sábado, 20 de dezembro de 2025

Escrito por em 20.12.25 com 0 comentários

Studio Ghibli (IX)

E hoje encerramos o ano de 2025 e a série sobre as produções do Studio Ghibli. Nos vemos 10 de janeiro!

A Tartaruga Vermelha
La Tortue Rouge
2016

No final de 2013, tanto Hayao Miyazaki quanto Isao Takahata, dois dos fundadores e principais diretores do Studio Ghibli, anunciariam suas aposentadorias. Diante disso, o presidente do Studio Ghibli, Koji Hoshino, tomaria uma decisão inusitada: os dois projetos do estúdio já em andamento, o filme As Memórias de Marnie e a série de TV Ronja: A Filha do Ladrão seriam concluídos, mas, depois disso, todo o departamento de produção do Studio Ghibli seria desmantelado, com todos os profissionais sendo liberados para encontrar novos empregos em outros estúdios, e ele e o produtor Toshio Suzuki se dedicariam apenas à manutenção do Ghibli Museum. Hoshino deixaria claro, porém, que, caso algum novo projeto de interesse fosse apresentado, o departamento de produção poderia ser reaberto, com os profissionais, antigos ou novos, sendo recontratados apenas para aquela produção.

Assim começaria um hiato de seis anos, durante o qual muitos achariam que o Studio Ghibli havia fechado as portas de vez, e só terminaria quando Hayao Miyazaki decidisse largar sua aposentadoria para trabalhar em O Menino e a Garça, que acabou adiado para que ele pudesse ajudar seu filho Goro em Aya e a Bruxa. Mas isso nós veremos mais a seguir ainda hoje; por enquanto, o que interessa é que, durante esse hiato, o Studio Ghibli trabalharia em sua primeira co-produção internacional: o filme francês A Tartaruga Vermelha.

Co-produzido pela Wild Bunch, Prima Linea Productions, Why Not Productions, Arte France Cinéma, CN4 Productions, Belvision - todas francesas - e Studio Ghibli, financiado pela Nippon Television Network, Dentsu, Hakudodo DY Media Partners, Walt Disney Japan, Mitsubishi Corporation e Toho - todas japonesas - A Tartaruga Vermelha surgiria como projeto em 2008, quando um dos co-fundadores da Wild Bunch, Vincent Maraval, visitou o Studio Ghibli para conhecer Hayao Miyazaki pessoalmente, levando a pedido do japonês uma cópia do curta animado Father and Daughter, escrito e dirigido pelo holandês Michaël Dudok de Wit, vencedor do Oscar de Melhor Curta Animado de 2001. Miyazaki perguntaria se Maraval tinha como entrar em contato com de Wit, e diria que, se algum dia o Studio Ghibli fosse fazer um filme dirigido por um estrangeiro, seria com de Wit. A Wild Bunch entraria em contato com de Wit em Londres, convidando-o para assinar um contrato para a direção de um filme. De início, de Wit não se mostraria interessado, mas mudaria de ideia ao descobrir que Miyazaki tinha interesse em trabalhar com ele.

Questões de ordem prática, porém, fariam com que o projeto levasse muitos anos para sair do papel, e com que de Wit e Miyazaki jamais trabalhassem juntos; a principal delas seria que, tendo de Wit um contrato com a Wild Bunch, Maraval queria que o filme fosse uma co-produção entre seu estúdio e o Studio Ghibli, enquanto Miyazaki preferia que de Wit escrevesse e dirigisse um filme para o Studio Ghibli sem o envolvimento dos franceses. Somente após a aposentadoria de Miyazaki que Suzuki conseguiria costurar o acordo que permitiria a realização do filme; a extensão do quanto o Studio Ghibli efetivamente contribuiu além de emprestar seu nome jamais foi oficialmente divulgada, mas Suzuki e Takahata são creditados como produtores, junto a Maraval, Pascal Caucheteux e Grégoire Sorlat.

O filme conta a história de um homem que naufraga em uma ilha "deserta", que conta apenas com árvores, um bambuzal e alguns animais como gaivotas e siris. Ele decide usar os bambus para construir uma jangada, mas suas tentativas de escapar são repetidamente frustradas por uma tartaruga de casco vermelho. A Tartaruga Vermelha não tem diálogos, contando apenas com a trilha sonora incidental, sons ambientes e um eventual "ei!" gritado pelo homem; a animação é no estilo europeu, com os personagens não tendo traços característicos de anime. Curiosamente, o logotipo do Studio Ghibli, apresentado no início, não tem fundo azul claro como em sua versão tradicional, e sim fundo vermelho - segundo Suzuki, uma referência não somente ao nome do filme, mas também ao fato de que o Studio Ghibli não era o estúdio de produção principal, mas apenas um parceiro.

De Wit co-escreveria o roteiro com o francês Pascale Ferran. Ele manifestaria o desejo de fazer a animação da forma tradicional, com papel e acetato, passando os desenhos para o computador apenas para colori-los, mas mudaria de ideia após fazer alguns testes numa mesa de desenho digital Cintiq; a equipe acabaria fazendo os planos de fundo no papel, com carvão e esfuminho, e os personagens diretamente na mesa digital, com as cores e efeitos de luz e sombra sendo adicionados digitalmente - a jangada e as tartarugas seriam criadas diretamente em computação gráfica, com os animadores então desenhando sobre elas cena a cena, para que sua aparência não destoasse do restante do filme. Algumas cenas com atores seriam filmadas, mas, ao contrário do que foi divulgado, o filme não usou efeitos de rotoscopia, usando as cenas filmadas apenas como referência para a animação.

A Tartaruga Vermelha estrearia na França em 29 de junho de 2016, após ser exibido no Festival de Cinema de Cannes, em 18 de maio, e no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, em 13 de junho. No Japão, distribuído pela Toho, estrearia em 17 de setembro, e seria lançado no ano seguinte em DVD e Blu-ray pela Disney, sendo tratado como um lançamento oficial do Studio Ghibli. Nas Américas, os direitos de distribuição ficariam com a Sony, com a estreia nos Estados Unidos ocorrendo em 20 de janeiro de 2017, e, no Brasil, em 16 de fevereiro. Na Europa, seria distribuído pela StudioCanal (exceto na França, onde a distribuição ficaria com a própria Wild Bunch), estreando ao longo de 2017 no Reino Unido, Alemanha, Espanha, Itália e Holanda.

O filme seria um fracasso de público - com orçamento de 10 milhões de euros, sua bilheteria, somando todo o planeta, ficaria na casa de 6,6 milhões - mas um grande sucesso de crítica, sendo destacados a beleza dos cenários, a simplicidade da história e a trilha sonora, composta por Laurent Perez del Mar. A Tartaruga Vermelha seria indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação, mas perderia para Zootopia.

Aya e a Bruxa
Aya to Majo
2020

Até 2019, um dos principais parceiros do Studio Ghibli era o canal de televisão Nippon TV, que financiava parcialmente suas produções em troca dos direitos de exibi-las na TV aberta alguns meses após o fim de sua exibição nos cinemas, e, em 1993, financiou integralmente Eu Posso Ouvir o Oceano, única das produções do Studio Ghibli a não ser exibida nos cinemas, apenas na televisão. Naquele ano, porém, seria outro canal de televisão japonês, a NHK, quem procuraria Goro Miyazaki propondo financiar integralmente um filme de animação que, então, ela exibiria com exclusividade.

Na época, o departamento de animação do Studio Ghibli estava fechado, Hayao Miyazaki estava oficialmente aposentado, e Takahata havia acabado de falecer. Goro, mesmo assim, decidiria aceitar a proposta, mas não sem antes falar com seu pai e com Suzuki, obtendo a aprovação de ambos, que inclusive o incentivaram a fazer o filme. Muitas publicações diriam que seria Hayao Miyazaki quem planejaria o filme, mas, em entrevistas, Goro diria que, após obter a aprovação, "não consultaria novamente os mais velhos", sendo responsável por escolher qual seria a história adaptada, quem trabalharia na produção, e por decidir que o filme seria o primeiro do Studio Ghibli a ser produzido integralmente por computação gráfica em 3D - ainda segundo Goro, ele era o único do estúdio que sabia como criar uma animação desse tipo, então não adiantaria nada se consultar com seu pai ou com Suzuki.

Goro escolheria a história Earwig and the Witch, de Dianna Wynne Jones, autora de outra obra adaptada pelo Studio Ghibli, O Castelo Animado. Escrito enquanto Jones lutava contra um câncer de pulmão e publicado já após a morte da autora, em 2011, o livro conta com uma protagonista feminina jovem e ousada, algo que Goro achava que combinava com outras produções do Studio Ghibli. No original em inglês, essa protagonista se chama Earwig, nome de um inseto conhecido aqui no Brasil como tesourinha e no Japão como Ayatsuru, por isso, no original japonês e na versão traduzida para o português, ela se chama Aya.

Aya é uma menina órfã que, sem saber, é filha de uma bruxa, que, na juventude, fez parte de uma banda de grande sucesso chamada Earwig. Aya cresceria em um orfanato, onde se valeria de seu carisma para praticamente comandar o lugar, sempre aprontando alguma para não ser adotada quando algum casal aparecia. Quando Aya tinha 10 anos, porém, um estranho casal, formado pela bruxa Bella Yaga e pelo misterioso Mandrake, vai ao orfanato e escolhe especificamente a menina, levando-a para sua casa mágica. Bella Yaga diz a Aya que não está interessada em uma filha, e sim em uma ajudante, pois já não está dando conta de fazer suas poções sozinha, e a menina diz que aceita, desde que a bruxa a ensine a também ser uma bruxa. Bella Yaga concorda, mas já na intenção de enganar Aya, colocando a menina para trabalhar como uma escrava, sempre arrumando uma desculpa para não ensiná-la. O temperamento da menina jamais aceitaria essa situação, porém, e, junto com o gato Thomas, que pode falar, Aya se põe a bolar um plano para se livrar do jugo da bruxa e aprender ela também como fazer suas poções.

Como a mãe de Aya fazia parte de uma banda, a música é um elemento importante do filme. A trilha sonora seria composta por Satoshi Takebe, e as duas músicas da banda Earwig, Don't Disturb Me, maior sucesso da banda e tema de Aya, e Atashi no Sekai Seifuku, que toca no enceramento do filme, seriam executadas por uma banda formada especialmente para gravá-las, com Sherina Munaf, uma das cantoras mais populares da Indonésia, nos vocais; Hiroki Kamemoto, da banda Glim Spanky, na guitarra; Kiyokazu Takano, da banda Mrs. Green Apple, no baixo; a cantora japonesa Kavka Shihido na bateria; e o próprio Takebe nos teclados - Munaf também dubla a mãe de Aya, nas poucas cenas em que ela fala alguma coisa, na versão original em japonês. Além dessa duas canções, o álbum da trilha sonora do filme, lançado em janeiro de 2021, contaria com duas faixas compostas especialmente pela Glim Spanky, de quem Goro Miyazaki era fã. Um álbum creditado à Earwig, chamado Earwig and the Witch Songbook: 13 Lime Avenue (o endereço da casa de Bella Yaga), seria lançado em janeiro de 2022, mas para ele a formação da banda contaria com Kamemoto, Shishido, Takebe, a vocalista da Glim Spanky, Remi Matsuo, e a baixista da banda Aooo, Hikaru Yamamoto.

Com roteiro de Keiko Niwa e Emi Gunji, Aya e a Bruxa teve uma exibição no Festival Lumière, na cidade francesa de Lyon, em 18 de outubro de 2020, e foi exibido pela NHK em 30 de dezembro do mesmo ano - o filme também teria uma exibição marcada no Festival de Cannes de 2020, cancelado devido à pandemia. A audiência seria a mais baixa de todas as produções do Studio Ghibli quando passaram na televisão, o que Suzuki atribuiria ao dia e horário escolhidos pelo canal - uma quarta-feira às 19h30, na antevéspera de ano novo. Com autorização da NHK, o filme também seria exibido nos cinemas japoneses, com a Toho, que o distribuiria, marcando sua estreia para abril de 2021; mais uma vez devido à pandemia, essa data acabaria adiada, e Aya e a Bruxa estrearia nos cinemas japoneses em 27 de agosto de 2021. A versão exibida nos cinemas era mais longa que a originalmente exibida pela NHK, contando com cenas extras descartadas durante a edição; essa versão também acabaria posteriormente exibida pela NHK, em 31 de dezembro de 2021, uma sexta-feira, às 15h, com audiência ainda mais baixa que a exibição anterior. Em 15 de março de 2024, também uma sexta-feira, não sei através de qual acordo, o filme seria exibido pela Nippon TV, às 21h, novamente com audiência baixíssima.

Nos cinemas, Aya e a Bruxa nâo faria melhor, se tornando o filme de menor bilheteria da história do Studio Ghibli, rendendo apenas 300 milhões de ienes. A crítica seria extremamente desfavorável, reclamando da falta de inspiração da história, de que a protagonista, arrogante e metida, não gerava empatia no público, e considerando a animação em 3D extremamente pobre, não só quando comparada à de gigantes norte-americanas como Disney e Pixar, mas também em relação a outros estúdios japoneses que lançavam filmes no mesmo formato. Críticos de fora do Japão seriam ainda mais virulentos, dizendo que era uma heresia o Studio Ghibli trocar os planos de fundo extremamente detalhados de suas produções tradicionais por cenários pobres e sem vida, e seus personagens repletos de expressões faciais por bonecas nas quais qualquer emoção humana estava ausente. Um crítico chegaria a comparar Aya e a Bruxa à restauração do quadro Ecce Homo, de García Martínez, pela beata Cecilia Giménez, que o desfigurou completamente.

Aya e a Bruxa seria o primeiro filme do Studio Ghibli desde a versão em VHS de Sussuros do Coração a não ser lançado em home video no Japão pela Walt Disney Japan, com o lançamento ficando a cargo da Pony Canyon; para aumentar a lista de insucessos, é até hoje o lançamento do Studio Ghibli de menor vendagem. A Disney também não se interessaria em distribuir o filme nos Estados Unidos, passando a tarefa para a GKids, que não somente o lançaria em home video, mas cuidaria de sua dublagem - na qual o nome mais famoso é o de Richard E. Grant, que dubla Mandrake; as canções do filme e a dublagem da mãe de Aya ficariam a cargo da cantora Kacey Musgraves - e ficaria responsável por sua distribuição nos cinemas. Na Europa, graças a um acordo firmado antes da produção de A Tartaruga Vermelha, os direitos de lançamento em home video e distribuição nos cinemas ficariam com a Wild Bunch, que acabaria distribuindo-o nos cinemas apenas na França; o filme acabaria também sendo exibido nos cinemas do Reino Unido, distribuído pelo Elysian Film Group. Segundo os números oficiais, o filme renderia 173 mil dólares nos cinemas dos Estados Unidos e quase 670 mil no restante do planeta, se tornando, também, o filme do Studio Ghibli de menor bilheteria internacional.

O Menino e a Garça
Kimitachi wa Do Ikiru ka
2023

Eu gosto de imaginar que, quando viu os números de Aya e a Bruxa, Hayao Miyazaki pensou "não posso deixar esse ser o último filme do Studio Ghibli", e decidiu abrir mão de sua aposentadoria para fazer mais um. A verdade, porém, é que ele decidiu reconsiderar sua aposentaria para dirigir mais um filme em 2016, enquanto trabalhava no curta Kemushi no Boro ("Boro, a lagarta"), lançado em 2018 e exibido exclusivamente no Museu Ghibli e no Ghibli Park. Miyazaki tomaria essa decisão justamente enquanto estava sendo produzido um documentário sobre sua aposentadoria, que acabaria também abordando-a, e ganhando o título de Never-Ending Man: Hayao Miyazaki (algo como "o homem interminável").

De início, Miyazaki decidiria adaptar o livro infantil The Book of Lost Things, do autor irlandês John Connolly, e, em julho de 2016, faria seu primeiro storyboard; mais tarde, ele decidiria incluir também elementos de Yurei-to ("a torre fantasma"), do japonês Edogawa Ranpo, um dos livros preferidos de sua infância. Suzuki anunciaria oficialmente o projeto em fevereiro de 2017, e, em maio, o estúdio começaria a procurar profissionais para trabalhar na produção, já que havia dispensado todo mundo quando Miyazaki e Takahata anunciaram suas aposentadorias. Ao saber que Miyazaki dirigiria o filme, vários profissionais que trabalharam com ele ao longo dos anos se candidataram para trabalhar no projeto, o que fez com que o Studio Ghibli conseguisse uma equipe em pouco tempo, e a pré-produção começasse antes do fim do mês. Em outubro, o título do filme, Kimitachi wa Do Ikiru ka (algo como "como você vive?"), seria revelado; esse título seria o mesmo de um romance publicado em 1937 escrito por Genzaburo Yoshino, mas o filme não seria uma adaptação dele, não trazendo nenhum de seus elementos.

Em entrevistas, Miyazaki diria que estava fazendo o filme para seu neto, como se dissesse "vovô está partindo para outro mundo, mas deixando esse filme". Suzuki não estabeleceria uma data de lançamento para o filme, mas Miyazaki desejava que ele fosse lançado durante as Olimpíadas de 2020, que ocorreriam em Tóquio. Em agosto de 2018, Suzuki diria achar pouco provável que isso pudesse ocorrer, e que o filme provavelmente só seria lançado em 2021 ou 2022, e, em uma entrevista à NHK, em dezembro de 2019, ele diria que o filme estava cerca de 15% pronto, e que Miyazaki, na juventude, conseguia fazer cerca de 10 minutos de animação por mês, mas agora, devido à idade avançada, só estava conseguindo fazer 1 minuto por mês. Na mesma entrevista, ele diria achar improvável que Miyazaki algum dia fosse se aposenrar, pois não aguentaria o ócio, e que, mesmo com o próprio Miyazaki dizendo que esse seria seu último filme, Suzuki achava que, enquanto ele vivesse, ainda iria querer fazer mais um e mais outro.

Para agilizar o projeto, Miyazaki não supervisionaria pessoalmente todas as etapas da produção, focando no roteiro e nos storyboards, com o diretor de animação Takeshi Honda supervisionando o processo de animação. Em março de 2020, Suzuki declararia que o projeto estava consumindo mais dinheiro que o inicialmente previsto, e que, para cobrir seus custos, o Studio Ghibli negociaria a disponibilização de todo o seu catálogo na Netflix. Miyazaki, que não tinha um smartphone e não sabia o que era streaming, de início foi contra, mas acabou convencido por Suzuki, que argumentou que o filme tinha potencial para ser o mais caro da história do cinema japonês, e que somente as formas de patrocínio usuais não conseguiriam financiá-lo.

Em maio de 2020, em uma entrevista à Entertainment Weekly, Suzuki diria que 60 animadores estavam trabalhando no projeto, e que, após três anos, somente 36 minutos estavam prontos, já que todo o filme estava sendo feito à mão, da forma tradicional, mas com mais frames do que os demais projetos do Studio Ghibli, o que significava mais desenhos. Em dezembro de 2020, ele declararia que, mesmo com as restrições da pandemia, o projeto não havia sido interrompido, e que o roteiro e os storyboards já estavam totalmente prontos, o que levava a uma estimativa de que o filme teria 125 minutos de duração. Suzuki estimava que seriam precisos mais três anos para alcançar essa meta, mas que a equipe estava trabalhando sem se preocupar com prazos, da mesma forma que em O Conto da Princesa Kaguya, que levou oito anos para ficar pronto.

No fim, a produção de O Menino e a Garça, desde o início da pré-produção até o final da pós-produção, levaria sete anos e meio, cinco deles dedicados à animação em si. Miyazaki, que escreveria sozinho o roteiro, acabaria usando apenas alguns elementos de The Book of Lost Things e de Yurei-to, criando uma história original, que não era adaptação de nenhum dos dois. Muitos diriam que o filme seria autobiográfico, com o protagonista, Mahito Maki, sendo um espelho da infância de Miyazaki: seu pai trabalhava em uma empresa que fabricava peças para aviões, sua mãe faleceu em um incêndio enquanto estava internada no hospital, e ele e o pai se mudaram para o interior durante a guerra. Suzuki confirmaria essa versão, e diria que ficou surpreso quando Miyazaki lhe apresentou a proposta, já que ele sempre evitava temas pessoais. Ele, Suzuki, era representado no filme pela garça, e Takahata pelo Tio-Avô; na primeira versão do roteiro, o Tio-Avô aparecia mais e tinha um papel de maior destaque, mas, após a morte de Takahata, Miyazaki decidiria dar mais foco ao relacionamento de Mahito com a garça.

No filme, Mahito tem cerca de dez anos, e, após perder a mãe, vai morar com o pai no interior, na casa de sua tia (irmã de sua mãe), que possui várias criadas, todas idosas. Mahito não se adapta à vida no local, não aceita que o pai agora está em um relacionamento com a tia, que inclusive está grávida, e acaba se tornando amigo de uma misteriosa garça falante, que lhe convence de que sua mãe está viva e morando no interior de uma misteriosa torre que teria sido construída pelo tio-avô de Mahito. Um dia, a tia de Mahito desaparece, e ele e uma das criadas acabam seguindo a garça até a torre, indo parar num mundo fantástico habitado por todo tipo de criaturas estranhas, supostamente também criado pelo Tio-Avô.

A principal mensagem do filme seria a de que cada um consegue criar seu próprio mundo, mas sua história estaria aberta a múltiplas interpretações, com algumas análises considerando que Miyazaki quis dizer que as crianças do pós-guerra tinham a chance de prolongar o caos no qual o Japão estava mergulhado ou criar um futuro melhor; outras dizendo que ele advogava a favor da relisiência em face da perda e do luto; e alguns até considerando que a verdadeira mensagem era a importância de cultivar amizades e alianças de confiança. O filme possui um final aberto, que permite que cada pessoa tire suas próprias conclusões quanto ao rumo que a vida de Mahito tomou, mas deixando claro que suas experiências abriram caminho para que ele seguisse sem nenhum peso na consciência ou impedimento moral.

Distribuído pela Toho, O Menino e a Garça estrearia nos cinemas japoneses em 14 de julho de 2023, sendo o primeiro filme do Studio Ghibli a ser lançado simultaneamente no formato tradicional, em IMAX, Dolby Atmos e DTS:X. Por opção de Suzuki, o filme não teria nenhuma campanha de marketing, incluindo trailers, fotos da produção e documentários para a TV, à exceção de um único pôster, distribuído para os cinemas, e que mostrava apenas a garça; segundo Suzuki, ele estaria preocupado que questões-chave do enredo fossem acidentalmente reveladas pelo material promocional, e acreditava que ir ao cinema sem saber nada contribuiria para a experiência dos espectadores. Miyazaki ficaria preocupado que a estratégia prejudicasse o desempenho do filme, e, após uma sessão de testes em fevereiro de 2023, na qual os espectadores tiveram de assinar um documento se comprometendo a não revelar nada, pediria desculpas, dizendo "talvez vocês não tenham entendido o filme, eu mesmo não o entendi".

A estratégia de Suzuki, porém, mesmo se não puder ser considerada responsável pela bilheteria do filme, com certeza não a prejudicou: somente no primeiro fim de semana, O Menino e a Garça renderia 1,8 bilhão de ienes, se tornando a maior bilheteria de estreia para um filme do Studio Ghibli. Somente no primeiro fim de semana, ele arrecadaria 2,1 bilhões, também um recorde, e, em setembro, entraria para a lista dos 20 animes mais assistidos de todos os tempos. A bilheteria aumentaria entre cem mil e trezentos mil ienes por semana, até que, em março de 2024, quando saiu de cartaz, o filme havia arrecadado 8,98 bilhões de ienes. Fontes da indústria do cinema se diriam perplexas com o sucesso rápido diante da ausência de publicidade, e alguns publicitários especializados em campanhas de filmes chegariam a temer por seus empregos, mas, no fim, o sucesso seria creditado ao bom nome do Studio Ghibli, à base de fãs sólida de Miyazaki, e à divulgação boca a boca nas redes sociais, sendo considerado difícil de ser imitado por outras produções.

O Menino e a Garça seria pré-vendido para exibição internacional sem deta definida de estreia, o que também era raro. Os direitos de exibição nos Estados Unidos e Canadá ficariam mais uma vez com a GKids, que inscreveria o filme no Festival Internacional de Cinema de Toronto, no qual ele foi o primeiro filme de animação a abrir o festival em sua história, e o filme de maior público na abertura do festival "em décadas". O filme também seria exibido no Festival Internacional de Cinema de Vancouver e no Festival de Cinema de Nova Iorque antes de sua estreia oficial, em 8 de dezembro de 2023. Suzuki daria permissão para que a GKids fizesse uma campanha de marketing para o filme, que incluiu um trailer oficial, um programa exibido na Netflix e uma sessão de gala apresentada por Guillermo del Toro. A dublagem em inglês contaria com Luca Padovan como Mahito, Robert Pattinson como a garça, Karen Fukuhara como Lady Himi, Gemma Chan como a tia de Mahito, Christian Bale como o pai de Mahito, Mark Hamill como o Tio-Avô, Florence Pugh como Kiriko, e Willem Dafoe, Dave Bautista, Mamoudou Athie, Tony Revolori e Dan Stevens como criaturas fantásticas. O Menino e a Garça seria o primeiro filme do Studio Ghibli a alcançar o primeiro lugar nas bilheterias dos Estados Unidos, onde renderia 292,2 milhões de dólares, mais do que qualquer outro anime.

Na Europa, os direitos de distribuição ficariam com a Goodfellas, novo nome da Wild Bunch, que o lançaria nos cinemas do Reino Unido, França, Itália, Alemanha e Espanha, além de exibi-lo no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián e no Festival de Cinema de Sitges, ambos na Espanha. No Brasil, O Menino e a Garça seria distribuído pela Sato Company, e estrearia nos cinemas em 22 de fevereiro de 2024. Na China, onde estrearia em 3 de abril de 2024, o filme renderia 171,5 milhões de yuans somente no dia da estreia, estabelecendo um recorde de bilheteria para um filme estrangeiro, e renderia no total 670 milhões, recorde para um filme de animação.

A crítica inicialmente ficaria dividida, mas acabaria sendo extremamente favorável, considerando o filme mais uma obra-prima de Miyazaki; muitos críticos o considerariam "maduro" e "complexo", e diriam se preocupar que quem não está acostumado ao ritmo dos filmes do Studio Ghibli não conseguisse aproveitá-lo em sua totalidade. A crítica internacional também aclamaria o filme, considerando-o o ápice da carreira de Miyazaki, e dizendo que é possível assistir o filme múltiplas vezes, a cada uma descobrindo uma coisa nova. O Menino e a Garça renderia a Miyazaki o sexto Prêmio Ofuji Noburo de sua carreira, e ganharia o prêmio de Melhor Filme de Animação na Academia Japonesa de Cinema, no Globo de Ouro (onde também seria indicado a Melhor Trilha Sonora, trilha essa a cargo de Joe Hisaishi) e no Oscar, se tornando o segundo filme do Studio Ghibli oscarizado, após A Viagem de Chihiro.

E aqui terminamos essa série sobre o Stuudio Ghibli, que, após a conclusão de O Menino e a Garça, mais uma vez dispensou seus profissionais e fechou seu departamento de animação. Com Miyazaki e Suzuki em idade avançada, e considerando que um próximo filme pode ter uma produção igualmente longa, me parece improvável que teremos mais. Mas, como diria Miyazaki, o que temos é imortal, e permanecerá nesse mundo durante muito tempo após termos partido.

Studio Ghibli

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sábado, 13 de dezembro de 2025

Escrito por em 13.12.25 com 0 comentários

1984

Existe uma discussão sobre se a ficção científica consegue prever o futuro ou se o inventa - um comunicador de Star Trek se parece com um telefone celular, mas porque Star Trek previu o futuro ou porque quem criou a aparência do telefone celular foi influenciado por Star Trek? Na maioria dos casos, pode-se argumentar que o que ocorreu foi a segunda hipótese, mas há algumas obras nas quais fica difícil negar que o autor teve algum vislubre do futuro ao criar sua história. Um dos melhores exemplos é o tema que eu escolhi para hoje, um livro que vem sendo frequentemente citado quando se fala em vigilância da sociedade e na ascensão de regimes totalitários. Hoje é dia de 1984 no átomo!

Publicado em 1949 com o título original de Nineteen Eighty-Four (assim mesmo, por extenso) e ambientado, evidentemente, em 1984, que, na época, devia ser um futuro longínquo, 1984 é uma das obras mais famosas de George Orwell. Nascido Eric Arthur Blair em 25 de junho de 1903 em Motihari, que hoje fica na Índia, mas na época era parte da Colônia de Bengala, Orwell cresceu no interior da Inglaterra, estudou na tradicional Eton College e, como sua família não tinha dinheiro para pagar uma universidade e suas notas não eram boas o suficientes para conseguir uma bolsa, foi ser policial na Birmânia (atual Myanmar), retornando à Inglaterra após contrair dengue, em 1927. Sua primeira experiência como escritor foi aos 11 anos, quando enviou duas poesias para um jornal local da região onde morava; seguiu escrevendo poesias durante a adolescência e, na juventude, passou para as crônicas. Ao retornar da Birmânia, decidiu se tornar escritor profissional, morando em Londres e em Paris, vivendo entre os pobres e escrevendo sobre a pobreza e suas mazelas.

Seu pseudônimo seria escolhido em 1933, quando um de seus romances, Na Pior em Paris e Londres, seria escolhido para publicação pelo editor Victor Gollancz. Orwell acharia que a publicação do livro poderia trazer vergonha à sua família, já que foi escrito a partir de experiências pessoais que ele viveu morando nas ruas das duas cidades e fingindo ser um mendigo; ele pediria para que Gollancz inventasse um pseudônimo, mas, ao invés disso, ele sugeriria quatro, com o autor escolhendo George Orwell por ser "um bom e sonoro nome inglês" - Gollancz havia criado o nome juntando o do santo padroeiro da Inglaterra, São Jorge, com o do Rio Orwell, na cidade de Suffolk, um dos locais preferidos do escritor.

Seu segundo livro, Dias na Birmânia, quase não seria publicado na Inglaterra, com Gollancz temendo ter problemas com o governo e somente aceitando após Orwell concordar em mudar nomes de locais e pessoas. Em seguida, Orwell escreveria A Filha do Reverendo (1935), romance de ficção no qual a vida de uma mulher vira de cabeça para baixo após ela acordar com amnésia; Moinhos de Vento (1936), sobre um homem que tem pavor do capitalismo e tenta viver sua vida sem se envolver com o sistema; O Caminho de Wigan (1937), obra de não-ficção que narra uma viagem que Orwell fez pelo norte da Inglaterra; Lutando na Espanha (1938), relato em primeira pessoa das experiências do autor lutando na Guerra Civil Espanhola; Coming Up for Air (1939), mais uma ficção crítica ao capitalismo, na qual um pai de família que trabalha como caixeiro viajante tenta voltar para casa, no interior da Inglaterra, no início da Segunda Guerra Mundial; e sua obra mais famosa de todas, A Revolução dos Bichos (de 1945, que, depois de cair em domínio público, também pode ser encontrado no Brasil com um título que é uma tradução literal de seu original, A Fazenda dos Animais), alegoria que usa animais de uma fazenda para criticar a União Soviética e o regime proposto por Stalin.

Enquanto escrevia seus romances, Orwell seguiria escrevendo crônicas, com mais de cem delas sendo publicadas em diversos jornais e revistas entre 1931 e 1952; durante seu tempo de vida, a maioria dessas crônicas seriam publicadas em cinco coletâneas, junto a cartas e outros textos do autor. Orwell faleceria em 21 de janeiro de 1950, aos 46 anos, do rompimento de uma artéria pulmonar, provavelmente causado por uma tuberculose mal curada.

1984 seria justamente seu último romance, publicado quatro anos após A Revolução dos Bichos. Ele é ambientado em um futuro distópico no qual só existem três nações: Oceania, Eurásia e Lestásia. Duas delas são sempre aliadas e estão em guerra contra a terceira, mas quem é amigo ou inimigo de quem muda frequentemente, porque todas as três têm governos totalitários, e a guerra é somente uma forma de manter o patriotismo da população aceso, sendo determinada mais por acordos do que por batalhas. A história se passa na Oceania, que, dentre outros territórios, abrange o que hoje é a Inglaterra; a Oceania é governada pelo Partido Socialista Inglês, cujo líder, o Grande Irmão, é uma figura messiânica cujo único objetivo é melhorar a vida do povo, sem nenhum interesse pessoal.

Para manter a população sempre submissa e se perpetuar no poder, o Partido faz uso de três expedientes: o primeiro é o ódio a um inimigo do estado, na figura de Emmanuel Goldstein, um antigo líder do Partido que, por razões puramente egoístas, quer derrubar o Grande Irmão para assumir o governo e instaurar um reinado de terror; Goldstein fundou uma organização chamada A Irmandade, que usa textos mentirosos para arregimentar membros para a sua causa. O segundo é o Ministério da Verdade, que tem o poder de literalmente alterar a história: seus membros passam o dia inteiro alterando livros, jornais e revistas para que a história sempre relate como o mundo era ruim antes de o Partido chegar ao poder, e como ele voltará a ser ruim caso a Oceania perca a guerra - quando o aliado e o inimigo da guerra mudam, toda a história é reescrita para que, na verdade, eles não tenham mudado, tendo sido sempre os mesmos. O terceiro, e mais famoso elemento do livro, é uma vigilância universal e constante: nenhum cidadão consegue fazer nem falar nada sem que o governo fique sabendo, e comportamentos considerados subversivos são identificados pela Polícia do Pensamento e punidos pelo Ministério do Amor.

O protagonista da história é Winston Smith, um funcionário do Ministério da Verdade que, após se deparar com uma determinada informação, passa a ter curiosidade sobre como o passado realmente era antes de o Partido assumir o poder, e não consegue evitar questionar tudo o que vivencia a partir de então. Um dia ele conhece Julia, que posa como uma obediente membro do Partido, mas na verdade é uma rebelde, e os dois se envolvem em um relacionamento de amor proibido e rebelião contra o sistema. Outro personagem de destaque do livro é O'Brien, colega de trabalho de Winston que tem um importante cargo dentro do Partido, e que Winston suspeita que, na verdade, faça parte da Irmandade, com Winston e Julia tentando descobrir se podem confiar nele e planejar como fazer para que eles também se unam ao grupo.

Em cartas a amigos, Orwell diria ter tido a inspiração para o livro em 1943, e cita como principal influência a Conferência de Teerã, reunião entre Joseph Stalin, Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill para definir os rumos do pós-guerra. Orwell se preocupava com a divisão do planeta em "zonas de influência", com algumas regiões sendo comandadas pela União Soviética e outras pelos Estados Unidos, e pensaria em escrever uma crônica sobre o que poderia ocorrer caso os governos comandando essas zonas de influência se mostrassem também totalitários.

Em janeiro de 1944, um amigo lhe conseguiria uma cópia de Nós, de Yevgeny Zamyatin, e Orwell decidiria começar também a escrever um romance ambientado em um futuro distópico. Na época, ele já conseguia sobreviver apenas com um salário de jornalista, de forma que não teria pressa em terminar o livro; pouco antes do lançamento de A Revolução dos Bichos, ele diria em uma carta a Fredric Warburg, seu editor, que seu "romance do futuro distópico" só tinha 12 páginas, e que talvez não estivesse totalmente terminado antes de 1947. Em janeiro de 1946, ele escreveria uma resenha de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley - que havia sido seu professor de francês no colégio - para a revista Tribune, notando várias semelhanças entre o livro de Huxley e Nós e decidindo fazer o seu o mais dieferente possível, o que atrasaria ainda mais o processo.

Em maio de 1946, após ter escrito apenas 50 páginas e sofrendo de bronquiectasia, Orwell decidiria passar uma temporada na ilha escocesa de Jura, para tentar recuperar sua saúde e terminar o romance. Seu primeiro rascunho, enviado a Warburg em maio de 1947, seria descrito como "uma bagunça"; mesmo com a saúde se deteriorando cada vez mais, ele se recusaria a ver um médico enquanto não terminasse o texto, e o finalizaria na cama, após perder 12 kg, em novembro de 1947. Imediatamente após enviar essa versão a Warburg, ele seria internado em um hospital em Glasgow, onde seria diagnosticado com tuberculose. Ele receberia alta em julho de 1948, e imediatamente se colocaria a fazer no texto as alterações apontadas por Warburg; como a maioria de suas anotações estava à mão, ele pediria ao editor que fosse à Escócia datilografá-las, mas Warburg diria que isso só seria possível se Orwell estivesse presente para guiá-lo, com o texto sendo incompreensível na forma em que estava escrito. Orwell não aceitaria o arranjo, e decidiria ele mesmo fazer o trabalho a passos de tartaruga, tendo de parar por repetidas vezes por estar com febre ou tossindo tanto que não conseguia datilografar. Ele concluiria a versão final do texto em dezembro de 1948, a enviaria a Warburg em janeiro de 1949, e logo em seguida se internaria em um sanatório na cidade inglesa de Costwolds.

Pouco antes de terminar seu segundo rascunho, Orwell ouviria de Warburg que o livro precisava de um título, e daria ao editor duas opções, O Último Homem na Europa e 1984, com Warburg escolhendo a segunda por achar que era um título mais apropriado comercialmente. A história mais famosa sobre de onde Orwell tirou esse título, frequentemente citada em textos sobre o livro ou sobre o autor, é a de que 1984 é simplesmente uma inversão dos dois últimos dígitos de 1948, o ano no qual Orwell terminou de escrever o livro. Essa teoria é refutada por muitos críticos, que a consideram "uma ideia muito simples para um livro tão complexo".

Orwell não gostaria da versão final do livro, e frequentemente diria que poderia ter feito melhor se não estivesse doente; quem conviveu com ele, porém, diz que ele falava isso de todos os seus livros, sempre arrumando um motivo para dizer que eles poderiam ter sido melhores, e em muitos casos depreciando-os até receber os números das vendas. Warburg, por outro lado, consideraria 1984 uma obra prima, e se apressaria a lançá-lo o mais rápido possível, com o livro estando nas lojas em 8 de junho de 1949, apenas seis meses após a editora Secker & Warburg receber sua versão final, um tempo considerado curtíssimo para a época. Warburg gostava tanto do livro que recusaria uma proposta do Clube do Livro para lançar uma versão mais curta, sem o apêndice e sem o capítulo com os trechos do livro escrito por Goldstein, achando que isso mataria a história; segundo a editora, essa recusa pode ter feito com que ele deixasse de ganhar cerca de 40 mil libras.

A primeira tiragem de 1984 teria 25.575 cópias, que se esgotariam antes do final de 1949; duas outras tiragens, de cinco mil cópias cada, seriam lançadas em 1950, uma em março, outra em agosto. O livro seria lançado nos Estados Unidos pela Harcourt & Brace apenas cinco dias após seu lançamento no Reino Unido, em 13 de junho de 1949, com a primeira tiragem, de vinte mil cópias, se esgotando antes do fim do mês, e duas outras tiragens, de dez mil cópias cada, sendo lançadas em julho e setembro. Em 1970, 1984 se tornaria o primeiro romance de ficção científica a ultrapassar a marca de 8 milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos, e, ora vejam só, em 1984, ele chegaria ao topo da lista dos livros mais vendidos no país em todos os tempos.

Em junho de 1952, a viúva de Orwell, Sonia Brownell, vendeu o único manuscrito sobrevivente de 1984 em um leilão de caridade por 50 libras. Esse é o único manuscrito sobrevivente de qualquer obra de Orwell, e atualmente se encontra na Biblioteca John Hay, na Universidade de Brown, em Rhode Island, Estados Unidos. O manuscrito serviria de base para Nineteen Eighty-Four: The Facsimile of the Extant Manuscript, livro de Peter Davison publicado em 1984 que reproduz todas as páginas do manuscrito, junto à transcrição do texto e notas, tentando chegar a uma espécie de "versão do autor" do livro, sem qualquer interferência no texto do editor, revisor ou outros profissionais.

Falando nisso, originalmente a versão norte-americana do livro possuía pequenas diferenças em relação à britânica; era comum na época revisar livros britânicos que fossem ser lançados nos Estados Unidos para adequar o texto ao inglês norte-americano em questões de ortografia e pontuação, mas, no caso de 1984, o revisor da Harcourt & Brace mudaria frases inteiras sem o conhecimento de Orwell, com todas as versões publicadas até 1997 reproduzindo essas alterações. Somente por ocasião do lançamento de The Complete Works of George Orwell Davison faria uma nova revisão para o inglês norte-americano do texto original de Orwell, sem nenhuma alteração que não fosse absolutamente necessária.

1984 seria aclamado pela crítica, que o consideraria um dos melhores romances políticos de todos os tempos; como é impossível agradar a todos, alguns autores o detestaram, como C.S. Lewis, que argumentou que o relacionamento de Julia e Winston não era verossímil, e Isaac Deutscher, que reclamou que o livro era "um mais puro exemplar da propaganda anti-comunista característica da Guerra Fria", e que Orwell havia tentado fazer uma crítica ao marxismo, mas sem compreender o que era, acabou se mostrando um "anarquista simplório". Houve também quem achasse que o livro era uma alegoria crítica às reformas socialistas propostas pelo primeiro-ministro britânico da época, Clement Attlee; Orwell negaria essa versão com veemência, e, em uma carta, escreveria que a história era uma sátira, sem inspiração em nenhum evento do mundo real, e que ele mesmo não acreditava que o futuro descrito no livro fosse possível.

O livro seria considerado subversivo em vários países, principalmente os comunistas; um crítico polonês diria que 1984 havia se tornado no mundo real o que o livro de Goldstein era na história, "um texto proibido e perigoso de se possuir, conhecido na íntegra apenas por alguns membros do Partido". Desertores da União Soviética diriam que Orwell, mesmo sem nunca ter vivido na Rússia, havia entendido perfeitamente como funcionava o governo de lá. Aliás, na União Soviética, ele seria banido até 1988, quando uma versão traduzida para o russo seria publicada em capítulos em um jornal da Moldova, com sua primeira publicação em forma de livro no país ocorrendo apenas em 1989. Curiosamente, duas versões traduzidas para o russo haviam sido lançadas anteriormente, uma na Alemanha Ocidental em 1957, outra na Itália em 1966; ambas eram frequentemente contrabandeadas para a União Soviética e se tornariam populares dentre os dissidentes do regime; após a dissolução da União Soviética, seria revelado que, em 1959, membros do Comitê Central do Partido Soviético teriam acesso a uma tradução oficial do livro, indisponível para a população em geral, mais uma vez equiparando Orwell a Goldstein.

Na China aconteceria algo semelhante: sua primeira tradução seria publicada em 1979, em capítulos, no jornal Traduções Selecionadas de Literatura Estrangeira, disponível apenas para membros do alto escalão do governo e intelectuais considerados "confiáveis politicamente". Uma versão em livro seria publicada em 1985, mas também com venda restrita. A primeira versão com venda liberada ao grande público ocorreria em 1988. Graças a essas publicações tardias nos países nos quais o livro era proibido, em 1989 1984 alcançaria a marca de traduções para 65 idiomas, mais do que qualquer outro romance em língua inglesa na época.

1984 seria um dos romances de maior impacto cultural de todos os tempos; pra começar, ele seria responsável pela criação do termo "orwelliano", adjetivo usado para se referir a algo que seria prejudicial ao bem estar da sociedade. Termos como novalíngua (linguagem usada especificamente para defender uma ideologia), duplopensar (defender dois pontos de vista contraditórios simultaneamente), polícia do pensamento, sala 101 e as expressões 2 + 2 = 5 e nós sempre estivemos em guerra contra a Lestásia, todos presentes no texto do livro, se tornaram comuns na lingua inglesa ao criticar regimes ou posturas autoritários ou que possam levar ao autoritarismo. Mas o termo mais famoso presente no romance é Big Brother, o nome em inglês do Grande Irmão, usado para qualquer situação na qual se acredita que o governo está vigiando ou controlando a vida da população, e escolhido por Jan de Mol para dar nome a seu reality show, no qual os participantes são vigiados 24 horas por dia.

Assim como todos os grandes livros de sucesso, 1984 seria adaptado para vários outros meios. Sua primeira adaptação seria feita ainda em 1949 para uma radionovela, transmitida nos Estados Unidos pela Rádio NBC. Sua primeira adaptação para a TV também seria feita nos Estados Unidos, pelo canal CBS, como um episódio da série Studio One exibido em setembro de 1953. A primeira adaptação britânica iria ao ar na BBC em dezembro de 1954 e atrairia um público recorde de 7 milhões de espectadores, que diminuiria conforme o programa avançava, já que muitos deles ficariam horrorizados com a forma como o governo totalitário era mostrado, especialmente a cena na qual Winston (Peter Cushing) é torturado na Sala 101. Dois anos depois, em 1956, estrearia a primeira adaptação para o cinema, dirigida por Michael Anderson, com roteiro de William Templeton (que escreveu o especial da CBS), e estrelando Edmond O'Brien como Winston, Michael Redgrave como O'Connor (O'Brien no livro; diz a lenda que o nome foi mudado para que não fosse o mesmo do ator principal), e Jan Sterling como Julia. O filme não seria muito fiel ao livro, inclusive mudando o final, e seria considerado pior que o especial da BBC pela crítica da época.

A adaptação mais famosa seria lançada para o cinema em 10 de outubro de 1984, escrita e dirigida por Michael Redford, com John Hurt como Winston, Richard Burton como O'Brien, e Suzanna Hamilton como Julia. Produzido pela Virgin Films com orçamento de 5,5 milhões de libras (quase nada), o filme seria um grande sucesso de público e crítica, rendendo 6,2 milhões de libras no Reino Unido, mais cerca de 2 milhões no exterior - incluindo um recorde de 62 mil dólares na única semana em que ficou em cartaz nos Estados Unidos, onde foi exibido apenas para que pudesse concorrer ao Oscar, embora ele acabasse não sendo indicado em categoria alguma. O filme também ficaria famoso por ser o último papel de Burton, que faleceria dois meses antes da estreia, e por sua trilha sonora ter sido composta pela banda Eurythmics, sendo lançada integralmente em seu álbum 1984 (For the Love of Big Brother).

O filme de 1984 também seria a última adaptação para o cinema ou TV do livro, com as subsequentes sendo todas para o teatro, ópera, balé e rádio, sendo especialmente elogiadas a de 2013, transmitida pela BBC Radio 4, com Christopher Eccleston como Winston, e a de 2024, lançada diretamente em streaming, com Andrew Garfield como Winston, Tom Hardy como o Grande Irmão, Cynthia Erivo como Julia, Andrew Scott como O'Brien, e trilha sonora de Matt Bellamy e Ilan Eshkeri executada por uma orquestra de 60 integrantes e gravada nos Abbey Road Studios. Também vale citar o livro Julia, de Sandra Newman, lançado em 2023 com autorização do espólio de Orwell, que conta a mesma história de 1984, mas sob o ponto de vista de Julia.

Na maior parte do planeta, 1984, assim como A Revolução dos Bichos e todos os demais textos de Orwell, entraria em domínio público em 1 de janeiro de 2021, o primeiro dia do ano seguinte ao aniversário de 70 anos da morte do autor. Nos Estados Unidos, onde a lei de direitos autorais é diferente e mais rígida, ele só se tornará domínio público em 2044, 95 anos após sua data de publicação original. Por mais sombrio e exagerado que seja o futuro no qual o livro é ambientado, fica difícil não imaginar, com tudo o que temos visto hoje, que Orwell não tenha tido um vislumbre do futuro ao escrever o texto, deixando-o não como um pastiche, mas como um alerta - de fato, em 2012 o governo dos Estados Unidos tentaria legalizar a vigilância através de GPS de indivíduos sem prévia autorização judicial, o que foi negado pela Suprema Corte com o argumento de que "se permitirmos isso, nada impedirá que o governo monitore 24 horas por dia todos os movimentos de todos os cidadãos dos Estados Unidos, produzindo algo que se parece muito com 1984".
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sábado, 6 de dezembro de 2025

Escrito por em 6.12.25 com 0 comentários

Contos de Fadas BLOGuil (XII)

E hoje, com muito pesar, encerro a série dos Contos de Fadas BLOGuil no átomo - até porque, depois desse, eu não tenho mais nenhum, e só poderia continuar se escrevesse alguns novos. Hoje veremos um conto especial de natal, que foi publicado apenas no BLOGuil, jamais sendo revisado para o Crônicas de Categoria - embora eu o tenha revisado para postar aqui.





A Rena do Nariz Vermelho

Era uma vez um pobre animalzinho que, por ter nascido diferente de seus pares, foi discriminado e relegado a uma vida de solidão e escárnio. Seu nome era Dumbo, mas não é dele que fala esta história.

Na época em que os animais falavam, no Pólo Norte, nasceu uma pequena rena, a qual seus pais deram o nome de Rodolfo. Rodolfo nasceu com uma moléstia gravíssima, que tornara seu nariz inútil, e corria o risco de se espalhar para o resto do corpo, corroendo a pobre rena até uma morte horrível e extremamente dolorosa. Como esta história se passa muito antigamente, ninguém se preocupava se as pobres criancinhas iriam ficar traumatizadas com o infeliz destino do bicho e nunca mais quereriam celebrar o Natal, então é bom acreditar que ela morreria mesmo.

Para evitar a triste sina de seu filho, os pais de Rodolfo recorreram a uma cirurgia caríssima, arriscada e ainda experimental, na qual todo o septo nasal foi substituído por uma lâmpada. Se você faz parte da parcela da população que começou a se perguntar como ele respirava, lembre-se de que os animais falam, então esse é o menor dos seus problemas.

Assim, o pobre Rodolfo cresceu com uma lâmpada vermelha no lugar de seu nariz, que tinha de ser trocada uma vez por ano, para se ajustar ao seu crescimento. Toda vez que ele ficava feliz, triste, emocionado, com fome, sonolento, irritado, enfim, quase todo o tempo, a lâmpada acendia, o que fazia com que a pobre rena se tornasse motivo de chacota entre seus amigos. E o pior: o sonho de sua vida era ser rena do Papai Noel, mas ele já havia prestado o concurso sete vezes, sempre sendo reprovado no exame de esforço físico. O único emprego que conseguira fora como dublê em Bambi vs Godzilla, o que lhe rendeu uma hérnia de disco que o acompanhou pelo resto de sua vida.

Mas isto não seria um Conto de Fadas se fosse feito só de miséria e sofrimento. Um belo dia, houve A Nevasca, uma nevasca tão forte e tão densa que parecia que o mundo estava voltando à Era Glacial. Como Papai Noel não dispunha de nenhum mamute para puxar seu trenó, teria de cancelar o Natal, pois era impossível ver um pinheiro à frente do nariz.

Eis que Rodolfo, soturno, cabisbaixo e macambúzio, passava em frente à oficina do Papai Noel no exato momento em que o Bom Velhinho se preparava para recolher o trenó e anunciar que este ano milhões de criancinhas ficariam decepcionadas. Rodolfo havia ido a um jogo de hóquei com os amigos e, na volta, devido à intensa nevasca, se perdera. Como não conseguia achar o caminho de volta, começou a ficar nervoso, o que fez com que seu nariz se acendesse. Ao ver aquela luz vermelha vindo em sua direção, Papai Noel pensou tratar-se de um snowmobile desgovernado, e imediatamente se jogou ao chão, demonstrando destreza incomum para a sua idade.

Porém, tudo se esclareceu quando a rena se aproximou, e, ao ver aquele nariz tão brilhante, nosso amado Kris Kingle teve uma idéia igualmente luminosa: somente Rodolfo poderia guiar as demais renas naquela nevasca, levando-as ao destino certo com seu nariz-farol! Rodolfo até ia contra-argumentar dizendo que nem tinha conseguido achar o caminho para sua própria casa, quem dirá para a casa dos outros, mas como ele iria conseguir entrar no serviço público pela janela, resolveu ficar quieto.

Assim, Rodolfo foi contratado em regime de peixada, conseguindo um cargo respeitoso, e jamais foi zoado novamente por nenhum de seus colegas, pois, afinal, ele salvou o Natal. Pelo menos não pela frente. E todos viveram felizes para sempre.
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sábado, 29 de novembro de 2025

Escrito por em 29.11.25 com 0 comentários

A Grande Família

Eu já não assisto TV aberta faz um tempo, no máximo a um noticiário. Na época em que eu assistia, evidentemente tinha meus programas favoritos, nem todos importados. Um dos que eu gostava mais era A Grande Família, e, por algum motivo, depois de fazer o posto sobre o Chaves, fiquei com vontade de fazer um sobre ele também. Assim, hoje é dia de A Grande Família no átomo!


Antes de começar a falar sobre A Grande Família da qual eu gosto, entretanto, é preciso voltar no tempo. Isso porque A Grande Família é a nova versão de um outro programa, da década de 1970, também chamado A Grande Família - que, por sua vez, foi concebido para ser a versão brasileira de um seriado norte-americano chamado All in the Family (que, por sua vez, era a versão norte-americana de um seriado da BBC chamado Till Death Us Do Part, mas isso não é importante para a história).

All in the Family estrearia no canal CBS em 1971, e faria grande sucesso mostrando o dia a dia de uma família de classe média sob uma ótica inovadora para a época - o seriado seria o primeiro da televisão dos Estados Unidos a tratar de temas como racismo, antissemitismo, infidelidade, homossexualidade, direitos da mulher, estupro, aborto, câncer de mama, menopausa, divórcio, impotência e a Guerra do Vietnã, também sendo o primeiro no qual um dos protagonistas falava palavrões. Como, na época, o Brasil vivia uma ditadura militar, o seriado jamais seria exibido em nosso país sem uma pesada censura, de forma que a Globo, que tinha a opção de compra dos direitos, decidiria, ao invés de exibi-lo, criar uma versão nacional, menos, digamos, polêmica, mas mantendo a mesma ideia central. A missão de criar tal seriado caberia aos dramaturgos Oduvaldo Vianna Filho, conhecido como Vianninha, e Armando Costa, que a princípio fariam uma cópia quase exata de All in the Family, apenas mudando as situações vividas pelos personagens por outras mais próximas da realidade nacional.

Na versão original, a família seria composta por sete pessoas: o patriarca Lineu Silva (Jorge Dória), que trabalha como fiscal sanitário; sua esposa, Irene, apelido Dona Nenê (Eloísa Mafalda), que é dona de casa; e seus três filhos, Lineu Júnior (Osmar Prado), um estudante com opiniões revolucionárias sobre o mundo; Artur, apelido Tuco (Luiz Armando Queiroz), um hippie defensor da liberdade, que não para em emprego nenhum; e Maria Isabel, apelido Bebel (primeiro Djenane Machado, depois Maria Cristina Nunes), moça mimada e acostumada a ter todas as suas vontades realizadas por ser a caçula; além de dois agregados, Agostinho Carraro (Paulo Araújo), malandro que trabalha como garçom de um motel e é casado com Bebel; e Floriano Souza, apelido Seu Flor (Brandão Filho), pai de Nenê, um aposentado rabugento que passa o dia todo ou dormindo, ou discutindo com os netos.

Com direção de Milton Gonçalves, A Grande Família estrearia em 26 de outubro de 1972. E seria um gigantesco fracasso. O público não teria identificação com os personagens, achando que as situações e diálogos não correspondiam aos de uma família brasileira de classe média, e chegaria a escrever cartas para a Globo perguntando em qual Brasil aquelas pessoas viviam. Diante da repercussão negativa, a Globo suspenderia a produção após apenas seis episódios, e pediria para que Vianninha e Costa reformulassem a série, para que os protagonistas passassem a ser uma típica família suburbana da cidade de São Paulo. Abandonando qualquer semelhança com All in the Family, Vianninha e Costa, agora acompanhados pelos roteiristas Max Nunes e Roberto Freire, passariam a escrever histórias originais envolvendo temas como o alto custo de vida, desemprego e falta de perspectivas para os jovens. Gonçalves, envolvido com outros projetos, não poderia retornar à direção, e seria substituído por Paulo Afonso Grisoli; outra baixa seria a da atriz Djenane Machado, intérprete de Bebel nos seis primeiros episódios, que não concordaria com as mudanças feitas por Vianninha e Costa, e seria substituída por Maria Cristina Nunes sem maiores explicações.

As mudanças surtiriam efeito e, com menos de dois meses no ar, A Grande Família já seria uma das líderes de audiência de sua faixa. Ao todo, seriam produzidos 112 episódios (contando com os seis da primeira temporada), com o último indo ao ar em 27 de março de 1975. Um dos motivos do cancelamento seria o falecimento precoce de Vianninha, aos 38 anos, de câncer, em julho de 1974; Paulo Pontes assumiria seu lugar na equipe de roteiristas, que não conseguiria manter o mesmo nível, levando a uma queda acentuada na audiência. Toda a série original seria gravada e transmitida em preto e branco, exceto o último episódio, gravado e exibido a cores. Em 1987, a Globo gravaria um especial de Natal com todo o elenco original, ambientado 12 anos depois e apresentando os netos de Lineu e Nenê; curiosamente, nesse especial, Pedro Cardoso, que na nova versão interpreta Agostinho, interpretaria Surrão, um namorado de Bebel.

Pois bem, em 2000, o diretor Guel Arraes, após ler anotações originais de Vianninha para a série, acharia que um remake atualizado teria potencial para ser um sucesso de audiência, e apresentaria essa ideia à cúpula da Globo. Uma equipe de roteiristas composta por Marcelo Gonçalves, Bernardo Guilherme, Adriana Falcão e Cláudio Paiva seria reunida, e idealizaria a nova série no estilo de uma sitcom norte-americana, mas com a família Silva vivendo situações típicas de uma família suburbana do início dos anos 2000. Após ver que algumas situações pareciam artificiais e forçadas, eles decidiriam mudar algumas coisas em relação à versão original: primeiro, transfeririam a família de São Paulo para o Rio de Janeiro, transformando-os em moradores da Ilha do Governador, na Zona Norte, e os colocaria para morar numa casa, ao invés de em um apartamento de um conjunto habitacional como na primeira versão. Segundo, removeram o personagem Júnior, cuja principal função era fazer uma crítica política, algo bem diferente nos anos 2000 em relação aos anos 1970, transferindo essa incumbência para o Lineu pai. Terceiro, inverteriam as idades de Tuco e Bebel, para que Tuco, ao invés de hippie, fosse somente um jovem um tanto preguiçoso e despreocupado, sendo essas as razões pelas quais ele não trabalhava. Uma mudança bem menor seria no sobrenome de Agostinho, que passaria a ser Carrara ao invés de Carraro; outros personagens coadjuvantes também seriam criados, como o comerciante Beiçola e a vizinha Juva, para que as histórias não se concentrassem apenas na casa dos Silva, com muitas situações ocorrendo também na rua onde eles moravam.

Originalmente, a nova versão de A Grande Família deveria ser apenas um especial em homenagem à primeira versão, com quatro episódios exibidos em janeiro de 2001, que foram aumentados para 12 já durante as gravações. Após imprevistos nas gravações e com a grade da Globo, a série estrearia em 29 de março de 2001, uma quinta-feira, às 23 horas, após o programa Linha Direta; mesmo com o horário avançado, teria excelente audiência, e a Globo encomendaria mais cinco episódios, para um total de 17. A audiência não parava de subir, e o número de episódios acompanhava: no total, a primeira temporada teria 36 episódios, o último exibido em 23 de janeiro de 2002, quando a série já estava renovada para uma segunda temporada.

Na nova versão, o patriarca da família segue sendo Lineu Silva (Marco Nanini), veterinário de formação, que trabalha como fiscal sanitário em uma repartição pública. Sua esposa, Irene, conhecida como Nenê (Marieta Severo), é dona de casa e vive para a família. Eles têm dois filhos, Maria Isabel, apelido Bebel (Guta Stresser), moça mimada e um tanto escandalosa, que se veste no que poderia ser considerado um estilo precursor das it girls; e Artur, apelido Tuco (Lúcio Mauro Filho), que não gosta de trabalhar, sonha em ser músico, e não para em emprego formal nenhum. Na mesma casa moram ainda Agostinho Carrara (Pedro Cardoso), marido de Bebel, que está sempre tentando se dar bem às custas dos outros, principalmente de Lineu, e, na primeira temporada, assim como na série original, trabalha como garçom em um motel; e o pai de Nenê, Floriano Souza, apelido Seu Flor (Rogério Cardoso), aposentado que vive às turras com Lineu e dorme no sofá, já que não há um quarto na casa para ele.

Personagens coadjuvantes de importância na primeira temporada incluem Abelardo da Costa Ferreira, apelido Beiçola (Marcos Oliveira), advogado que raramente exerce a profissão e é dono de uma pastelaria do outro lado da rua em relação à casa dos Silva, ponto de encontro dos personagens em seus momentos de lazer, e que está sempre envolvido em confusões por ser apaixonado por Nenê e ver Lineu como um rival; Juva (Suely Franco), vizinha dos Silva que é uma espécie de namorada de Seu Flor, que está sempre visitando a família levando croquetes feitos por ela mesma como desculpa; e Almeidinha (Oswaldo Loureiro), chefe de Lineu na repartição. Participações especiais dignas de nota incluem Betty Faria como Selma, mãe de Agostinho, que foi chacrete e todos imaginavam estar morta, e Camila Pitanga como Marina, filha que Seu Flor teve fora do casamento e inadvertidamente se envolve com Tuco.

A primeira temporada teria direção de Mauro Mendonça Filho, substituído a partir da segunda por Maurício Farias, que ficaria até 2011, quando a direção seria assumida por Luis Felipe Sá. Paiva também sairia ao final da primeira temporada da equipe de roteiristas, que, ao longo da série, contaria com Falcão, Guilherme, Gonçalves, Bibi da Pieve, Cláudia Jouvin, Cláudio Torres Gonzaga, Mariana Mesquita, Maurício Rizzo, Mauro Wilson, Max Mallmann, Paulo Cursino, e alguns episódios escritos por Pedro Cardoso - que tinha o hábito de incluir "cacos", falas criadas por ele, que não estavam presentes no roteiro, em suas cenas, algo que, de início, desagradava Falcão. Na primeira temporada, muitos elementos dos roteiros de Vianninha seriam incorporados, atualizados, aos textos novos, prática que deixaria de ocorrer a partir da segunda temporada. Os atores também costumavam fazer reuniões com os roteiristas, nas quais podiam opinar sobre o que ocorreria com seus personagens em cada episódio.

Assim como na série original, os roteiros combinavam situações ficcionais com eventos que ocorriam com os espectadores, abordando política, violência, relações conjugais, papel dos idosos na sociedade, novelas, e até mesmo a Copa do Mundo. A Grande Família é considerada como a primeira produção brasileira a mostrar de forma ficcional o avanço social da chamada Classe C, se aproveitando do momento político e econômico vivido entre 2000 e 2014 para fazer com que a família Silva a cada temporada melhorasse um pouco mais de vida, algo que também estava ocorrendo com famílias da vida real, que assim se identificavam com os personagens.

Marco Nanini foi o primeiro ator convidado para o elenco, assinando contrato para apenas quatro episódios, e então recebendo por episódio até o final da primeira temporada, quando renovou para mais três anos. De início, a preferida para o papel de Nenê era Marília Pêra, que não aceitou; Marieta Severo estava trabvalhando com Guel Arraes na novela Laços de Família, sendo convidada diretamente pelo diretor e começando a gravar no dia seguinte ao encerramento das filmagens da novela - para ficar com o cabelo cacheado de Nenê, a atriz tinha de passar uma hora e meia no cabeleireiro antes de cada dia de gravações. Pedro Cardoso seria convidado para interpretar Lineu Júnior, e, quando o personagem foi excluído, decidiu fazer o teste para Agostinho, sendo considerado ideal para o papel. O preferido para o papel de Tuco era André Marques, o Mocotó de Malhação, que não foi bem no teste; Lúcio Mauro Filho seria aconselhado a tentar por Mauro Mendonça Filho, e, durante os testes, se encontrou por acaso com Guta Stresser, sua amiga de longa data. Os dois fizeram o teste juntos, e tiveram tanta química que imediatamente foram convidados para interpretar Tuco e Bebel. Rogério Cardoso seria o último do elenco principal a ser convidado, sem precisar participar de testes, poucas semanas antes de se iniciarem as gravações.

As gravações aconteceriam no Projac, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, usando uma rua cenográfica construída especialmente para a produção; as gravações ocorreriam em estúdio sempre às segundas e terças-feiras, e na rua cenográfica às quartas-feiras, com cada episódio sendo finalizado em três dias. A Grande Família era considerado um dos programas mais rentáveis da Globo, pois cada episódio custava mais ou menos o mesmo que um episódio de novela, mas o preço de cada inserção nos intervalos comerciais era muito maior - o quarto maior da emissora, atrás apenas da novela das nove, do Jornal Nacional e do Fantástico.

A abertura era um dos grandes destaques da série: contando com a música A Grande Família, composta por Tom da Bahia e Dito em 1972 para a série original, regravada por Dudu Nobre, na primeira temporada ela mostrava um álbum de família cujas fotos, de pessoas anônimas, mas algumas com os rostos substituídos pelos dos atores que interpretam os personagens da família Silva, vão passando rapidamente, mostrando o casamento de Lineu e Nenê, a gravidez de Nenê, o batizado de Bebel, a primeira comunhão de Tuco, e terminando com a família, nos dias atuais, sentada ao redor da mesa fazendo uma refeição. A abertura que ficaria mais famosa, porém, estrearia na segunda temporada, e mostraria versões animadas dos personagens, começando com Lineu protestando contra a ditadura, conhecendo Nenê, se casando, o nascimento de Bebel e Tuco, o namoro e o casamento de Bebel e Agostinho, e terminando com Lineu tentando tirar uma foto de toda a família.

A partir da segunda temporada, A Grande Família passaria para o horário das 22 horas, substituindo Linha Direta e indo ao ar logo depois da novela das nove. Mesmo com vários episódios tendo de ter seu horário alterado devido à Copa do Mundo e às eleições, a audiência aumentaria a cada semana, com a série fechando o ano como um dos programas mais assistidos da Globo. A segunda temporada teria mais 37 episódios, exibidos entre 4 de abril e 26 de dezembro de 2002. Juva e Almeidinha seriam removidos da série, mas estreariam dois personagens importantíssimos: Mendonça (Tonico Pereira), novo chefe de Lineu, e Marilda (Andréa Beltrão), melhor amiga de Nenê e dona de um salão de cabeleireiro na mesma rua onde mora a família Silva. Além do salão de Marilda, a rua cenográfica ganharia outra construção de destaque, o restaurante Petisco da Velha, uma referência ao famoso Petisco da Vila, em Vila Isabel. Outra grande mudança seria que Agostinho abandonaria o emprego no motel para se tornar motorista de táxi, com muitas das cenas cômicas da série passando a envolver suas confusões com corridas e passageiros. Participações especiais de destaque incluem Ana Rosa como Genoveva, nova namorada de Seu Flor; Diogo Vilela como Remela, amigo de infância de Agostinho que entrou para o crime; Lília Cabral como Margot, amiga de infância de Nenê que tem inveja de seu casamento com Lineu; e Francisco Cuoco como Oduvaldo Carrara, pai de Agostinho, malandro como o filho.

Até o final da segunda temporada, todas as histórias eram centradas na família Silva; a partir da terceira, alguns episódios passariam a ser centrados também em Marilda, Mendonça e em outros coadjuvantes, como Viviane (Leandra Leal), namorada de Tuco que trabalha como caixa de supermercado e cuja família mora em São Paulo, que engravida dele e dá à luz o primeiro neto de Nenê e Lineu, Nelsinho, no meio da ceia de Natal; e Juvenal (Francisco Milani), irmão de Seu Flor que mora em Governador Valadares, e, sempre que visita Nenê, cria confusão por ser extremamente rabugento, teimoso e metódico, características que lhe renderiam o apelido de Tio Mala. Participações especiais de destaque incluem Pedro Paulo Rangel como Frank, irmão de Lineu, com quem o patricarca da família Silva não se dá bem desde criança, por considerá-lo desonesto; Alexandre Zacchia como Dentada, criminoso com quem Agostinho faz negócios escusos; e Fábio Assunção como Maurício, ex-namorado de Bebel que abala seu casamento com Agostinho. Bebel, aliás, passa a trabalhar no salão de Marilda na terceira temporada, trazendo mais oportunidades para histórias.

A terceira temporada teria mais 37 episódios, exibidos entre 10 de abril e 25 de dezembro de 2003. Rogério Cardoso faleceria de infarto fulminante aos 66 anos, dormindo em sua casa, durante as gravações do 19o episódio, que teve de ter seu roteiro modificado para ser concluído sem ele. Durante algum tempo, a equipe de produção ficaria sem saber como proceder, se escalava outro ator para o mesmo personagem, se fazia um episódio no qual Seu Flor também morria, ou se reescrevia os roteiros ainda por gravar para remover sua participação; após uma reunião com o elenco, ficaria decidido que o ator era insubstituível, e que um episódio tratando de seu falecimento seria muito triste, então os roteiros restantes foram alterados, e a morte do Seu Flor seria apenas mencionada rapidamente pelos personagens - ainda assim, o personagem do Tio Mala seria inicialmente criado somente para substituir Seu Flor nas histórias que não funcionariam sem um idoso aposentado na casa, se tornando regular na série na temporada seguinte.

Após a morte de Rogério Cardoso, a abertura sofreria uma pequena alteração para remover Seu Flor, com algumas cenas sendo alongadas para que não fosse necessário cortar a música; em 2004, Andréa Beltrão seria promovida ao elenco fixo (que, até então, só contava com os membros da Família Silva), e a abertura novamente seria alterada, passando a contar com a presença de Marilda. A quarta temporada teria mais 30 episódios, exibidos entre 15 de abril e 23 de dezembro de 2004.

Marilda seria um personagem importante na quarta temporada, na qual ela inicialmente volta a namorar Mendonça, que já havia sido seu noivo no passado; no final da temporada, ela começa um romance com Tuco, que Nenê não aprova devido à diferença de idade, após Viviane decidir ir morar com os pais em São Paulo, levando Nelsinho. Também na quarta temporada é revelado que Beiçola atravessa surtos psicóticos durante os quais acredita ser sua mãe, Dona Etelvina, se vestindo como ela e até mesmo falando com sotaque lusitano - sem saber que Beiçola e Etelvina são a mesma pessoa, o Tio Juvenal chega a se apaixonar por Etelvina, e quer levá-la para morar com ele em Governador Valadares. Outro acontecimento importante da quarta temporada é que Bebel e Agostinho se mudam para a casa ao lado, de propriedade de Beiçola, com Agostinho sempre tendo dificuldades para pagar o aluguel e Lineu vendo que o genro ter saído de sua casa não significava que estaria livre dele.

Com a casa ficando com um quarto livre, o Tio Juvenal vai morar com Lineu e Nenê, permitindo aos roteiristas mais uma vez explorar situações que precisariam de um idoso aposentado na casa; infelizmente, Francisco Milani estaria com a saúde deteriorada ao final da quarta temporada, não renovando contrato para a quinta e vindo a falecer em agosto de 2005 - diferentemente de Seu Flor, o Tio Juvenal não faleceria na série, com os personagens comentando que ele ainda morava em Governador Valadares, mas sem ser dada nenhuma explicação do porquê de ele jamais voltar a visitar a sobrinha.

A quinta temporada, de mais 36 episódios, exibidos entre 7 de abril e 22 de dezembro de 2005, contaria com a estreia de Paulo Wilson, vulgo Paulão da Regulagem (Evandro Mesquita), mecânico dono de uma oficina na rua da casa dos Silva que passa a ter um caso com Marilda, e com a participação especial de Virginia Cavendish como Maria Padilha, funcionária gostosona da repartição, em quem Mendonça fica de olho após terminar com Marilda, cismando que Maria e Lineu tem um caso; o ponto alto da temporada seria a participação de Tuco no Big Brother Brasil (em uma edição fictícia), com o personagem finalmente ganhando uma profissão: ex-BBB.

Após ganhar a oficina do Paulão na quinta temporada, a rua cenográfica ganharia, na sexta, o Esporte Clube Paivense, do qual Lineu é presidente e vários personagens da série são sócios; várias histórias da sexta temporada, que teria 37 episódios, exibidos entre 6 de abril e 21 de dezembro de 2006, envolveriam o clube e as tentaivas de Agostinho de ganhar algum dinheiro extra com suas instalações. A sexta temporada veria a estreia de três personagens importantes: Maria Angelina Carvalho, apelido Gina (Natália Lage), moça de família portuguesa que Tuco quer namorar somente para conseguir a cidadania e ir morar na Europa; Abigail Rocha (Márcia Manfredini), vizinha fofoqueira e invejosa, que não gosta de Nenê; e Genilson (William Guimarães), ex-motorista de ônibus e assistente de Beiçola na pastelaria, o que lhe renderia o apelido de Beiçolinha - Gina e Dona Abigail ficariam até o final da 11a temporada, enquanto Genilson ficaria até o final da série.

Na sexta temporada a abertura ganharia uma nova versão, mais uma vez contando com um álbum de fotos, como a primeira, mas nessa os rostos dos atores subsituíam os das pessoas em fotos cedidas pelo departamento de arte da Globo, usando um efeito no qual eles pareciam pular das fotos, mostrando claramente que os membros da família Silva (e Marilda) não eram originalmente as pessoas nas fotos. Na sétima temporada, Marcos Oliveira entraria para o elenco fixo, o que faria com que a abertura fosse levemente alterada, para também contar com fotos de Beiçola; em 2008, ocorreria uma nova alteração, com a entrada no elenco fixo de Tonico Pereira e Evandro Mesquita, e a abertura passando a mostrar também fotos de Mendonça e Paulão - além disso, a abertura seria convertida para o formato widescreen, já que, naquele ano, as televisões nesse formato começavam a se popularizar no Brasil.

Enquanto a sexta temporada estava no ar, seria gravado um filme para o cinema, chamado simplesmente A Grande Família - O Filme. Com direção de Maurício Farias, roteiro de Eduardo Figueira, Flavio Nascimento e Guel Arraes, e contando com Marco Nanini, Marieta Severo, Andréa Beltrão, Pedro Cardoso, Guta Stresser, Lúcio Mauro Filho, Tonico Pereira e Marcos Oliveira, no filme Lineu tem certeza de que vai morrer, e desiste de ir ao tradicional baile onde conheceu Nenê. Achando que ele perdeu o interesse nela, Nenê decide convidar para o baile um ex-namorado, Carlinhos (Paulo Betti), o que dá origem a várias confusões, dentre elas Mendonça achar que Lineu e Nenê estão se separando e querer de qualquer jeito que ele namore uma nova funcionária, Marina (Dira Paes). O filme é ambientado entre a sexta e a sétima temporadas, e, originalmente, sua história seria canônica - ele leva em conta tudo o que havia acontecido até a sexta temporada, e as temporadas seguintes deveriam levar em conta tudo o que acontece nele - mas, após a estreia da sétima temporada, ficaria claro que o filme é fora de cronologia, com vários de seus eventos sendo recontados de forma diferente em episódios da série. O filme estrearia em 26 de janeiro de 2007 e seria um sucesso moderado, com excelente bilheteria no primeiro fim de semana, mas caindo a cada semana subsequente, o que faria com que ele ficasse apenas seis semanas em cartaz.

Um dos fatos do filme que seria recontado na série seria a gravidez de Bebel: após anos tentando, ela finalmente consegue engravidar, dando a luz a um menino que decide chamar de Florianinho, em homenagem ao avô. Florianinho acaba se tornando o único neto de Lineu e Nenê, já que, na sétima temporada, é revelado que Nelsinho não é filho de Tuco, mas de seu amigo Fumaça (Rodrigo Penna), que teve um caso com Viviane pouco antes de ela e Tuco começarem a namorar - para piorar a situação, Fumaça é ex-namorado de Gina, e, sem saber qual dos dois quer, a moça decide namorar Fumaça e Tuco ao mesmo tempo. Ao longo da sétima temporada, que teve 37 episódios, exibidos de 12 de abril a 20 de dezembro de 2007, começariam a circular rumores de que esta seria a última, com inclusive membros do elenco dando declarações de que o nascimento de Florianinho seria um excelente ponto para encerrar a saga da família Silva. Os índices de audiência seguiriam altíssimos, entretanto, e, após uma reunião com a cúpula da Globo, todo o elenco principal aceitaria renovar para mais cinco anos de série.

A oitava temporada seria exibida entre 3 de abril e 18 de dezembro de 2008, com mais 38 episódios. Desta vez, quem decidiria ter dois namorados ao mesmo tempo seria Marilda, se alternando entre Paulão e Mendonça. Lineu decide se aposentar do serviço público, mas, incapaz de ficar em casa sem fazer nada, se aproveita de sua formação em veterinária para abrir uma pet shop em sociedade com Gina, colocando Tuco como seu funcionário. A história da pet shop não agradaria ao público, e, na nona temporada, sem maiores explicações, Lineu voltaria a ser fiscal sanitário e subordinado a Mendonça. A nona temporada, que teria mais 36 episódios, exibidos entre 16 de abril e 17 de dezembro de 2009, aliás, seria recheada de eventos polêmicos, como Lineu e Nenê descobrirem que seu casamento foi anulado porque o padre era casado e tendo de se casar de novo; Agostinho descobrindo que tem uma irmã, Fátima (Fabíula Nascimento); e Bebel, precisando de dinheiro, aceitando ser barriga de aluguel para o filho de um casal de amigos. Durante a nona temporada, a série chegaria a seu episódio de número 300, um especial no qual Tuco decide gravar um documentário sobre sua família para inscrever em um festival; em outro episódio especial, Nenê ganha ingressos para um show de Roberto Carlos.

Ao final da nona temporada, Andréa Beltrão pediria para sair de A Grande Família para atuar ao lado de Fernanda Torres em Tapas & Beijos, que teria roteiros de Cláudio Paiva e seria dirigido por Maurício Farias, marido de Andréa na vida real. Com isso, no início da décima temporada, que teria 36 episódios, exibidos entre 8 de abril e 23 de dezembro de 2010, Marilda viaja em busca de um grande amor e não volta mais, passando o salão para o nome de Nenê. A décima temporada teria a estreia de Pajé Murici (Luís Miranda), um vidente charlatão cujo nome verdadeiro é Craudionor, que seguiria na série até o final.

A décima-primeira temporada teria 38 episódios, exibidos entre 7 de abril e 22 de dezembro de 2011, e teria como maior destaque Agostinho e Paulão se tornando sócios em uma frota de táxis, na qual Tuco também vai trabalhar, após terminar seu namoro com Gina. A décima-primeira temporada traria dois personagens novos, que ficariam até o final da série: Danielle da Padaria (Nina Morena), periguete que dá em cima de Agostinho e por quem Paulão é apaixonado; e o irmão gêmeo de Paulão, Fábio (também interpretado por Evandro Mesquita), que é gay. Uma participação de destaque seria Laura Cardoso como Glória, a mãe de Lineu, que o abandonou na infância e agora retorna na velhice querendo reatar relações com o filho.

Para a nona temporada, a série teria uma nova abertura, que mostraria os personagens em diversos momentos de seu dia a dia, com a câmera "voando" por várias partes da cidade ao passar de um para outro, e traria Natália Lage creditada junto ao restante do elenco. Essa abertura seria modificada para a décima temporada, removendo Andréa Beltrão, e novamente para a décima-primeira, removendo Natália Lage. Uma abertura totalmente nova seria feita para a décima-segunda temporada: de computação gráfica e imitando os desenhos da Hanna-Barbera da década de 1970, ela mostraria os personagens em diversos momentos históricos, desde a pré-história até os tempos atuais; essa abertura também seria usada na décima-terceira temporada, com uma alteração na paleta de cores e o rosto de Florianinho estando à mostra - na décima-segunda, ele estava coberto por um elmo. A maior diferença, entretanto, seria que, para a décima-terceira temporada, a música-tema seria cantada na abertura por Ivete Sangalo; a justificativa da Globo para a mudança seria que a gravação de Dudu Nobre estava datada e não combinava com a nova abertura.

Entre a décima-primeira e a décima-segunda temporadas ocorreria uma passagem de tempo de quatro anos, durante os quais Lineu estaria em coma após ser atropelado. Ao acordar, ele tem de se acostumar a várias novidades, principalmente a de que Florianinho (antes interpretado por várias crianças diferentes) agora é um pré-adolescente de 12 anos (Vinícius Moreno), que parece ter herdado a malandragem de Agostinho e o jeito mimado de Bebel. Agostinho e Bebel agora são ricos, graças à frota de táxis de Agostinho, que tem como motoristas ele mesmo, Paulão e Murici; Tuco, que de vez em quando também dirige um dos táxis, se tornou um comediante de sucesso; e Nenê é dona de uma loja de roupas, que abriu para poder sustentar a família enquanto Lineu estava internado. A princípio, a loja foi aberta em sociedade com Kelly Aparecida (Katiuscia Canoro), uma mulher espevitada, levemente brega e divorciada de três maridos; Kelly seria criada como uma substituta de Marilda, tendo características semelhantes, mas não agradaria ao público e sumiria sem maiores explicações, sendo trocada por Everaldo Júnior (Fábio Porchat), filho de um amigo de infância de Lineu que a substitui como sócio na loja. Uma história recorrente da décima-segunda temporada é que Danielle está grávida, mas não sabe se o pai é Paulão ou Fábio; uma participação especial de destaque seria Luiz Fernando Guimarães como o Deputado Fontes, que ajuda Agostinho a se candidatar a vereador.

Durante a décima-segunda temporada, seria noticiado que Pedro Cardoso e Guta Stresser haviam brigado, que ele teria dito que ela é péssima atriz e que apareceria para gravar bêbada, e que ela teria ameaçado pedir demissão. Embora algumas postagens da atriz tenham dado a entender que o incidente realmente ocorreu, logo foram colocados panos quentes, e Lúcio Mauro Filho encerraria a polêmica dizendo que brigas entre o elenco eram normais devido ao estresse das gravações, mas que o grupo sempre passava por cima de tudo e seguia unido. No final de 2012, também surgiriam boatos de que Marco Nanini e Tonico Pereira haviam brigado, mas que não foram adiante, de forma que não se sabe qual situação teria desencadeado a briga nem como ela terminou.

A décima-segunda temporada teria mais 38 episódios, exibidos de 5 de abril a 20 de dezembro de 2012, e seria a última do contrato assinado pelo elenco após a sétima; como os índices de audiência ainda eram altíssimos, a Globo os covenceria a assinar para uma décima-terceira, mais curta, com 26 episódios exibidos entre 4 de abril e 26 de setembro de 2013, quando a série foi substituída no horário das quintas-feiras por The Voice Brasil. No final da décima-segunda temporada, Agostinho seria preso, e, ao sair da cadeia no início da décima-terceira, encontraria Bebel como dona da frota de táxis e empresária bem sucedida, ficando com extremos ciúmes de Paulão, sócio e braço-direito da moça e referência de pai de Florianinho, o que levaria a uma crise em seu casamento. Personagens novos da décima-terceira temporada seriam Lurdinha (Maria Clara Gueiros), vizinha de Nenê que a imita, é apaixonada por Paulão e rival de Bebel; e Caveira (Danton Mello), colega de cela de Agostinho na prisão. Ao final da temporada, Lineu consegue finalmente se aposentar.

Após o final da décima-terceira temporada, o elenco voltaria a pressionar a direção da Globo para que essa fosse a última, usando a aposentadoria de Lineu como justificativa. A Globo faria uma contra-proposta, e a última acabaria sendo a décima-quarta, de 23 episódios, exibida entre 10 de abril e 11 de setembro de 2014, com direito a matérias e reportagens em vários programas da emissora sobre o encerramento da série após mais de uma década de sucesso. A última temporada teria uma nova abertura, parecida com a usada entre 2002 e 2006, com a música-tema sendo cantada por Zeca Pagodinho. Nela, Lurdinha se torna a empregada da família Silva, e Nenê vai trabalhar como cozinheira no restaurante de Braga (Álamo Facó), rapaz que vê em Lineu e Nenê os pais que nunca teve. A última temporada teria participação especial de vários atores famosos, como Deborah Secco e Tony Ramos, e contaria com Marilda em alguns episódios. A série se encerraria com Bebel grávida de trigêmeos, após 485 episódios.

A Grande Família seria um dos programas de maior audiência da Globo no século XXI: alguns episódios chegariam a registrar números mais altos que o capítulo da novela que veio imediatamente antes, enquanto outros chegariam perto da audiência do Jornal Nacional. Como é comum em seriados tão longos, a audiência das últimas temporadas seria menor que a das primeiras, mas, mesmo assim, o programa teria uma das menores diferenças de audiência ao longo dos anos, registrando por volta de 10% de público perdido. Além de ser um sucesso de público, o seriado seria também um grande sucesso de crítica, sendo considerado um dos melhores programas humorísticos da história da televisão brasileira e vencendo por duas vezes o prêmio da APCA; seriam extremamente elogiadas as performances de Marco Nanini, Marieta Severo, Andréa Beltrão, Tonico Pereira e, principalmente, Pedro Cardoso, indicado ao Emmy Internacional de melhor ator. Até mesmo o vice-presidente do canal norte-americano ABC, de propriedade da Disney, ficaria encantado com a série, e conversaria com a Globo sobre a possibilidade de conseguir os direitos para a realização de uma versão norte-americana, numa negociação que jamais seria concretizada.

Em 2017, a Globo criaria o programa O Álbum da Grande Família, que reapresentaria vários episódios da série, alguns editados, alguns condensados, fora de ordem e iniciados com uma narração de Marco Naninni sobre o tema do episódios do dia, enquanto fotos desse episódio eram mostradas em um álbum semelhante ao da abertura da série. Originalmente, O Álbum da Grande Família seria exibido entre 20 de março a 28 de abril de 2017, de segunda a sexta-feira, no horário posteriormente ocupado pelo programa Conversa com Bial; ele retornaria com "novos" episódios entre 21 de janeiro e 27 de setembro de 2019, mais uma vez de segunda a sexta, ocupando o horário deixado vago após o fim do Video Show, sendo substituído por Se Joga. Em 6 de dezembro de 2020, somente com episódios de Natal e o nome O Álbum de Natal da Grande Família, ele retornaria como parte da programação especial de fim de ano da Globo, e, em 26 de abril de 2025, voltaria ao ar como parte das comemorações pelos 60 anos da Rede Globo.

A Grande Família também seria reexibida, na íntegra, no Canal Viva, entre 6 de agosto de 2018 e 7 de junho de 2025, de segunda a sexta-feira às 22h, com maratonas aos sábados em diversos horários; a partir de 10 de junho de 2025, a série passaria a ser exibida no canal Multishow. Desde 31 de outubro de 2022, A Grande Família e O Álbum da Grande Família também estão disponíveis na íntegra no serviço de streaming GloboPlay, com formato de exibição, aberturas, vinhetas de intervalo e encerramento originais.
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sábado, 22 de novembro de 2025

Escrito por em 22.11.25 com 0 comentários

Chaves

Assim como muitos de minha geração, eu cresci vendo Chaves. Era um dos meus programas de televisão preferidos, e, até hoje, acho que algumas de suas piadas e situações são muito mais divertidas do que de outros programas humorísticos da época ou atuais. Eu poderia ter escrito esse post sobre Chaves há muito mais tempo, mas, durante alguns anos, por alguma razão, gostar de Chaves era considerado vergonhoso por boa parte da comunidade online, e eu, estupidamente, ficava com vergonha de assumir que gostava e acabava desistindo. Atualmente, não somente parece que esse preconceito bobo acabou, como também eu estou ligando cada vez menos para o que os outros acham ou deixam de achar, de forma que decidi que iria finalmente escrever esse post. Assim, hoje é dia de Chaves no átomo!


Chaves foi criação de Roberto Gómez Bolaños, que, na época, já era considerado um dos maiores humoristas do México. Nascido em 21 de fevereiro de 1929 na Cidade do México, Bolaños seria boxeador amador, se formaria em engenharia mecânica e começaria sua carreira nas artes como dramaturgo, escrevendo várias peças de teatro a partir dos 25 anos de idade; devido a sua baixa estatura (1,62 m) e à velocidade com que escrevia as peças, ele ganharia o apelido de Chespirito, uma corruptela de "pequeno Shakespeare" em espanhol. Essas peças de teatro, sempre sucessos de público, lhe renderiam um convite para escrever roteiros para a televisão, com Chespirito sendo, entre 1960 e 1965, o roteirista principal de dois dos programas de maior audiência do México da época, Cómicos y Canciones e El Estudio de Pedro Vargas. Na mesma época, ele seria roteirista dos filmes para o cinema da dupla cômica Viruta y Capulina.

A estreia de Chespirito como ator ocorreria na série El Ciudadano Gómez, criada e escrita por ele e oferecida à Televisión Independiente de México, na qual contracenaria com outros atores que convidaria para seus projetos futuros, como Rubén Aguirre e María Antonieta de las Nieves. Apesar de ter sido gravada em 1968, a série seria engavetada por decisão do proprietário da emissora, que decidiria levá-la ao ar somente quando precisasse de algum programa para competir em audiência com seu canal rival, o Telesistema Mexicano, e acabaria estreando somente em 25 de janeiro de 1969. Antes disso, o produtor Sergio Peña, que havia estado presente durante as gravações de alguns episódios de El Ciudadano Gómez, convidaria Chespirito para participar do programa de variedades Sábados de la Fortuna, uma espécie de Programa Sílvio Santos do México, que ficava no ar o dia inteiro apresentando concursos, números musicais e segmentos humorísticos, que passariam a ser escritos e protagonizados por Chespirito, ganhando o apelido de Chespirotadas.

Uma dessas Chespirotadas seria La Mesa Cuadrada, sátira de um telejornal com a participação de de las Nieves como a apresentadora (chamada Mococha Pecochocha), Aguirre como o Professor Jirafales, Ramón Valdés como o Engenheiro Tirado Alanís, César Costa como o Capitão Costa Del Ocho, e Chespirito como o médico Dr. Chapatín; os cinco se sentavam em torno de uma mesa quadrada, Mococha sorteava uma "carta de um telespectador", e os profissionais respondiam a dúvida contida na carta da forma mais absurda possível. Esse quadro faria tanto sucesso que se tornaria um programa independente, Los Supergenios de la Mesa Cuadrada, que estrearia em 15 de outubro de 1970, com episódios de uma hora de duração.

Chespirito, porém, não gostava do programa, pois as cartas dos telespectadores (escritas pela equipe de redação do programa) sempre falavam sobre temas sociais e políticos da época, criando a necessidade de que o programa fosse gravado o mais perto de ir ao ar possível, para que os assuntos não ficassem velhos, mas a emissora insistia que eles fossem gravados com semanas de antecedência. Assim, aos poucos, ele começaria a reduzir a duração do esquete da mesa quadrada, a introduzir outros esquetes, como um no qual o Dr. Chapatín atendia pacientes em seu consultório, e outro que seria uma sátira aos super-heróis norte-americanos, estrelado por uma das criações mais famosas de Chespirito, o Chapolim Colorado. Em janeiro de 1971, Chespirito convenceria a emissora a mudar o nome do programa para Chespirito y La Mesa Cuadrada, e, em maio, o esquete da mesa quadrada seria eliminado totalmente, com o programa passando a se chamar, simplesmente, Chespirito.

Seria em Chespirito que finalmente estrearia o Chaves, como um esquete de 10 minutos de duração, em 20 de junho de 1971. Como Chespirito era um programa humorístico voltado para o público adulto, Chaves, originalmente, também seria voltado para adultos, por isso a decisão de colocar os próprios atores regulares do programa para interpretar as crianças, ao invés de contratar atores mirins. O sucesso do esquete, porém, seria tamanho, tanto com adultos quanto com crianças, que a Televisa, que absorveria a Televisión Independiente de México por razões de mercado em 8 de janeiro de 1973, decidiria transformá-lo em um programa separado, de meia hora de duração, exibido em horário nobre. Assim, em 20 de fevereiro de 1973, iria ao ar o último episódio de Chespirito, e, na semana seguinte, em 26 de fevereiro de 1973, estrearia a nova série El Chavo del Ocho.

Aqui vale a pena explicar esse título: embora o nome do personagem tenha sido traduzido no Brasil para Chaves, Chavo, no México, não é um nome próprio, e sim uma palavra genérica para se referir a qualquer menino, mais ou menos equivalente ao inglês kid. E, ainda que, em sua série própria, Chaves aparentemente more no barril - que o próprio Chaves, em vários episódios, diz ser apenas seu "esconderijo preferido" - nos esquetes do programa Chespirito seria explicado que ele fugiu do orfanato onde sua mãe o abandonou e foi parar na vila, onde uma "simpática senhora" o convidou para morar com ela no apartamento de número 8; portanto, El Chavo del Ocho seria algo como "o garoto da casa 8" - uma teoria popular dentre os fãs dizia que o título era uma referência ao fato de que a Televisión Independiente de México era o canal 8, mas aí não faria sentido manter o título quando o seriado foi para a Televisa, que era o canal 2.

Também vale citar que a "vila do Chaves" é um tipo de construção destinada a pessoas pobres conhecida no México como vecindad, com aquelas portas dando acesso não a casas, mas a apartamentos, que têm o pátio como área comum. O principal cenário da série mostra um pátio no qual estão localizados o barril do Chaves, um tanque de lavar roupa, as portas dos apartamentos 14, 71 e 72, e uma escada que leva ao apartamento 23 - cujo morador jamais foi revelado e o interior jamais foi mostrado - além de objetos de cena como brinquedos, caixotes e bujões de gás. À esquerda desse pátio, em relação a quem está assistindo, ao lado da escada, fica o portão de entrada da vila, e, à direita, entre os apartamentos 71 e 72, há um corredor que leva a um segundo pátio, com um chafariz. A porta do apartamento 8 jamais é mostrada, e pode ficar ou nesse segundo pátio, ou na "quarta parede", o lado da vila onde está a tela da televisão. Cenários fora da vila também são usados em alguns episódios, com o mais comum sendo a sala de aula na escola onde as crianças estudam.

Pois bem, todo o elenco de Chespirito seria aproveitado em Chaves, a começar pelo próprio Chespirito, que interpreta Chaves, um menino de 8 anos órfão e extremamente pobre, ingênuo e pouco inteligente, mas de bom coração, que aparentemente ficou abandonado aos próprios recursos, já que a simpática senhora do apartamento 8 nunca apareceu - há quem diga que ela era casada com o Capitão Costa, que por isso tinha o sobrenome "Del Ocho", e que ele foi transferido para outra cidade e levou ela, mas não o Chaves. O melhor amigo de Chaves é Quico (Carlos Villagrán), que tem 9 anos e mora com sua mãe no apartamento 14. Quico tem uma condição financeira melhor que a dos outros moradores da vila, e está sempre exibindo brinquedos e roupas novas - seu falecido pai, que ele tinha como maior ídolo, era um oficial da marinha, por isso ele está sempre vestido de marinheiro. Quico é ao mesmo tempo arrogante e invejoso, o que faz com que ele esteja sempre se metendo em confusões com Chaves e com a outra criança protagonista da série, Chiquinha (María Antonieta de las Nieves; em espanhol, o nome da personagem é La Chilindrina, nome de um pão doce tradicional mexicano feito com açúcar mascavo e apelido tradicional mexicano para crianças sardentas). Inteligente e levada na mesma proporção, Chiquinha, que também tem 8 anos, está sempre tentando levar vantagem sobre os meninos, envolvendo-os em planos mirabolantes dos quais ela será a beneficiada; mesmo que pareça não perceber, ela é apaixonada por Chaves.

O pai de Chiquinha, que mora com ela no apartamento 72, é o Seu Madruga (Ramón Valdés; Don Ramón no original). Desempregado, preguiçoso e devendo 14 meses de aluguel, Seu Madruga passa a maior parte do tempo se envolvendo em confusões com as crianças, embora tenha pouca paciência com elas. Já a mãe de Quico, Dona Florinda (Florinda Meza; Doña Florinda no original), é uma dona de casa viúva que vive da pensão do falecido marido, mantendo a pose de classe alta e se referindo aos demais moradores da vila como "gentalha", mesmo que sua situação não seja tão diferente da deles; Dona Florinda mima Quico, se referindo a ele como "Tesouro", e sempre dá razão ao menino, mesmo quando ele está errado. A outra moradora da vila é Dona Clotilde (Angelines Fernández; Doña Clotilde no original), idosa solteirona apaixonada pelo Seu Madruga e chamada pelas crianças de "A Bruxa do 71", em alusão à sua aparência e ao número do apartamento onde mora.

Dona Florinda é apaixonada pelo Professor Girafales (Rubén Aguirre; Profesor Jirafales no original), professor de Chaves, Quico e Chiquinha na escola, que frequentemente vai à vila visitá-la e tomar uma xícara de café; romântico e gentil, Girafales tem paciência quase infinita com as crianças, que o chamam de Professor Linguiça devido à sua altura, mas se irrita facilmente com outros assuntos. O dono da vila, que aparece para cobrar aluguel e resolver outros assuntos de seu interesse, é o milionário Senhor Barriga (Édgar Vivar; Señor Barriga no original - o nome verdadeiro do personagem é Zenón Barriga y Pesado, dois sobrenomes que realmente existem no México), de quem Seu Madruga está sempre tentando escapar, a quem Chavez frequentemente agride acidentalmente, e alvo de piadas por ser obeso. Outro personagem adulto recorrente é Dona Neves (María Antonieta de las Nieves; Doña Nieves no original), avó do Seu Madruga e bisavó de Chiquinha, que os visita de vez em quando e é pouco mais que Chiquinha com uma peruca grisalha.

O Senhor Barriga tem um filho igualmente obeso, da mesma idade de Chaves, Quico e Chiquinha, chamado Nhonho (Édgar Vivar; Ñoño no original), alvo de bullying por parte das outras crianças, e que, apesar de ser rico, não é soberbo como Quico, e frequenta a mesma escola dos demais. Outras crianças da série são Popis (Florinda Meza), sobrinha de Dona Florinda que também estuda na mesma escola dos outros, e de vez em quando vai à vila visitar a tia e brincar com as outras crianças, sempre acompanhada de sua boneca Serafina; Godínez (Horacio Gómez Bolaños, irmão de Chespirito na vida real), aluno que nunca está prestando atenção na aula e responde com absurdos às perguntas do Professor Girafales; e Paty (Ana Lillian de la Macorra), menina bonita da escola por quem Chaves é apaixonado, o que a torna alvo do ódio de Chiquinha.

Não é surpresa para ninguém que os personagens crianças eram interpretados por adultos - com Meza, Vivar e de las Nieves interpretando um personagem adulto e uma criança cada - mas uma grande curiosidade quanto ao elenco diz respeito às idades dos atores em relação a dos seus personagens: quando a primeira temporada estreou, Chespirito tinha 42 anos, Villagrán 27 e de las Nieves 21, enquanto Meza tinha apenas 22 - ou seja, a Dona Florinda era cinco anos mais nova que o Quico - e Vivar tinha 23 - fazendo com que o dono da vila e um dos dois únicos adultos responsáveis da série por pouco não fosse o mais jovem do elenco. Os demais atores tinham idades mais próximas de seus personagens, com Valdés tendo 48 anos quando estreou a primeira temporada, Fernández 49, e Aguirre 37.

A escolha do elenco se daria sem testes, praticamente por imposição de Chespirito. Aguirre era amigo de anos de Chespirito, roteirista assim como ele, e ambos haviam escrito juntos algumas peças de teatro e roteiros de televisão, decidindo ambos atuarem juntos quando receberam a chance das Chespirotadas. Valdés era um conhecido ator de cinema, cuja carreira estava em decadência, com Chespirito decidindo dar uma chance de ele revitalizá-la na televisão. De las Nieves originalmente era uma dubladora e narradora, com apenas sua voz sendo transmitida durante anúncios e propagandas da Televisión Independiente de México; Chespirito achava sua voz bonita e pediu para conhecê-la, se impressionando também com sua beleza física - sem a maquiagem de Chiquinha, de las Nieves é considerada uma das mulheres mais bonitas da televisão mexicana. A princípio ela não aceitaria o convite de Chespirito, argumentando que não queria ser atriz de comédia, mas acabaria mudando de ideia quando ele respondesse que "não existem atores de comédia ou de drama, apenas atores".

Villagrán, originalmente, também não era ator, mas jornalista; amigo de Aguirre, ele mostrou em uma festa seu truque de inflar as bochechas, que Aguirre chamava de "talento oculto", e, após contar algumas piadas com a cara bochechuda, foi prontamente convidado por Chespirito para o programa. Já Vivar era um ator iniciante recomendado a Chespirito por um amigo em comum; ele chegaria sem avisar durante a gravação de um dos esquetes de Chespirito, achou graça em uma das cenas e riu em voz alta, o que fez com que o diretor tivesse de interromper as gravações porque a risada dele foi gravada. Após essa primeira má impressão, Chespirito diria a Vivar que, se ele aceitasse entrar para o programa, deveria gravar sem ponto eletrônico, ao que ele respondeu "o que é isso?", sendo contratado imediatamente. Assim como Valdés, Fernández era uma antiga atriz de cinema espanhola radicada no México que já não recebia muitos papéis, sendo convidada para o da Bruxa do 71, que seria apenas uma participação especial, mas acabaria se tornando um personagem fixo. Meza, por outro lado, era uma atriz iniciante, que estava em outra série, La Media Naranja, onde também interpretava uma mulher mais velha, impressionando Chespirito com seu talento - os dois se apaixonariam durante as gravações de Chaves, e acabariam se casando em 1977. Finalmente, Horacio, irmão de Chespirito, jamais havia pensado em ser ator, cuidando da promoção da série, mas foi convidado pelo irmão para interpretar Godínez para que pudesse receber um salário de ator e complementar sua renda.

A direção dos episódios ficaria a cargo de Enrique Segoviano, e a produção da série com Carmen Ochoa; Chespirito seria o responsável pelos roteiros, contando com a ajuda de Aguirre em alguns episódios. Muitas das características dos personagens seriam criadas pelos próprios atores: Villagrán criaria o choro de Quico, apoiado numa parede e fazendo som vibrante, e Aguirre decidiria que Girafales falaria "tá, tá, tá, tá" ao ficar irritado porque de fato um de seus professores na escola fazia isso, e ele achava engraçado. Os episódios seriam gravados nos estúdios da Televisa em San Ángel, e os figurinos ficariam a cargo da Compañía Casa Tostado, da Cidade do México, famosa por sua linha de fantasias.

Chaves seria uma das primeiras séries mexicanas a usar o recurso da claque, aquelas risadas gravadas reproduzidas após cada piada; segundo Villagrán, a Televisa teria acesso a um estudo feito nos Estados Unidos, segundo o qual ouvir a claque fazia com que os espectadores rissem junto, achando a piada mais engraçada. A claque e todos os demais efeitos de sonoplastia, assim como alguns efeitos especiais precários, quando necessário, eram adicionados aos episódios durante a pós-produção, nos estúdios da Televisa na Cidade do México. Para música de abertura da série, Chespirito escolheria The Elephant Never Forgets, releitura feita pelo francês Jean-Jacques Perrey da Marcha Turca, de Ludwig van Beethoven; a música se tornaria uma das mais populares do México graças ao seriado. A trilha sonora seria composta por Ángel Álvarez, e lançada em 1977 em um LP chamado Así cantamos y vacilamos en la vecindad del Chavo.

A primeira temporada de Chaves teria 39 episódios de cerca de meia hora cada (incluindo os comerciais), exibidos entre 26 de fevereiro e 31 de dezembro de 1973. De início, a série seria muito criticada, com seu humor sendo considerado bobo, vulgar e repetitivo, e o fato de a maioria das piadas fazerem uso de alguma forma de violência fazendo com que o programa fosse classificado como "não recomendável" por várias entidades de classificação da programação mexicana; o público parecia não se importar, porém, e a audiência crescia dia após dia, com o programa fechando o ano de 1973 como o mais assistido da Televisa e um dos mais assistidos do país. Segundo alguns críticos, o segredo do sucesso de Chaves pode estar no fato de que as situações vividas pelos personagens são "universais", facilitando a identificação do público sem importar sua idade, classe social ou faixa etária.

Pouco antes do início das gravações da segunda temporada começarem, de las Nieves revelaria estar grávida, tendo de deixar o elenco. Ela não ficaria sem trabalhar, entretanto, aceitando um convite da Televisión Azteca para apresentar o programa Pampa Pipiltzin. Por causa disso, nenhum dos episódios da segunda temporada conta com Chiquinha, com Seu Madruga explicando que ela tinha ido "estudar em Guanajuato" (cidade do interior do México) onde estava "morando com as tias". Seria para substituir Chiquinha que Chespirito criaria a personagem Popis, que não existia na primeira temporada, após uma tentativa de introduzir na série uma afilhada do Seu Madruga chamada Malicha (María Luisa Alcalá) não ter dado certo. A segunda temporada teria mais 42 episódios, exibidos entre 7 de janeiro e 28 de outubro de 1974. Também em 1974, seria lançada uma revista em quadrinhos com os personagens do seriado.

De las Nieves e Chiquinha voltariam para a terceira temporada, de mais 40 episódios, exibidos entre 13 de janeiro e 10 de novembro de 1975. Nessa época, a série teria picos de 60 pontos de audiência no México, e seus episódios seriam vendidos para Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela, com a estimativa de que 350 milhões de lationamericanos assistiam a seus episódios. A partir da quarta temporada, de 45 episódios, exibidos entre 5 de janeiro e 27 de dezembro de 1976, Chaves começaria a ser vendido para países que não tiham o espanhol como idioma oficial, sendo um dos primeiros produtos mexicanos a serem dublados para exibição na televisão estrangeira. Hoje, estima-se que Chaves tenha sido exibido em cerca de 90 países, dublado em 50 idiomas diferentes. O primeiro país que não tinha o espanhol como idioma oficial para o qual o seriado foi vendido seria os Estados Unidos, onde seria exibido em inglês e em espanhol, se tornando o programa nesse idioma mais assistido na faixa etária entre 6 e 11 anos de idade em todos os tempos. Em seguida, Chaves seria vendido para a União Soviética, China, Índia, Itália, Marrocos, Angola, Guiné Equatorial e Espanha - o que faria com que o único país que tem o espanhol como idioma oficial no qual ele jamais foi exibido seja Cuba.

A quinta temporada teria mais 40 episódios, exibidos entre 6 de janeiro e 26 de dezembro de 1977, dentre eles o famoso Vamos Todos a Acapulco, primeiro filmado em ambiente externo, e um dos raros com duas partes. Também em 1977, o elenco do programa começaria a se apresentar ao vivo, dançando, cantando e interpretando pequenos esquetes, primeiro no México, depois internacionalmente, normalmente em grandes estádios e arenas, para acomodar mais público. Fora do México, as apresentações mais impressionantes ocorreriam no Estádio Nacional do Chile, para 80 mil pessoas; nos estádios Malvinas Argentinas e Mario Alberto Kempes, na Argentina; no Coliseo Amauta, no Peru; e no Madison Square Garden, em Nova Iorque, Estados Unidos.

Infelizmente, como costuma acontecer nesses casos, o grande sucesso levaria também a ações questionáveis, e a sexta temporada, de 39 episódios, exibidos entre 27 de março e 11 de dezembro de 1978, seria um divisor de águas para a série: durante as gravações, Chespirito e Villagrán se desentenderiam, e Villagrán pediria permissão para sair do programa e criar seu próprio, estrelado por Quico, a qual foi concedida por Chespirito. Assim, em um dos episódios, Dona Florinda revela que Quico foi morar com sua avó rica, porque "não aguentava mais conviver com a gentalha", e Nhonho passaria a ser o novo melhor amigo de Chaves. Antes do inicio da produção de Quico, porém, Villagrán processaria Chespirito, alegando ter sido ele o criador do personagem Quico. A justiça mexicana decidiria a favor de Chespirito, fazendo com que Quico fosse cancelado e Villagrán pouco voltasse a falar com Chespirito pelo resto da vida.

Antes da saída de Villagrán, os produtores Valentín Pimstein e Fabián Arnaud procuraram Chespirito e pediram para que ele escrevesse o roteiro de um filme de cinema ou do Chaves, ou do Chapolim. Chespirito se recusou, alegando que ambos os seriados eram produtos característicos da televisão, e que seria difícil encontrar para eles uma história inédita que se sustentasse durante mais de vinte minutos. Ele faria uma contraproposta, aceita pelos produtores, de um filme com o mesmo elenco de Chaves, chamado El Chanfle, sobre um homem que trabalha para um clube de futebol e deseja vender uma pistola para pagar pelos exames e parto de sua esposa grávida. Contando com participações especiais do Dr. Chapatín e de Dona Neves, o filme estrearia nos cinemas mexicanos em 18 de janeiro de 1979, fazendo grande sucesso; Villagrán, que interpreta um jogador de futebol, teria papel de destaque, mas seria frio e distante com seus colegas de elenco durante as gravações.

Ao final da sexta temporada, Valdés também pediria para sair da série, alegando razões pessoais. Sem querer substituir Seu Madruga, mas tendo dificuldade em escrever as piadas com dois personagens a menos, Chespirito criaria um novo, o carteiro Jaiminho (Raúl Chato Padilla, de 62 anos; Jaimito el Cartero, no original). Natural da cidade de Tangamandápio, que existe na vida real e ficaria famosa por ser frequentemente citada pelo personagem, Jaiminho, cujo nome verdadeiro era Jaime Garabito, era um carteiro que entregava cartas na vila, sempre caminhando ao lado de sua bicicleta - porque, para passar na entrevista de emprego, ele mentiu que sabia andar de bicicleta - e trabalhando o mínimo possível, pois, segundo ele sempre dizia, estava tentando evitar a fadiga. Jaiminho substituiria Seu Madruga em muitas das interações com Chaves, Dona Florinda e Sr. Barriga, mas também permitiria piadas novas, por não ser um morador da vila e a princípio só aparecer lá a trabalho.

A sétima temporada, com Jaiminho, mas sem Quico e Seu Madruga, que, segundo Chiquinha, arrumou um emprego em outra cidade, teria 50 episódios, exibidos entre 29 de janeiro de 1979 e 7 de janeiro de 1980. Sem dois dos mais populares personagens da série, a audiência cairia vertiginosamente, e a Televisa decidiria cancelar Chaves enquanto a temporada ainda estava em produção.

Esse não seria o fim de Chaves, porém: após o cancelamento, retornaria ao ar a série Chespirito, que reestrearia em 28 de janeiro de 1980 com o exato mesmo formato, de esquetes curtos com personagens variados. Chespirito seguiria fazendo esquetes de Chaves para o programa, e contaria até mesmo com um breve retorno de Valdés para episódios gravados em 1981. Chespirito ainda iria ao ar até 25 de setembro de 1995, mas o último esquete de Chaves iria ao ar em 12 de junho de 1992; naquele ano, Vivar teve de se afastar das gravações com problemas cardiovasculares, e Chespirito, já com 63 anos, decidiria que era hora de parar de interpretar Chaves, declarando em entrevistas que "o pior que pode acontecer a um ser humano é parar de evoluir". Anos mais tarde, ele confessaria ter pensado em gravar um esquete final ao fim do qual Chaves morreria atropelado ao tentar salvar outro menino órfão, encerrando a saga do personagem definitivamente, mas seria convencido por sua filha, psicóloga, de que isso poderia aumentar a taxa de suicídios entre as crianças mexicanas.

Ainda hoje, Chaves é um dos maiores fenômenos da televisão mundial, sendo ainda exibido em dezenas de canais e serviços de streaming em todo o planeta; estima-se que, desde 1992, somente com as reprises, a Televisa já tenha lucrado 1,7 bilhão de dólares. Os direitos, entretanto, não pertencem ao canal, mas ao Grupo Chespirito, atualmente comandado por Meza e pelo filho mais velho de Chespirito, Roberto Gómez Fernández - em 2020, inclusive, problemas na renegociação dos contratos levariam a um atrito entre a Televisa e o Grupo, que fariam com que todos os programas que contassem com personagens de Chaves, Chapolim ou outras criações de Chespirito ficassem impedidos de ir ao ar no mundo inteiro, com a situação somente se normalizando em setembro de 2024.

Seria Gómez Fernández quem criaria a mais recente encarnação do personagem, El Chavo Animado, (também conhecido como El Chavo, la serie animada ou El Chavo del 8 Animado; simplesmente Chaves aqui no Brasil), série de animação que estrearia na Televisa em 21 de outubro de 2006, na qual alguns episódios são adaptações de esquetes de Chespirito e episódios da série original, mas muitos são roteiros inéditos. A série animada teria sete temporadas (de 26, 26, 26, 22, 15, 13 e 7 episódios, respectivamente, para um total de 125), o último exibido em 6 de junho de 2014; assim como os da série original, eles atualmente são reprisados à exaustão, em mais de 90 países. Villagrán e Vivar não aprovariam a série animada - que conta com todos os personagens, exceto Chiquinha, mas nenhum deles dublado por seus atores originais - alegando que ela "desumanizava os personagens" e era "uma ação mercantilista para ganhar dinheiro com o público infantil".

No Brasil, Chaves estrearia em 24 de agosto de 1984, no SBT, junto com Chapolim, dentro do programa TV Powww!; após passarem pelo programa do Bozo, Chaves e Chapolim se tornariam atrações "soltas", exibidas no horário do almoço. O sucesso seria gigantesco e Chaves seria um dos poucos programas do SBT a ter mais audiência que a Globo, que no horário transmitia o jornal local, o Globo Esporte e o Jornal Hoje; isso faria com que a Globo, por repetidas vezes, tentasse comprar os direitos de exibição para tirar o programa do SBT, sempre sem sucesso.

O SBT não compraria todos os episódios, sendo calculado que seriam comprados e dublados em português por volta de 175 dos 295 episódios disponíveis, que eram exibidos em ordem aleatória, sem respeitar temporadas ou a ordem em que foram exibidos no México. Como era comum na época, o seriado também era apresentado pelo SBT sem a abertura ou os créditos finais originais; somente em 2000 o canal brasileiro criaria uma abertura própria, com uma música de sua autoria, que mostrava os rostos dos personagens em meio a uma contagem regressiva. Outra curiosidade seria que as fitas compradas pelo SBT viriam com uma única trilha de áudio, sendo impossível dublá-las sem apagar a trilha sonora original; por causa disso, o SBT substiuiria as músicas originais da trilha por músicas genéricas, tiradas de um catálogo britânico de músicas licenciáveis para televisão chamado Bruton Music: Kids and Cartoons.

Até 2010, o SBT seria o único canal brasileiro a exibir Chaves; naquele ano, o grupo Turner compraria os direitos de exibição em TV por assinatura para toda a América Latina, e, no Brasil, Chaves passaria a ser exibido primeiro no canal Cartoon Network, então no Boomerang e no TBS, todos de propriedade da Turner. Esse contrato finalizaria em 2018 e não seria renovado, dando à Globo a chance de finalmente comprar Chaves, mas apenas para exibição em TV por assinatura, com o seriado, incluindo episódios inéditos jamais exibidos no Brasil, sendo televisionado pelo canal Multishow. Após a suspensão das exibições internacionais em 2020, Sílvio Santos tentaria negociar diretamente com o Grupo Chespirito para que Chaves seguisse sendo exibido pelo SBT e fizesse parte de seu novo serviço de streaming, o +SBT. Essas negociações jamais se concretizariam, entretanto, e, quando o novo contrato entre o Grupo Chespirito e a Televisa fosse assinado, Chaves voltaria ao ar no Brasil na TV aberta no SBT (em uma versão remasterizada em alta definição por inteligência artificial), na TV por assinatura no Multishow, e em streaming no Amazon Prime Video. Em julho de 2025, ele sairia do catálogo do Prime Video, mas desde então passaria a ser disponibilizado pelo GloboPlay e pela Netflix, com uma nova dublagem encomendada pela Televisa; a ideia é que os catálogos desses serviços contem com todos os episódios produzidos, e não somente os originalmente exibidos pelo SBT.

Como a exibição no Brasil começaria anos depois de a série ter saído do ar no México, surgiria uma lenda urbana de que todo o elenco havia morrido em um acidente de avião no final dos anos 1970, ou seja, estávamos assistindo a um seriado no qual todos os atores já haviam falecido. Na verdade, o primeiro ator do elenco de Chaves a nos deixar seria Valdés, que faleceria em 1988 - quatro anos depois da estreia de Chaves no Brasil - aos 63 anos, de câncer no estômago. Além de Valdés e de Chespirito, os outros atores já falecidos são Padilla, que faleceu em 1994, aos 75 anos, de infarto; Fernández, aos 69 anos, também em 1994, de falência renal crônica; e Aguirre, aos 82 anos, em 2016, de pneumonia. Meza atualmente é empresária, Vivar é produtor e ator de cinema, de las Nieves está aposentada, e Villagrán vive da fama que adquiriu como Quico, fazendo palestras e comparecendo a convenções.

Villagrán, que seria impedido de usar o personagem Quico com fins comerciais no México, conseguiria um contrato para produzir uma série chamada El Niño de Papel, na Venezuela, em 1981. Nessa série, exibida pelo canal RCTV, Kiko (escrito com K, talvez para evitar problemas judiciais) usa uma roupa de marinheiro de cor branca, mora com a mãe (que não é Dona Florinda) em um apartamento, e vende jornais nas ruas. A série teria 49 episódios e seria relativamente bem sucedida, mas muitos espectadores escreviam cartas para a RCTV reclamando que o seriado era muito diferente de Chaves.

Para tentar remediar a situação, Villagrán criaria uma nova série, chamada Federrico, que estrearia em 1982 e seria praticamente uma cópia de Chaves, mas tendo como personagem principal Kiko, que mora em uma vila praticamente idêntica à Vila do Chaves com sua mãe, Carlota - que, como vocês devem imaginar, é praticamente idêntica à Dona Florinda. Outros personagens da série são o menino órfão Yoyo, melhor amigo de Kiko (e que é o equivalente de Chaves), o vizinho mal-humorado Moncho Valdez (equivalente ao Seu Madruga, inclusive também interpretado por Valdés), o namorado de Carlota, Don Salomón (uma mistura do Professor Girafales com o Senhor Barriga), e os amigos de Federrico na escola, Pichicho (filho de Don Salomón e equivalente a Nhonho), Marucha (equivalennte a Chiquinha, mas sem ser filha de Moncho) e Paty (equivalente a Popis). A série teria 43 episódios. Talvez devido à ameaça de uma ação judicial, para a "segunda temporada", que se chamaria Las Nuevas Aventuras de Federrico e estrearia em 1983, Kiko, que agora tinha pai e mãe, morava num condomínio de luxo, onde vivia aventuras ao lado das crianças da primeira temporada. Essa segunda temporada teria 20 episódios e não faria sucesso, sendo inclusive encurtada.

Em 1986, Villagrán tentaria novamente com Kiko Botones, no qual Kiko, já mais velho, trabalha em um hotel de Caracas, usando uma roupa vermelha; também produzida e exibida pela RCTV, a série contaria com a presença de atores venezuelanos famosos, como Irma Palmieri, Simón García e Virgilio Galindo, mas não faria sucesso, e seria cancelada após apenas 24 episódios. Se você está se perguntando qual dessas séries foi a exibida aqui no Brasil pela Bandeirantes, a resposta é todas (ou quase): a emissora compraria alguns episódios de El Niño de Papel, Las Nuevas Aventuras de Federrico e Kiko Botones e exibiria tudo misturado e fora de ordem entre 1991 e 1992 com o nome de Kiko; somente Federrico é inédita no Brasil.

Após o encerramento de Kiko Botones, Villagrán retornaria ao México e conseguiria um contrato para a produção de ¡Ah qué Kiko!, exibida pelo canal Imevisión entre junho de 1987 e fevereiro de 1988, com um total de 29 episódios. Nela, Don Ramón (interpretado por Valdés, mas bem diferente do Seu Madruga) é o gerente de uma mercearia na qual Kiko, agora adolescente mas ainda sempre vestido com seu tradicional uniforme de marinheiro, trabalha como entregador. Outros personagens de destaque são Toto, menino pobre amigo de Kiko; Pamela, moça por quem Don Ramón é apaixonado; sua sobrinha, Nena; e Don Cejudo, o dono da mercearia. Essa série seria lançada no Brasil em DVD, com os nomes de Ah! Que Kiko! ou Kiko e Sua Turma; na dublagem, talvez para apelar aos fãs de Chaves, Don Ramón seria chamado de Seu Madruga, enquanto Don Cejudo seria o Seu Brancelha - com ambos os nomes fazendo referência às grossas sobrancelhas do personagem.

Já de las Nieves, após o encerramento definitivo de Chaves, em 1992, seguiria se apresentando como Chiquinha em programas de televisão, peças de teatro e eventos para os fãs. Durante muito tempo, Chespirito pareceu não se importar, mas, em 2002, entraria com um processo na justiça mexicana para impedi-la. O processo seria encerrado em 2005 com um acordo que permitia que de las Nieves seguisse usando Chiquinha como bem entendesse, mas removia a personagem de todas as futuras produções do Chaves, incluindo a série animada, na qual a menina principal é Popis. Alegando que de las Nieves estava descumprindo o acordo, Chespirito a processaria novamente em 2010. Essa disputa judicial faria com que os dois se afastassem, jamais voltando a se falar. De las Nieves seguiria interpretando Chiquinha até 2021, quando, aos 75 anos de idade e 48 "de Chiquinha", decidiu se aposentar da personagem, entrando para o Livro dos Recordes como a atriz a interpretar uma mesma personagem pelo maior tempo contínuo.

Chespirito faleceria em 28 de novembro de 2014, aos 85 anos; após conviver por muitos anos com Doença de Parkinson e problemas de próstata que levariam a duas cirurgias, ele teria uma parada cardíorrespiratória em sua residência, em Cancún. Após encerrar Chaves, em 1992, ele jamais aceitaria interpretar novamente o personagem; em entrevistas, diria que "os personagens existem e vivem na imaginação, e assim ficarão".
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