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sábado, 30 de novembro de 2024

Escrito por em 30.11.24 com 0 comentários

Kull da Atlântida

Conan é o personagem mais famoso de Robert E. Howard, mas não foi seu primeiro. Na verdade, ele não foi nem seu primeiro bárbaro. Na verdade mesmo, existe outro personagem que, sem ele, Conan nem teria existido. Esse personagem se chama Kull da Atlântida, e é o tema do post de hoje.

A versão mais famosa sobre a origem de Conan conta que, em 1932, aos 26 anos, Howard estava viajando por seu Texas natal e teve uma inspiração súbita, criando uma terra fictícia habitada por bárbaros destemidos, a qual chamou de Ciméria, e, pensando em como aproveitá-la, criou toda uma época mítica, chamada Era Hiboriana, fazendo de um cimério o herói que iria viver aventuras nesse tempo. O que acontece, e que muita gente não sabe, é que o nome Ciméria não foi uma criação de Howard, sendo antigamente usado para se referir à região hoje conhecida como Crimeia, aquela que está em disputa entre a Ucrânia e a Rússia. A Ciméria de Howard, evidentemente, não tem nada a ver com a Crimeia, sendo um criação própria. Só que, alguns anos antes, ele tinha feito a mesmíssima coisa, apenas usando uma terra fictícia ao invés de uma real, e não obtendo o mesmo sucesso.

No final da década de 1920, pouco após completar 20 anos, Howard já era considerado um autor de sucesso, podendo viver exclusivamente da venda de suas histórias e fazendo amizade com outros dois famosos escritores da época, H.P. Lovecraft e Clark Ashton Smith. As histórias de Howard diferiam das de Lovecraft e Smith, entretanto, principalmente porque as dos dois tinham muitos elementos de horror, enquanto as de Howard eram pura ação, tendo como protagonistas espadachins, soldados, piratas, pistoleiros, e até mesmo marinheiros brigões. Um dia, porém, Howard estava conversando com Lovecraft, e teve a ideia de uma história de ação com elementos de terror, protagonizada por um bárbaro que enfrentaria feitiçaria, tendo que contar também com sua inteligência para sobrepujar seus inimigos, ao invés de apenas com sua espada. Assim surgiria O Reino das Sombras.

O Reino das Sombras era protagonizada pelo Rei Kull, governante da Valúsia, mas que não era natural de lá, tendo chegado ao trono após derrotar em combate o rei anterior. Com a ajuda de Brule, um lanceiro picto, ele descobre uma conspiração para não somente removê-lo do trono, mas também para escravizar toda a humanidade; por trás dela, estão os homens-serpente, que governavam o mundo antes da ascensão dos humanos, e agora querem voltar ao lugar que consideram seu por direito. Os homens-serpente, que em sua forma original têm corpo humano mas cabeça de serpente, são criaturas de feitiçaria, capazes de assumir a aparência de qualquer ser humano. Usando desse poder, eles planejam substituir a corte de Kull pouco a pouco, até conseguir matá-lo, substituí-lo, e governar a Valúsia, partindo, então para a conquista dos demais reinos humanos, até se tornarem os governantes de tudo. Os pictos descobrem esse estratagema e enviam Brule para alertar Kull, com a dupla precisando descobrir quais conselheiros de Kull já foram substituídos e impedir os homens-serpente antes que seja tarde demais.

Publicada na revista Weird Tales em agosto de 1929, O Reino das Sombras seria aclamada, considerada uma das melhores histórias já apresentadas na revista, e se tornando o primeiro exemplar do estilo que posteriormente, ao ser popularizado por Conan, receberia o nome de Espada e Magia. Com o sucesso da história, Howard passaria a desenvolver o personagem Kull, determinando os acontecimentos mais relevantes de seu passado, e delimitando como seria o mundo no qual ele vive.

Kull é nascido na Atlântida, segundo o próprio Howard, cerca de 100 mil anos antes do nascimento de Cristo. Nas histórias de Kull, não somente a Atlântida era uma ilha normal, e não um reino submarino, como também a Atlântida de Howard é completamente diferente de suas descrições feitas por outros autores: ao invés de uma civilização altamente avançada para a sua época, a ilha é esparsamente povoada e habitada por tribos bárbaras que rejeitam a civilização. A oeste da Atlântida fica um continente conhecido como Thúria, onde estão localizados os reinos humanos civilizados, com o mais poderoso deles sendo a Valúsia. Outras ilhas de destaque, também com nomes inspirados em civilizações que podem ter existido ou não, são a Lemúria, terra de piratas sanguinários, e a distante Mu. E, a leste da Atlântida, ficam as ilhas habitadas pelos pictos, que, ao contrário de nas histórias de Conan, onde são selvagens que servem apenas como antagonistas, nas histórias de Kull são um povo bárbaro semelhante aos atlantes e inspirados nos indígenas norte-americanos. Brule, um picto eloquente e corajoso, após os eventos de O Reino das Sombras se tornaria o melhor amigo de Kull.

Antes de prosseguirmos, vale explicar que, após criar Conan e a Era Hiboriana, Howard definiria que as épocas de Kull e de Conan estariam separadas por alguns milhares de anos. Nesse intervalo de tempo, ocorreria um cataclisma (o que faria com que a época de Kull se tornasse oficialmente a "pré-cataclísmica") que levaria ao afundamento da Atlântida e à derrocada das civilizações humanas, que reverteriam à selvageria e levariam séculos para se tornar civilizadas novamente, com os pictos jamais passando do estágio de selvageria ao qual foram regredidos, e povos como os aquilônios e hirkanianos sendo descendentes diretos dos antigos thuranianos. Em termos gerais, portanto, a época de Kull está tão distante da época de Conan quanto a época de Conan está distante da nossa.

Voltando à história de Kull, ele nasceu na Atlântida, mas um evento ocorrido em sua adolescência faria com que ele fosse exilado, tendo de fugir para o continente. No meio do caminho, ele seria capturado e escravizado, forçado a trabalhar como remador em um navio. Depois disso, ele seria vendido como gladiador, e, ao recuperar sua liberdade, se tornaria mercenário, e então soldado no exército da Valúsia, onde iria subindo na hierarquia até se tornar general. Envolvido em uma trama para derrubar o rei, ele mataria o monarca e decidiria ele mesmo assumir a coroa, se tornando o novo Rei da Valúsia. Quase todas as histórias escritas por Howard são ambientadas nessa última fase da vida do personagem, o que faz com que ele seja bastante conhecido como Rei Kull - embora atualmente o nome Kull da Atlântida seja considerado o oficial, principalmente porque, na década de 1950, a Fawcett Comics criaria um vilão para o Capitão Marvel também chamado King Kull.

Também vale citar que o arqui-inimigo de Kull é o feiticeiro Thulsa Doom - que, curiosamente, seria o vilão do primeiro filme do Conan. Um feiticeiro que tem no lugar da cabeça uma caveira com fogo dentro das órbitas, Doom é aparentemente invulnerável, com Kull jamais conseguindo destruí-lo, apenas aprisioná-lo até que ele escape e volte a atormentá-lo. O objetivo de Doom, assim como o dos homens-serpente, é tomar para si o trono da Valúsia e então conquistar o restante do continente, se tornando praticamente o governante do mundo.

Apesar de toda a aclamação conseguida por O Reino das Sombras, Howard só conseguiria vender duas outras histórias de Kull em vida: Os Espelhos de Tuzun Thune, publicada pela Weird Tales no mês seguinte, em setembro de 1929, não faria muito sucesso, o que levaria a revista a rejeitar todas as histórias de Kull seguintes que ele enviasse, exceto Os Reis da Noite, publicada em novembro de 1930.

Seria por causa dessa rejeição que Howard pegaria uma história de Kull, Por esse Machado eu Reino, e a transformaria em A Fênix na Espada, história que marcaria a estreia de Conan. A história de Conan tem mais ação, mais elementos sobrenaturais e menos debates filosóficos, mas algumas passagens de ambas são idênticas; é por essa razão, inclusive, que, em sua primeira história, Conan é Rei da Aquilônia, e somente nas seguintes é mostrada sua carreira como ladrão, pirata e soldado. Aliás, nesse ponto as "carreiras" de Kull e Conan também se assemelham, com ambos tendo tido várias "profissões" antes de matar um rei tirano e assumir o trono. Não há registro sobre se isso foi proposital, ou seja, se Howard quis fazer de Conan o "novo Kull", ou se ele simplesmente achou que esse era o método mais interessante para contar histórias.

Apesar das semelhanças, Kull e Conan são personagens muito diferentes. O cimério é proativo, sempre em busca de aventura, entre uma e outra se diverte em tavernas, com cerveja e mulheres, e está sempre acompanhado de uma bela dama, com a qual planeja ter envolvimento romântico. Já o atlante é soturno, reservado, e costuma ser levado pela vida, apenas reagindo aos desafios que são colocados diante dele, além de não mostrar interesse em suas parceiras femininas, embora em algumas histórias seja seduzido. Após se tornarem reis, Conan vê o trono como seu direito, planeja mantê-lo a qualquer custo, e pensa em conquistar uma rainha e formar uma dinastia, enquanto Kull vê o trono como um fardo, parece mantê-lo apenas para que a humanidade não seja dominada, e não pretende se casar nem constituir família. Finalmente, Conan é solitário, e, exceto por Bêlit, jamais teve um parceiro duradouro, enquanto Kull tem em Brule seu melhor amigo, confidente e irmão em armas, pelo qual daria a vida se necessário.

Ao todo, Howard escreveria apenas 14 histórias protagonizadas por Kull - para efeitos de comparação, de Conan ele escreveria 21 completas e 4 incompletas. Das 14 de Kull, três estavam incompletas, sendo concluídas para publicação por Lin Carter; essas três, mais Por esse Machado eu Reino e as outras sete que não foram publicadas pela Weird Tales fariam sua estreia em um livro, chamado King Kull, lançado pela Lancer Books em 1967, e que também incluía Os Espelhos de Tuzun Thune e O Reino das Sombras. As demais ficariam inéditas até 1978, à exceção de A Maldição do Crânio Dourado, publicada no fanzine The Howard Collector também em 1967. Desde a década de 1980, todas as 14 histórias de Kull foram republicadas por várias editoras em diversos países, mas jamais alcançaram o mesmo nível de popularidade que as de Conan.

No final da década de 1960, quando a Marvel começou a procurar por um herói de espada e magia, o preferido de Stan Lee para o cargo era Thongor, bárbaro que vivia em uma espécie de mundo pré-histórico criado por Carter. O roteirista escolhido para a empreitada, Roy Thomas, entraria em contato com Carter, mas jamais obteria uma resposta. Stan Lee, então, pediria para que ele tentasse obter os direitos de Kull, que estava em voga porque King Kull havia acabado de ser lançado, por razões puramente estéticas: ele achava que o nome Kull chamaria atenção no título de uma revista. Nem Stan Lee, nem Thomas pensariam em Conan de primeira porque, na época, ele já era o personagem mais famoso de Howard, Thomas imaginou que ele seria muito caro, e Martin Goodman, o editor-chefe da Marvel, reservaria uma quantia muito baixa pelo licenciamento - porém, ao entrar em contato com o então detentor dos direitos, o advogado Glen Lord, Thomas conseguiria licenciar Conan, e o resto é história.

O enorme sucesso que Conan fez nos quadrinhos, que inclusive ajudaria a popularizar o personagem de forma jamais vista, levaria a Marvel a se interessar por outros personagens de Howard, e assim, mais uma vez, Thomas se viu com a missão de negociar os direitos de Kull. A estreia do atlante na Marvel seria na revista Creatures on the Loose! 10, de março de 1971, em uma história curta, dividindo a revista com uma reimpressão, curiosamente chamada Trull the Inhuman, sobre uma criatura que vivia na selva. Com roteiro de Thomas e arte de Bernie Wrightson, a história de Kull seria uma adaptação de O Crânio do Silêncio, uma das histórias que Howard escreveu mas não conseguiu publicar em vida, tendo sido publicada pela primeira vez em King Kull.

O sucesso da revista convenceria a Marvel a lançar uma série regular de Kull; como a de Conan era Conan the Barbarian, eles optariam por chamá-la de Kull the Conqueror. Com roteiros de Thomas até a quinta edição e de Gerry Conway a partir da sexta, e arte dos irmãos John e Marie Severin, a revista, totalmente em cores e seguindo os preceitos do Comics Code Authority, seria lançada em junho de 1971, e traria apenas histórias inéditas - ou seja, nenhuma delas adaptação das de Howard - ambientadas já na época em que Kull era Rei da Valúsia. Infelizmente a revista não teve as boas vendas que a Marvel esperava, e chegou a ser cancelada após apenas duas edições (a segunda de setembro de 1971); contudo, muitas cartas continuaram chegando à redação pedindo por mais histórias de Kull, e, após testar as águas publicando uma, com roteiro de Thomas e arte dos Severin, na revista Monsters in the Prowl 16, de abril de 1972, a Marvel decidiria retomar a Kull the Conqueror, recomeçando da edição 3, em julho de 1972.

A revista seria publicada de forma bimestral, mas ainda com baixas vendas, até ser cancelada em setembro de 1973, após apenas 10 edições. Kull não ficaria de fora do mercado das revistas coloridas por muito tempo, entretanto: o cancelamento na verdade fazia parte de uma estratégia, com uma nova revista, Kull the Destroyer, sendo lançada já em novembro de 1973 - o mês no qual a Kull the Conqueror 11 deveria ter sido lançada se não tivesse sido cancelada. Assim como a de Conan fazia originalmente, essa revista apostaria em adaptações das histórias de Howard - começando já por Por esse Machado eu Reino - e na rivalidade entre Kull e Thulsa Doom, com inclusive uma saga que abrangeria três edições.

A Kull the Destroyer seguiria a numeração da Kull the Conqueror, ou seja, seu primeiro número seria o 11. O número 12 atrasaria, e seria lançado apenas em fevereiro de 1974; a partir daí, a revista seria bimestral, mas, como as vendas não subiriam, seria novamente cancelada, após a edição 15, de agosto de 1974. A edição 11 teria roteiro de Thomas, as outras quatro de Steve Englehart, e a arte em todas as cinco edições seria de Mike Ploog.

Entre a Kull the Conqueror e a Kull the Destroyer, em outubro de 1973, a adaptação de O Crânio do Silêncio seria republicada na revista Savage Tales, voltada para o público adulto, em preto e branco, e sem a censura do CCA, em sua segunda edição. Quando a nova revista em preto e branco voltada para o público adulto de Conan, The Savage Sword of Conan the Barbarian, fosse lançada, em agosto de 1974 - mesmo mês do cancelamento da Kull the Destroyer - Kull passaria a ser habitué dela, com histórias publicadas em várias edições. As primeiras seriam continuação direta das publicadas em Kull the Destroyer, encerrando a história na qual Kull confronta Doom pelo trono da Valúsia, que havia ficado sem final, mas logo Kull passaria a ter histórias curtas de oito páginas, usadas para preencher o espaço que sobrava na revista após as histórias de Conan, bem mais longas e que eram o chamariz principal de cada edição.

Duas fases de Kull na Savage Sword ficariam famosas. A primeira contaria com roteiros de Chuck Dixon, o roteirista que mais escreveu Kull em preto e branco, e arte de Geoff Isherwood; essas histórias eram mais ou menos seguidas e lidavam com um novo plano dos homens-serpente, que chegaram a sitiar a capital da Valúsia. A outra tinha roteiros de John Arcudi e arte de Dale Eaglesham; Arcudi introduziria um novo personagem, Bakas, que foi escravo remador junto com Kull, e o tratava como se fosse seu irmão mais novo. Perto do fim da revista, já na década de 1990, Thomas retornaria aos roteiros, mas escreveria apenas histórias que contavam o passado de Kull, antes de ele se tornar rei, que cobriram sua infância e adolescência em Atlântida e parte de sua juventude como escravo remador; seria com essas histórias que o nome Kull da Atlântida se popularizaria, já que elas não podiam trazer no título o nome "Rei Kull", pois Kull ainda não era Rei.

Além de suas muitas aparições na Savage Sword, em 1975 Kull ganharia uma revista em preto e branco com seu nome no título, graças a um mal-entendido: após o cancelamento da Kull the Destroyer, Thomas pediria autorização a Stan Lee para lançar quatro minisséries, em preto e branco e voltadas para o público adulto, cada uma estrelada por um personagem criado por Howard: Kull, Red Sonja, Solomon Kane e Bran Mak Morn. Stan Lee daria autorização e informaria o editor da Marvel na época, Jim Steranko, do projeto. Por alguma falha na comunicação, Steranko entendeu que Thomas estava trabalhando em uma nova revista em preto e branco para adultos que, a cada edição, traria histórias desses quatro personagens, e publicaria essa informação em seu fanzine, Mediascene. Logo começariam a chegar na redação da Marvel cartas querendo saber mais sobre essa nova revista, e Thomas, achando que essa era uma ideia melhor do que as quatro minisséries, decidiria trabalhar nessa ideia. Assim nasceria a revista Kull and the Barbarians.

A primeira edição da Kull and the Barbarians traria apenas material republicado, sendo três histórias em quadrinhos, duas delas de Kull (sendo uma O Reino das Sombras) e uma adaptação de O Vale do Verme, considerada uma das melhores histórias escritas por Howard, protagonizada pelo bárbaro Niord, além das matérias costumeiramente apresentadas nesse tipo de revista, como resenhas e pin ups. A segunda edição, de julho, e a terceira, de setembro, trariam apenas material inédito, incluindo, em cada uma, uma história de Kull, uma de Solomon Kane e uma de Red Sonja, e, na segunda, um trecho de um livro ainda inédito do herói Blackmark, criado por Gil Kane. As vendas seriam dentro do esperado, mas, mesmo assim, após a terceira edição a Marvel decidiria cancelar a revista, alegando que ela era muito cara. A história de Kull da segunda edição teria roteiro de Gerry Conway e arte de Jess Jodloman, e a da terceira roteiro de Doug Moench e arte de Vicente Alcalzar.

O sucesso de Kull nas revistas em preto e branco, entretanto, motivaria a Marvel a relançar a Kull the Destroyer, como se nada tivesse acontecido, em agosto de 1976, recomeçando da edição 16. Com roteiros de Doug Moench e arte de Ed Hannigan até a edição 20, e roteiros de Don Glut e arte de vários artistas, dentre eles dois nomes conhecidos dos fãs de Conan, Ernie Chan e Alfredo Alcalá, a partir da 21, a revista voltaria a investir apenas em histórias inéditas, mas a maioria delas tendo Thulsa Doom como antagonista. Ela seguiria sendo bimestral até outubro de 1978, quando seria definitivamente cancelada, na edição 29.

Em junho de 1979, Kull seria o astro da Marvel Preview 19, outra revista em preto e branco voltada para o público adulto, em uma história com roteiro de Thomas e arte de Sal Buscema, que prometia ser seu embate definitivo contra Thulsa Doom. Após a edição 24, a Marvel Preview seria renomeada para Bizarre Adventures, mantendo a numeração. Kull estrelaria a edição 26, de maio de 1981, com roteiro de Moench e belíssima arte de John Bolton, na qual o Rei da Valúsia deve frustrar mais um plano dos homens-serpente para tomar seu trono. Ainda em 1981, Kull participaria da revista Marvel Team Up, nas edições 111 e 112, de novembro e dezembro, em uma história na qual os homens-serpente tentam dominar o mundo na época atual, com o Homem-Aranha tentando detê-los e o Doutor Estranho usando um feitiço para enviar sua forma astral ao passado e conseguir a ajuda de Kull.

Essa história traria Kull de volta aos holofotes, e faria com que a Marvel planejasse o lançamento de uma minissérie em quatro partes estrelada pelo herói, que seria lançada em 1982. Sucessivos atrasos, entretanto, fariam com que a minissérie, chamada, assim como a primeira revista do atlante, Kull the Conqueror, tivesse apenas duas edições, uma lançada em dezembro de 1982, com roteiro de Alan Zelenetz e arte de John Buscema, a outra em março de 1983, com roteiro de Moench e arte de Bolton. As vendas seriam acima do esperado, e a Marvel decidiria transformar a minissérie em uma série regular, mas, por algum motivo, decidiria recomeçar a numeração do 1, com uma nova Kull the Conqueror sendo lançada em maio de 1983. A periodicidade também não era lá muito forte, com a edição 2 sendo lançada em julho, mas a 3 apenas em dezembro, da 4 a 7 em fevereiro, agosto, outubro e dezembro de 1984, e as três últimas em fevereiro, abril e junho de 1985. As vendas nunca agradaram à Marvel, que decidiria cancelar a revista após a décima edição. Em quase todas as edições, os roteiros seriam de Zelenetz e a arte de John Buscema.

A última revista estrelada por Kull publicada pela Marvel seria a graphic novel Kull: The Vale of Shadow, de novembro de 1989, com roteiro de Zelenetz e arte de Tony DeZuniga, na qual o Rei Kull é dado como morto e seus conselheiros mais próximos relembram suas histórias favoritas vividas ao lado do monarca. Depois disso, ele teria histórias publicadas apenas na Savage Sword, até o cancelamento da revista, em 1995, quando a série de aventuras de Kull antes de se tornar rei seria interrompida antes de chegar na parte em que ele matava o antigo rei e assumia o trono. Vale citar também que, nas décadas de 1970 e 1980, Kull faria algumas improváveis participações especiais em histórias do Conan publicadas na Conan the Barbarian - normalmente em flashbacks, mas houve uma história que envolveu uma viagem no tempo, que fez com que Conan e Kull se enfrentassem.

Assim como Conan, após deixar a Marvel, Kull iria para a Dark Horse, onde protagonizaria três minisséries: Kull, com roteiro de Arvid Nelson e arte de Will Conrad e José Villarubia, em seis edições lançadas entre novembro de 2008 e maio de 2009, adaptando O Reino das Sombras; Kull: The Hate Witch, em quatro edições entre novembro de 2010 e fevereiro de 2011, com uma história inédita de David Lapham e arte de Gabriel Guzman; e Kull: The Cat and the Skull, que adaptava a história de Howard A Gata de Delcardes em quatro edições lançadas entre outubro de 2011 e janeiro de 2012, mais uma vez por Lapham e Guzman. Em 2017, Kull estrelaria Kull Eternal, da IDW Publishing, na qual ele viajava no tempo e vivia aventuras em vários períodos da história; com roteiro de Tom Waltz e arte de Luca Pizzari, a revista não faria sucesso, e teria apenas três edições, lançadas entre junho e agosto. Hoje, os direitos sobre Kull pertencem à Kull Productions Inc., mas o personagem não é tão procurado quanto Conan, com seu principal material atualmente sendo republicações das histórias de Howard em livros, incluindo um lançado recentemente no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim.

Kull também foi astro de um filme para o cinema, lançado em 1997, sobre o qual eu falei brevemente quando fiz o post sobre os filmes de Conan - e que é tão ruim que eu prefiro não ter que abordar novamente, então vamos encerrar por aqui.
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sábado, 21 de setembro de 2024

Escrito por em 21.9.24 com 0 comentários

Ray Bradbury

Quando eu estava na oitava série, minha escola comprou um telão, o que era uma grande novidade na época - não era um projetor, e sim uma televisão gigantesca, com um videocassete acoplado. Colocou no auditório, e permitiu que os professores marcassem hora para exibir filmes. Um desses filmes foi Fahrenheit 451, que depois eu descobri ter sido adaptado de um livro. Que eu tentei pegar na biblioteca da minha escola, mas não tinha. Mas tinha um livro de contos do mesmo autor, e foi assim que Ray Bradbury se tornou um dos primeiros autores de ficção científica que eu li na vida. Não me lembro o nome do livro, mas me lembro de alguns elementos de alguns contos - embora também não me lembre de tudo nem dos nomes deles, deem um desconto, faz mais de 30 anos isso já. Enfim, essa semana eu me lembrei disso e fiquei com vontade de escrever esse post. Hoje é dia de Ray Bradbury no átomo!

Ray Douglas Bradbury nasceu em Waukegan, Illinois, Estados Unidos, em 22 de agosto de 1920, filho de um funcionário da companhia telefônica com uma imigrante sueca. Em 1926, seu pai seria demitido, e a família teria que se mudar para Tucson, Arizona, onde ele tinha a promessa de um novo emprego, que jamais se concretizaria; ele ficaria desempregado até 1934, quando a família se mudaria para Los Angeles, onde ele conseguiria um emprego fabricando cabos telefônicos, o que permitiria à família alugar um pequeno apartamento em uma região pobre de Hollywood. O passatempo preferido do jovem Brtadbury na nova cidade era ir andando de patins até os estúdios de cinema, onde conheceria e ficaria de papo com o gênio dos efeitos especiais Ray Harryhausen e com o ator George Burns, que chegaria a comprar uma piada escrita por ele, que usaria em seu programa de rádio, Burns and Allen.

Por influência de uma tia, que lia contos para ele quando era criança, ainda quando morava em Waukegan, Bradbury sempre teve o sonho de se tornar escritor; ele passava a maior parte de seu tempo livre em bibliotecas, tendo como autores preferidos H.G. Wells, Júlio Verne e Edgar Allan Poe. Ele começaria a escrever suas próprias histórias aos 12 anos, de início tentando se enveredar pelo terror e imitar o estilo de Poe, passando aos poucos à ficção científica. Após ler O Comandante de Marte, de Edgar Rice Burroughs, ele ficaria tão empolgado que escreveria uma continuação para o livro. Durante a adolescência, ele também escreveria histórias estreladas por outro personagem de Burroughs, o Tarzan, e tinha o hábito de ouvir o programa de rádio Chandu the Magician, escrevendo em um caderno o roteiro de cada episódio de memória antes de dormir.

Na adolescência, Bradbury conheceria o escritor de ficção científica Bob Olsen, que morava em Beverly Hills, com quem trocaria ideias para novas histórias. Aos 16 anos, ele veria em uma livraria um anúncio da Los Angeles Science Fiction Society, e, empolgado por ter a oportunidade de conhecer outras pessoas que compartilhassem de seu interesse, se inscreveria e começaria a participar de reuniões semanais. Ao concluir a escola, ele conheceria outro autor de ficção científica com quem conversaria durante longos períodos de tempo, Robert A. Heinlein, e começaria a se interessar também por histórias de Arthur C. Clarke, Theodore Sturgeon e A.E. van Vogt. Quando Bradbury completou 18 anos, a Segunda Guerra Mundial estava começando, e o alistamento militar nos Estados Unidos era, na prática, obrigatório; ele seria dispensado, entretanto, após ser reprovado no teste oftalmológico.

Através da Los Angeles Science Fiction Society, Bradbury conheceria Forrest J. Ackerman, considerado um dos maiores experts em ficção científica na época, que publicava um fanzine chamado Imagination!, e decidiria comprar algumas de suas histórias para publicação. Em julho de 1939, Ackerman decidiria investir em Bradbury, e daria a ele dinheiro para que publicasse seu próprio fanzine, o Futuria Fantasia, e para que ele viajasse até Nova Iorque, do outro lado do país, para participar da primeira World Science Fiction Convention. Bradbury publicaria quatro edições do fanzine, mas a publicação seria mais cara do que ele poderia manter, o que faria com que ele desistisse da empreitada e aceitasse um convite do crítico Rob Wagner para escrever uma coluna sobre cinema para sua revista, a Script. Com esse trabalho, ele conheceria Laraine Day, que o convenceria a se juntar a sua equipe de teatro, onde ele trabalharia como ator e roteirista.

Bradbury ficaria com a companhia de Day durante dois anos, e lá conheceria Harry Hasse, também escritor de ficção científica, com quem co-escreveria, em 1941, Pendulum, sua primeira publicação profissional, comprada pela revista Super Science Stories por 15 dólares, para publicação em novembro daquele ano. O sucesso da história dentre os leitores faria com que a revista também comprasse o primeiro conto profissional solo de Bradbury, The Lake, e com que outras revistas, como a Amazing Stories, se interessassem por seu trabalho. Aos 24 anos, Bradbury já vendia tantas histórias que podia ser considerado um escritor profissional em tempo integral, e, aos 27, conseguiu publicar seu primeiro livro de contos, Dark Carnival, pela editora Arkham House, de August Derleth, amigo de Lovecraft, de quem pegaria o nome. O livro seria bem recebido pela crítica, que veria no autor potencial para se tornar um dos maiores do gênero.

Ainda em 1947, Bradbury ofereceria o conto Homecoming à famosa revista Weird Tales, que o rejeitaria; ele, então, decidiria oferecê-lo à revista feminina Mademoiselle, onde ele ficaria esquecido em uma grande pilha de contos enviados por diferentes autores até ser lido por um jovem editor assistente chamado Truman Capote. Capote gostaria tanto da história que convenceria a editora Betsy Blackwell a publicá-lo, mesmo não sendo do estilo que a revista normalmente apresentava a suas leitoras. E Capote estava certo: Homecoming faria um gigantesco sucesso, ganharia o O. Henry Award de Melhor Conto naquele ano, e a revista receberia cartas até mesmo de homens o elogiando. Bradbury moraria com os pais até receber o prêmio, aos 27 anos, quando decidiria se casar com Marguerite McClure, sua primeira e única namorada; os dois permaneceriam casados até a morte dela, em 2003, e teriam quatro filhas. Harryhausen seria seu padrinho de casamento.

Bradbury era amigo pessoal de Charles Addams, e Homecoming era estrelado pela Família Elliott, que, de certa forma, lembra a Família Addams; Addams ilustraria a publicação de Homecoming na Mademoiselle, e, conforme Bradbury escrevia mais histórias dos Elliotts, os dois traçariam planos de publicar um livro que contasse a história completa da família, com texto de Bradbury e arte de Addams. Esse projeto jamais se concretizaria, segundo Bradbury, simplesmente porque cada um seguiria um caminho diferente na vida, mas, em 2001, Bradbury reuniria todas as histórias dos Elliotts que já havia escrito e lançaria a coletânea From the Dust Returned, com as ilustrações que Addams havia feito para Homecoming.

Em 1949, Bradbury estava passando por uma entressafra, oferecendo seus contos para várias revistas sem que nenhuma quisesse comprá-las. Ele então decidiria pegar um ônibus para Nova Iorque e se hospedar na Associação Cristã de Moços, pagando 50 cents por dia como aluguel. Um dia, ele conseguiria marcar um jantar com o editor-chefe da editora Doubleday, que, por coincidência, se chamava Walter Bradbury. Nesse jantar, ele reclamaria que todo mundo a quem ele oferecia seus contos perguntava se ele não tinha um romance para oferecer, ao que ele respondia que não. O editor, então, perguntou se ele não podia pegar vários contos, amarrar todos como se fossem uma única história, e colocar o nome de, sei lá, Crônicas Marcianas. Bradbury adoraria a ideia, e perguntaria se a Doubleday estaria disposta a publicar o livro se ele fizesse isso.

Assim surgiria As Crônicas Marcianas, primeiro romance de Bradbury, publicado em 1950 pela Doubleday, composto por 13 contos ambientados em marte já publicados, ligeiramente editados, e outros 13 totalmente inéditos, além de trechos especialmente escritos para ligar uns aos outros. O livro cobre 27 anos de exploração humana do planeta Marte, dividido em três partes, cada uma das duas primeira terminando com um evento cataclísmico. Originalmente, o espaço de tempo coberto ia de 1999 a 2026, mas, em 1997, as datas seriam mudadas para de 2030 a 2057. O livro seria um sucesso de público e crítica, e hoje é considerado um dos melhores da ficção científica da década de 1950.

Em fevereiro de 1951, Bradbury conseguiria publicar o conto The Fireman, de 25 mil palavras, na revista Galaxy Science Fiction. O editor da Ballantine Books, Stanley Kaufmann, gostaria tanto da história que perguntaria se Bradbury tinha interesse em expandi-lo para poder publicá-lo em formato de livro. Como não tinha uma máquina de escrever em casa, Bradbury escrevia em um local que as alugava por 10 centavos a hora, e seria nesse mesmo local que ele escreveria um dos maiores clássicos da ficção científica de todos os tempos: Fahrenheit 451. Inspirado pela queima de livros que ocorreu na Alemanha Nazista e pela repressão ideológica na União Soviética, em meio ao fantasma do comunismo e no auge do McCarthismo, Bradbury tiraria o título do livro de uma palestra que assistiu anos antes, durante a qual um capitão dos bombeiros diria que a temperatura na qual o papel entra em combustão é a de 451 graus Fahrenheit (aproximadamente 233 graus Celsius).

Fahrenheit 451 seria publicado pela Ballantine Books em outubro de 1953, e Hugh Hefner gostaria tanto da história que pagaria a Bradbury para que ele fosse publicado na revista Playboy em três partes, em março, abril e maio de 1954. A história é ambientada em um futuro distante, no qual todos os livros foram banidos, e os bombeiros, ao invés de apagar incêndios, têm como principal atribuição queimar livros que sejam descobertos pela polícia com subversivos que tentam preservá-los (o que advém de um trocadilho, já que fireman, "bombeiro" em inglês, tem o significado literal de "homem do fogo"). O protagonista é um bombeiro, Guy Montag, que passa a questionar seu papel na sociedade após um evento inesperado, e decide se rebelar e passar a preservar os livros ao invés de queimá-los.

O livro seria um sucesso de crítica, e é hoje considerado um dos maiores da ficção científica de todos os tempos, mas na época foi um sucesso moderado de vendas, sendo censurado em várias escolas dos Estados Unidos por ser considerado subversivo, e proibido na África do Sul porque o governo achou que era uma crítica ao apartheid. Fahrenheit 451 ganharia o American Academy of Arts and Letters na categoria literatura, e sua versão em audiolivro, lida pelo próprio Bradbury, lançada em 1976, seria indicada ao Grammy na categoria Melhor Performance em Obra Falada. Dez anos antes, em 1966, ele seria adaptado para um filme, dirigido por François Truffault, estrelando Oskar Werner como Montag e Julie Christie como Clarisse, personagem inspirada pela vizinha de Montag no livro, mas com participação muito maior no filme. O filme tem muitas diferenças em relação ao livro, seria um fracasso de público, e foi considerado "morno" (sem trocadilho) e "confuso" pela crítica; com o tempo, porém, ele se tornaria cult, e hoje é mais conhecido que o livro.

Apesar de ser considerado um dos maiores autores de ficção científica de todos os tempos, Bradbury sempre rejeitou esse rótulo, e costumava dizer que Fahrenheit 451 foi a única história de ficção científica que escreveu na vida. Segundo ele, a ficção científica era a "arte do possível", ou seja, uma história só poderia ser considerada ficção científica caso o que estivesse descrito nela fosse possível de acontecer na vida real. Seguindo essa descrição, suas outras histórias não seriam ficção científica, e sim fantasia, que era a "representação do irreal", algo que não tinha chance de acontecer na vida real. Ele também considerava a ciência um "elemento incidental" de suas histórias, e dizia não ter nenhum interesse no desenvolvimento da ciência, apenas querendo usá-la como forma de comentário social. Uma de suas frases mais famosas seria "as pessoas pedem para que eu preveja o futuro, quando tudo o que eu quero é evitar que ele aconteça".

Bradbury seria um forte apoiador das bibliotecas, pois, segundo ele, havia sido criado por elas e se formado nelas, já que nunca frequentou uma universidade; ao longo da vida, ele arrecadaria dinheiro para evitar o fechamento de várias bibliotecas na Califórnia. Além de pelas bibliotecas, ele teria amor pelo teatro, sendo diretor da Pandemonium Theatre Company de Los Angeles durante muitos anos, e contribuindo financeiramente com vários teatros que se encontravam em dificuldades. Ele também seria conhecido por ser um entusiasta do avanço tecnológico, incentivando as pessoas a usarem computadores e outras invenções que considerava importantes; apesar disso, ele era contra a disponibilização de suas obras em formato digital, considerando que era importante para as pessoas as lerem no papel.

Bradbury também criaria uma versão ficcionalizada de Waukegan, chamada Green Town, na qual a maioria de suas histórias seria ambientada, com muitas delas sendo consideradas autobiográficas, exceto pelos elementos fantásticos. O primeiro conto ambientado em Green Town seria Dandelion Wine, publicado em junho de 1953 na revista Gourmet, e que mais tarde daria origem a um livro também chamado Dandelion Wine, publicado em 1957 pela Doubleday. Dandelion, em inglês, é a planta dente-de-leão, que realmente é usada para fazer uma bebida alcoólica a base de frutas cítricas; em português, o livro seria lançado com o título Licor de Dente-de-Leão. Esse título vem do fato de que o avô do protagonista, o menino Douglas, é produtor desse licor, e ele serve como metáfora para as alegrias que Douglas vive ao passar o verão com os avós. Assim como As Crônicas Marcianas, Licor de Dente-de-Leão era a reunião de 27 histórias ambientadas em Green Town, mas, dessa vez, mais da metade delas era inédita.

O livro seguinte de Bradbury, Algo Sinistro Vem Por Aí, seria publicado em 1962, pela Simon & Schuster. Combinando elementos de fantasia e horror, o livro é inspirado em um evento real da infância de Bradbury, quando ele assistiu em uma feira um homem chamado Sr. Elétrico ser eletrocutado e sobreviver, em seguida encostando um bastão energizado no ombro de Bradbury e dizendo "viva para sempre". O protagonista da história acompanha o menino Will, e o vilão é o Sr. Dark, diretor de uma feira itinerante que tem o poder de realizar os desejos mais obscuros das pessoas, o que faz com os moradores de Green Town quando a feira passa por lá. Assim como Fahrenheit 451, o livro conta uma história contínua, não sendo uma reunião de contos. Algo Sinistro Vem Por Aí seria citado como influência por Stephen King e Neil Gaiman.

Dez anos depois, em 1972, seria a vez de A Árvore de Halloween, lançado pela editora Alfred A. Knopf, no qual um grupo de amigos sai pela rua pedindo doces no Dia das Bruxas, até descobrir que um deles foi sequestrado por uma entidade misteriosa, o que fará com que eles tenham de passar por uma jornada pelo tempo, passando pelo Antigo Egito, pela Grécia Antiga, pelo Império Romano, pela época dos druidas celtas, pela França medieval e pela celebração do Dia dos Mortos no México. Bradbury começaria a escrever a história como roteiro para um desenho animado da Hanna-Barbera criado pelo animador Chuck Jones, transformando-a em um livro após o projeto ser cancelado. Em 1993, a Hanna-Barbera decidiria fazer um longa animado para a televisão inspirado no livro, com Bradbury escrevendo o roteiro e atuando como narrador; exibido pela ABC, o desenho renderia a Bradbury um Emmy de Melhor Roteiro para um Programa Animado, sendo indicado também ao de Melhor Programa Animado (perdendo para Os Anjinhos, da Nickelodeon).

Em 1985, Bradbury lançaria, mais uma vez pela Knopf, A Morte é um Negócio Solitário, que muitos consideram autobiográfico. Ambientado em 1949 na cidade de Venice, Califórnia, na qual o autor morou entre 1942 e 1950, e que na época era considerada decadente, o livro é narrado em primeira pessoa por um narrador sem nome, que é um escritor de vida modesta e temperamento sensível, que tem uma namorada que foi morar na Cidade do México para estudar lá. Quando uma série de crimes misteriosos começa a acontecer na cidade, o escritor se alia ao detetive Elmo Crumley para tentar desvendá-los.

O livro seguinte de Bradbury, Cemitério de Lunáticos, publicado em 1990 também pela Knopf, seria uma sequência de A Morte é um Negócio Solitário, ambientada em 1954, na qual o narrador decide tentar uma carreira de roteirista em Hollywood. Mais uma vez, o livro é autobiográfico, baseado nas experiências que Bradbury teve tanto na época em que visitava os estúdios com frequência quanto na de sua carreira como roteirista de cinema, televisão e teatro. O estúdio no qual o narrador trabalha compartilha uma parede com o muro de um cemitério, o que pouca gente sabe, mas ocorre na vida real entre os Paramount Studios e o Hollywood Forever Cemetery; a maior parte da ação do livro ocorre nesses dois ambientes. Um dos personagens do livro é o animador de stop motion Roy Holdstrom, claramente inspirado em Ray Harrihausen, e outro, o diretor Fritz Wong, é um amálgama do diretor alemão Fritz Lang com o diretor de fotografia chinês James Wong Howe. Existe também um personagem, o adolescente caça-autógrafos Clarence, que muitos acreditam ser também autobiográfico, com o narrador representando o Bradbury adulto e Clarence o Bradbury adolescente.

A trilogia se fecharia com Vamos Todos Matar Constance, publicado em 2002 pela William Morrow e ambientado em 1960, no qual o narrador recebe da atriz Constance Rattigan, que já foi famosa mas agora está sendo preterida por sua idade, duas listas de pessoas marcadas para morrer. Ele decide chamar Crumley e visitar as pessoas das listas, mas logo eles percebem que elas morrem em circunstâncias misteriosas pouco após receber a visita da dupla. A principal suspeita é Constance, mas seu nome é o último da segunda lista, o que faz o narrador desconfiar que o assassino é alguém querendo incriminá-la antes de matá-la. O livro possui uma curiosa referência a Fahrenheit 451, com um dos personagens cogitando usar livros para começar um incêndio.

Dez anos antes, em 1992, seria lançado pela Knopf Green Shadows, White Whale, um relato ficcionalizado de um período de mais ou menos um ano, entre 1953 e 1954, no qual Bradbury morou na Irlanda, para escrever o roteiro do filme Moby Dick, de 1956, dirigido por John Huston. Bradbury diria ter ficado com vontade de escrever o livro após ler uma crônica que a atriz Katharine Hepburn escreveu sobre as filmagens de The African Queen, protagonizado por ela e também dirigido por Huston, lançado em 1951. O título do livro ("sombras cinza, baleia branca") é um trocadilho com White Hunter, Black Heart ("caçador branco, coração negro"), de Peter Viertel, que é um relato ficcionalizado das filmagens de The African Queen, e que se tornaria um filme com Clint Eastwood em 1990 (lançado aqui no Brasil com o título de Coração de Caçador). Mais uma vez, Green Shadows, White Whale é uma reunião de vários contos, alguns previamente publicados, sobre o período em que Bradbury morou na Irlanda, outros inéditos, interligados por uma história, também inédita, na qual um narrador mais uma vez sem nome viaja a Dublin para co-produzir um filme dirigido por um homem identificado apenas como John. O livro dividiria a crítica mesmo, com alguns o considerando a obra-prima de Bradbury, outros achando que é o romance mais fraco do autor.

O último romance que Bradbury escreveria seria Farewell Summer, lançado pela Morrow em 2006, uma continuação de Licor de Dente-de-Leão; durante um verão excepcionalmente quente, os mais jovens e os mais velhos de Green Town entram em conflito, enquanto Douglas, entrando na adolescência, descobre sua sexualidade. O livro começaria como um conto, também chamado Farewell Summer, que Bradbury começaria a escrever na década de 1950, mas somente terminaria no início dos anos 2000. Ele se empolgaria e escreveria um texto tão longo que a Morrow sugeriria que ele publicasse apenas as primeiras 90 mil palavras, deixando o restante para um livro futuro - que ainda não foi publicado.

Entre um romance e outro, Bradbury escreveria literalmente centenas de contos, publicados em várias revistas e reunidos em 36 coletâneas, lançadas entre 1947 e 2010. As mais famosas seriam The October Country, publicada em 1955, I Sing the Body Electric!, de 1969, Summer Morning, Summer Night, de 2008, com contos que atuavam como uma continuação de Licor de Dente-de-Leão, e O Homem Ilustrado, de 1951, que traria uma das mais famosas histórias de Bradbury, O Mundo Feito Pelas Crianças, adaptado para uma peça de teatro em 1988, e que, em 1969, seria adaptado para um filme dirigido por Jack Smight (chamado, no Brasil, Uma Sombra Passou Por Aqui), com Rod Steiger no papel de um homem que tem o corpo quase que totalmente tatuado, que se encontra por acaso na estrada com um viajante; cada tatuagem, ao ser olhada fixamente pelo viajante, revela uma história que corresponde a um dos contos do livro.

Ao longo da vida, Bradbury escreveria 10 romances, 9 peças de teatro e mais de 600 contos, que seriam traduzidos para 36 idiomas. Ele sofreria um derrame em 1999, que o deixaria parcialmente dependente de uma cadeira de rodas, mas ainda seria presença frequente em convenções e eventos de ficção científica até 2009, quando decidiria se aposentar; não aguentaria ficar parado, porém, e continuaria escrevendo, incluindo uma crônica para a revista New Yorker sobre sua inspiração para escrever, que seria publicada uma semana após sua morte. Ele faleceria em 5 de junho de 2012, aos 91 anos, em sua casa em Los Angeles. Sua extensa biblioteca pessoal seria integralmente doada para a Biblioteca Pública de Waukegan.
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sábado, 29 de junho de 2024

Escrito por em 29.6.24 com 0 comentários

Ziraldo

Pode não parecer, mas eu às vezes fico procurando assuntos nacionais para abordar aqui no átomo, porque, ao contrário do que muitos de vocês imaginam, eu não me interesso só por assuntos estrangeiros. O problema é que, como eu já falei aqui algumas vezes, é bem mais difícil encontrar as informações que eu quero para esses assuntos, o que me leva, quase sempre, a desistir. Essa semana (na qual eu estou escrevendo, não na qual eu estou postando, já que escrevo com antecedência), porém, eu decidi tentar bancar esse post, porque o Ziraldo morreu, e seus livros foram uma parte indissociável da minha infância. Se tem alguém que merece um post no átomo, mas que ainda não tinha ganhado um, esse alguém é o Ziraldo. Então, hoje é dia de Ziraldo no átomo!

Ziraldo Alves Pinto nasceu em 24 de outubro de 1932 em Caratinga, Minas Gerais. Seu nome diferente foi uma ideia de seu pai, Geraldo, que decidiu trocar a primeira sílaba de seu próprio nome pela primeira do apelido de sua esposa, Zizinha - cujo nome de batismo era Eufrazina. Ziraldo foi o mais velho de sete irmãos, com o terceiro sendo o também desenhista, cartunista, jornalista e escritor Zélio Alves Pinto - vale citar como curiosidade que, entre Ziraldo e Zélio, nasceu Ziralzi, que recebeu esse nome porque, segundo o pai, "era um Zi de Zizinha e um Zi de Ziraldo". Felizmente, depois desse ele passou a escolher nomes normais.

Ziraldo viveria em Caratinga até 1949, quando iria com a avó para o Rio de Janeiro. Moraria na cidade apenas um ano, entretanto, retornando a Caratinga para cursar o Ensino Médio, na época chamado Módulo Científico. Após concluir a escola, decidiria fazer faculdade de direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, onde se formou em 1957. Mas sua paixão sempre foram os desenhos, com os quais começou muito cedo: aos 6 anos de idade, convenceu seu pai a enviar um de seus cartuns para o jornal Folha de Minas, que gostou tanto da arte do menino que a publicou. Enquanto estava na faculdade, começou a trabalhar na revista Era Uma Vez, o que o levou, em 1954, a ser contratado pelo jornal Folha da Manhã (atual Folha de São Paulo), para escrever uma coluna semanal de humor. Esse trabalho, por sua vez, o levou a conseguir um emprego, em 1957, na prestigiada revista O Cruzeiro, para a qual escrevia charges e cartuns. Em 1960, antes dos trinta anos de idade, Ziraldo ganharia dois importantes prêmios em reconhecimento ao seu trabalho: o Nobel Internacional do Humor, do Salão Internacional de Caricaturas de Bruxelas, Bélgica, e o Prêmio Merghantealler, principal premiação da imprensa da América Latina, na categoria Melhor Cartum.

Em 1958, Ziraldo se casaria com Vilma Costa Gontijo, com quem teve três filhos: a cineasta Daniela Thomas, o compositor Antônio Pinto e a diretora de teatro Fabrízia Alves Pinto. Eles ficariam casados até a morte dela, em 2000; dois anos depois, ele se casaria pela segunda vez, com a produtora Márcia Martins, 18 anos mais jovem que ele.

Em outubro de 1960, Ziraldo lançaria a primeira revista em quadrinhos brasileira colorida e de um só autor, Pererê, na qual publicaria novas histórias e republicações de tiras originalmente publicadas, desde o ano anterior, em preto e branco, em O Cruzeiro. Ambientadas na fictícia Mata do Fundão, as histórias acompanhavam personagens genuinamente brasileiros, tendo como protagonista um saci-pererê, chamado simplesmente Pererê, e seus amigos, o índio Tininim, a onça Galileu, o tapiti (espécie brasileira de coelho) Geraldinho, o jabuti Moacir, o macaco Alan, e o tatu Pedro Vieira. Mais tarde, seriam adicionadas duas personagens femininas, a Boneca de Pixe, namorada de Pererê, e sua melhor amiga, a indiazinha Tuiuiú, apaixonada por Tininim. Os principais antagonistas eram os fazendeiros Tonico Macedo e Seu Neném, donos de terras vizinhas à Mata do Fundão que tinham o sonho de caçar Galileu e expandir suas fazendas; e os meninos Rufino e Flecha-Firme, rivais de Pererê e Tininim. Outro personagem de destaque era a coruja General (mais tarde renomeada para Professor Nogueira), que tirava dúvidas dos personagens, ensinando diversos assuntos às crianças leitoras.

Pererê seria um grande sucesso de vendas e conseguiria uma das maiores tiragens para revistas nacionais de sua época, mas acabaria cancelada em 1964, logo após a instauração do regime militar, quando a gráfica que a imprimia seria fechada pelo governo; ao todo, seriam publicadas 46 edições. Em 1975, a Editora Abril lançaria A Turma do Pererê, nova revista com histórias inéditas, que, devido a baixas vendas, acabaria cancelada após apenas 10 edições. Desde então, as histórias da Turma do Pererê seriam publicadas apenas em almanaques lançados ocasionalmente. A Turma do Pererê também teria três encarnações na TV, todas com atores de carne e osso: um especial de Dia das Crianças exibido pela Globo em 1983, e duas séries exibidas na TVE, a primeira com 20 episódios, entre 2002 e 2004, a segunda com 26, entre 2010 e 2012.

Um ano antes da instauração do regime militar, em 1963, Ziraldo seria contratado como cartunista pelo Jornal do Brasil, uma das mais prestigiadas publicações da época. Lá, ele criaria os personagens Supermãe, Mineirinho e Jeremias, o Bom, homem que estava sempre disposto a ajudar os outros. Em plena ditadura militar, ele usaria esses personagens para criticar os modos e costumes da época, sempre com muito humor e de forma disfarçada. Enquanto trabalhava no Jornal do Brasil, ele também seria o criador do logotipo oficial do Festival Internacional da Canção, popular competição entre cantores da época, organizada pelo governo, que mostrava um galo cantando.

Em 1967, Ziraldo seria contratado pelo Jornal dos Sports, outra prestigiada publicação da época, para criar um suplemento de humor. Chamado Cartum JS, o suplemento, semanal, revelaria vários nomes que se tornariam referência no futuro, como Henfil, Miguel Paiva e Juarez Machado. Em 1969, ele lançaria seu primeiro livro infantil, que também se tornaria um dos mais famosos: Flicts, que contava a história de uma cor diferente de todas as outras, infeliz por não encontrar mais nada no mundo igual a ela. Durante a década de 1970, ele faria vários trabalhos como ilustrador, desenhando desde peças publicitárias a capas de LPs, e criaria, para um álbum de figurinhas, versões para todos os mascotes dos times da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de futebol.

Ziraldo também seria um dos fundadores, junto com o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral, da revista O Pasquim, lançada em 22 de junho 1969. "Pasquim", então, era uma gíria usada para se referir a jornais de pouca qualidade, que não traziam notícias relevantes, semelhantes aos tabloides dos Estados Unidos e Reino Unido; o nome seria uma sugestão de Jaguar, que diria que seus detratores teriam de inventar outro nome se quisessem xingá-los. Definindo a si mesma como "um hebdomadário", O Pasquim era publicado uma vez por semana (que é exatamente o que hebdomadário significa), e, inicialmente, era uma publicação de humor, mas, conforme o tempo passava, grandes nomes do humorismo e do jornalismo, como Millôr Fernandes, Manoel Ciribelli Braga, Miguel Paiva, Henfil, Paulo Francis e Ivan Lessa, se uniam à equipe, e a publicação passaria a ter um tom cada vez mais político, sendo considerada como a principal oposição escrita ao regime militar.

O Pasquim acabaria sendo o responsável pela instauração da censura no Brasil, com a Lei de Imprensa, que a previa, sendo publicada pelo governo após Castro e Cabral publicarem uma entrevista que fizeram com a polêmica atriz Leila Diniz. Em novembro 1970, após a publicação de uma charge de Pedro Américo que mostrava D. Pedro I às margens do Ipiranga, o governo decretaria a prisão não só do cartunista como de toda a redação, incluindo Ziraldo, com base no Ato Institucional número 5 (AI-5). A intenção do governo era que a publicação saísse de circulação, mas Millôr, que não foi preso, assumiu a editoria, e, contando com colaboradores como Chico Buarque, Antônio Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara e Gláuber Rocha, faria com que as vendas aumentassem ainda mais. Em fevereiro de 1971, quando Ziraldo, Jaguar, Castro e Cabral foram soltos, O Pasquim já vendia cerca de 100 mil exemplares por semana, mais do que as duas principais revistas de jornalismo da época, a Veja e a Manchete, somadas.

Ziraldo fez de tudo no Pasquim: desenhou, escreveu, entrevistou, diagramou, fez capas, inventou seções etc. Chegaria até mesmo a inventar uma palavra: dica, que ele usava no lugar de "indicação", que achava muito comprida, e acabaria entrando para o vernáculo, sendo hoje uma palavra usada por todos, em várias ocasiões. Também seriam criações suas as expressões "pô", "é duca", "ih, cacilda" e "é ford", que ele usava no lugar de palavrões, para que seus textos não fossem censurados; somente a última não passaria a ser de uso geral da população. Um de seus trabalhos mais memoráveis foi a homenagem feita ao ex-presidente Juscelino Kubitschek, que faleceria em um misterioso acidente de automóvel em 1976, para muitos obra do governo militar; caberia a Ziraldo criar a capa da edição que noticiava a morte, que trazia um alfabeto no qual as letras J e K eram destacadas, e o texto que cobria o ocorrido.

Ziraldo deixaria O Pasquim em 1982, após uma briga com Jaguar - diz a lenda que, na disputa pelo Governo do Rio de Janeiro, Jaguar apoiava o candidato Leonel Brizola, enquanto Ziraldo apoiava Miro Teixeira, e os dois apostaram que quem perdesse pediria demissão. O Pasquim ainda seria publicado até 11 de novembro de 1991; mais de seis anos após o fim da ditadura, ele já não se sustentava como publicação política, e, em suas últimas tiragens, já daria prejuízo, o que motivaria Jaguar, o único da equipe original ainda na redação, a decidir encerrá-lo.

Na década de 1980, Ziraldo começaria uma gloriosa carreira como autor de livros infantis, se tornando talvez o principal nome brasileiro nessa área durante mais de vinte anos. O primeiro dessa empreitada seria O Planeta Lilás, de 1979, no qual um extraterrestre de um planeta pequenino constrói uma espaçonave para conhecer o universo. Então, no ano seguinte, ele lançaria aquele que se tornaria seu livro mais famoso: O Menino Maluquinho, que contava a história de um menino um tanto levado, um tanto doidinho, mas de bom coração - o qual o autor diria ter criado por acaso, enquanto conversava consigo mesmo ao fazer a barba diante do espelho.

O livro daria origem a histórias em quadrinhos, peças de teatro, filmes para o cinema, uma série de TV, desenhos animados e até mesmo uma ópera; além do protagonista, conhecido apenas como "Maluquinho", a chamada Turma do Maluquinho conta hoje, dentre outros, com Julieta, apelido Juju, menina alegre, energética e decidida, namorada oficial do Maluquinho; o ingênuo Bocão, melhor amigo do menino; o pessimista e mal-humorado Junim; a idealista Carol, melhor amiga de Juju, que está sempre preocupada com a natureza e lutando pela ecologia; o valentão Herman, às vezes amigo, às vezes rival de Maluquinho; Nina, a irmã mais nova de Bocão, que, apesar de ter apenas cinco anos, é mais madura que ele; o intelectual Lúcio; Sugiro Fernando, entusiasta da informática; e Shirley Valéria, a menina mais bonita da turma. Com mais de três milhões de exemplares vendidos até hoje, vencedor do Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, e já traduzido para mais de 20 idiomas, sendo um sucesso no mundo inteiro, O Menino Maluquinho seria lançado no dia do aniversário de 48 anos do autor, 24 de outubro de 1980.

Em 1982, Ziraldo publicaria mais um grande sucesso, O Bichinho da Maçã, cujo protagonista era uma minhoquinha que morava dentro de uma fruta. No ano seguinte, ele lançaria Pelegrino & Petrônio, cujos protagonistas eram dois pés, primeiro de uma série sobre partes do corpo humano, que contaria, também, com Os Dez Amigos (dedos das mãos), Um Sorriso Chamado Luiz, Rolim (um cabelinho encaracolado), Dodó (um bumbum), O Joelho Juvenal e O Calcanhar de Aquiles. Em 1985, seria a vez de O Pequeno Planeta Perdido, no qual um astronauta é enviado a um planeta tão distante que o combustível acaba antes de ele chegar lá, e, em 1986, de O Menino Marrom, cujo protagonista é um menino negro que tem como melhor amigo um menino branco (o Menino Cor-de-Rosa). Ele encerraria a década com O Menino Quadradinho, de 1989, sobre um menino viciado em histórias em quadrinhos.

Também na década de 1980, Ziraldo começaria a se envolver ativamente com política, se tornando militante e fazendo campanha para vários candidatos, principalmente em Minas Gerais; ele também seria o criador do logotipo de dois partidos políticos: o PMDB, principal partido de oposição ao regime militar, e o PSOL, fundado em 2004 por dissidentes do PT, ao qual se filiou em 2005. Durante a ditadura, ele seria filiado ao Partido Comunista do Brasil, o PCB, do qual saiu em 1989 após o partido se renomear para PPS.

Na década de 1990, Ziraldo seguiria investindo em sua carreira de autor infantil, expandindo as séries do Bichinho da Maçã, do Menino Maluquinho e Corpim. Em 1990, O Menino Maluquinho ganharia o Prêmio Angelo Agostini de Melhor Lançamento, e Ziraldo o de Mestre do Quadrinho Nacional; em 1993, ele ganharia o Troféu HQ Mix de Grande Mestre. Seu principal destaque dessa década seria Uma Professora Muito Maluquinha, de 1995, sobre uma professora que cativava sua turma com seus métodos diferentes e seu jeito de ser despreocupado, com a história sendo contada do ponto de vista de seus alunos, que se lembravam dela com carinho; o livro seria adaptado para um filme, em 2011, estrelado por Paolla Oliveira. Dois anos depois, em 1997, Ziraldo se envolveria em uma polêmica ao lançar Vovó Delícia, que mostrava que as avós do final do milênio não ficavam só na cadeira de balanço fazendo crochê, mas frequentando academias e praias e sofrendo por amor; houve quem achasse que o livro não era apropriado para crianças, e que a avó seria um mau exemplo.

Em 1999, Ziraldo lançaria mais duas revistas, a humorística Bundas, paródia da revista de celebridades Caras, extremamente popular na época, e a mais séria A Palavra; devido a mudanças nos gostos dos leitores e a um grande número de concorrentes nas bancas, nenhuma das duas teria boas vendas, e ambas acabariam canceladas em pouco tempo. Em 2001, Ziraldo e seu irmão Zélio fariam uma tentativa de ressuscitar O Pasquim, com o nome de OPasquim21; mais uma vez, a publicação teve vida curta, se encerrando em 2004. A partir do ano 2000, ele participaria da Oficina do Texto, projeto que reunia textos escritos por alunos de escolas de todo o Brasil, que eram então ilustrados por Ziraldo para serem lançados em coletâneas. Em 2003, ele seria homenageado no Carnaval de São Paulo pela escola de samba Nenê de Vila Matilde, que teria sua vida como enredo. Em 2004, ele ganharia o prêmio Andersen, na Itália, pela publicação naquele país de Flicts; em 2005, receberia a Ordem do Mérito Cultural, por sua contribuição para a cultura brasileira; e, em 2008, receberia o Prêmio Ibero-Americano de Humor Gráfico.

Na primeira década dos anos 2000, Ziraldo publicaria três livros de grande sucesso voltados para meninas: Menina Nina: Duas Razões para não Chorar (2002), que lidava com o tema da perda e do luto, inspirado pela reação de sua própria neta ao falecimento da avó; Menina das Estrelas (2007), segundo de uma série que começou com O Menino da Lua, do ano anterior, sobre uma menina neta de um escritor, que questiona o avô sobre o porquê de ele só escrever livros protagonizados por meninos; e Uma Menina Chamada Julieta, protagonizado pela namorada de Maluquinho. Também são destaques dessa década Os Meninos Morenos (2004), inspirado na infância do poeta guatemalteco Humberto Ak'abal, e O Menino e Seu Amigo (2003), sobre a amizade de um menino com seu avô.

O Menino da Lua daria origem a uma série com um total de 11 livros, nove deles dedicados a meninos oriundos de diferentes planetas do sistema solar: O Namorado da Fada ou Menino de Urano; O Menino da Terra; O Capetinha do Espaço ou o Menino de Mercúrio; Os Meninos de Marte; O Menino Que Veio de Vênus; Nino, o Menino de Saturno; O Menino d'Água e o Planeta Netuno; Ju, o Menino de Júpiter: O Maior Menino do Mundo; e As Cores do Escuro e os Meninos de Plutão. Conhecida como Os Meninos dos Planetas, essa série seria indicada ao Prêmio Jabuti em 2012, mas não ganharia. O último livro de Ziraldo seria Meninas, de 2016, que abordava a infância de garotas de 7 a 11 anos, e era, segundo o próprio autor, sua versão de Alice no País das Maravilhas.

Em 2013, durante uma viagem à Alemanha, Ziraldo teve um infarto leve, e precisou fazer um cateterismo. Em 2018, teve um AVC, e ficou internado em estado grave. Se recuperou e foi para casa, mas, nos quatro anos seguintes, sofreu outros dois AVCs, que fizeram com que ele ficasse com a saúde debilitada e limitasse suas aparições em público. Nos últimos meses de vida, passaria a maior parte do tempo acamado. Faleceria aos 91 anos, em 6 de abril de 2024, dormindo, em sua casa, no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro.
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domingo, 17 de setembro de 2023

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Agatha Christie

Quando eu era criança, lá em casa tinha uma coleção enorme de livros da Agatha Christie, que minha mãe comprou no jornaleiro. Quando comecei a me interessar por livros que não fossem infantis, ela me recomendou um (não me lembro qual), e eu, como sempre gostei de ler, e sempre gostei de completar as coisas, decidi que ia ler todos. Eu tinha uns 13 ou 14 anos, então não me lembro se realmente li todos, e, se você me perguntar hoje quais eu li e quais eram as histórias, já me esqueci - me lembro, porém, que os que eu mais gostava eram os da dupla de detetives Tommy e Tuppence, não gostava muito dos da Miss Marple, e achei o final de Assassinato no Expresso do Oriente meio besta. Por causa desses dois fatores - coleção enorme em casa, ter começado a ler cedo - Agatha Christie sempre foi, pra mim, uma espécie de referência na literatura, embora eu jamais a tenha considerado uma de minhas autoras preferidas. Essa semana, enquanto eu imaginava qual poderia ser o assunto da vez, uma amiga disse que estava lendo um livro dela e eu pensei "por que não?". Então, hoje é dia de Agatha Christie no átomo!

Mas antes, um fato curioso: também quando eu era criança, uma gata de rua entrou lá em casa e resolveu ficar morando lá. Como ela precisava de um nome, eu sugeri Christie. Porque, aí, ela poderia ser "a gata Christie". Essa deve ser uma piada na qual todo mundo já pensou, mas eu, na minha infância, achei que foi uma tirada genial, e fiquei muito satisfeito quando meus pais passaram a usar o nome pra se referir à gata - que era uma fera, não deixava nenhum de nós chegar perto, e acabou fugindo algum tempo depois.


Agatha Mary Clarissa Miller nasceu em 15 de setembro de 1890, na cidade de Torquay, Inglaterra. Sua família era de classe média alta, e seu pai, Frederick Alvah Miller, era conhecido nos círculos sociais da corte. Sua mãe, Clarissa Margaret Boehmer, nasceu em Dublin, na Irlanda (na época parte do Reino Unido), filha de um oficial do exército que morreu quando ela tinha nove anos. Como a mãe de Clarissa, que tinha outros dois filhos, não tinha condições financeiras para criar três, a entregou para sua irmã, que havia se casado com um viúvo norte-americano, mais velho que ela, que trabalhava com importação e exportação. Frederick era filho do primeiro casamento desse viúvo - ou seja, os pais de Agatha eram irmãos de criação. Quando eles decidiram se casar, Fredrick tinha 32 anos e Clarissa 24; sua primeira filha nasceria na Inglaterra em 1879, então um menino nasceria em Nova Jérsei, durante uma temporada na qual o casal morou nos Estados Unidos, em 1880, e Agatha, a terceira e última, nasceria após eles retornarem à Inglaterra, depois da morte do pai de Frederick.

Sendo de família abastada, a infância de Agatha foi sem nenhum percalço, inclusive com a família fazendo viagens frequentes a Londres, Paris, Guernsey e aos Pirineus. Como seus irmãos mais velhos eram realmente mais velhos, cerca de uma década a mais que ela, ela passava a maior parte do tempo brincando sozinha, com animais de estimação ou amigos imaginários. Apesar de sua irmã ter sido mandada para a escola, sua mãe achava que o melhor era educá-la em casa, o que aumentaria sua solidão; sua mãe era contra ela aprender a ler antes dos oito anos, mas ela aprenderia sozinha, e começaria a ler com quatro. Como resultado, ela passaria a maior parte de seu tempo livre lendo, inclusive livros voltados para adultos, como os de Anthony Hope, Walter Scott e Alexandre Dumas. Em 1901, quando ela tinha apenas dez anos, escreveria seu primeiro poema, ao qual daria o nome de The Cow Slip (algo como "o tropeço da vaca").

Mais ou menos por volta dessa época, a saúde de seu pai se deterioraria rapidamente, e ele faleceria de pneumonia e falência renal. Sua irmã se casaria um ano depois da morte do pai, e seu irmão iria servir ao exército, deixando Agatha e a mãe sozinhas em casa. Em 1902, sua mãe decidiria matriculá-la em uma escola, mas, não estando acostumada, ela não conseguiria se adaptar. A mãe a enviaria, então, para Paris, com a esperança de que ela estudasse para ser uma pianista profissional, mas ela mesma chegaria à conclusão de que não tinha talento. Ao retornar para a Inglaterra, ela encontraria a mãe também doente, e decidiria passar o inverno de 1907-1908 no Egito, que era um destino comum na época para ingleses abastados - além de ter o clima quente, algo que se acreditava benéfico para uma série de doenças. Agatha visitaria pontos turísticos, assistiria a apresentações de dança e teatro, e decidiria ser, ela também, uma artista: de volta à Inglaterra, passaria a escrever e atuar em peças de teatro amador.

Aos 18 anos, Agatha também cairia doente, e, de cama, enquanto se recuperava, escreveria seu primeiro conto, The House of Beauty ("a casa da beleza"), sobre, segundo ela mesma "sonhos e loucuras". Incentivada pelas amigas, ela escreveria mais, e passaria a enviá-los a revistas - que não publicariam histórias escritas por uma mulher iniciante, de forma que ela usaria os pseudônimos Mac Miller, Nathaniel Miller e Sydney West. As três primeiras histórias enviadas por ela seriam rejeitadas, mas ela não desanimaria e decidiria começar a escrever um romance chamado Snow Upon the Desert ("neve no deserto"), ambientado no Cairo e usando como inspiração suas próprias experiências no Egito. O romance também seria rejeitado, por seis editoras, e sua mãe a aconselharia a pedir ajuda a Eden Phillpotts, um famoso autor e dramaturgo, que era vizinho das duas. Phillpotts veria potencial no que ela havia escrito, a encorajaria a continuar escrevendo, e a apresentaria a seu agente, Hughes Massie, que também rejeitaria o romance, mas pediria para que ela escrevesse um novo.

Enquanto escrevia, Agatha investiria em atividades sociais, participando de festas, passeios a cavalo, caçadas, danças, e até mesmo encontros de patinação. Após quatro namoros e um noivado curtos, ela seria apresentada, em 1912, durante um baile da alta sociedade na cidade de Ugbrooke, vizinha a Torquay, a Archibald Christie, apelido Archie, um oficial da artilharia do exército filho de um advogado que trabalhava na Índia (na época colônia do Reino Unido). Os dois se apaixonaram à primeira vista, e, após apenas três meses, Archie pediria Agatha em casamento, e ela aceitaria. Com o início da Primeira Guerra Mundial, ele seria enviado para combater na França, e eles só conseguiriam se casar na Véspera de Natal de 1914, quando ele estava de volta à Inglaterra, de licença. Seria, então, que ela deixaria de ser Agatha Miller e passaria a ser Agatha Christie. Ela seria voluntária da Cruz Vermelha durante a Guerra, primeiro como enfermeira, depois como assistente de farmacêutico; ele subiria rapidamente na hierarquia após o casamento, e voltaria para a Inglaterra de vez em 1918, com a patente de Coronel. Após seu retorno, o casal se mudaria para Londres.

Agatha Christie escreveria seu primeiro romance de detetives durante a Primeira Guerra, inspirada pelos romances de Wilkie Collins e pelas histórias de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle, que ela começaria a ler na adolescência. Inspirada em Holmes, ela criaria o detetive Hercule Poirot, cujo nome ela tiraria de outros dois detetives da ficção: Hercule Popeau, das histórias de Marie Belloc Lowndes, e Monsieur Poiret, dos contos de Frank Howel Evans. Policial aposentado que que frequenta a alta sociedade britânica, com "um bigode magnífico" e "a cabeça no formato exato de um ovo", Poirot nasceu na Bélgica e imigrou para Londres durante a Primeira Guerra, história inspirada na dos soldados belgas que Christie conheceu em seu serviço voluntário como enfermeira. Assim como Holmes, Poirot é um mestre da observação, e soluciona seus casos prestando atenção em detalhes que os demais deixaram passar. Ao todo, Poirot seria o astro de 33 romances escritos por Christie, além de quase uma centena de contos e três peças de teatro.

Poirot seria a estrela de O Misterioso Caso de Styles, que ela escreveria em 1916, no qual a proprietária de uma mansão em Essex é encontrada envenenada por estricnina, e um de seus hóspedes pede ajuda a seu velho amigo Poirot para descobrir qual dos residentes teria sido o assassino. Instruída por Massie, ela ofereceria o romance às editoras Hooder & Stoughton, Methuen e The Bodley Head. As duas primeiras a rejeitariam, mas o dono da terceira, John Lane, ficaria de dar uma resposta e se esqueceria. Meses depois, ele entraria em contato e se diria disposto a publicar o livro caso Christie mudasse a forma como a solução do mistério foi revelada por Poirot. Ela aceitaria, e assinaria um contrato para a publicação de cinco romances, que mais tarde ela acharia desvantajoso. O Misterioso Caso de Styles seria publicado primeiro nos Estados Unidos, em 1920, e no ano seguinte no Reino Unido, sendo um grande sucesso de vendas em ambos os países.

Em 1919, Christie daria a luz à sua única filha, Rosalind Margaret Clarissa Christie; Archie pediria baixa do exército e passaria a trabalhar no mercado financeiro, ganhando pouco. Nessa época, ela escreveria seu segundo romance de detetives, O Inimigo Secreto, publicado em 1922 pela Bodley Head, estrelado pelo casal Thomas e Prudence Beresford - mais conhecidos por seus apelidos, Tommy e Tuppence. Tuppence (uma grafia alternativa para two pence, algo como "dois centavos") é carismática, impulsiva e intuitiva, enquanto Tommy é mais pé no chão, tem pouca imaginação e é muito difícil de enganar; essas características fazem com que os dois, que são amigos de infância e trabalham para o Serviço de Inteligência Britânica, se completem, um precisando do outro para solucionar seus casos. Tommy e Tuppence são os únicos personagens de Christie que envelheceriam ao longo de seus cinco livros: no primeiro, eles têm por volta de 20 anos, são solteiros, e se casam ao final, enquanto no último eles têm por volta de 70 e quase aposentados - no mundo real, também se passariam 50 anos entre as duas publicações. Em O Inimigo Secreto, eles têm de encontrar Jane Finn, sobrevivente do naufrágio do Lusitânia, durante a Primeira Guerra Mundial, que supostamente está de posse de documentos secretos do governo britânico.

O terceiro romance de Christie, Assassinato no Campo de Golfe, seria estrelado mais uma vez por Poirot, e lançado em 1923; dessa vez, um milionário francês pede ajuda a Poirot por acreditar que querem assassiná-lo - o detetive chega tarde demais para evitar o crime, mas não para descobrir o assassino. Nessa época, ela já não teria dificuldade nenhuma para vender suas histórias, e conseguiria um contrato para publicar contos estrelados pelo detetive na revista The Sketch. Um ano antes, ela e o marido seriam convidados para uma excursão por África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Havaí e Canadá, durante a qual ela seria um dos primeiros estrangeiros a praticar o surfe nas praias havaianas. Ao retornar à Inglaterra, o casal compraria uma casa na cidade de Sunningdale, que ela nomearia como Styles, em homenagem à mansão de mesmo nome de seu primeiro romance publicado.

Lá, ela escreveria seus dois últimos livros do contrato com a Bodley Head: O Homem do Terno Marrom, publicado em 1924, no qual a jovem órfã Anne Beddingfield testemunha um homem cair nos trilhos do metrô e, não convencida com a conclusão da polícia de que a morte foi acidental, decide investigar se alguém o empurrou, contando com a ajuda do Coronel Race, aposentado do MI-5; e O Segredo de Chimneys, publicado em 1925, no qual os protagonistas são o Superintendente Battle, policial da Scotland Yard, e a it girl Bundle Brent, que têm de investigar um assassinato que envolve um guia turístico que retornou da África do Sul à Inglaterra trazendo cartas comprometedoras.

Entre junho e setembro de 1925, Christie publicaria uma história de Poirot em 54 partes no jornal London Evening News; nela, enquanto passa férias em um minúsculo vilarejo no qual o passatempo principal é a fofoca, o detetive tem de solucionar o assassinato do homem mais rico do local. As 54 partes seriam reunidas e publicadas em um único livro, chamado O Assassinato de Roger Ackroyd, em 1926, pela editora William Collins & Sons, que publicaria todos os romances seguintes de Christie até sua morte. Em 2013, O Assassinato de Roger Ackroyd seria eleito "a melhor história de 'quem matou?' de todos os tempos" pela Associação dos Escritores de Mistério do Reino Unido, devido à forma como o mistério é apresentado e o assassino é revelado.

Em abril de 1926, a mãe de Christie faleceria, e ela entraria em depressão. Em agosto, Archie pediria o divórcio, alegando ter se apaixonado por outra mulher durante a excursão de 1922. Em 3 de dezembro, o casal teria uma briga após Archie anunciar que passaria o natal entre amigos, sem a esposa. Depois disso, Agatha Christie desapareceria. Seu carro seria encontrado na manhã seguinte na cidade de Surrey, com roupas dentro; houve um temor da polícia de que ela tivesse decidido se matar afogada em um lago próximo ao local onde o veículo foi encontrado. O sumiço da autora logo se tornaria a maior história do ano, mobilizando a imprensa inglesa e sendo destaque em vários outros países, ganhando a primeira página do jornal The New York Times. Mais de mil oficiais de polícia e 15 mil voluntários a procuraram pelas cercanias de sua casa e do local onde seu carro foi encontrado, sem nenhum sucesso. Um jornal da cidade de Surrey ofereceu uma recompensa de cem libras, uma pequena fortuna na época, para quem a encontrasse, e Sir Arthur Conan Doyle levaria uma de suas luvas para que uma médium tentasse dizer onde ela estava. Durante dez dias, ninguém tinha a menor pista de onde ela estava, até que, em 14 de dezembro, ela foi identificada hospedada em um hotel da cidade de Yorkshire sob um nome falso, alegando ser uma turista da África do Sul. Christie alegaria não ter nenhuma memória do evento, e não saber como foi parar no hotel; dois médicos a diagnosticariam com "perda de memória genuína", e até hoje não se sabe se ela quis envergonhar o marido de propósito, incriminá-lo por seu desaparecimento, ganhar mais notoriedade com o episódio, ou se teve um colapso nervoso e quis se isolar do mundo, sendo essas as quatro teorias mais aceitas por seus biógrafos.

Em janeiro de 1927, ela viajaria com a filha para as Ilhas Canárias, para se recuperar do episódio; ao retornar, ela entraria com um pedido de divórcio, que só seria concretizado em 1928. Por decisão judicial, ela manteria a guarda da filha e o sobrenome Christie, já que foi com ele que ficou famosa. Após o divórcio, ela decidiria pegar o Expresso do Oriente, linha de trem que ligava Paris a Istanbul, na Turquia, e, de lá, passar uma temporada em Bagdá, no Iraque, onde conheceria o arqueólogo Leonard Woolley, que a convidaria para acompanhá-lo em uma escavação em fevereiro de 1930, durante a qual ela conheceria outro arqueólogo, Max Mallowan, 13 anos mais jovem que ela. Os dois se apaixonariam e se casariam em setembro de 1930. Christie e Mallowan ficariam casados até a morte da autora, e ela o acompanharia em diversas expedições arqueológicas, usando essas viagens como inspiração para muitos de seus romances seguintes.

Enquanto Christie viajava, seriam publicados mais dois romances estrelados por Poirot. No primeiro, Os Quatro Grandes, de 1927, o detetive se prepara para viajar ao Rio de Janeiro quando tem de mudar seus planos ao receber a visita de um homem à beira da morte que se refere insistentemente a um grupo de pessoas poderosas que seria o responsável pelo atentado, atiçando a curiosidade de Poirot e levando-o a investigar; esse romance nasceria da união de vários contos escritos por Christie e publicados na revista The Sketch, editados e com novas partes escritas para ligá-los uns aos outros. No segundo, O Mistério do Trem Azul, de 1928, durante uma viagem no famoso Trem Azul, de Paris a Nice, uma herdeira norte-americana é assassinada e tem seu colar valiosíssimo roubado, cabendo a Poirot, que estava no trem por acaso, descobrir quem seria o assassino. Nesse período também seria lançado o segundo romance do Superintendente Battle, O Mistério dos Sete Relógios, de 1929, no qual Bundle retorna de viagem para descobrir que um novo assassinato misterioso correu em Chimneys, o de um jovem que seria alvo de uma peça pregada por seus amigos envolvendo oito despertadores, recorrendo ao amigo policial para solucioná-lo.

Então, em 1930, no romance Assassinato na Casa do Pastor, ocorreria a estreia oficial de uma das mais famosas personagens de Christie: Miss Marple. Criada para ser a estrela de um conto publicado pela revista The Royal Magazine em 1927, inspirada nas amigas solteironas de uma tia-avó de Christie, Jane Marple é uma senhorinha idosa que reside na pequena cidade se St. Mary Mead, e tem como passatempo desvendar mistérios relacionados aos poucos crimes que acontecem no local, usando de sua inteligência, boa memória - cada detalhe do mistério a remete a alguma coisa de seu próprio passado - e facilidade para analogias. Quando um coronel do exército é encontrado morto na casa do pastor local, e a polícia se mostra incapaz de encontrar o assassino, Miss Marple, vizinha do pastor, toma para si a tarefa. Curiosamente, nesse primeiro romance, Miss Marple era fofoqueira, intrometida e sempre esperava o pior das pessoas, mas, nos seguintes, se tornaria uma senhorinha moderna, bondosa e querida por todos os seus vizinhos. Ao todo, Miss Marple seria a estrela de 12 romances e mais de 50 contos escritos por Christie.

Também em 1930, seria lançado O Gigante, primeiro de seis livros que Christie escreveria sob o pseudônimo Mary Westmacott, criado por ela para livros que não fossem de detetives - no caso, a história de um músico que tenta compor sua obra-prima. Os livros que Christie assinaria como Westmacott seriam lançados não pela Collins, mas pela editora Heinemann. No ano seguinte, seria a vez de A Morte do Almirante, obra conjunta dos 14 membros do Detection Club, grupo formado por escritores de mistério do qual Christie fazia parte; lançado pela Hodder & Stoughton, o livro tinha 14 capítulos, cada um escrito por um membro diferente do clube, cabendo a Christie o capítulo 4. Também em 1931, seria lançado O Mistério de Sittaford, no qual, durante uma sessão de ouija, o dono de uma mansão é assassinado e seu sobrinho é apontado como o principal suspeito, com uma modelo, convidada da sessão, não se conformando e pedindo ajuda a um jornalista para inocentá-lo e descobrir o verdadeiro culpado. Depois desse, seriam lançados mais dois romances de Poirot, A Casa do Penhasco, de 1932, e Treze à Mesa, de 1933. No primeiro, Poirot conhece por acaso uma jovem que mora na tal Casa do Penhasco, que vem sendo vítima de várias tentativas de assassinato, tomando para si a tarefa de descobrir quem teria interesse em matá-la. No segundo, o célebre Lord Edgware é assassinado pouco após se recusar a dar o divórcio à sua esposa, que se torna a principal suspeita, mas tem um álibi incontestável, cabendo a Poirot descobrir se foi ela mesmo ou encontrar o verdadeiro culpado.

Após Christie e Mallowan se casarem, iriam morar em Chelsea, um dos bairros mais chiques de Londres, e, então, na cidade de Kensington. Em 1934, eles se mudariam para uma casa em Winterbrook, onde Christie residiria até o fim da vida, exceto por um período durante a Segunda Guerra Mundial, no qual o casal voltaria a morar em Londres, em um apartamento em Hampstead. Em 1938, eles comprariam uma casa de veraneio em Devon, mas Christie preferiria passar o verão na casa do cunhado, em Cheshire, que ela usaria como inspiração para várias de suas histórias ambientadas em casas de campo.

Pouco após Christie se mudar para Winterbrook, em 1934, seria lançado seu romance mais famoso, Assassinato no Expresso do Oriente, no qual um crime é cometido durante a viagem de trem bem quando Poirot está usando esse meio de transporte para retornar a Londres - se eu fosse Poirot, evitaria andar de trem. O romance acabaria adaptado para uma novela de rádio, três filmes para o cinema, uma peça de teatro e pelo menos cinco obras de televisão. O mais recente filme para o cinema, de 2017, é o primeiro de uma série de filmes estrelados por Poirot dirigidos por Kenneth Branagh, que também interpreta o detetive, e conta com um elenco estelar que inclui Tom Bateman, Penélope Cruz, Willem Dafoe, Judi Dench, Johnny Depp, Josh Gad, Derek Jacobi, Leslie Odom Jr., Michelle Pfeiffer e Daisy Ridley. Também vale citar como curiosidade que o livro seria lançado nos Estados Unidos com o nome de Murder in the Calais Coach, porque já existia um romance chamado Orient Express, de Graham Greene (que, curiosamente, fora dos Estados Unidos, se chama Stamboul Train).

Também em 1934, seriam lançados Por Que não Pediram a Evans?, no qual o filho do vigário de uma pequena cidade e sua amiga socialite tentam solucionar o que eles imaginam que seja um assassinato, após o rapaz encontrar um homem à beira da morte cujas últimas palavras são o título do livro, e mais um livro creditado a Westmacott, Retrato Inacabado, no qual uma mulher infeliz no casamento conhece um pintor durante uma viagem. Poirot, então, engataria uma sequência de nove romances. Em Tragédia em Três Atos, de 1935, os convidados de um jantar oferecido por um famoso ator de teatro começam a morrer envenenados, e Poirot, que também estava lá jantando, decide encontrar o culpado antes que seja a próxima vítima. Em Morte nas Nuvens, também de 1935, Poirot é um dos passageiros de um voo de Paris a Londres, durante o qual ocorre um assassinato sem que ninguém perceba; intrigado, o detetive, que estava dormindo na hora do crime, decide investigar. Em Os Crimes ABC, de 1936, Poirot recebe uma carta misteriosa detalhando um crime que ainda não ocorreu, e corre contra o tempo para encontrar o futuro assassino. Em Morte na Mesopotâmia, também de 1936, uma mulher que havia sido casada com um espião recebe várias cartas a ameaçando de morte caso se case novamente, atribuindo-as ao ex-marido; quando ela morre de repente em um sítio arqueológico no Iraque, após se casar com um arqueólogo, Poirot, que estava de férias em uma cidade próxima, decide investigar. Em Poirot Perde uma Cliente, de 1937, uma mulher que teme que seus parentes a matem para ficar com sua herança escreve a Poirot, que chega tarde demais, e descobre que a única testemunha do crime é o cachorrinho da vítima. Em Encontro com a Morte, durante uma viagem a Jerusalém, um jovem trama matar a própria madrasta, que controla sua vida; Poirot, hóspede no mesmo hotel, ouve os planos por acaso, e decide ficar de olho. E em O Natal de Poirot, de 1938, um milionário convida vários parentes com quem não tem contato há anos para uma festa de Natal e acaba assassinado, cabendo a Poirot, convidado a olhar o caso por um amigo policial, descobrir qual dos parentes foi o assassino.

Eu separei dois dessa lista de nove porque acredito que merecem destaque: Cartas na Mesa, de 1936, é uma espécie de crossover do "Christieverso", contando com não um, mas quatro detetives: Poirot, o Coronel Race, o Superintendente Battle e Ariadne Oliver, escritora de romances de mistério que é uma espécie de alter ego de Christie, criadora de uma série de sucesso estrelada pelo detetive finlandês vegetariano Sven Hjerson. Oliver possui um conhecimento sem par da mente criminosa, e uma espécie de piada recorrente em seus livros é que, sempre que ela decide seguir sua "intuição feminina", ela fica mais longe de solucionar o caso. Em Cartas na Mesa, os quatro são convidados de uma das famosas festas do extravagante Sr. Shaitana, que é assassinado, fazendo com que um dos outros quatro convidados, todos já envolvidos em assassinatos no passado, se tornem suspeitos.

Já em Morte no Nilo, de 1937, Poirot e o Coronel Race são convidados de uma viagem de luxo pelo Egito por ocasião do casamento da riquíssima Linnet Ridgeway - que, adivinhem, é assassinada durante um cruzeiro no Nilo. A principal suspeita é a melhor amiga de Linnet, porque o marido da milionária é seu ex-namorado, que decidiu terminar com ela para se casar com a outra, mas, conforme Poirot investiga, descobre que nenhum dos convidados é o que parece ser. Morte no Nilo seria adaptado para uma peça de teatro, um especial de TV transmitido ao vivo pelo canal norte-americano NBC em 1950, uma novela de rádio e dois filmes para o cinema, o mais recente, de 2022, parte da série de Poirot de Kenneth Branagh. Assim como o primeiro filme, ele tem elenco estelar, que inclui Tom Bateman, Annette Bening, Russell Brand, Ali Fazal, Dawn French, Gal Gadot, Armie Hammer, Rose Leslie, Emma Mackey, Sophie Okonedo, Jennifer Saunders e Letitia Wright.

Em 1939, Christie lançaria um de seus mais famosos romances, E Não Sobrou Nenhum, no qual dez pessoas aparentemente sem nenhuma conexão entre si são convidadas para uma ilha misteriosa e ficam presas em uma mansão durante a noite, sendo assassinados um a um, com os sobreviventes tentando descobrir o assassino antes que seja tarde demais. Bizarramente, quando esse livro foi lançado pela primeira vez no Brasil, ele recebeu o título de O Caso dos Dez Negrinhos, que mais tarde foi considerado racista e mudado para uma tradução literal do título original. E Não Sobrou Nenhum seria eleito o melhor romance de Christie em uma votação realizada dentre os fãs em 2015; segundo os críticos, o livro tem como maior mérito subverter os romances de detetives, já que, apesar de ter pessoas isoladas, assassinatos em série e um assasino misterioso, não há detetive, procura por pistas, entrevistas com suspeitos, nem a tradiconal reunião dos sobreviventes para explicar quem é o culpado e suas motivações.

Também em 1939, seria lançado É Fácil Matar, no qual o ex-policial Luke Fitzwilliam conhece no trem uma senhorinha que diz ser vidente e capaz de descobrir quem será a próxima vítima de uma série de assassinatos ocorridos em sua cidade natal; Luke toma a história como fantasiosa, mas, quando vê no noticiário que não somente o homem que a vidente apontou como a próxima vítima está morto, mas também a própria vidente, atropelada, decide ir até a cidadezinha investigar. Poirot, então, seria o astro de mais uma trilogia, por assim dizer. Em Cipreste Triste, de 1940, a jovem Elinor é a única herdeira de uma tia milionária, mas recebe uma carta dizendo que a tia pode deixar tudo para a filha de um empregado, chamada Mary. Elinor e seu noivo viajam à casa da tia para tirar a história a limpo, e o namorado se apaixona por Mary, deixando Elinor. A tia morre e, no testamento, Elinor realmente herda tudo, mas Mary aparece morta e Elinor é a principal suspeita, cabendo a Poirot inocentá-la. Já em Uma Dose Mortal, também de 1940, o dentista de Poirot é encontrado morto em um aparente suicídio, mas o detetive não acredita nesta hipótese e decide investigar se houve assassinato. E em Morte na Praia, de 1941, um aparente crime passional envolvendo dois casais infiéis ocorre em um hotel na Cornualha onde Poirot está hospedado, com a polícia local pedindo a ajuda do detetive para solucioná-lo.

1941 também seria o ano de lançamento de M ou N?, segundo romance estrelado por Tommy e Tuppence. Durante a Segunda Guerra Mundial, um agente inglês que tentava desmascarar um espião nazista é morto na Escócia; Tommy é enviado em segredo para se hospedar no hotel onde o suposto espião está e descobrir quem ele é, e, ao chegar lá, encontra Tuppence, que recebeu a mesma missão. Esse romance faria com que Christie fosse interrogada pelo MI-5, o serviço secreto britânico, por causa de um personagem chamado Major Bletchley, mesmo nome do centro de quebra de criptografia da agência, Bletchley Park, o que levaria o MI-5 a desconfiar que a escritora tinha uma fonte dentro do serviço secreto, que lhe daria ideias para seus romances de espionagem. Durante o interrogatório, Christie diria ter tido a inspiração para a história e o nome do personagem após ficar presa em um engarrafamento durante horas, bem em frente ao Bletchley Park.

Poirot voltaria à ativa em Os Cinco Porquinhos, de 1942, no qual o detetive é contratado pela filha de um famoso pintor que morreu envenenado, com sua mãe tendo sido condenada pelo crime e morrido na prisão, mas sempre sustentado ser inocente, com Poirot devendo descobrir o verdadeiro culpado. Então, seriam lançados dois romances de Miss Marple: em Um Corpo na Biblioteca, também de 1942, a empregada encontra o corpo de uma jovem desconhecida na biblioteca da residência de um coronel da reserva, e a agora simpática senhorinha, velha amiga do coronel, decide ajudar a polícia a descobrir quem é a jovem e como teria ocorrido seu assassinato; já em A Mão Misteriosa, de 1943, um casal de irmãos se muda para uma pequena cidade do interior para que o rapaz se recupere de um acidente, e começa a receber cartas anônimas que os acusam de não serem irmãos, e sim amantes, com Miss Marple se envolvendo quando os moradores da cidade começam a morrer em crimes ligados às cartas.

Em 1944, seria lançado o último romance do Superintendente Battle, Hora Zero, no qual um tenista é assassinado enquanto promovia um encontro entre sua esposa atual e a anterior, para que as duas, que se detestavam, fizessem as pazes. No mesmo ano, seria lançado mais um romance de Westmacott, Ausência na Primavera, no qual uma jovem reflete sobre sua vida durante uma viagem de trem. Em 1945, seria a vez de E No Final, A Morte, um dos poucos romances de Christie que não é ambientado no século XX: no Antigo Egito, uma família vive da agricultura e pecuária, com tudo correndo bem até que o chefe da família leva para morar com eles uma concubina intriguenta; é a concubina que é assassinada, em circunstâncias que sugerem o sobrenatural, cabendo à filha viúva do chefe da família investigar o mistério. No mesmo ano, teríamos também Um Brinde de Cianureto, no qual o Coronel Race assume a investigação de um caso ocorrido um ano antes e arquivado como suicídio por envenenamento, para o qual surgem novas evidências após o marido da vítima decidir fazer uma reconstituição.

Poirot voltaria a estrelar um romance em 1946, A Mansão Hollow, para a qual ele é convidado para um almoço, encontrando um assassinato misterioso assim que chega lá. O romance de mistério seguinte só seria publicado em 1948, Seguindo a Correnteza, também estrelado por Poirot, no qual um milionário se casa com uma viúva bem mais jovem, morre pouco depois, e deixa toda sua fortuna para ela; a família não se conforma, e a cunhada do milionário contrata uma vidente que diz que o primeiro marido da suposta viúva ainda está vivo, sendo o casamento, portanto, inválido, e cabendo a Poirot, contratado pela família, averiguar se isso procede. No mesmo ano, teríamos O Conflito, mais um romance de Westmacott, que envolve um triângulo amoroso entre um deficiente, um membro do parlamento e uma bela mulher. E, em 1949, seria lançado A Casa Torta, no qual um milionário grego constrói uma casa de arquitetura peculiar para morar com toda a família, incluindo sua esposa, 50 anos mais jovem. Quando ele é assassinado, ela se torna a principal suspeita, mas a neta mais velha do milionário namora um inspetor da Scotland Yard, e esse casal decide averiguar quem seria o verdadeiro culpado.

Em 1950, Christie seria eleita para a Royal Society of Literature, organização que reúne os maiores nomes da literatura do Reino Unido. Em 1956, ela seria condecorada com o título de Comandante da Ordem do Império Britânico, sendo promovida a Dama da Ordem do Império Britânico, o equivalente feminino ao título de cavaleiro, em 1971. Três anos antes, Malloway seria ele mesmo condecorado cavaleiro por suas descobertas no campo da arqueologia, o que daria a Christie o título de Lady Malloway, que ninguém usava, já que ela era muito mais famosa que o marido.

Na década de 1950, Christie começaria a se interessar por peças de teatro; seus romances já vinham sido adaptados para o teatro por outros dramaturgos desde 1928, mas, em 1951, ela decidiria ela mesma adaptar um de seus contos, que até hoje permanece inédito no Reino Unido, a pedido da própria autora, que não quis que ele fosse publicado enquanto a peça estivesse sendo encenada. Com o nome de A Ratoeira, a peça é um mistério tradicional de Christie, com uma mansão na qual vários convidados se reúnem, um assassinato em circunstâncias misteriosas, e um detetive, o Sargento Trotter, que recolhe as pistas e usa de seu raciocínio para elucidar o caso. A peça possui um plot twist próximo ao final, e, quando termina, o elenco pede para que a plateia não revele nenhum de seus segredos, para que os futuros espectadores não sejam prejudicados. Encenada pela primeira vez em 6 de outubro de 1952 no West End, A Ratoeira é atualmente a peça recordista em apresentações, com quase 29 mil, tendo sido encenada sem interrupções até 16 de março de 2020, quando todos os teatros de Londres tiveram de fechar devido à pandemia - não é à toa que o conto original ainda não foi publicado.

Christie chegaria a declarar que se divertia mais escrevendo peças de teatro do que contos ou romances; no total, ela escreveria 16 peças, quase todas adaptações de seus próprios textos já publicados. Três delas merecem destaque: Testemunha da Acusação, que estreou em 28 de outubro de 1953, também é inspirada em um conto, publicado originalmente em 1925, e é ambientada durante o julgamento de um homem acusado de matar uma milionária para ficar com sua herança, mais especificamente na parte em que a esposa desse homem, a qual todos acham que será uma testemunha de defesa, começa a depor contra ele, ajudando a acusação - mais uma vez, a peça tem um final surpreendente, que o elenco pede para que não seja revelado. Testemunha da Acusação seria encenada em diversos outros países, contando, inclusive, com uma versão encenada na Broadway, que ganharia dois prêmios Tony e renderia a Christie o Edgar Award de Melhor Peça de Mistério.

A Teia da Aranha, que estrearia em 27 de setembro de 1954, é um texto totalmente inédito, escrito a pedido da atriz Margaret Lockwood, que protagonizou a primeira montagem; nela, a esposa de um diplomata se vê envolvida em uma trama envolvendo o assassinato do segundo marido da mãe de sua enteada, do qual a menina é a principal suspeita. A Teia da Aranha seria adaptado por Charles Osborne para um romance, creditado a Christie, lançado em 2000. Após sua estreia, Christie se tornaria a primeira dramaturga a ter três peças sendo encenadas simultaneamente em Londres. A única outra peça de Christie com texto inédito seria O Veredito, que estrearia em 25 de fevereiro de 1958, no qual um professor brilhante imigra com sua esposa doente e uma prima para a Inglaterra para escapar da perseguição política em seu país, e logo se vê envolvido em um triângulo de infidelidade com uma de suas melhores alunas e com a tal prima, que originalmente foi com eles para cuidar da saúde da esposa.

Voltando aos romances, em 1950 seria lançado mais um romance de Miss Marple, Convite para um Homicídio, hoje considerado um dos maiores clássicos do mistério, no qual um anúncio no jornal convida os amigos da família para um homicídio que ocorrerá em uma mansão; achando que se trata de uma festa temática, várias pessoas atendem, mas ocorre realmente um homicídio, e, ao tomar conhecimento da história, Miss Marple decide auxiliar a polícia. Em 1951, seria a vez de Aventura em Bagdá, no qual um agente do governo britânico sofre um atentado na capital iraquiana e morre nos braços de uma jovem um tanto trambiqueira, que passa a ser a próxima vítima e se envolver em várias situações inusitadas. Poirot voltaria aos holofotes em 1952, com A Morte da Sra. McGinty, no qual, a pedido de um amigo inconformado com o resultado de um julgamento, que pode levar um inocente à morte, o detetive se hospeda em uma pequena pensão onde ocorreu o assassinato de uma faxineira, para tentar elucidá-lo. Também em 1952, Miss Marple retornaria com Um Passe de Mágica, no qual, a pedido de uma amiga dos tempos de escola, tenta elucidar um crime ocorrido em uma mansão que se converteu em um centro de recuperação de delinquentes juvenis. Ainda em 1952, seria lançado Filha É Filha, romance de Westmacott no qual uma filha tenta impedir que a mãe se case pela segunda vez.

1953 teria um romance de Poirot, Depois do Funeral, no qual o detetive, mais uma vez a pedido de um amigo, se disfarça e se infiltra em uma mansão para elucidar o assassinato da irmã de um milionário, que, no funeral do irmão, insinuou que ele também havia sido assassinado, quando todos imaginavam ter sido morte natural; e um de Miss Marple, Cem Gramas de Centeio, no qual um empresário morre durante o café da manhã com misteriosos cem gramas de centeio no bolso, e a senhorinha, ao tomar conhecimento do caso através das manchetes de jornal, encontra uma pista que a polícia deixou passar e decide se envolver. Em 1955, seria a vez de Um Destino Ignorado, no qual Hillary Craven, após perder a filha para uma doença, ser abandonada pelo marido e cogitar o suicídio, decide aceitar um convite de um agente secreto para uma missão perigosíssima, que busca elucidar o desaparecimento de vários cientistas. A esse, se seguiriam mais dois romances de Poirot, Morte na Rua Hickory, também de 1955, no qual o detetive, investigando um aparente surto de cleptomania em uma pensão estudantil, se vê mais uma vez diante de um assassinato misterioso, e A Extravagância do Morto, de 1956, no qual Ariadne é contratada para organizar um jogo de detetive numa mansão, e, temendo que algo possa dar errado, convida Poirot - que logo descobre que a romancista fez bem.

1956 também seria o ano de lançamento do último romance que Christie assinaria como Westmacott, O Fardo, que acompanha a vida de duas irmãs sobreviventes de um incêndio quando crianças. Miss Marple retornaria em A Testemunha Ocular do Crime, de 1957, no qual uma amiga sua, ao vir da Escócia para visitá-la, testemunha um assassinato da janela de seu trem, mas Miss Marple é a única a acreditar em sua história. Em 1958 seria a vez de Punição para a Inocência, o livro preferido da própria Christie, no qual um homem é condenado por matar a própria mãe e morre na prisão, mas, dois anos depois, um amigo da família encontra novas provas que revelam que ele era inocente - mas não quem seria o verdadeiro assassino, cabendo a esse amigo descobrir. Então retornaria Poirot, em Um Gato Entre os Pombos, de 1959, no qual um príncipe de um país árabe envia ao Reino Unido, pouco antes de morrer, joias valiosíssimas, que desaparecem.

Durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto morava em Londres, Christie trabalharia como farmacêutica assistente no Universe College Hospital; seu chefe daria a ela uma ideia de trama, que ela usaria em O Cavalo Amarelo, romance lançado em 1961. Nele, o protagonista é Mark Easterbrook, escritor amigo de Ariadne que se vê envolvido em uma série de mortes aparentemente naturais, mas que ele suspeita serem homicídios; curiosamente, sua investigação aponta para o sobrenatural, com três mulheres vistas como bruxas se tornando as principais suspeitas. O Cavalo Amarelo ganharia as manchetes dos jornais britânicos em 1977, quando um médico que havia lido o livro reconheceria os sintomas de um paciente como sendo os descritos por Christie para envenenamento por tálio, salvando sua vida após vários colegas já o terem desenganado.

Miss Marple retornaria em A Maldição do Espelho, de 1962, ambientado na mesma mansão de Um Corpo na Biblioteca, onde ocorre um novo crime, um envenenamento durante uma festa organizada pela nova dona da casa; curiosamente, no início do romance Miss Marple sofre uma queda e fica incapaz de se mover livremente, servindo como orientadora para o Inspetor Dermot Craddock, policial responsável pela investigação. Poirot passaria por situação semelhante em Os Relógios, de 1963, no qual é desafiado por um amigo agente do serviço secreto a desvendar o assassinato de um homem desconhecido na casa de uma senhora cega, onde foram encontrados quatro relógios todos marcando a mesma hora, mas que não pertencem a ela - com a condição de que o detetive deve se sentar em uma poltrona e não se levantar de lá até solucionar o caso. Miss Marple, então, emendaria dois romances, Mistério no Caribe, de 1964, no qual vai passar férias pagas por um sobrinho em uma ilha caribenha e acaba se deparando com um assassinato misterioso, e O Caso do Hotel Bertram, de 1965, quando uma sobrinha, talvez para não ser preterida em relação ao que pagou as férias no Caribe, paga para a senhorinha uma estada em um hotel de luxo, durante a qual uma herdeira é alvo de um atentado frustrado, e ela decide usar suas habilidades de detetive para ajudar a Scotland Yard a descobrir quem seria o perpetrador.

Em A Terceira Moça, de 1966, Poirot é procurado por uma moça que acha ter cometido um homicídio, mas desiste de pedir sua ajuda por considerar o detetive "velho demais". Acontece que Poirot foi indicado à garota por Ariadne, que estranha esse comportamento; o detetive e a escritora, então, decidem investigar se de fato ocorreu um crime, e se realmente foi a garota a responsável. Já em Noite Sem Fim, um rapaz inglês que gosta de viver a vida a cada momento, rejeitando empregos fixos, e uma herdeira norte-americana se apaixonam e se casam em segredo, para desgosto da família da moça, construindo uma mansão em um local que ciganos dizem ser amaldiçoado - e passando por situações terríveis ao decidir ignorar os avisos e morar na casa assim mesmo. E em Um Pressentimento Funesto, Tommy e Tuppence vão visitar uma tia em um asilo de idosos e acabam acidentalmente se envolvendo em uma trama de mistério que envolve desaparecimentos misteriosos e diamantes roubados.

Em 1969, seria lançado A Noite das Bruxas, no qual Ariadne é convidada para uma festa de Halloween, durante a qual uma adolescente se gaba de já ter presenciado um assassinato, mas não é levada a sério por ser muito mentirosa; quando a menina aparece morta, a escritora decide pedir ajuda a Poirot para descobrir qual dos convidados seria o assassino. O terceiro filme da série de Kenneth Branagh, lançado nesse ano de 2023, se diz inspirado nesse romance, mas também usa muitos elementos de O Mistério de Sittaford. Além de Branagh como Poirot e Tina Fey como Ariadne, o elenco conta com Kyle Allen, Camille Cottin, Jamie Dornan, Jude Hill, Ali Khan, Emma Laird, Kelly Reilly, Riccardo Scamarcio e Michelle Yeoh. Embora no Brasil o livro e o filme tenham o mesmo título, em inglês eles são diferentes: o livro se chama Hallowe'en Party, enquanto o filme se chama A Haunting in Venice (algo como "um susto em Veneza", cidade onde o filme é ambientado, diferentemente do livro, ambientado no interior da Inglaterra).

Em 1970, seria a vez do lançamento de Passageiro para Frankfurt, no qual um diplomata é abordado durante uma viagem por uma mulher que diz estar com a vida em perigo, e acaba se envolvendo em uma trama que inclui nazistas, armamento da população e manipulação da mente de jovens em prol da dominação mundial. Em Nêmesis, de 1971, Miss Marple reencontra um homem que havia conhecido no Caribe, que agora está à beira da morte e pede para que ela tente solucionar um crime misterioso, fornecendo apenas uma palavra-código, "Nêmesis", e uma vaga para a senhorinha na excursão "Casas e Jardins Famosos da Grã-Bretanha". E, em Os Elefantes Não Esquecem, de 1972, Ariadne é chamada para prestar depoimento sobre um caso ocorrido 15 anos atrás; intrigada por ele ainda não ter solução, ela decide pedir ajuda a Poirot, com os dois podendo confiar apenas na memória das pessoas que viveram naquela época.

No início da década de 1970, a saúde de Christie começaria a se deteriorar rapidamente - embora não tenha sido diagnosticada na época, seus médicos e biógrafos imaginam que ela teria desenvolvido Mal de Ahlzeimer ou demência. Apesar disso, ela continuaria escrevendo, com seu último trabalho sendo Portal do Destino, a última aventura de Tommy e Tuppence, de 1973. Às vésperas da aposentadoria, o casal se muda para uma casa antiga no litoral, que conta com uma sótão cheio de livros, deixados lá pelos antigos proprietários. Em um deles, Tuppence encontra uma pista para um aparente assassinato jamais solucionado, e ela e Tommy decidem entrevistar os moradores da cidade para tentar descobrir quem era a vítima, quem a matou e por qual motivo - com a principal dificuldade sendo que o crime ocorreu há mais de 50 anos, e a memória dos moradores já se confundiu com as várias histórias que acabariam sendo inventadas sobre o caso.

Christie faleceria em casa, de causas naturais, aos 85 anos, em 12 de janeiro de 1976; na época, ela era a escritora mais vendida da história, tendo vendido mais de 300 milhões de livros no mundo todo. Seu funeral seria simples e apenas para a família e amigos próximos, mas contaria com a presença de equipes de mais de 20 redes de televisão do mundo inteiro. Seu inventário seria extremamente simples, pois, em 1955, ela havia criado uma empresa, a Agatha Christie Limited, para cuidar de tudo o que fosse relacionado ao que ela escrevia, e que já era a detentora dos direitos autorais sobre todas as suas obras desde sua fundação; por causa disso, seu marido e filha receberiam apenas 106.683 libras de herança, embora Christie tivesse uma fortuna de aproximadamente 20 milhões de libras - que, legalmente, pertenciam à empresa. Em 1968, Christie venderia 51% das ações da empresa para a editora Booker Books, mas ela, Malloway e Rosalind manteriam o direito de indicar metade da mesa diretora e o presidente da empresa, além de ter poder de veto sobre adaptações e republicações de seus romances, contos e peças. Malloway faleceria pouco depois dela, em 1978, mas Rosalind ainda viveria até 2004; atualmente, 64% da Agatha Christie Limited pertencem à Acorn Media Enterprises, e os outros 36% pertencem a James Prichard, neto de Rosalind e bisneto de Christie, que manteve os privilégios da família, mas raramente os exerce.

Em seu testamento, Christie deixou instruções para que, após sua morte, fossem publicados dois romances que ela havia escrito durante a década de 1940, cujos manuscritos estavam trancados no cofre de um banco; diz a lenda que ela não queria que nenhum outro escritor assumisse seus mais famosos personagens, e, por isso, escreveu "capítulos finais" para as carreiras de cada um deles. O primeiro desses romances póstumos seria Cai o Pano, no qual um já envelhecido Poirot retorna à Mansão Styles, palco de seu primeiro caso, para encontrar um assassino responsável por cinco crimes ocorridos ao longo da carreira do detetive, que ele acredita estar escondido dentre os convidados da família. O segundo, último texto inédito de Christie a ser publicado, seria Um Crime Adormecido, no qual uma jovem recém-casada que jamais havia visitado a Inglaterra viaja para lá em lua de mel, mas passa a ter vários déjà vu, como se já conhecesse todos os locais que visita, e, durante uma peça de teatro, tem uma visão de uma mulher assassinada; Miss Marple, que também estava na plateia da peça, acha sua história curiosa, e decide investigar se tal assassinato de fato teria ocorrido. Ambos seriam publicados ainda em 1976, com intervalo de meses.

Além dos 73 romances, Christie escreveria 166 contos, originalmente publicados em revistas, ou para primeira publicação em coletâneas. Esses contos podem ser encontrados nas seguintes coletâneas: Poirot Investiga (1924), Sócios no Crime (1929, somente com contos de Tommy e Tuppence), O Misterioso Sr. Quin (1930), Os Treze Problemas (1932), O Cão da Morte (1933), O Detetive Parker Pyne (1934), O Mistério de Listerdale (1934), Assassinato no Beco (1937), Um Acidente e Outras Histórias (1939), Os Trabalhos de Hércules (1947), Os Três Ratos Cegos e Outras Histórias (1950), A Aventura do Pudim de Natal (1960), A Mina de Ouro (1971), Os Primeiros Casos de Poirot (1974), Os Últimos Casos de Miss Marple (1979), Enquanto Houver Luz (1997) e Poirot Sempre Espera e Outras Histórias (2008).
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