendo a uma tribo. Instituições ancestrais das Shadowlands, proibidas pelo Império, mas que continuam existindo mesmo assim, as guildas têm como principal função ensinar aos fantasmas o uso dos Arcanoi (singular Arcanos), os poderes que eles passam a ter depois da morte. Cada guilda é especializada em um Arcanos, e como o uso constante dos Arcanoi faz com que o fantasma em questão adquira algumas características bizarras, os membros de uma mesma guilda acabam ficando todos com características comuns, assim como os vampiros de um mesmo clã ou os magos de uma mesma tradição. A maioria dos Arcanoi é inspirada em poderes de fantasmas vistos em livros ou filmes, como a capacidade de movimentar objetos do mundo físico, de manipular os sonhos dos mortais, ou de possuir o corpo de alguns mortais durante um breve período de tempo. Outros são relacionados diretamente com a sociedade das Shadowlands, como a capacidade de influenciar as Sombras de outros fantasmas, ou de manipular o uso do Pathos, a energia emocional que serve de combustível não só para os próprios Arcanoi, mas também para a existência de cada personagem.

uma SombraComo todos os personagens de Wraith já estão mortos mesmo, eles não podem morrer, por isso suas fichas não trazem a famosa escala de dano sofrido dos outros livros do Mundo das Trevas, e os combates são travados de uma forma um tanto diferente. Basicamente, cada personagem possui uma característica chamada Corpus, que representa sua integridade física; ao sofrer dano físico ou emocional, o personagem perde Corpus, que pode ser restaurado gastando pontos de Pathos. Se o Corpus ou Pathos do personagem chegarem a zero, ele passará por um episódio conhecido como Angústia (Harrowing), no qual ele deverá confrontar sua própria Sombra, ganhando uma nova chance de continuar existindo se sobreviver. Desnecessário dizer, personagens que percam o confronto contra a Sombra na Angústia são devorados pelo Oblívio, deixando de existir para sempre, assim como personagens que cheguem a zero Corpus através do uso de alguns Arcanoi, ataques de alguns Espectros ou dano causado por alguns materiais especiais, como o temido Aço de Stygia. Um episódio de Angústia também pode ser provocado enquanto o personagem ainda tem Corpus e Pathos, por sua Sombra. Estes episódios não visam destruir diretamente o personagem, mas sim sua conexão com suas Paixões e Grilhões, enfraquecendo sua ligação com o mundo físico. Um personagem que perca totalmente sua conexão com suas Paixões e Grilhões também é devorado pelo Oblívio, diferentemente daqueles que resolvem sua situação em relação a eles, atingindo a Transcedência.

Finalmente, alguns fantasmas são tão ligados ao mundo físico que não se conformam de terem morrido, e acabam conseguindo uma espécie de nova chance, voltando a habitar seus antigos corpos e usando sua energia para animá-los. Conhecidos como Risen (os "postos de pé", ou algo do gênero), eles ainda mantêm todas as características de um personagem normal, como Paixões, Grilhões, Arcanoi, Pathos, Corpus e até mesmo uma Sombra, mas são capazes de viver entre os mortais como uma espécie de zumbi, um corpo morto que anda e fala. Os Risen foram descritos em um suplemento separado, e muitos nem consideram que eles façam parte do mesmo cenário de Wraith, já que pouco têm a ver com a sociedade das Shadowlands.

Dos cinco RPGs originais do Mundo das Trevas, Wraith foi o mais mal sucedido. As explicações para isso variam, desde excessiva seriedade do material até excessiva morbidez do clima, passando pelo simples fato de que jogadores de RPG não se sentem à vontade no papel de gente morta. Seja como for, Wraith só teve duas edições (a segunda é de 1996), e foi descontinuado bem antes do Juízo Final que acometeu o Mundo das Trevas em 2004, jamais ganhando uma Edição Revisada como aconteceu com seus colegas mais famosos. Wraith também ainda não ganhou uma nova versão para o novo Mundo das Trevas, mas muitos de seus elementos têm sido usados em outros dos títulos desta nova linha, especialmente o mais recente, Geist: The Sin Eaters.

Antes de ser definitivamente encerrado, Wraith ainda ganhou uma ambientação de época - Wraith: The Great War, ambientado durante a Primeira Guerra Mundial - e um cenário oriental, o Dark Kingdom of Jade. É interessante notar que as Shadowlands equivalem apenas ao mundo dos mortos da civilização ocidental, com diversos outros mundos, cada um com características próprias, e livre da influência do Império, sendo descritos nos livros e em suplementos, como o próprio Dark Kingdom of Jade, equivalente ao mundo dos mortos oriental; o Dark Kingdom of Ivory, equivalente ao mundo dos mortos africano; Khem, o mundo dos mortos do Egito, povoado até por algumas múmias; e a cidade de Swar, o mundo dos mortos da Índia. É realmente uma pena que nem todos estes cenários possam ter sido descritos em detalhes, o que teria feito de Wraith, sem dúvida alguma, o RPG de ambientação mais rica da White Wolf.
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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Escrito por em 17.9.09 com 0 comentários

Vampire: The Masquerade

Hoje teremos o terceiro dos quatro posts do Mês das Coisas que eu Não Gosto Tanto Assim, a série sobre os assuntos dos quais eu gosto, mas, bem, não tanto assim. Como eu disse aqui no primeiro desses posts, originalmente seriam assuntos dos quais eu não gosto, mas acabei chegando à conclusão de que, primeiro, falar sobre coisas que eu não gosto seria desagradável, e, segundo, os dois assuntos que eu já tinha separado não eram exatamente coisas das quais eu não gostasse, mas coisas que eu até achava interessantes, mas tinham algum probleminha que faziam com que eu não gostasse tanto delas. Como eu também já disse, a partir do momento em que eu tomei consciência disso, foi extremamente fácil arrumar os outros dois posts. Na verdade, um deles surgiu na minha mente quase que imediatamente: Vampire: The Masquerade. Não por acaso, o tema de hoje.

Eu adoro RPG. Embora já não jogue há um bom tempo, ainda o considero como a diversão mais estimulante simultaneamente ao cérebro, à criatividade, e às interações sociais. Também adoro o Mundo das Trevas. O primeiro RPG que joguei a sério foi Mage: The Ascension, e, se tivesse de escolher meu RPG preferido de todos os tempos, seria Werewolf: The Apocalypse. Por uma série de razões, porém, eu não gosto de Vampire. Para começar, ao contrário de um monte de gente por aí, eu não me sinto particularmente atraído por vampiros. Não vejo nada de mais neles, não sinto vontade de me tornar uma criatura das trevas, e até acho meio ridículo filmes e livros que mostram vampiros adolescentes apaixonados que bebem sangue artificial para não renegar sua humanidade ou coisa do gênero. Além disso, Vampire é, essencialmente, um jogo de política, e eu nunca entendi como alguém pode se divertir tramando maquinações políticas. Não vou dizer que nunca me diverti jogando Vampire, porque uma das sessões foi antológica para dizer o mínimo, mas, sinceramente, dos que eu joguei, era o RPG da White Wolf que eu menos gostava, e o que eu menos aceitava quando era convidado para jogar. Ainda assim, quando me perguntei quais outros assuntos poderia colocar nessa série, me lembrei de Vampire, principalmente porque eu faço menos posts sobre RPG do que gostaria.

Lançado em 1991, vampire: the Masquerade (conhecido aqui no Brasil como Vampiro: A Máscara) foi não somente o primeiro título do Mundo das Trevas, mas também o primeiro RPG da editora White Wolf. Criado por Mark Rein-Hagen, que se inspirou principalmente nos livros de Anne Rice, o jogo colocava os jogadores não no papel de heróis poderosos, mas de vampiros amaldiçoados, vivendo em um mundo à beira da extinção, tendo de esconder sua condição dos humanos, e sobreviver em meio às maquinações políticas de sua raça. Como o próprio Rein-Hagen definia, era um jogo de "horror pessoal", e não de aventuras heróicas. Por isso, ele privilegiava a interpretação, utilizando um sistema de jogo batizado de Storyteller (o "contador de histórias"), com o qual era muito mais fácil, por exemplo, enganar um oponente do que sair na porrada com ele - aliás, o Storyteller costumava ser criticado justamente porque suas regras de combate eram complicadíssimas, e seu foco na interpretação não evitava que os personagens tivessem de entrar em combate quase que uma vez por sessão de jogo.

Vampire também introduziu a marca registrada de todos os RPGs do Mundo das Trevas: os vampiros eram divididos em sete clãs, cada um com seus poderes e peculiaridades. Para criar os sete clãs, Rein-Hagen se inspirou em vários filmes, livros e lendas sobre vampiros. Assim, por exemplo, tínhamos o clá Nosferatu, inspirado no filme de mesmo nome, cujos integrantes eram deformados, mais parecidos com monstros que seres humanos; os Gangrel eram animalescos, com a capacidade de se transformar em lobos e morcegos, conforme ditavam algumas lendas da Europa Oriental; e os Ventrue eram sofisticados, transitando entre as altas esferas da sociedade, como os vampiros das histórias mais modernas. Um jogador sempre pertencia ao mesmo clã que o vampiro que o "mordeu", ou seja, as características e poderes do clã eram transmitidos por seu sangue - assim como nos livros de Anne Rice, não bastava ser mordido para "virar vampiro", era necessário ter contato com o sangue vampírico após a mordida. Os poderes de cada clã, chamados no jogo de Disciplinas, também refletiam os poderes vampíricos citados em várias fontes, como a velocidade ou força sobre-humana, a capacidade de se transformar em fumaça ou em animais, a dominação mental, entre outras. As fraquezas dos vampiros também eram as tradicionais: viravam pó ao serem expostos à luz do Sol, ficavam paralizados com uma estaca de madeira fincada no coração, e sofriam dano ao vislumbrar símbolos religiosos empunhados por pessoas de grande fé, por exemplo. Não poder cruzar água corrente, ter medo de alho e ter de ser convidado para entrar na casa de alguém ficaram de fora, sendo classificadas como "crendices".

Segundo a mitologia do jogo, todos os vampiros descendem de Caim, amaldiçoado após matar seu irmão Abel. Ao transmitir seu sangue, Caim transmitiu seus poderes e fraquezas, mas tambpem o diluiu. Em termos de jogo, isso significa que, cada vez que um vampiro transforma um mortal em vampiro, ele está essencialmente criando um vampiro mais fraco que ele mesmo. Nas regras, essa "força do sangue" é determinada por uma característica chamada Geração. Os personagens jogadores normalmente pertencem à 13a geração, e, para muitos dos vampiros mais velhos, o surgimento de vampiros de sangue tão fraco é um dos sinais do fim do mundo, que, inevitavelmente, se aproxima.

Mas os jogadores tinham mais com o que se preocupar sem ser com o fim do mundo. Ao se tornarem vampiros, muitas vezes eles tinham de deixar suas vidas humanas para trás, representando riscos para sua família e amigos se não o fizessem. Além de lidar com o preconceito ao ingressar na sociedade vampírica, os jogadores ainda tinham de cuidar para não perder sua Humanidade - não somente a qualidade que os fazia humanos, mas também uma característica representada por pontos em sua ficha, que diminuía cada vez que o jogador tomava atitudes moralmente condenáveis. Um vampiro sem Humanidade era pouco mais que um animal, sendo caçado por seus próprios pares por representar um risco à sua sociedade. Em Vampire, vampiros não podiam levar uma vida glamourosa vivendo na alta sociedade, se apaixonando por adolescentes e se alimentando de sangue sintético, eles tinham de andar na linha, se escondendo e se controlando o tempo todo - o simples fato de se "alimentar" poderia gerar perda de Humanidade, já que o vampiro podia se inebriar com o sangue e sair em uma matança desenfreada em busca de mais.

E, além disso tudo, os vampiros de Vampire não eram exatamente o topo da cadeia alimentar. Outros seres sobrenaturais, como lobisomens, estavam sempre à espreita, esperando um descuido para atacá-los e exterminá-los. Humanos que tomassem ciência de que existiam vampiros podiam se tornar caçadores, determinados a erradicar essa ameaça do mundo. E ainda haviam os outros vampiros, que podiam envolvê-los em seus jogos de poder, usando-os como peões para alcançar seus objetivos, ou decidindo matá-los porque discordavam deles sob algum aspecto. Isso era especialmente verdade no caso dos vampiros do Sabbat, um secto introduzido nos suplementos lançados depois do livro básico, de vampiros que não faziam questão nenhuma de preservar sua humanidade - de fato, em suas fichas, eles nem tinham Humanidade, mas uma espécie de código de honra qualquer, que, em termos de jogo, funcionava da mesma forma, mas, em termos de interpretação, fazia com que eles fossem menos moralmente limitados do que os vampiros do livro básico.

Ao longo do tempo, em parte graças à popularidade do Sabbat, Vampire foi ganhando novos clãs e disciplinas, que ampliavam as possibilidades dos jogadores. Para não virar bagunça, em um determinado ponto a White Wolf decidiu fazer uma separação entre clãs e "linhagens", que essencialmente eram a mesma coisa que um clã, um grupo de vampiros com poderes e características únicas, mas com a diferença de que essas características surgiram por alguma explicação estranha, ao invés de terem sido transmitidas desde o início dos tempos - nessa época, ficou acertado que cada um dos treze clãs principais teria um Antediluviano, um vampiro "mordido" antes do Dilúvio, e que transmitiu a todos os seus descendentes as características do clã em questão. Segundo a mitologia do jogo, os Antediluvianos estavam em torpor, uma espécie de sono profundo causado por ausência de sangue, e, quando acordassem, trariam com eles o fim do mundo.

Sim, o fim do mundo era uma característica essencial dos jogos da White Wolf. E o mais incrível foi que ele chegou. Em 2004, ao decidir encerrar o Mundo das Trevas e começar tudo de novo, a editora lançou uma série de livros que permitia aos jogadores jogar durante o próprio apocalipse, com Antediluvianos, vampiros de 16a geração, e tudo o mais ao que tinham direito. Depois disso, o jogo foi tirado de catálogo, e a produção de suplementos interrompida.

Antes de encontrar o armagedom, porém, vampire foi um jogo extremamente bem sucedido. Sua primeira edição ganhou o Origins Award, o Oscar do RPG, como Melhor Sistema de Regras. A ela se seguiram outras duas, a Segunda Edição, de 1992, e a Edição Revisada, de 1998, cada uma atualizando o jogo com o que havia sido lançado nos suplementos até então, e avançando um pouco mais a história em direção ao fim do mundo. Vampire foi considerado por muitos como o responsável pela chacoalhada no mercado que levou ao boom do RPG nos Estados Unidos na década de 1990, e durante muitos anos foi o RPG mais jogado do Brasil. E, assim como foi influenciado pelas obras de vampiros anteriores a ele, acabou influenciando algumas das posteriores, com alguns de seus elementos podendo ser identificados pelos fãs em filmes e livros lançados recentemente - a Sony, inclusive, chegou a ser processada por plágio pela White Wolf, que viu em seu Underworld (traduzido para Anjos da Noite) semelhanças demais com Vampire para que fosse uma simples "inspiração".

Dessa forma, nada mais natural que Vampire fosse o carro-chefe da White Wolf, e que, sempre que a editora decidisse experimentar alguma coisa, começasse por ele. Foi assim que surgiu Vampire: The Dark Ages (Vampiro: A Idade das Trevas no Brasil), um novo livro básico lançado em 1996, que colocava a ação não às portas do fim do mundo, mas em plena Idade Média, a ambientação mais popular entre os jogos de RPG. Mas esqueça a Idade Média fantástica e heróica de cavaleiros e dragões, essa era a Idade Média mesmo, de inquisição e peste negra, onde as pessoas não escovavam os dentes e morriam aos 30 anos de idade. Originalmente concebido para ser o primeiro de uma série onde cada RPG da White Wolf seria ambientado em uma época diferente (Werewolf no velho oeste, Mage na renascença e Wraith na Primeira Guerra Mundial), Dark Ages fez tanto sucesso que acabou se tornando uma série em separado, com títulos também para Werewolf, Mage e Changeling. Para substituí-lo a White Wolf preparou outro título "histórico", Victorian Age: Vampire, lançado em 2001 e ambientado na Inglaterra da Era Vitoriana.

Algo semelhante aconteceu e 1998, quando a White Wolf decidiu criar ambientações orientais para seus jogos. O primeiro lançado, evidentemente, foi Kindred of the East, que tratava dos vampiros da Ásia, chamados no jogo de kuei-jin. Inspirados em várias lendas de vampiros do Japão, China e Índia, os kuei-jin tinham muito pouco a ver com os vampiros ocidentais, sendo almas de pessoas que morreram com pendências e conseguiram retornar a seus corpos, tendo de roubar o chi de pessoas ainda vivas para poder permanecer em nosso mundo. Apesar da forma mais comum de se roubar chi seja bebendo o sangue das vítimas, kuei-jin não podem criar outros kuei-jin, e eles possuem preocupações filosóficas mais complexas que manter sua humanidade e os jogos de política de sua sociedade. Por tudo isso, os kuei-jin acabaram sendo considerados não como vampiros, mas como criaturas sobrenaturais totalmente diferentes, e Kindred of the East, de um suplemento, passou a ser o primeiro de uma série totalmente nova, centrada neles.

Além da ambientação tradicional, da medieval, da vitoriana e da oriental, os vampiros ganharam uma ambientação africana em 2003, com Kindred of the Ebony Kingdom - em tempo, "kindred", que significa algo como "aparentado", mas acabou traduzido como "membro", é como a maioria dos vampiros do jogo se refere aos próprios vampiros, embora alguns, principalmente os do Sabbat, prefiram o termo "cainitas". Conhecidos como laibon, os vampiros da África também eram diferentes dos vampiros "normais" do cenário, possuindo não um valor de Humanidade, mas uma medida de sua relação com o mundo dos mortais, chamada Aye, e uma de sua relação com o mundo espiritual, chamada Orun. O desafio para os laibon era manter o equilíbrio entre ambos, já que um laibon com um alto nível de Aye se tornava parecido com um mortal, enquanto um com alto nível de Orun se tornava degenerado e demoníaco - embora um com alto nível em ambos se tonasse uma criatura transcedental. Apesar dessa diferença, os laibon possuíam a mesma origem, fraquezas e poderes dos demais vampiros do ocidente - sendo, inclusive, divididos em clãs, chamados "legados", cada um correspondente a um dos clãs tradicionais de Vampire - embora, por terem vivido em isolamento durante um longo tempo, não acreditavam mais serem descendentes de Caim, e atribuíam sua própria existência a uma grande variedade de lendas e mitos africanos. Kindred of the Ebony Kingdom foi programado para ser o primeiro de uma série de suplementos ambientados na África, mas, devido à decisão da White Wolf de trazer o apocalipse em 2004, acabou sendo o único - os metamorfos africanos, para Werewolf, acabaram sendo citados em alguns suplementos, mas jamais ganharam um livro próprio.

Vampire também deu origem ao único card game bem sucedido da White Wolf, Vampire: The Eternal Struggle. Lançado em 1994 pela Wizards of the Coast com o nome de Jyhad - que teve de ser mudado por causa da alusão ao islamismo - V:tES foi inventado por ninguém menos que Richard Garfield, o criador de Magic: The Gathering. Garfield, inclusive, aproveitou para introduzir no jogo mecânicas que ele achava que tornariam Magic mais atraente, mas que não eram mais possíveis de se introduzir sem alterar a essência do jogo. Em 1996, a Wizards passou a produção do jogo para a White Wolf, que continua lançando novas expansões - mesmo depois do apocalipse - o que faz com que V:tES seja um dos card games mais antigos ainda em produção: até hoje, já foram lançadas 21 expansões além do set básico, e mais uma já está programada para o mês que vem.

V:tES também possui uma peculiaridade que o diferencia de praticamente todos os demais card games: ele foi originalmente concebido para ser jogado em grupo, normalmente de quatro ou cinco jogadores, e não no esquema um contra um tradicional dos card games. Em V:tES, cada jogador interpreta um vampiro antigo e de grande poder, intensamente envolvido nos jogos políticos da sociedade vampírica. Seu intuito é enfraquecer e derrotar seus oponentes, representados pelos outros jogadores, e para isso ele se utilizará de peões, que são os vampiros representados nas cartas do jogo - que, teoricamente, nem sabem que estão sendo manipulados. Em teoria, cada jogador deve se concentrar em derrotar o jogador sentado à sua esquerda, mas as interações sociais são muito fortes em V:tES, não sendo incomum que dois jogadores mais fracos decidam unir forças para derrotar um mais forte, que um jogador finja estar agindo em conjunto com outro quando na verdade está esperando o momento propício para derrotá-lo, ou que os jogadores blefem, para que os demais não saibam o que eles realmente podem fazer com as cartas que têm na mão e na mesa. De certa forma, uma partida de V:tES se parece um pouco com uma partida de pôquer, com a inteigência e a negociação tendo um papel tão importante quanto um baralho forte.

Depois do apocalipse, Vampire: The Masquerade foi "substituído" por um outro jogo, Vampire: The Requiem, lançado pela White Wolf em 2004 e ambientado em uma nova versão do Mundo das Trevas, ainda sinistro e sombrio, mas sem a iminência do fim do mundo. Como eu nunca joguei, não posso falar muito sobre ele, mas, como saudosista, às vezes tenho a impressão de que não deve ser muito bom.
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quarta-feira, 11 de março de 2009

Escrito por em 11.3.09 com 0 comentários

Tormenta

Hoje eu estou escrevendo o tricentésimo post do átomo. Se eu dissesse que jamais esperava chegar a este ponto, estaria mentindo, porque desde o post 250 que eu faço planos para o 300. Nada muito elaborado, apenas um assunto sobre o qual eu queria falar há tempos, mas que estava guardando para esta ocasião especial. Quem prestou atenção nas categorias deve ter percebido que eu deixei lá uma dica do que seria. Não, a categoria Tormenta não está lá à toa. Ela foi criada porque hoje é dia de Tormenta no átomo. E também para aproveitar e juntar tudo o que foi inventado pelo Trio Tormenta em uma categoria só. Mas o motivo principal mesmo é o post de Tormenta, então vamos a ele!

Guia do JogadorPara quem não sabe, Tormenta é um RPG. Mais que isso, é um RPG nacional. Mais ainda, é o RPG nacional mais jogado de todos os tempos. Há quem diga, inclusive, e eu acredito, que ele é o RPG mais jogado do Brasil, mais até do que qualquer importado. Mas, mais do que isso tudo, ele é um RPG muito legal, com uma ambientação de primeira, personagens carismáticos, e livros muito bem escritos. E, por incrível que pareça, começou da forma mais despretensiosa possível, como um apanhado de vários cenários, personagens e aventuras criados para outros RPGs pelos autores Marcelo Cassaro, Rogério Saladino e J.M. Trevisan - desde então conhecidos como o Trio Tormenta.

Tudo começou na finada revista Dragão Brasil, durante muito tempo a melhor - e única - revista de RPG do país. Além de apresentar resenhas de livros de RPG, a Dragão Brasil também trazia material próprio, como aventuras, personagens e cenários, que podiam ser usados por mestres e jogadores em suas campanhas. Já na primeira edição, por exemplo, foi apresentado o personagem Mestre Arsenal, um colecionador de armas e itens mágicos que poderia ser introduzido como vilão em campanhas de AD&D ou GURPS.

Diferentemente de outras publicações do gênero, a Dragão Brasil se mostrou surpreendentemente longeva, e, em 1999, ao chegar à edição número 50, merecia alguma matéria especial. Cassaro, Trevisan e Saladino, então, tiveram a idéia de reunir todo o material inventado por eles ao longo destas 50 edições, que até então era genérico, e reunir tudo em um único cenário de campanha - um único mundo, como se costuma dizer. Nascia assim o mundo de Arton, ameaçado por um perigo que talvez nem seus maiores heróis pudessem derrotar: a Tormenta, uma tempestade rubra que arrasa tudo por onde passa, trazendo seres inimagináveis, chuva ácida, destruição e morte.

"Arton" não é o nome de um planeta, mas de um grande continente - e, até bem pouco tempo, quando foi descoberta a Ilha de Moreania, este continente representava todo o mundo conhecido por seus habitantes. O mundo de Arton é de fantasia medieval, ao estilo D&D e Senhor dos Anéis, mas com algumas característica únicas, como a presença de armas de fogo que usam pólvora - clandestinas, pois a pólvora, ao contrário da magia, é proibida por ser considerada muito imprevisível e perigosa. A maior parte da população de Arton é humana, mas com eles convivem outras raças características de fantasia medieval, como elfos, anões, halflings, minotauros, sprites, centauros e dragões.

A porção norte do continente de Arton, conhecida como Remnor, abriga o Reinado, um conjunto de 27 reinos, cada um com suas características próprias, cidades e povoados únicos. Embora cada reino possua seu monarca ou governante, o Imperador-Rei Thormy, monarca do reino de Deheon, é, para todos os efeitos, o governante do Reinado. Além de reinos curiosos, como Tapista, o reino dos minotauros, e Collen, onde todos os habitantes possuem olhos mágicos, Remnor ainda abriga lugares de grande perigo, como o Deserto da Perdição, as Montanhas Sanguinárias e a ilha de Galrasia.

ArtonJá a porção sul de Arton, chamada Lamnor, não tem reinos humanos, embora um dia tenha contado com eles e com a cidade de Lenórienn, antiga morada dos elfos, hoje destruída e ocupada. Isso porque Lamnor é o lar da Aliança Negra, um imenso exército de goblins, hobgoblins, ogros, orcs e outras criaturas, lideradas pelo genreal bugbear Thwor Ironfist. Nascido sob a égide de uma profecia e aparentemente invencível, Ironfist planeja marchar com suas tropas por sobre o Reinado, governando toda Arton em nome dos goblinóides.

Além de Thwor Ironfist, vários outros vilões ameaçam a segurança do reinado diariamente, como o já citado Mestre Arsenal; o assassino Camaleão, que tem a capacidade de mudar de aparência; ou o dragão vermelho Sckhar, megalomaníaco governante do reino de Sckharshantallas. Mas nenhum perigo é tão iminente, devastador e temido quanto a Tormenta. Tudo começa com nuvens vermelhas, que se formam aparentemente sem motivo sobre uma área qualquer. Depois vem a chuva ácida, e criaturas que a mente humana não consegue conceber caem dos céus. Em poucos momentos, o local se transforma em uma Área de Tormenta, um local tão perigoso que apenas os mais poderosos aventureiros ousam desafiar.

Até recentemente, com a infeliz exceção do reino oriental de Tamu-Ra, nenhuma área de Tormenta havia oferecido um perigo real ao Reinado, sempre aparecendo em áreas remotas ou pouco importantes. Cada vez mais, porém, a tempestade vermelha se aproxima de Deheon, e a cada dia novos e aterrorizantes fatos sobre ela são revelados, que podem levar pânico à população se divulgados em larga escala. Arton pode ser um mundo medieval típico, com todos os perigos e aventuras que um mundo desses pode oferecer, mas a Tormenta é um ingrediente único e interessantíssimo, e uma das causas do cenário ser tão bem sucedido.

Com tantos perigos à espreita, aventureiros em Tormenta têm muito o que fazer. Mas, se não quiserem desafiar a Tormenta, enfrentar a Aliança Negra ou roubar um artefato do Mestre Arsenal, os jogadores ainda podem se envolver em aventuras mais usuais, como resgatar uma princesa, derrotar um lorde morto-vivo ou fechar um portal planar para outra realidade. As possibilidades são inúmeras, e durante as aventuras os personagens jogadores ainda podem conhecer, cooperar com ou até mesmo lutar ao lado dos personagens mais famosos do cenário, como o Protetorado do Reino, a elite dos aventureiros de Deheon; Talude, o Metsre Máximo da Magia; o temido pirata James K; Katabrok, o bárbaro; ou o mago Vectorius, tão poderoso que usou sua magia para arrancar uma montanha do chão, construir uma cidade sobre ela, e fazer com que a tal cidade viaje pelo Reinado, funcionando como mercado itinerante.

Na forma de um pequeno livro ofertado como brinde na compra da edição 50 da DB, a primeira edição de Tormenta era um cenário multissistemas, que podia ser usado com as regras de AD&D, GURPS ou 3D&T, o sistema "caseiro" da DB, também inventado por Cassaro. Embora a maior parte do material fosse "reciclado", Tormenta se mostrou um grande sucesso, com a edição 50 rapidamente se esgotando das bancas, e algumas pessoas até vendendo o brinde separadamente da revista. Por conta dessa alta vendagem, já na edição 54 da DB, Tormenta ganharia seu primeiro suplemento: também distribuído como brinde na compra da revista, O Panteão trazia os deuses do cenário, com regras próprias para seus clérigos e adoradores. Paralelamente a isso, Marcelo Cassaro decidiu lançar uma série em quadrinhos, Holy Avenger, ambientada no mundo de Arton e com a presença de vários personagens citados no livro de Tormenta. Holy Avenger fez um sucesso ainda maior, e ajudou a divulgar o RPG entre os fãs de quadrinhos.

Shivara Sharpblade lidera um exército contra a TormentaAnimados com tanto sucesso, os editores da DB passaram a publicar mais material para o cenário a cada edição da revista, o que se mostrou uma decisão controversa: a cada mês, mais eram as pessoas que reclamavam que a DB publicava matérias demais para seu próprio cenário, mas ainda em maior quantidade eram as que pediam ainda mais material para ele. Para tentar contrabalançar as coisas, os editores decidiram lançar uma nova revista, também chamada Tormenta, focada exclusivamente no cenário, para que a DB pudesse se concentrar em outros assuntos. Curiosamente, a revista Tormenta durou apenas 17 edições, sendo cancelada por decisão da editora, o que fez com que o novo material se concentrasse novamente na DB.

Como o cenário era uma verdadeira "colcha de retalhos", muitas pontas também precisavam ser aparadas, o que levou ao lançamento de uma segunda edição de Tormenta, esta vendida separadamente nas bancas, no formato de um pequeno livro, e com regras apenas para o 3D&T, para evitar problemas de copyright. Esta segunda edição trazia todo o conteúdo da primeira e de O Panteão revisados, além de algumas informações novas. Ao longo dos anos seguintes, Tormenta também ganharia seis novos suplementos: o Manual do Aventureiro, com novas opções para os personagens jogadores; o Manual dos Monstros, com a descrição de várias criaturas fantásticas do mundo de Arton; Holy Avenger 3D&T, uma adaptação da aventura dos quadrinhos; e O Reinado, três volumes que descrevem todos os reinos do cenário; além de um Escudo do Mestre, que também veio de brinde na DB. Em 2001, Tormenta ganhou uma terceira edição, desta vez com capa dura e vendida em livrarias, publicada pela Editora Daemon, e que também trazia regras para o sistema próprio da editora. Em 2004 foi a vez da "edição turbo", novamente vendida em bancas de jornal e com regras para 3D&T.

Com a chegada da terceira edição de D&D, que permitia que qualquer editora lançasse material compatível com os sistema d20, os editores de Tormenta decidiram lançar uma nova atualização, Tormenta d20, também pela Daemon. A este título se seguiram O Reinado d20 e Holy Avenger d20, adaptações dos títulos antigos para o novo sistema. Após o lançamento de D&D 3.5, o Trio Tormenta conseguiu um contrato com a Editora Jambô, e lançou a mais recente versão do jogo, Tormenta 3.5, que na verdade são dois livros, o Guia do Jogador e o Guia do Mestre. Os suplementos desta nova fase incluem A Libertação de Valkaria, uma aventura onde os personagens jogadores tentam salvar uma deusa prisioneira; O Panteão, a atualização do antigo suplemento, desta vez com revelações assustadoras sobre o cenário; Academia Arcana, a descrição da maior escola de magia de Arton; Vectora: Cidade nas Nuvens, que descreve a cidade-mercado de Vectora, que viaja pelos céus de Arton; Área de Tormenta, com mais revelações sobre a tempestade rubra; Piratas e Pistoleiros, que traz regras para jogar com estes dois tipos de personagens; e Galrasia: O Mundo Perdido, que descreve a ilha de Galrasia, habitada por monstros pré-históricos.

Além dos livros de RPG, Tormenta também ganhou três romances, escritos por Leonel Caldela, que, após o Trio Tormenta migrar da DB para a DragonSlayer, se uniu a eles como autor do cenário: O Inimigo do Mundo, O Crânio e o Corvo e O Terceiro Deus. Ao que tudo indica, o próximo lançamento do cenário será a aventura Contra Arsenal, onde os jogadores terão a chance de enfrentar o próprio Mestre Arsenal. Também está prevista uma nova versão do livro básico, atualizada após os acontecimentos dos três romances.

Mestre ArsenalQuando o Trio Tormenta saiu da DB, criou-se um imbróglio sobre quem teria os direitos relativos ao 3D&T, que poderia acabar respingando no cenário. Como a linha de Tormenta estava bem encaminhada na Jambô, os autores decidiram concentrar seus esforços em um novo cenário, os Reinos de Moreania, ambientado em um arquipélago no mesmo mundo de Arton, onde os humanos evoluíram de diferentes animais, com alguns mantendo características como orelhas, escamas e chifres de seus antepassados. Moreania ainda não ganhou nenhum livro, tendo sido apresentado até agora em matérias da DragonSlayer, mas, recentemente, personagens dos dois cenários começaram a interagir, o que pode indicar que Moreania será integrada ao jogo de Tormenta em um futuro próximo.

Apesar de ser tão bem sucedido, Tormenta não é imune a críticas. As mais curiosas são reclamações de que os personagens não-jogadores do cenário seriam poderosos demais, e perguntas do tipo "por que eles não acabam com a Tormenta", "por que os deuses não cabam com a Tormenta", e outras que parecem feitas por pessoas que querem jogar Second Life ao invés de um RPG de aventura medieval fantástica. Goste você ou não do estilo, devemos reconhecer que Tormenta não teria chegado onde chegou se não fosse realmente bom. Se você ainda não conhece - sei lá, às vezes está começando a jogar RPG agora - eu recomendo. Na pior das hipóteses, Tormenta servirá para provar que um RPG não precisa ser estrangeiro para ser de qualidade, e que nem tudo produzido no Brasil precisa estar de acordo com a "cultura nacional" - seja lá o que este termo signifique.
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terça-feira, 25 de novembro de 2008

Escrito por em 25.11.08 com 0 comentários

Paranoia

Em um futuro talvez não muito distante, uma grande parcela da humanidade viverá isolada em uma megacidade. Não se sabe que série de eventos levou à construção deste complexo, nem por que estas pessoas precisaram ir morar lá, mas o fato é que suas vidas serão bem diferentes das que vivemos hoje. Composta de corredores estéreis e infindáveis, a cidade não tem qualquer vida animal ou vegetal. Apesar disso, viver se tornou muito perigoso, pois o Computador, que deveria zelar pela paz e integridade dos moradores, enlouqueceu. Segundo ele, ser feliz é obrigatório. Infelicidade é punida com a morte. E a morte é tão freqüente que cada pessoa tem direito a cinco clones, com o seguinte assumindo seu lugar e suas tarefas assim que o anterior é executado.

Podem falar, existe pelo menos uma centena de filmes cujo enredo é parecido com o parágrafo acima - ou pelo menos com seu início. Mas este post não se utilizará desta introdução para falar de nenhum deles. O post de hoje é sobre um RPG. O post de hoje é sobre Paranoia.

Paranoia é um dos melhores RPGs que eu já joguei na minha vida. Infelizmente, também foi um dos que jogeui menos, só umas duas ou três vezes. Mas, mesmo assim, seu clima futurista apocalíptico de humor negro garantiu para sempre um lugar na minha lista de preferidos. E, por um acaso, um lugar na lista de coisas que eu mais odeio nesse país: toda vez que eu pegava um exemplar em uma prateleira, cogitando comprá-lo, descobria que alguém tinha rasgado o plástico e furtado os formulários que vinham junto com o livro.

Criado em 1984 por Greg Costikyan, Dan Gelber e Eric Goldberg, e publicado pela West End Games, Paranoia descreve a vida no Complexo Alfa, uma megalópole subterrânea ou isolada do resto do mundo por um domo (à escolha do mestre), e controlada pelo Computador, uma entidade cibernética onipresente, onisciente e enlouquecida. Zelando pela felicidade dos habitantes do Complexo Alfa, o Computador decretou que a felicidade é obrigatória. Não ser feliz é crime. E crime punido com execução sumária. Confie no Computador. O Computador é seu amigo.

Ninguém sabe qual evento levou à criação do Complexo Alfa - de fato, as diversas edições do jogo divergem quanto à origem de seu cenário, ao ponto da edição mais recente adotar o conceito de que todas as versões são falsas, propagadas por grupos diferentes de acordo com seus próprios interesses. Todas as versões, porém, convergem em um ponto: devido a algum evento catastrófico, vários Complexos foram construídos para abrigar a humanidade, e o Computador criado para gerenciar o Complexo Alfa. Com o tempo, como o Computador era igual a qualquer outro computador do mundo, vários programadores começaram a hackeá-lo, buscando mais poder dentro do Complexo. Um dia, um acidente cortou a ligação do Computador com outros complexos, e fez com que ele ficasse irremediavelmente defeituoso. Pesquisando em seus bancos de dados, o Computador chegou à conclusão de que os culpados eram os comunistas, e que estes deviam ser caçados e exterminados. Aliás, não só os comunistas, mas todo e qualquer traidor deveria ser caçado e exterminado. Como a definição de "traidor" cabia ao próprio computador, o resultado foi uma sociedade ditatorial, onde todos devem obedecer ao Computador, sob pena de ser considerado traidor, caçado, e exterminado. Além disso, para que a sociedade perfeita criada pelo Computador não seja ameaçada, ele decretou que toda a história do mundo anterior à criação do Complexo Alfa, bem como toda e qualquer informação sobre o que existe fora do Complexo, é altamente controlada, para não cair em mãos traidoras.

Embora a definição de "traidor", como foi dito, varie de acordo com o humor do Computador, duas categorias de pessoas são consideradas traidoras sempre e indubitavelmente: os mutantes e os membros de sociedades secretas. Curiosamente, uns 90% das pessoas que habitam o Complexo Alfa são mutantes, membros de sociedades secretas ou ambos, mas o Computador não sabe - ou não quer saber - disso. Mutantes, como qualquer mutante ficcional que se preze, possuem poderes fantásticos que não se manifestam em pessoas comuns, e são considerados traidores por serem diferentes do que o Computador reconhece como um típico habitante do Complexo Alfa. Ninguém sabe como os mutantes surgiram ou como as pessoas adquirem mutações; alguns dizem que a culpa é das sociedades secretas, outros acreditam que o culpado seja o próprio Computador. Poderes mutantes vão de um inofensivo nariz que escorre o dia todo, passando por invisibilidade e capacidade de lançar raios pelas mãos, até a perigosíssima empatia com máquinas, que torna o mutante capaz de influenciar o Computador, e leva à exterminação sumária assim que descoberta.

Sociedades secretas são grupos de pessoas que se reúnem por qualquer motivo, em torno de um ideal comum, normalmente destronar o Computador, embora algumas queiram justamente o oposto, perpetuar o Computador no poder - e por isso o Computador acaba fazendo vista grossa à sua existência. Membros de sociedades secretas são traidores porque o Computador não autorizou a criação de sociedade secreta nenhuma, e fazer as coisas à revelia do Computador é traição. Existe mais de uma dúzia de sociedades secretas no jogo, sendo dignas de nota os Humanistas, que sonham com o dia em que as máquinas serão derrubadas e os homens serão livres; o Clube Sierra, que cultua os animais e plantas que existem fora do Complexo Alfa, embora nem saibam com o que eles se parecem; a Primeira Igreja do Cristo Programador (em inglês um trocadilho ótimo, First Church of Christ Computer Programmer, ou FCCC-P), que acredita que o Computador é Deus, e o idolatra mais do que qualquer outro cidadão do Complexo Alfa; e, é claro, os Comunistas, que, embora não saibam ao certo o que é ser comunista, se reuniram com o pensamento de que, se o Computador odeia tanto assim os comunistas, alguma coisa eles têm de ter de bom.

Embora o Computador esteja presente em praticamente todos os cantos do Complexo Alfa, se fazendo notar através de monitores, auto-falantes e armas laser automáticas, ele precisa de ajuda para encontrar os traidores. Para isso, ele emprega alguns habitantes do Complexo Alfa - afinal, é muito mais fácil encontrar um traidor se você é uma pessoa como ele, que pode ganhar sua confiança, fazê-lo revelar que é um traidor, e então executá-lo. Estes agentes do Computador são conhecidos como Troubleshooters (ou, na versão nacional, Agentes Atiradores, um nome que eu acho ridículo e me recuso a usar). Normalmente, a palavra troubleshooter significa algo como "resolvedor de problemas", mas em Paranoia eles têm esse nome porque são encarregados pelo computador de encontrar os problemas (trouble) e atirar (shoot) neles. Evidentemente, os "problemas" são os traidores.

Como vocês devem estar imaginando, cada personagem jogador é um Troubleshooter, que recebe uma missão do Computador, e deve cumpri-la a qualquer custo, sob pena de ser acusado de traição e exterminado. Normalmente, cada jogador é também membro de uma sociedade secreta, e recebe de seus superiores uma missão, que deve cumprir a qualquer custo, sob pena de ser delatado por seus colegas ao Computador, quando então será acusado de traição e exterminado. Normalmente, além de membro de uma sociedade secreta, cada jogador é também um mutante, e deve esconder seus poderes de todos, sob pena de ser acusado de traição e exterminado. E normalmente cada jogador também deve esconder de todo mundo que é um Troubleshooter, sob pena de ser exterminado por ser um agente do Computador - muitas vezes até mesmo por outros Troubleshooters, que desejam ganhar prestígio junto à sua própria sociedade secreta, exterminando um Troubleshooter, e junto ao Computador, acusando o exterminado de traição. Se você acha que isso já é motivo suficiente para o jogo se chamar Paranoia, ainda tem mais: normalmente cada jogador faz parte de uma sociedade secreta diferente, e recebe uma missão diferente do Computador, que muitas vezes envolve delatar ou exterminar um dos outros jogadores, e, evidentemente, não é de conhecimento deles. Cada jogador, portanto, é sempre desconfiado em relação aos demais, e cada passo deve ser muito bem dado para que você mesmo não acabe acusado de traição por ter exterminado um colega Troubleshooter sem motivo.

Por alguma razão que o Computador desconhece, Troubleshooters são exterminados freqüentemente. Por isso, em sua infinita benevolência, ele permitiu que cada um deles fosse parte de uma família de seis clones, conhecida em inglês como six-pack (que também é o nome daquelas embalagens de cerveja que vêm com seis latinhas). Assim, sempre que um Troubleshooter é exterminado, ele é substituído por seu próximo clone, que tem todas as suas memórias e conhecimentos desde sua morte até seu extermínio. Em outras palavras, isso significa que um Troubleshooter só é realmente morto - e o jogador tem de deixar o jogo - quando ele e todos os seus cinco clones são exterminados. Isto normalmente faz com que jogadores de Paranoia atirem primeiro e perguntem depois, ou se lancem em combates sangrentos aparentemente sem motivo.

Nem todos os habitantes do Complexo Alfa são humanos (ou mutantes): existem muitos robôs, dos mais variados tamanhos, feitios e funções, desde manter os corredores limpos até atuar como guarda-costas de cidadãos importantes. Apesar de serem máquinas, nem todos os robôs são agentes do Computador. Alguns, defeituosos (os chamados rogue bots), são imprevisíveis, e só fazem o que lhes dá na telha; outros foram reprogramados por sociedades secretas para agir contra os interesses do Computador. Não é possível saber se um robô está funcionando bem, é defeituoso ou foi reprogramado apenas por sua aparência - e nem por seus atos, já que alguns programadores dão a eles ordens um tanto obscuras. Por causa disso, robôs também costumam ser fonte de muitos extermínios para os Troubleshooters, embora, se utilizados com cuidado - ou enganados, se utilizando de bons argumentos - possam ser aliados poderosos para a conclusão bem sucedida da missão atribuída a um Troubleshoter pelo Computador ou até por sua sociedade secreta.

Para poder cumprir sua missão, cada Troubleshooter recebe do Computador um número de equipamentos, armas e outros itens. Normalmente, estes objetos são protótipos, experimentais, ou de baixa qualidade, e o personagem têm de utilizá-los por sua própria conta e risco. Normalmente, estes objetos também são muito valiosos ou raros, e a responsabilidade por perdê-los, destruí-los ou danificá-los recai sobre o Troubleshooter, que não soube utilizá-los corretamente. Também normalmente, os personagens não possuem acesso aos manuais destes objetos, pois não possuem o Nível de Segurança adequado para lê-los. E normalmente o Computador torna o uso destes objetos em missão obrigatório. Não usar o objeto é punido com extermínio. Danificar, perder ou destruir o objeto é punido com extermínio. E o simples fato de usar o objeto pode levar o Troublshooter ao extermínio. Melhor torcer para que nenhum objeto seja designado a você.

Como eu citei lá no início, o livro de Paranoia vinha acompanhado de diversos formulários. Preenchê-los também fazia parte do jogo - e também podia levar o Troubleshooter ao extermínio. Alguns exemplos de formulários eram o "formulário de perda/dano de equipamento designado", o "formulário de declaração de defesa de acusação de traição", e o "formulário de relatório de missão", que trazia a pergunta "o equipamento foi adequado para a missão? (sim/não)" seguido de um campo onde dizia "se não, explique porque o Computador mandaria você em missão com equipamento inadequado". Todos os formulários traziam perguntas deste tipo, e, desnecessário dizer, eram elas que podiam levar seu Troubleshooter ao extermínio.

Finalmente, para fechar a descrição do cenário, falta falar de um dos elementos mais característicos, engraçados e causadores de extermínio de Troubleshooters em Paranoia: o Nível de Segurança (Security Clearance em inglês, algo como "autorização de segurança"). A "escala de segurança" é baseada nas cores do espectro visível, mais duas; cada cidadão recebe um Nível de Segurança correspondente à sua importância para o Complexo Alfa, e, quanto mais alto este Nível, mais regalias ele terá. É possível um cidadão "aumentar de nível" - normalmente denunciando traidores ao Computador - bem como "ser rebaixado", embora isso seja mais raro. O Nível de Segurança influencia todas as ações dos habitantes do Complexo Alfa, determinando desde a que áreas do Complexo eles podem ter acesso até que tipo de comida eles podem comer, passando por quais manuais de intruções de objetos fornecidos pelo Computador eles podem ler. Um nível de segurança alto não tem nada a ver com competência, prestígio ou trabalho efetuado, sendo baseado totalmente no nível de confiança que o Computador tem naquele cidadão.

O Nível de Segurança mais baixo é o Infravermelho, representado pela cor preta. Cidadãos de Nível Infravermelho são pouco mais que autômatos sem mente, vivendo vidas repetitivas e vazias, e sendo mantidos felizes à base de drogas. Cidadãos Infravermelhos não possuem acesso à maior parte do Complexo Alfa, não podem lidar com quase nenhum tipo de tecnologia, não estão autorizados a ler quase nada, e só podem comer comida processada sem gosto, feita à base de algas. Ainda assim, eles estão a salvo da maioria dos perigos do Complexo Alfa, já que o Computador não costuma prestar muita atenção neles. Aproximadamente 80% da população do Complexo Alfa é de Nível Infravermelho.

Acima do Nível Infravermelho temos o Nível Vermelho, cujos cidadãos correspondem a uns 10% da população. Personagens jogadores normalmente começam suas carreiras no Nível Vermelho, e normalmente não sobrevivem por tempo suficiente para alcançar o próximo Nível. A maneira mais fácil de um cidadão Infravermelho ascender para o Nível Vermelho é delatar um colega por traição, quando então o colega será exterminado, e o delator promovido a Troubleshooter. Cidadãos de Nível vermelho não são drogados regularmente, têm acesso a comida melhor, incluindo frutas, mais material de leitura, e mais confiança do Computador, o que nem sempre é considerado uma coisa boa. Ainda assim, eles são tratados com desdém por quase todos os outros cidadãos do Complexo Alfa, e não têm acesso a muitas áreas e objetos importantes.

Uns 8% da população restante pertence aos dois Níveis imediatamente acima do Vermelho, o Laranja e o Amarelo. Personagens destes Níveis possuem um maior acesso a áreas e material restrito, e a comida de melhor qualidade. Os 2% restantes se dividem entre os Níveis Verde, Azul, Anil e Violeta, que andam livremente pelo Complexo e consomem comida não-processada, vivendo vidas de opulência e ostentação se comparados aos dos Níveis mais baixos, mas eternamente envolvidos em disputas de poder para não serem rebaixados. Cidadãos de Nível Azul ou maior podem exterminar Troubleshooters por qualquer motivo, sem precisar apresentar uma justificativa.

Por fim, uma parcela desprezível da população pertence ao nono e mais alto nível, o Ultravioleta, representado pela cor branca. Cidadãos Ultravioletas são a nobreza do Complexo Alfa, os que vivem mais próximos ao Computador, e são menos importunados por ele. De fato, muitos cidadãos Ultravioleta são também programadores habilidosos, e conquistaram sua posição hackeando e reprogramando o Computador. Cidadãos Ultravioleta normalmente vivem isolados do restante da população, e a imensa maioria dos cidadãos de Nível baixo passa suas vidas inteiras sem ver um único deles.

A primeira edição de Paranoia foi lançada em agosto de 1984, ganhando o Origin Awards de Melhores Regras de RPG em 1985. Neste início, o jogo era muito mais sério, apresentando uma sociedade distópica, e com a maioria das piadas sendo de humor negro. Foi somente com o lançamento de suplementos que o tom do jogo começou a ficar mais próximo do que o transformou em um sucesso, mais leve e escrachado.

A edição mais clássica e mais bem sucedida de Paranoia foi a segunda, lançada em 1989. Escrita por Costikyan, Gelber, Goldberg e Ken Roslton, a Segunda Edição trazia regras mais simples, um estilo de jogo mais rápido e divertido, e situações mais cômicas, ajudando a popularizar o cenário, e criando uma legião de fãs. Infelizmente, ao tentar aproveitar o enorme sucesso do jogo, a West End Games, que o publicava, acabou errando a mão e lançando muitos suplementos escritos por outros autores, que visavam "renovar o jogo e expandir as possibilidades de interpretação". Assim, alguns suplementos eram ambientados em um futuro ainda mais distante, no qual o Computador foi destruído e a sociedade do Complexo Alfa tenta se reerguer sem seu líder, outros colocavam as sociedades secretas em guerra umas contra as outras, com quase ou nenhuma influência do Computador, e outros iam a um futuro ainda mais distante, no qual o Computador foi reconstruído mas não era enlouquecido nem controlava o Complexo Alfa. A maioria dos fãs não gostava destes três cenários alternativos (que acabaram conhecidos, respectivamente, como Crash, Secret Society Wars e Reboot), e preferia jogar no cenário tradicional, ignorando suplementos que não faziam referências a ele.

Ainda assim, a West End Games insistiu em renovar o jogo, lançando, em 1995, a Quinta Edição. Pois é, eles fizeram uma piada e pularam propositalmente a terceira e a quarta. Mas a maior piada, para os fãs, foi justamente a Quinta Edição, que não contou com a participação dos autores originais, e abandonou totalmente o clima original do jogo, transformando-o em uma sátira a outros RPGs famosos - havia até um suplemento, Creatures of the Night Cycle, que era uma paródia de Vampire: The Masquerade. Boatos dizem que as vendas da linha caíram 90% após o lançamento da Quinta Edição. Verdade ou não, pouco depois a West End Games abriu falência.

Após a falência da West End, os criadores do jogo original decidiram se unir, comprar os direitos da linha, e lançar uma nova versão de Paranoia. Assim, em 2004 foi publicado, pela Mongoose Publishing, Paranoia XP, a mais recente edição, escrita por um bando de gente: Allen Varney, Aaron Allston, Paul Baldowski, Beth Fischi, Dan Curtis Johnson e Greg Costikyan, todos autores da "Era de Ouro" da Segunda Edição. Em 2005, a Microsoft pediu que o XP fosse retirado do título, talvez para que ninguém achasse que o Computador rodava Windows. A partir de então, o nome do jogo voltou a ser apenas Paranoia, mas a nova edição ainda é informalmente conhecida como Paranoia XP.

Paranoia XP retoma o clima e o cenário da clássica Segunda Edição, fazendo algumas atualizações na história, e trazendo algumas regras novas. Antes de cada campanha, os jogadores podem escolher entre três tipos de cenário, Straight, mais parecido com a Primeira Edição, onde tiroteios são desencorajados, extermínios são menos freqüentes, e o clima é mais sério e pesado; Classic, mais parecido com a Segunda Edição, mas com conflitos entre os jogadores sendo menos freqüentes e menos letais; e Zap, a versão mais anárquica, onde normalmente todos os jogadores acabam uma seção de jogo mortos, e associada por muitos à Quinta Edição. Aos poucos, a Mongoose também está relançando os suplementos da Primeira e da Segunda Edições adaptadas para as regras da XP, mas ignorando tudo relacionado à Quinta Edição, bem como às linhas Crash, Reboot e Secret Society Wars da Segunda.

Paranoia é um jogo que estimula o raciocínio dos jogadores, que devem constantemente encontrar formas de não acabarem exterminados. Muitos são os que, à primeira vista, acham que o jogo não vai ter graça, para então se surpreender com o mundo de possiblidades existentes para se livrar de cada situação de extermínio iminente. Felizmente, após a torta Quinta Edição, as coisas parecem estar voltando para os eixos, com o jogo recebendo boas críticas, vendendo bem, e reconquistando seu lugar junto aos clássicos do RPG. Isto porque, provavelmente, a Quinta Edição foi obra dos mutantes comunistas traidores, que desejavam ver a derrocada do Computador. Mas o Computador prevaleceu. Confie no Computador. O Computador é seu amigo. O Computador quer ver você feliz. Você é feliz, cidadão?
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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Escrito por em 14.8.08 com 2 comentários

Legend of the Five Rings

Eu não costumo aceitar sugestões. Na verdade, eu nem gosto de receber sugestões. Sugerir um tema para o átomo é praticamente condená-lo a jamais ganhar um post aqui. Em primeiro lugar porque o átomo é um blog para falar das coisas que eu gosto, não das coisas que os leitores gostariam que eu falasse. Em segundo lugar, mesmo que um leitor sugira um tema do qual eu goste, pode ser que eu não esteja a fim de escrever sobre aquilo naquele momento. Pode ser uma regra meio ditatorial, mas é em parte graças a ela que este blog sobrevive com posts regulares há mais de cinco anos.

Mas hoje eu vou fazer uma raríssima concessão e falar sobre o RPG Legend of the Five Rings. Não porque eu tenha gostado da sugestão ou mudado de idéia, mas porque eu já havia feito uma lista de possíveis temas para quebrar o binômio cinema/esporte que parece ter se apossado do átomo ultimamente, e por um acaso Lot5R estava entre eles. Na verdade, este post só não entrou no ar antes por três motivos: o primeiro é que havia outros assuntos sobre os quais eu estava mais a fim de falar, como Indiana Jones, Conan, e encerrar a série do James Bond. O segundo é que atualmente eu estou escrevendo os posts do átomo com várias semanas de antecedência - este aqui está escrito desde 12 de julho; neste fim de semana eu vou escrever o post de número 376. O terceiro é que, se eu o colocasse semana passada, a piadinha que eu bolei para abrir o post sobre o críquete perderia a graça. Infelizmente, esta piadinha acabou gerando um reforço na sugestão, o que quase me levou a adiar este post mais uma vez. Mas, como já estava pronto mesmo, pelo menos eu me livro de continuar sendo sugerido.

Agora, a segunda confissão do dia: eu nunca joguei Lot5R. Nem o card game, nem o RPG. Já tive a oportunidade de ler, porém, vários dos livros, tanto do sistema original quanto do d20. Como um apaixonado pelo Japão, achei a ambientação muitíssimo interessante. E, como todo jogador sabe, uma boa ambientação é mais do que metade do caminho andado para um bom RPG. Tanto que, mesmo sem nunca ter jogado, considero Lot5R um dos meus RPGs preferidos.

Legend of the Five Rings, ou Lot5R, foi criado pela Alderac Entertainment Group, ou AEG, em 1995. Originalmente, o jogo não era um RPG, mas um card game, que buscava pegar carona no sucesso de Magic: the Gathering, mas utilizando uma ambientação oriental. Inicialmente, o card game não era publicado pela AEG, mas pela Five Rings Publishing Group, ou FRPG, uma empresa criada especialmente para publicá-lo, mas que acabou lançando outros card games, como Doomtown e a segunda versão de Rage.

O card game de Lot5R foi um grande sucesso, principalmente por não representar um combate entre dois indivíduos, como em Magic, mas entre diversas facções, cada uma comandada por um jogador. Embora em torneios os duelos costumem ser entre dois jogadores, o jogo foi desenvolvido para que qualquer número de jogadores pudesse se enfrentar simultaneamente, resultando em grandes batalhas. Além disso, destruir o oponente não é a única condição de vitória, com diversos outros objetivos podendo ser cumpridos para se ganhar a partida, o que permite diversas estratégias diferentes, e até mesmo que alguém que esteja apanhando feio trace um plano B e vença "de virada".

Motivada pelo sucesso do card game, a AEG decidiu pegar sua ambientação, ou seja, o mundo no qual os duelos dos cards aconteciam, e lançar um RPG. Assim, em 1997 foi lançado o primeiro livro básico de Lot5R, publicado pela AEG. Poucos meses após o lançamento, a FRPG foi vendida para a Wizards of the Coast, que assumiu a produção do card game. Apenas em 2000, um ano após a Wizards ser comprada pela Hasbro, a AEG comprou os direitos do card game, que é publicado até hoje, e já conta com mais de 50 expansões, além de alguns sets especiais para jogadores iniciantes.

Tanto o card game quanto o RPG são ambientados em Rokugan, um reino fictício semelhante ao Japão Feudal, mas com elementos de fantasia e da mitologia não só do Japão, mas de outros países do Sudeste Asiático. O mundo onde Rokugan, também conhecido como Império Esmeralda (Emerald Empire), está localizado não tem um nome específico, sendo que os habitantes de Rokugan costumam usar o nome de seu país para se referir a todo o planeta. Além de Rokugan, as duas únicas nações conhecidas deste mundo, com as quais os habitantes de Rokugan interagem de vez em quando, são as Areias Escaldantes (Burning Sands), um reino inspirado na Arábia das Mil e Uma Noites, e os Reinos de Marfim (Ivory Kingdoms), inspirados na Índia.

As origens de Rokugan são semelhantes às origens do mundo de acordo com a mitologia grega: no início, o Paraíso Celestial e o mundo material eram uma coisa só, e nele viviam Amaterasu, a Senhora Sol, e Onnotangu, o Senhor Lua. Ambos nasceram do Nada, se apaixonaram, e tiveram dez filhos, conhecidos como os kami. Onnotangu era tão apaixonado por Amaterasu, porém, que se recusava a dividir seu amor até mesmo com seus filhos. Enciumado, ele decidiu devorar todos eles. O único que escapou foi Hantei, escondido por sua mãe em uma caverna próxima antes de ser comido por seu próprio pai.

O tempo passou, e Hantei cresceu. Quando já estava adulto e sabia manejar a espada, ele desafiou seu pai para um duelo, no qual cortou sua barriga. De dentro de Onnotangu caíram oito de seus filhos devorados em direção a um mundo desconhecido; um deles, Ryoshun, não resistiu e morreu, passando a ser o guardião de Jigoku, o Reino dos Mortos. Junto com os kami, caíram lágrimas de Amaterasu e o sangue de Onnotangu, que se misturaram e deram origem à humanidade. Exilados neste novo mundo, os kami passaram a viver dentre os humanos como seus líderes e governantes, fundando Rokugan; Hantei, que livrou seus irmãos de Onnotangu, foi declarado Imperador, governante de todos os humanos e kami. Infelizmente, porém, um dos Kami não deu sorte ao cair: Fu Leng, ao invés de cair em terra firme, caiu dentro de um poço aparentemente sem fundo, enlouquecendo e dando origem ao que seria o maior flagelo de Rokugan, as Shadowlands.

Para poder enfrentar Fu Leng e as hordas das Shadowlands, os kami reuniram seguidores em torno de si, fundando os sete grandes clãs de Rokugan: o Clã do Caranguejo, o Clã da Garça, o Clã do Dragão, o Clã do Leão, o Clã da Fênix, o Clã do Escorpião e o Clã do Unicórnio. Liderados por um estranho homem que veio do Oeste, de nome Shinsei, um representante de cada clã, conhecidos como os Sete Trovões, derrotaram Fu Leng e selaram seu poder em doze pergaminhos negros. Mesmo após esta vitória, as Shadowlands ainda existem, e suas hordas de monstros e poderes malignos continuam sendo uma ameaça ao Império, o que mantém os clãs sempre vigilantes.

Além das Shadowlands, o Império ainda têm outro problema para lidar: antes dos kami e dos humanos chegarem a Rokugan, outros seres e outras raças já viviam por lá. Os principais são os Nezumi, homens-rato que viviam onde hoje são as Shadowlands, e que tiveram seu império destruído pela chegada de Fu Leng, revertendo a um estado quase selvagem para poder sobreviver; os nobres Naga, humanóides da cintura para cima, cobras da cintura para baixo, uma das raças mais antigas do mundo, que se recolheu a um longo sono em suas terras ancestrais após a chegada dos humanos, planejando somente acordar se forem necessários; os kenku, homens-corvo arredios e grandes mestres da espada, que se esconderam nas florestas, são quase impossíveis de serem encontrados, não querem nada com Rokugan, mas que segundo as lendas teriam treinado os maiores espadachins da história do Império Esmeralda; e os ogros, que um dia tiveram um império avançadíssimo, mais até do que os humanos têm hoje, mas que, com a chegada de Fu Leng, foram escravizados, e hoje são pouco mais que brutamontes irracionais a seu serviço. O povo de Rokugan é extremamente preconceituoso e xenófobo, e trata qualquer um que também não seja um humano de Rokugan - inclusive humanos de outras terras, os gaijin - com extrema desconfiança.

Com o passar dos anos, a sociedade de Rokugan foi se estruturando, com os descendentes dos fundadores de cada clã se estabelecendo em terras próprias, e desenvolvendo características que se tornariam a marca de cada clã: o Clã do Caranguejo tomou para si a tarefa de vigiar a muralha que separa Rokugan das Shadowlands, enfrentando eventuais invasores, e por isso seus membros se tornaram especialistas em estratégias de defesa, guerreiros formidáveis, e de certa forma de pouca literação. O Clã da Garça, vivendo sempre em contato com a Família Imperial, se tornou um clã de artistas e duelistas, formado principalmente por membros da corte. O Clã do Dragão vive nas montanhas ao norte do Império, isoladas do restante de Rokugan durante o inverno devido a pesadas nevascas, o que faz com que seus membros sejam também distantes e desinteressados nos assuntos de outros clãs, vivendo quase como monges; o Clã do Leão é militarizado, respeita a honra acima de tudo, e está sempre pronto para defender o Imperador; o Clã da Fênix faz amplo uso da magia, gerenciando escolas de magia e sempre estudando novos usos para ela na sociedade; o Clã do Escorpião é sorrateiro, fechado em si mesmo e cheio de segredos, conta com muitos ninjas e espiões, e seus membros sempre usam máscaras ou pintura facial, para esconder suas verdadeiras identidades; e o Clã do Unicórnio é feito de cavaleiros e viajantes, que se aventuram em terras distantes e são vistos como bárbaros pelos outros clãs.

Com o tempo, foram surgindo também clãs menores, fundados por outros que não os kami. Não se sabe quantos clãs menores existem, mas é preciso autorização do Imperador para se fundar um novo clã, autorização dada somente após se prestar um grande favor ao Império. Pelo menos um clã menor, o Clã do Louva-a-Deus, cujos membros se destacam por suas habilidades em navegação, conseguiu crescer em importância até ser hoje considerado por muitos como um clá maior. Outros clãs menores famosos são o Clã da Raposa, o Clã do Coelho, o Clã da Aranha e o Clã do Boi. A Família Imperial não faz parte de nenhum clã, mas todos os clãs devem lealdade ao imperador.

A intriga entre os clãs é parte fundamental da ambientação, então, ao criar seus personagens, além de escolhas tradicionais como o Bushi ("guerreiro") ou Shugenja ("mago"), o jogador pode escolher ser também um Cortesão, uma espécie de político. Diferentemente da maioria dos RPGs, Lot5R permite que sessões inteiras de jogo sejam roladas apenas com intriga política, sem qualquer rolagem de combate. O combate em Lot5R, aliás, é conhecido por sua extrema letalidade, capaz de matar em segundos um personagem despreparado que ataque um monstro apenas atrás de pontos de experiência. Apesar disso, há bastante espaço para combates, com as hordas das Shadowlands batendo à porta do Império a todo tempo, e monstros da floresta e coisas do tipo vagando nas regiões mais selvagens e inexploradas de Rokugan.

O nome do jogo, Legend of the Five Rings, faz referência a um outro livro, The Book of Five Rings, de Miyamoto Musashi. No jogo, a natureza conta com cinco elementos, Terra, Fogo, Água, Ar e Vazio. Todas as magias do jogo são ligadas a um destes elementos, que juntos formam tudo o que existe em nossa realidade. Curiosamente, a AEG enfrentou um processo por parte do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, que clamava que o Comitê Olímpico Internacional teria os direitos sobre qualquer figura que utilizasse cinco anéis entrelaçados em qualquer formato, e o primeiro logotipo do jogo trazia cinco anéis entrelaçados em forma de estrela. O Comitê ganhou a ação, e a AEG teve de mudar o logotipo, o que não trouxe muitos problemas para o RPG, mas acabou fazendo com que, no card game, as cartas mais antigas ficassem com o verso diferente das demais.

Atualmente, Lot5R está em sua Terceira Edição, lançada em 2005. Em 2000, quando foi lançada a Segunda Edição, a Wizards decidiu aproveitar que tinha direitos sobre o cenário, por causa do card game, e usá-lo como ambientação oficial para seu novo Oriental Adventures, um suplemento de Dungeons and Dragons voltado para aventuras no oriente, e que em Advanced Dungeons and Dragons usava como cenário Kara-Tur, o "continente oriental" vizinho a Faerûn, de Forgotten Realms. Por causa disso, todos os livros de Lot5R Segunda Edição, à exceção do livro básico, serviam tanto para o sistema tradicional de Lot5R, conhecido como "Roll & Keep", quanto para o sistema d20 de D&D. Alguns livros específicos para d20, como Creatures of Rokugan, Magic of Rokugan e a ambientação Rokugan, que fazia as vezes de livro básico, também chegaram a ser lançadas pela AEG. Na Terceira Edição, porém, os livros voltaram a ser apenas voltados para o sistema original, sem nada de d20.

Além do Card game e do RPG, Lot5R também teve lançados vários romances e um jogo de miniaturas, chaamdo Clan Wars, que não é mais fabricado. Estão previstos para um futuro próximo uma história em quadrinhos no estilo graphic novel e um jogo de tabuleiro. Uma das coisas mais curiosas de Lot5R é que o resultado dos torneios do card game pode influenciar os rumos da história não somente das expansões seguintes, mas também do RPG, dependendo do que aconteça com os clãs envolvidos nos duelos travados com os cards.

Eu posso ser suspeito para falar, mas, se você é fã do estilo oriental, recomendo que dê uma chance a Lot5R. Mesmo que não seja para jogar, como acontece comigo. Afinal, fantasia medieval oriental não é algo que se ache aos montes por aí, e a encontrada em Lot5R é da melhor qualidade.
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