E hoje encerramos o ano de 2025 e a série sobre as produções do Studio Ghibli. Nos vemos 10 de janeiro!
A Tartaruga Vermelha
La Tortue Rouge
2016
No final de 2013, tanto Hayao Miyazaki quanto Isao Takahata, dois dos fundadores e principais diretores do Studio Ghibli, anunciariam suas aposentadorias. Diante disso, o presidente do Studio Ghibli, Koji Hoshino, tomaria uma decisão inusitada: os dois projetos do estúdio já em andamento, o filme As Memórias de Marnie e a série de TV Ronja: A Filha do Ladrão seriam concluídos, mas, depois disso, todo o departamento de produção do Studio Ghibli seria desmantelado, com todos os profissionais sendo liberados para encontrar novos empregos em outros estúdios, e ele e o produtor Toshio Suzuki se dedicariam apenas à manutenção do Ghibli Museum. Hoshino deixaria claro, porém, que, caso algum novo projeto de interesse fosse apresentado, o departamento de produção poderia ser reaberto, com os profissionais, antigos ou novos, sendo recontratados apenas para aquela produção.
Assim começaria um hiato de seis anos, durante o qual muitos achariam que o Studio Ghibli havia fechado as portas de vez, e só terminaria quando Hayao Miyazaki decidisse largar sua aposentadoria para trabalhar em O Menino e a Garça, que acabou adiado para que ele pudesse ajudar seu filho Goro em Aya e a Bruxa. Mas isso nós veremos mais a seguir ainda hoje; por enquanto, o que interessa é que, durante esse hiato, o Studio Ghibli trabalharia em sua primeira co-produção internacional: o filme francês A Tartaruga Vermelha.
Co-produzido pela Wild Bunch, Prima Linea Productions, Why Not Productions, Arte France Cinéma, CN4 Productions, Belvision - todas francesas - e Studio Ghibli, financiado pela Nippon Television Network, Dentsu, Hakudodo DY Media Partners, Walt Disney Japan, Mitsubishi Corporation e Toho - todas japonesas - A Tartaruga Vermelha surgiria como projeto em 2008, quando um dos co-fundadores da Wild Bunch, Vincent Maraval, visitou o Studio Ghibli para conhecer Hayao Miyazaki pessoalmente, levando a pedido do japonês uma cópia do curta animado Father and Daughter, escrito e dirigido pelo holandês Michaël Dudok de Wit, vencedor do Oscar de Melhor Curta Animado de 2001. Miyazaki perguntaria se Maraval tinha como entrar em contato com de Wit, e diria que, se algum dia o Studio Ghibli fosse fazer um filme dirigido por um estrangeiro, seria com de Wit. A Wild Bunch entraria em contato com de Wit em Londres, convidando-o para assinar um contrato para a direção de um filme. De início, de Wit não se mostraria interessado, mas mudaria de ideia ao descobrir que Miyazaki tinha interesse em trabalhar com ele.
Questões de ordem prática, porém, fariam com que o projeto levasse muitos anos para sair do papel, e com que de Wit e Miyazaki jamais trabalhassem juntos; a principal delas seria que, tendo de Wit um contrato com a Wild Bunch, Maraval queria que o filme fosse uma co-produção entre seu estúdio e o Studio Ghibli, enquanto Miyazaki preferia que de Wit escrevesse e dirigisse um filme para o Studio Ghibli sem o envolvimento dos franceses. Somente após a aposentadoria de Miyazaki que Suzuki conseguiria costurar o acordo que permitiria a realização do filme; a extensão do quanto o Studio Ghibli efetivamente contribuiu além de emprestar seu nome jamais foi oficialmente divulgada, mas Suzuki e Takahata são creditados como produtores, junto a Maraval, Pascal Caucheteux e Grégoire Sorlat.
O filme conta a história de um homem que naufraga em uma ilha "deserta", que conta apenas com árvores, um bambuzal e alguns animais como gaivotas e siris. Ele decide usar os bambus para construir uma jangada, mas suas tentativas de escapar são repetidamente frustradas por uma tartaruga de casco vermelho. A Tartaruga Vermelha não tem diálogos, contando apenas com a trilha sonora incidental, sons ambientes e um eventual "ei!" gritado pelo homem; a animação é no estilo europeu, com os personagens não tendo traços característicos de anime. Curiosamente, o logotipo do Studio Ghibli, apresentado no início, não tem fundo azul claro como em sua versão tradicional, e sim fundo vermelho - segundo Suzuki, uma referência não somente ao nome do filme, mas também ao fato de que o Studio Ghibli não era o estúdio de produção principal, mas apenas um parceiro.
De Wit co-escreveria o roteiro com o francês Pascale Ferran. Ele manifestaria o desejo de fazer a animação da forma tradicional, com papel e acetato, passando os desenhos para o computador apenas para colori-los, mas mudaria de ideia após fazer alguns testes numa mesa de desenho digital Cintiq; a equipe acabaria fazendo os planos de fundo no papel, com carvão e esfuminho, e os personagens diretamente na mesa digital, com as cores e efeitos de luz e sombra sendo adicionados digitalmente - a jangada e as tartarugas seriam criadas diretamente em computação gráfica, com os animadores então desenhando sobre elas cena a cena, para que sua aparência não destoasse do restante do filme. Algumas cenas com atores seriam filmadas, mas, ao contrário do que foi divulgado, o filme não usou efeitos de rotoscopia, usando as cenas filmadas apenas como referência para a animação.
A Tartaruga Vermelha estrearia na França em 29 de junho de 2016, após ser exibido no Festival de Cinema de Cannes, em 18 de maio, e no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, em 13 de junho. No Japão, distribuído pela Toho, estrearia em 17 de setembro, e seria lançado no ano seguinte em DVD e Blu-ray pela Disney, sendo tratado como um lançamento oficial do Studio Ghibli. Nas Américas, os direitos de distribuição ficariam com a Sony, com a estreia nos Estados Unidos ocorrendo em 20 de janeiro de 2017, e, no Brasil, em 16 de fevereiro. Na Europa, seria distribuído pela StudioCanal (exceto na França, onde a distribuição ficaria com a própria Wild Bunch), estreando ao longo de 2017 no Reino Unido, Alemanha, Espanha, Itália e Holanda.
O filme seria um fracasso de público - com orçamento de 10 milhões de euros, sua bilheteria, somando todo o planeta, ficaria na casa de 6,6 milhões - mas um grande sucesso de crítica, sendo destacados a beleza dos cenários, a simplicidade da história e a trilha sonora, composta por Laurent Perez del Mar. A Tartaruga Vermelha seria indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação, mas perderia para Zootopia.
Aya e a Bruxa
Aya to Majo
2020
Até 2019, um dos principais parceiros do Studio Ghibli era o canal de televisão Nippon TV, que financiava parcialmente suas produções em troca dos direitos de exibi-las na TV aberta alguns meses após o fim de sua exibição nos cinemas, e, em 1993, financiou integralmente Eu Posso Ouvir o Oceano, única das produções do Studio Ghibli a não ser exibida nos cinemas, apenas na televisão. Naquele ano, porém, seria outro canal de televisão japonês, a NHK, quem procuraria Goro Miyazaki propondo financiar integralmente um filme de animação que, então, ela exibiria com exclusividade.
Na época, o departamento de animação do Studio Ghibli estava fechado, Hayao Miyazaki estava oficialmente aposentado, e Takahata havia acabado de falecer. Goro, mesmo assim, decidiria aceitar a proposta, mas não sem antes falar com seu pai e com Suzuki, obtendo a aprovação de ambos, que inclusive o incentivaram a fazer o filme. Muitas publicações diriam que seria Hayao Miyazaki quem planejaria o filme, mas, em entrevistas, Goro diria que, após obter a aprovação, "não consultaria novamente os mais velhos", sendo responsável por escolher qual seria a história adaptada, quem trabalharia na produção, e por decidir que o filme seria o primeiro do Studio Ghibli a ser produzido integralmente por computação gráfica em 3D - ainda segundo Goro, ele era o único do estúdio que sabia como criar uma animação desse tipo, então não adiantaria nada se consultar com seu pai ou com Suzuki.
Goro escolheria a história Earwig and the Witch, de Dianna Wynne Jones, autora de outra obra adaptada pelo Studio Ghibli, O Castelo Animado. Escrito enquanto Jones lutava contra um câncer de pulmão e publicado já após a morte da autora, em 2011, o livro conta com uma protagonista feminina jovem e ousada, algo que Goro achava que combinava com outras produções do Studio Ghibli. No original em inglês, essa protagonista se chama Earwig, nome de um inseto conhecido aqui no Brasil como tesourinha e no Japão como Ayatsuru, por isso, no original japonês e na versão traduzida para o português, ela se chama Aya.
Aya é uma menina órfã que, sem saber, é filha de uma bruxa, que, na juventude, fez parte de uma banda de grande sucesso chamada Earwig. Aya cresceria em um orfanato, onde se valeria de seu carisma para praticamente comandar o lugar, sempre aprontando alguma para não ser adotada quando algum casal aparecia. Quando Aya tinha 10 anos, porém, um estranho casal, formado pela bruxa Bella Yaga e pelo misterioso Mandrake, vai ao orfanato e escolhe especificamente a menina, levando-a para sua casa mágica. Bella Yaga diz a Aya que não está interessada em uma filha, e sim em uma ajudante, pois já não está dando conta de fazer suas poções sozinha, e a menina diz que aceita, desde que a bruxa a ensine a também ser uma bruxa. Bella Yaga concorda, mas já na intenção de enganar Aya, colocando a menina para trabalhar como uma escrava, sempre arrumando uma desculpa para não ensiná-la. O temperamento da menina jamais aceitaria essa situação, porém, e, junto com o gato Thomas, que pode falar, Aya se põe a bolar um plano para se livrar do jugo da bruxa e aprender ela também como fazer suas poções.
Como a mãe de Aya fazia parte de uma banda, a música é um elemento importante do filme. A trilha sonora seria composta por Satoshi Takebe, e as duas músicas da banda Earwig, Don't Disturb Me, maior sucesso da banda e tema de Aya, e Atashi no Sekai Seifuku, que toca no enceramento do filme, seriam executadas por uma banda formada especialmente para gravá-las, com Sherina Munaf, uma das cantoras mais populares da Indonésia, nos vocais; Hiroki Kamemoto, da banda Glim Spanky, na guitarra; Kiyokazu Takano, da banda Mrs. Green Apple, no baixo; a cantora japonesa Kavka Shihido na bateria; e o próprio Takebe nos teclados - Munaf também dubla a mãe de Aya, nas poucas cenas em que ela fala alguma coisa, na versão original em japonês. Além dessa duas canções, o álbum da trilha sonora do filme, lançado em janeiro de 2021, contaria com duas faixas compostas especialmente pela Glim Spanky, de quem Goro Miyazaki era fã. Um álbum creditado à Earwig, chamado Earwig and the Witch Songbook: 13 Lime Avenue (o endereço da casa de Bella Yaga), seria lançado em janeiro de 2022, mas para ele a formação da banda contaria com Kamemoto, Shishido, Takebe, a vocalista da Glim Spanky, Remi Matsuo, e a baixista da banda Aooo, Hikaru Yamamoto.
Com roteiro de Keiko Niwa e Emi Gunji, Aya e a Bruxa teve uma exibição no Festival Lumière, na cidade francesa de Lyon, em 18 de outubro de 2020, e foi exibido pela NHK em 30 de dezembro do mesmo ano - o filme também teria uma exibição marcada no Festival de Cannes de 2020, cancelado devido à pandemia. A audiência seria a mais baixa de todas as produções do Studio Ghibli quando passaram na televisão, o que Suzuki atribuiria ao dia e horário escolhidos pelo canal - uma quarta-feira às 19h30, na antevéspera de ano novo. Com autorização da NHK, o filme também seria exibido nos cinemas japoneses, com a Toho, que o distribuiria, marcando sua estreia para abril de 2021; mais uma vez devido à pandemia, essa data acabaria adiada, e Aya e a Bruxa estrearia nos cinemas japoneses em 27 de agosto de 2021. A versão exibida nos cinemas era mais longa que a originalmente exibida pela NHK, contando com cenas extras descartadas durante a edição; essa versão também acabaria posteriormente exibida pela NHK, em 31 de dezembro de 2021, uma sexta-feira, às 15h, com audiência ainda mais baixa que a exibição anterior. Em 15 de março de 2024, também uma sexta-feira, não sei através de qual acordo, o filme seria exibido pela Nippon TV, às 21h, novamente com audiência baixíssima.
Nos cinemas, Aya e a Bruxa nâo faria melhor, se tornando o filme de menor bilheteria da história do Studio Ghibli, rendendo apenas 300 milhões de ienes. A crítica seria extremamente desfavorável, reclamando da falta de inspiração da história, de que a protagonista, arrogante e metida, não gerava empatia no público, e considerando a animação em 3D extremamente pobre, não só quando comparada à de gigantes norte-americanas como Disney e Pixar, mas também em relação a outros estúdios japoneses que lançavam filmes no mesmo formato. Críticos de fora do Japão seriam ainda mais virulentos, dizendo que era uma heresia o Studio Ghibli trocar os planos de fundo extremamente detalhados de suas produções tradicionais por cenários pobres e sem vida, e seus personagens repletos de expressões faciais por bonecas nas quais qualquer emoção humana estava ausente. Um crítico chegaria a comparar Aya e a Bruxa à restauração do quadro Ecce Homo, de García Martínez, pela beata Cecilia Giménez, que o desfigurou completamente.
Aya e a Bruxa seria o primeiro filme do Studio Ghibli desde a versão em VHS de Sussuros do Coração a não ser lançado em home video no Japão pela Walt Disney Japan, com o lançamento ficando a cargo da Pony Canyon; para aumentar a lista de insucessos, é até hoje o lançamento do Studio Ghibli de menor vendagem. A Disney também não se interessaria em distribuir o filme nos Estados Unidos, passando a tarefa para a GKids, que não somente o lançaria em home video, mas cuidaria de sua dublagem - na qual o nome mais famoso é o de Richard E. Grant, que dubla Mandrake; as canções do filme e a dublagem da mãe de Aya ficariam a cargo da cantora Kacey Musgraves - e ficaria responsável por sua distribuição nos cinemas. Na Europa, graças a um acordo firmado antes da produção de A Tartaruga Vermelha, os direitos de lançamento em home video e distribuição nos cinemas ficariam com a Wild Bunch, que acabaria distribuindo-o nos cinemas apenas na França; o filme acabaria também sendo exibido nos cinemas do Reino Unido, distribuído pelo Elysian Film Group. Segundo os números oficiais, o filme renderia 173 mil dólares nos cinemas dos Estados Unidos e quase 670 mil no restante do planeta, se tornando, também, o filme do Studio Ghibli de menor bilheteria internacional.
O Menino e a Garça
Kimitachi wa Do Ikiru ka
2023
Eu gosto de imaginar que, quando viu os números de Aya e a Bruxa, Hayao Miyazaki pensou "não posso deixar esse ser o último filme do Studio Ghibli", e decidiu abrir mão de sua aposentadoria para fazer mais um. A verdade, porém, é que ele decidiu reconsiderar sua aposentaria para dirigir mais um filme em 2016, enquanto trabalhava no curta Kemushi no Boro ("Boro, a lagarta"), lançado em 2018 e exibido exclusivamente no Museu Ghibli e no Ghibli Park. Miyazaki tomaria essa decisão justamente enquanto estava sendo produzido um documentário sobre sua aposentadoria, que acabaria também abordando-a, e ganhando o título de Never-Ending Man: Hayao Miyazaki (algo como "o homem interminável").
De início, Miyazaki decidiria adaptar o livro infantil The Book of Lost Things, do autor irlandês John Connolly, e, em julho de 2016, faria seu primeiro storyboard; mais tarde, ele decidiria incluir também elementos de Yurei-to ("a torre fantasma"), do japonês Edogawa Ranpo, um dos livros preferidos de sua infância. Suzuki anunciaria oficialmente o projeto em fevereiro de 2017, e, em maio, o estúdio começaria a procurar profissionais para trabalhar na produção, já que havia dispensado todo mundo quando Miyazaki e Takahata anunciaram suas aposentadorias. Ao saber que Miyazaki dirigiria o filme, vários profissionais que trabalharam com ele ao longo dos anos se candidataram para trabalhar no projeto, o que fez com que o Studio Ghibli conseguisse uma equipe em pouco tempo, e a pré-produção começasse antes do fim do mês. Em outubro, o título do filme, Kimitachi wa Do Ikiru ka (algo como "como você vive?"), seria revelado; esse título seria o mesmo de um romance publicado em 1937 escrito por Genzaburo Yoshino, mas o filme não seria uma adaptação dele, não trazendo nenhum de seus elementos.
Em entrevistas, Miyazaki diria que estava fazendo o filme para seu neto, como se dissesse "vovô está partindo para outro mundo, mas deixando esse filme". Suzuki não estabeleceria uma data de lançamento para o filme, mas Miyazaki desejava que ele fosse lançado durante as Olimpíadas de 2020, que ocorreriam em Tóquio. Em agosto de 2018, Suzuki diria achar pouco provável que isso pudesse ocorrer, e que o filme provavelmente só seria lançado em 2021 ou 2022, e, em uma entrevista à NHK, em dezembro de 2019, ele diria que o filme estava cerca de 15% pronto, e que Miyazaki, na juventude, conseguia fazer cerca de 10 minutos de animação por mês, mas agora, devido à idade avançada, só estava conseguindo fazer 1 minuto por mês. Na mesma entrevista, ele diria achar improvável que Miyazaki algum dia fosse se aposenrar, pois não aguentaria o ócio, e que, mesmo com o próprio Miyazaki dizendo que esse seria seu último filme, Suzuki achava que, enquanto ele vivesse, ainda iria querer fazer mais um e mais outro.
Para agilizar o projeto, Miyazaki não supervisionaria pessoalmente todas as etapas da produção, focando no roteiro e nos storyboards, com o diretor de animação Takeshi Honda supervisionando o processo de animação. Em março de 2020, Suzuki declararia que o projeto estava consumindo mais dinheiro que o inicialmente previsto, e que, para cobrir seus custos, o Studio Ghibli negociaria a disponibilização de todo o seu catálogo na Netflix. Miyazaki, que não tinha um smartphone e não sabia o que era streaming, de início foi contra, mas acabou convencido por Suzuki, que argumentou que o filme tinha potencial para ser o mais caro da história do cinema japonês, e que somente as formas de patrocínio usuais não conseguiriam financiá-lo.
Em maio de 2020, em uma entrevista à Entertainment Weekly, Suzuki diria que 60 animadores estavam trabalhando no projeto, e que, após três anos, somente 36 minutos estavam prontos, já que todo o filme estava sendo feito à mão, da forma tradicional, mas com mais frames do que os demais projetos do Studio Ghibli, o que significava mais desenhos. Em dezembro de 2020, ele declararia que, mesmo com as restrições da pandemia, o projeto não havia sido interrompido, e que o roteiro e os storyboards já estavam totalmente prontos, o que levava a uma estimativa de que o filme teria 125 minutos de duração. Suzuki estimava que seriam precisos mais três anos para alcançar essa meta, mas que a equipe estava trabalhando sem se preocupar com prazos, da mesma forma que em O Conto da Princesa Kaguya, que levou oito anos para ficar pronto.
No fim, a produção de O Menino e a Garça, desde o início da pré-produção até o final da pós-produção, levaria sete anos e meio, cinco deles dedicados à animação em si. Miyazaki, que escreveria sozinho o roteiro, acabaria usando apenas alguns elementos de The Book of Lost Things e de Yurei-to, criando uma história original, que não era adaptação de nenhum dos dois. Muitos diriam que o filme seria autobiográfico, com o protagonista, Mahito Maki, sendo um espelho da infância de Miyazaki: seu pai trabalhava em uma empresa que fabricava peças para aviões, sua mãe faleceu em um incêndio enquanto estava internada no hospital, e ele e o pai se mudaram para o interior durante a guerra. Suzuki confirmaria essa versão, e diria que ficou surpreso quando Miyazaki lhe apresentou a proposta, já que ele sempre evitava temas pessoais. Ele, Suzuki, era representado no filme pela garça, e Takahata pelo Tio-Avô; na primeira versão do roteiro, o Tio-Avô aparecia mais e tinha um papel de maior destaque, mas, após a morte de Takahata, Miyazaki decidiria dar mais foco ao relacionamento de Mahito com a garça.
No filme, Mahito tem cerca de dez anos, e, após perder a mãe, vai morar com o pai no interior, na casa de sua tia (irmã de sua mãe), que possui várias criadas, todas idosas. Mahito não se adapta à vida no local, não aceita que o pai agora está em um relacionamento com a tia, que inclusive está grávida, e acaba se tornando amigo de uma misteriosa garça falante, que lhe convence de que sua mãe está viva e morando no interior de uma misteriosa torre que teria sido construída pelo tio-avô de Mahito. Um dia, a tia de Mahito desaparece, e ele e uma das criadas acabam seguindo a garça até a torre, indo parar num mundo fantástico habitado por todo tipo de criaturas estranhas, supostamente também criado pelo Tio-Avô.
A principal mensagem do filme seria a de que cada um consegue criar seu próprio mundo, mas sua história estaria aberta a múltiplas interpretações, com algumas análises considerando que Miyazaki quis dizer que as crianças do pós-guerra tinham a chance de prolongar o caos no qual o Japão estava mergulhado ou criar um futuro melhor; outras dizendo que ele advogava a favor da relisiência em face da perda e do luto; e alguns até considerando que a verdadeira mensagem era a importância de cultivar amizades e alianças de confiança. O filme possui um final aberto, que permite que cada pessoa tire suas próprias conclusões quanto ao rumo que a vida de Mahito tomou, mas deixando claro que suas experiências abriram caminho para que ele seguisse sem nenhum peso na consciência ou impedimento moral.
Distribuído pela Toho, O Menino e a Garça estrearia nos cinemas japoneses em 14 de julho de 2023, sendo o primeiro filme do Studio Ghibli a ser lançado simultaneamente no formato tradicional, em IMAX, Dolby Atmos e DTS:X. Por opção de Suzuki, o filme não teria nenhuma campanha de marketing, incluindo trailers, fotos da produção e documentários para a TV, à exceção de um único pôster, distribuído para os cinemas, e que mostrava apenas a garça; segundo Suzuki, ele estaria preocupado que questões-chave do enredo fossem acidentalmente reveladas pelo material promocional, e acreditava que ir ao cinema sem saber nada contribuiria para a experiência dos espectadores. Miyazaki ficaria preocupado que a estratégia prejudicasse o desempenho do filme, e, após uma sessão de testes em fevereiro de 2023, na qual os espectadores tiveram de assinar um documento se comprometendo a não revelar nada, pediria desculpas, dizendo "talvez vocês não tenham entendido o filme, eu mesmo não o entendi".
A estratégia de Suzuki, porém, mesmo se não puder ser considerada responsável pela bilheteria do filme, com certeza não a prejudicou: somente no primeiro fim de semana, O Menino e a Garça renderia 1,8 bilhão de ienes, se tornando a maior bilheteria de estreia para um filme do Studio Ghibli. Somente no primeiro fim de semana, ele arrecadaria 2,1 bilhões, também um recorde, e, em setembro, entraria para a lista dos 20 animes mais assistidos de todos os tempos. A bilheteria aumentaria entre cem mil e trezentos mil ienes por semana, até que, em março de 2024, quando saiu de cartaz, o filme havia arrecadado 8,98 bilhões de ienes. Fontes da indústria do cinema se diriam perplexas com o sucesso rápido diante da ausência de publicidade, e alguns publicitários especializados em campanhas de filmes chegariam a temer por seus empregos, mas, no fim, o sucesso seria creditado ao bom nome do Studio Ghibli, à base de fãs sólida de Miyazaki, e à divulgação boca a boca nas redes sociais, sendo considerado difícil de ser imitado por outras produções.
O Menino e a Garça seria pré-vendido para exibição internacional sem deta definida de estreia, o que também era raro. Os direitos de exibição nos Estados Unidos e Canadá ficariam mais uma vez com a GKids, que inscreveria o filme no Festival Internacional de Cinema de Toronto, no qual ele foi o primeiro filme de animação a abrir o festival em sua história, e o filme de maior público na abertura do festival "em décadas". O filme também seria exibido no Festival Internacional de Cinema de Vancouver e no Festival de Cinema de Nova Iorque antes de sua estreia oficial, em 8 de dezembro de 2023. Suzuki daria permissão para que a GKids fizesse uma campanha de marketing para o filme, que incluiu um trailer oficial, um programa exibido na Netflix e uma sessão de gala apresentada por Guillermo del Toro. A dublagem em inglês contaria com Luca Padovan como Mahito, Robert Pattinson como a garça, Karen Fukuhara como Lady Himi, Gemma Chan como a tia de Mahito, Christian Bale como o pai de Mahito, Mark Hamill como o Tio-Avô, Florence Pugh como Kiriko, e Willem Dafoe, Dave Bautista, Mamoudou Athie, Tony Revolori e Dan Stevens como criaturas fantásticas. O Menino e a Garça seria o primeiro filme do Studio Ghibli a alcançar o primeiro lugar nas bilheterias dos Estados Unidos, onde renderia 292,2 milhões de dólares, mais do que qualquer outro anime.
Na Europa, os direitos de distribuição ficariam com a Goodfellas, novo nome da Wild Bunch, que o lançaria nos cinemas do Reino Unido, França, Itália, Alemanha e Espanha, além de exibi-lo no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián e no Festival de Cinema de Sitges, ambos na Espanha. No Brasil, O Menino e a Garça seria distribuído pela Sato Company, e estrearia nos cinemas em 22 de fevereiro de 2024. Na China, onde estrearia em 3 de abril de 2024, o filme renderia 171,5 milhões de yuans somente no dia da estreia, estabelecendo um recorde de bilheteria para um filme estrangeiro, e renderia no total 670 milhões, recorde para um filme de animação.
A crítica inicialmente ficaria dividida, mas acabaria sendo extremamente favorável, considerando o filme mais uma obra-prima de Miyazaki; muitos críticos o considerariam "maduro" e "complexo", e diriam se preocupar que quem não está acostumado ao ritmo dos filmes do Studio Ghibli não conseguisse aproveitá-lo em sua totalidade. A crítica internacional também aclamaria o filme, considerando-o o ápice da carreira de Miyazaki, e dizendo que é possível assistir o filme múltiplas vezes, a cada uma descobrindo uma coisa nova. O Menino e a Garça renderia a Miyazaki o sexto Prêmio Ofuji Noburo de sua carreira, e ganharia o prêmio de Melhor Filme de Animação na Academia Japonesa de Cinema, no Globo de Ouro (onde também seria indicado a Melhor Trilha Sonora, trilha essa a cargo de Joe Hisaishi) e no Oscar, se tornando o segundo filme do Studio Ghibli oscarizado, após A Viagem de Chihiro.
E aqui terminamos essa série sobre o Stuudio Ghibli, que, após a conclusão de O Menino e a Garça, mais uma vez dispensou seus profissionais e fechou seu departamento de animação. Com Miyazaki e Suzuki em idade avançada, e considerando que um próximo filme pode ter uma produção igualmente longa, me parece improvável que teremos mais. Mas, como diria Miyazaki, o que temos é imortal, e permanecerá nesse mundo durante muito tempo após termos partido.
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La Tortue Rouge
2016
No final de 2013, tanto Hayao Miyazaki quanto Isao Takahata, dois dos fundadores e principais diretores do Studio Ghibli, anunciariam suas aposentadorias. Diante disso, o presidente do Studio Ghibli, Koji Hoshino, tomaria uma decisão inusitada: os dois projetos do estúdio já em andamento, o filme As Memórias de Marnie e a série de TV Ronja: A Filha do Ladrão seriam concluídos, mas, depois disso, todo o departamento de produção do Studio Ghibli seria desmantelado, com todos os profissionais sendo liberados para encontrar novos empregos em outros estúdios, e ele e o produtor Toshio Suzuki se dedicariam apenas à manutenção do Ghibli Museum. Hoshino deixaria claro, porém, que, caso algum novo projeto de interesse fosse apresentado, o departamento de produção poderia ser reaberto, com os profissionais, antigos ou novos, sendo recontratados apenas para aquela produção.
Assim começaria um hiato de seis anos, durante o qual muitos achariam que o Studio Ghibli havia fechado as portas de vez, e só terminaria quando Hayao Miyazaki decidisse largar sua aposentadoria para trabalhar em O Menino e a Garça, que acabou adiado para que ele pudesse ajudar seu filho Goro em Aya e a Bruxa. Mas isso nós veremos mais a seguir ainda hoje; por enquanto, o que interessa é que, durante esse hiato, o Studio Ghibli trabalharia em sua primeira co-produção internacional: o filme francês A Tartaruga Vermelha.
Co-produzido pela Wild Bunch, Prima Linea Productions, Why Not Productions, Arte France Cinéma, CN4 Productions, Belvision - todas francesas - e Studio Ghibli, financiado pela Nippon Television Network, Dentsu, Hakudodo DY Media Partners, Walt Disney Japan, Mitsubishi Corporation e Toho - todas japonesas - A Tartaruga Vermelha surgiria como projeto em 2008, quando um dos co-fundadores da Wild Bunch, Vincent Maraval, visitou o Studio Ghibli para conhecer Hayao Miyazaki pessoalmente, levando a pedido do japonês uma cópia do curta animado Father and Daughter, escrito e dirigido pelo holandês Michaël Dudok de Wit, vencedor do Oscar de Melhor Curta Animado de 2001. Miyazaki perguntaria se Maraval tinha como entrar em contato com de Wit, e diria que, se algum dia o Studio Ghibli fosse fazer um filme dirigido por um estrangeiro, seria com de Wit. A Wild Bunch entraria em contato com de Wit em Londres, convidando-o para assinar um contrato para a direção de um filme. De início, de Wit não se mostraria interessado, mas mudaria de ideia ao descobrir que Miyazaki tinha interesse em trabalhar com ele.
Questões de ordem prática, porém, fariam com que o projeto levasse muitos anos para sair do papel, e com que de Wit e Miyazaki jamais trabalhassem juntos; a principal delas seria que, tendo de Wit um contrato com a Wild Bunch, Maraval queria que o filme fosse uma co-produção entre seu estúdio e o Studio Ghibli, enquanto Miyazaki preferia que de Wit escrevesse e dirigisse um filme para o Studio Ghibli sem o envolvimento dos franceses. Somente após a aposentadoria de Miyazaki que Suzuki conseguiria costurar o acordo que permitiria a realização do filme; a extensão do quanto o Studio Ghibli efetivamente contribuiu além de emprestar seu nome jamais foi oficialmente divulgada, mas Suzuki e Takahata são creditados como produtores, junto a Maraval, Pascal Caucheteux e Grégoire Sorlat.
O filme conta a história de um homem que naufraga em uma ilha "deserta", que conta apenas com árvores, um bambuzal e alguns animais como gaivotas e siris. Ele decide usar os bambus para construir uma jangada, mas suas tentativas de escapar são repetidamente frustradas por uma tartaruga de casco vermelho. A Tartaruga Vermelha não tem diálogos, contando apenas com a trilha sonora incidental, sons ambientes e um eventual "ei!" gritado pelo homem; a animação é no estilo europeu, com os personagens não tendo traços característicos de anime. Curiosamente, o logotipo do Studio Ghibli, apresentado no início, não tem fundo azul claro como em sua versão tradicional, e sim fundo vermelho - segundo Suzuki, uma referência não somente ao nome do filme, mas também ao fato de que o Studio Ghibli não era o estúdio de produção principal, mas apenas um parceiro.
De Wit co-escreveria o roteiro com o francês Pascale Ferran. Ele manifestaria o desejo de fazer a animação da forma tradicional, com papel e acetato, passando os desenhos para o computador apenas para colori-los, mas mudaria de ideia após fazer alguns testes numa mesa de desenho digital Cintiq; a equipe acabaria fazendo os planos de fundo no papel, com carvão e esfuminho, e os personagens diretamente na mesa digital, com as cores e efeitos de luz e sombra sendo adicionados digitalmente - a jangada e as tartarugas seriam criadas diretamente em computação gráfica, com os animadores então desenhando sobre elas cena a cena, para que sua aparência não destoasse do restante do filme. Algumas cenas com atores seriam filmadas, mas, ao contrário do que foi divulgado, o filme não usou efeitos de rotoscopia, usando as cenas filmadas apenas como referência para a animação.
A Tartaruga Vermelha estrearia na França em 29 de junho de 2016, após ser exibido no Festival de Cinema de Cannes, em 18 de maio, e no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, em 13 de junho. No Japão, distribuído pela Toho, estrearia em 17 de setembro, e seria lançado no ano seguinte em DVD e Blu-ray pela Disney, sendo tratado como um lançamento oficial do Studio Ghibli. Nas Américas, os direitos de distribuição ficariam com a Sony, com a estreia nos Estados Unidos ocorrendo em 20 de janeiro de 2017, e, no Brasil, em 16 de fevereiro. Na Europa, seria distribuído pela StudioCanal (exceto na França, onde a distribuição ficaria com a própria Wild Bunch), estreando ao longo de 2017 no Reino Unido, Alemanha, Espanha, Itália e Holanda.
O filme seria um fracasso de público - com orçamento de 10 milhões de euros, sua bilheteria, somando todo o planeta, ficaria na casa de 6,6 milhões - mas um grande sucesso de crítica, sendo destacados a beleza dos cenários, a simplicidade da história e a trilha sonora, composta por Laurent Perez del Mar. A Tartaruga Vermelha seria indicado ao Oscar de Melhor Filme de Animação, mas perderia para Zootopia.
Aya to Majo
2020
Até 2019, um dos principais parceiros do Studio Ghibli era o canal de televisão Nippon TV, que financiava parcialmente suas produções em troca dos direitos de exibi-las na TV aberta alguns meses após o fim de sua exibição nos cinemas, e, em 1993, financiou integralmente Eu Posso Ouvir o Oceano, única das produções do Studio Ghibli a não ser exibida nos cinemas, apenas na televisão. Naquele ano, porém, seria outro canal de televisão japonês, a NHK, quem procuraria Goro Miyazaki propondo financiar integralmente um filme de animação que, então, ela exibiria com exclusividade.
Na época, o departamento de animação do Studio Ghibli estava fechado, Hayao Miyazaki estava oficialmente aposentado, e Takahata havia acabado de falecer. Goro, mesmo assim, decidiria aceitar a proposta, mas não sem antes falar com seu pai e com Suzuki, obtendo a aprovação de ambos, que inclusive o incentivaram a fazer o filme. Muitas publicações diriam que seria Hayao Miyazaki quem planejaria o filme, mas, em entrevistas, Goro diria que, após obter a aprovação, "não consultaria novamente os mais velhos", sendo responsável por escolher qual seria a história adaptada, quem trabalharia na produção, e por decidir que o filme seria o primeiro do Studio Ghibli a ser produzido integralmente por computação gráfica em 3D - ainda segundo Goro, ele era o único do estúdio que sabia como criar uma animação desse tipo, então não adiantaria nada se consultar com seu pai ou com Suzuki.
Goro escolheria a história Earwig and the Witch, de Dianna Wynne Jones, autora de outra obra adaptada pelo Studio Ghibli, O Castelo Animado. Escrito enquanto Jones lutava contra um câncer de pulmão e publicado já após a morte da autora, em 2011, o livro conta com uma protagonista feminina jovem e ousada, algo que Goro achava que combinava com outras produções do Studio Ghibli. No original em inglês, essa protagonista se chama Earwig, nome de um inseto conhecido aqui no Brasil como tesourinha e no Japão como Ayatsuru, por isso, no original japonês e na versão traduzida para o português, ela se chama Aya.
Aya é uma menina órfã que, sem saber, é filha de uma bruxa, que, na juventude, fez parte de uma banda de grande sucesso chamada Earwig. Aya cresceria em um orfanato, onde se valeria de seu carisma para praticamente comandar o lugar, sempre aprontando alguma para não ser adotada quando algum casal aparecia. Quando Aya tinha 10 anos, porém, um estranho casal, formado pela bruxa Bella Yaga e pelo misterioso Mandrake, vai ao orfanato e escolhe especificamente a menina, levando-a para sua casa mágica. Bella Yaga diz a Aya que não está interessada em uma filha, e sim em uma ajudante, pois já não está dando conta de fazer suas poções sozinha, e a menina diz que aceita, desde que a bruxa a ensine a também ser uma bruxa. Bella Yaga concorda, mas já na intenção de enganar Aya, colocando a menina para trabalhar como uma escrava, sempre arrumando uma desculpa para não ensiná-la. O temperamento da menina jamais aceitaria essa situação, porém, e, junto com o gato Thomas, que pode falar, Aya se põe a bolar um plano para se livrar do jugo da bruxa e aprender ela também como fazer suas poções.
Como a mãe de Aya fazia parte de uma banda, a música é um elemento importante do filme. A trilha sonora seria composta por Satoshi Takebe, e as duas músicas da banda Earwig, Don't Disturb Me, maior sucesso da banda e tema de Aya, e Atashi no Sekai Seifuku, que toca no enceramento do filme, seriam executadas por uma banda formada especialmente para gravá-las, com Sherina Munaf, uma das cantoras mais populares da Indonésia, nos vocais; Hiroki Kamemoto, da banda Glim Spanky, na guitarra; Kiyokazu Takano, da banda Mrs. Green Apple, no baixo; a cantora japonesa Kavka Shihido na bateria; e o próprio Takebe nos teclados - Munaf também dubla a mãe de Aya, nas poucas cenas em que ela fala alguma coisa, na versão original em japonês. Além dessa duas canções, o álbum da trilha sonora do filme, lançado em janeiro de 2021, contaria com duas faixas compostas especialmente pela Glim Spanky, de quem Goro Miyazaki era fã. Um álbum creditado à Earwig, chamado Earwig and the Witch Songbook: 13 Lime Avenue (o endereço da casa de Bella Yaga), seria lançado em janeiro de 2022, mas para ele a formação da banda contaria com Kamemoto, Shishido, Takebe, a vocalista da Glim Spanky, Remi Matsuo, e a baixista da banda Aooo, Hikaru Yamamoto.
Com roteiro de Keiko Niwa e Emi Gunji, Aya e a Bruxa teve uma exibição no Festival Lumière, na cidade francesa de Lyon, em 18 de outubro de 2020, e foi exibido pela NHK em 30 de dezembro do mesmo ano - o filme também teria uma exibição marcada no Festival de Cannes de 2020, cancelado devido à pandemia. A audiência seria a mais baixa de todas as produções do Studio Ghibli quando passaram na televisão, o que Suzuki atribuiria ao dia e horário escolhidos pelo canal - uma quarta-feira às 19h30, na antevéspera de ano novo. Com autorização da NHK, o filme também seria exibido nos cinemas japoneses, com a Toho, que o distribuiria, marcando sua estreia para abril de 2021; mais uma vez devido à pandemia, essa data acabaria adiada, e Aya e a Bruxa estrearia nos cinemas japoneses em 27 de agosto de 2021. A versão exibida nos cinemas era mais longa que a originalmente exibida pela NHK, contando com cenas extras descartadas durante a edição; essa versão também acabaria posteriormente exibida pela NHK, em 31 de dezembro de 2021, uma sexta-feira, às 15h, com audiência ainda mais baixa que a exibição anterior. Em 15 de março de 2024, também uma sexta-feira, não sei através de qual acordo, o filme seria exibido pela Nippon TV, às 21h, novamente com audiência baixíssima.
Nos cinemas, Aya e a Bruxa nâo faria melhor, se tornando o filme de menor bilheteria da história do Studio Ghibli, rendendo apenas 300 milhões de ienes. A crítica seria extremamente desfavorável, reclamando da falta de inspiração da história, de que a protagonista, arrogante e metida, não gerava empatia no público, e considerando a animação em 3D extremamente pobre, não só quando comparada à de gigantes norte-americanas como Disney e Pixar, mas também em relação a outros estúdios japoneses que lançavam filmes no mesmo formato. Críticos de fora do Japão seriam ainda mais virulentos, dizendo que era uma heresia o Studio Ghibli trocar os planos de fundo extremamente detalhados de suas produções tradicionais por cenários pobres e sem vida, e seus personagens repletos de expressões faciais por bonecas nas quais qualquer emoção humana estava ausente. Um crítico chegaria a comparar Aya e a Bruxa à restauração do quadro Ecce Homo, de García Martínez, pela beata Cecilia Giménez, que o desfigurou completamente.
Aya e a Bruxa seria o primeiro filme do Studio Ghibli desde a versão em VHS de Sussuros do Coração a não ser lançado em home video no Japão pela Walt Disney Japan, com o lançamento ficando a cargo da Pony Canyon; para aumentar a lista de insucessos, é até hoje o lançamento do Studio Ghibli de menor vendagem. A Disney também não se interessaria em distribuir o filme nos Estados Unidos, passando a tarefa para a GKids, que não somente o lançaria em home video, mas cuidaria de sua dublagem - na qual o nome mais famoso é o de Richard E. Grant, que dubla Mandrake; as canções do filme e a dublagem da mãe de Aya ficariam a cargo da cantora Kacey Musgraves - e ficaria responsável por sua distribuição nos cinemas. Na Europa, graças a um acordo firmado antes da produção de A Tartaruga Vermelha, os direitos de lançamento em home video e distribuição nos cinemas ficariam com a Wild Bunch, que acabaria distribuindo-o nos cinemas apenas na França; o filme acabaria também sendo exibido nos cinemas do Reino Unido, distribuído pelo Elysian Film Group. Segundo os números oficiais, o filme renderia 173 mil dólares nos cinemas dos Estados Unidos e quase 670 mil no restante do planeta, se tornando, também, o filme do Studio Ghibli de menor bilheteria internacional.
Kimitachi wa Do Ikiru ka
2023
Eu gosto de imaginar que, quando viu os números de Aya e a Bruxa, Hayao Miyazaki pensou "não posso deixar esse ser o último filme do Studio Ghibli", e decidiu abrir mão de sua aposentadoria para fazer mais um. A verdade, porém, é que ele decidiu reconsiderar sua aposentaria para dirigir mais um filme em 2016, enquanto trabalhava no curta Kemushi no Boro ("Boro, a lagarta"), lançado em 2018 e exibido exclusivamente no Museu Ghibli e no Ghibli Park. Miyazaki tomaria essa decisão justamente enquanto estava sendo produzido um documentário sobre sua aposentadoria, que acabaria também abordando-a, e ganhando o título de Never-Ending Man: Hayao Miyazaki (algo como "o homem interminável").
De início, Miyazaki decidiria adaptar o livro infantil The Book of Lost Things, do autor irlandês John Connolly, e, em julho de 2016, faria seu primeiro storyboard; mais tarde, ele decidiria incluir também elementos de Yurei-to ("a torre fantasma"), do japonês Edogawa Ranpo, um dos livros preferidos de sua infância. Suzuki anunciaria oficialmente o projeto em fevereiro de 2017, e, em maio, o estúdio começaria a procurar profissionais para trabalhar na produção, já que havia dispensado todo mundo quando Miyazaki e Takahata anunciaram suas aposentadorias. Ao saber que Miyazaki dirigiria o filme, vários profissionais que trabalharam com ele ao longo dos anos se candidataram para trabalhar no projeto, o que fez com que o Studio Ghibli conseguisse uma equipe em pouco tempo, e a pré-produção começasse antes do fim do mês. Em outubro, o título do filme, Kimitachi wa Do Ikiru ka (algo como "como você vive?"), seria revelado; esse título seria o mesmo de um romance publicado em 1937 escrito por Genzaburo Yoshino, mas o filme não seria uma adaptação dele, não trazendo nenhum de seus elementos.
Em entrevistas, Miyazaki diria que estava fazendo o filme para seu neto, como se dissesse "vovô está partindo para outro mundo, mas deixando esse filme". Suzuki não estabeleceria uma data de lançamento para o filme, mas Miyazaki desejava que ele fosse lançado durante as Olimpíadas de 2020, que ocorreriam em Tóquio. Em agosto de 2018, Suzuki diria achar pouco provável que isso pudesse ocorrer, e que o filme provavelmente só seria lançado em 2021 ou 2022, e, em uma entrevista à NHK, em dezembro de 2019, ele diria que o filme estava cerca de 15% pronto, e que Miyazaki, na juventude, conseguia fazer cerca de 10 minutos de animação por mês, mas agora, devido à idade avançada, só estava conseguindo fazer 1 minuto por mês. Na mesma entrevista, ele diria achar improvável que Miyazaki algum dia fosse se aposenrar, pois não aguentaria o ócio, e que, mesmo com o próprio Miyazaki dizendo que esse seria seu último filme, Suzuki achava que, enquanto ele vivesse, ainda iria querer fazer mais um e mais outro.
Para agilizar o projeto, Miyazaki não supervisionaria pessoalmente todas as etapas da produção, focando no roteiro e nos storyboards, com o diretor de animação Takeshi Honda supervisionando o processo de animação. Em março de 2020, Suzuki declararia que o projeto estava consumindo mais dinheiro que o inicialmente previsto, e que, para cobrir seus custos, o Studio Ghibli negociaria a disponibilização de todo o seu catálogo na Netflix. Miyazaki, que não tinha um smartphone e não sabia o que era streaming, de início foi contra, mas acabou convencido por Suzuki, que argumentou que o filme tinha potencial para ser o mais caro da história do cinema japonês, e que somente as formas de patrocínio usuais não conseguiriam financiá-lo.
Em maio de 2020, em uma entrevista à Entertainment Weekly, Suzuki diria que 60 animadores estavam trabalhando no projeto, e que, após três anos, somente 36 minutos estavam prontos, já que todo o filme estava sendo feito à mão, da forma tradicional, mas com mais frames do que os demais projetos do Studio Ghibli, o que significava mais desenhos. Em dezembro de 2020, ele declararia que, mesmo com as restrições da pandemia, o projeto não havia sido interrompido, e que o roteiro e os storyboards já estavam totalmente prontos, o que levava a uma estimativa de que o filme teria 125 minutos de duração. Suzuki estimava que seriam precisos mais três anos para alcançar essa meta, mas que a equipe estava trabalhando sem se preocupar com prazos, da mesma forma que em O Conto da Princesa Kaguya, que levou oito anos para ficar pronto.
No fim, a produção de O Menino e a Garça, desde o início da pré-produção até o final da pós-produção, levaria sete anos e meio, cinco deles dedicados à animação em si. Miyazaki, que escreveria sozinho o roteiro, acabaria usando apenas alguns elementos de The Book of Lost Things e de Yurei-to, criando uma história original, que não era adaptação de nenhum dos dois. Muitos diriam que o filme seria autobiográfico, com o protagonista, Mahito Maki, sendo um espelho da infância de Miyazaki: seu pai trabalhava em uma empresa que fabricava peças para aviões, sua mãe faleceu em um incêndio enquanto estava internada no hospital, e ele e o pai se mudaram para o interior durante a guerra. Suzuki confirmaria essa versão, e diria que ficou surpreso quando Miyazaki lhe apresentou a proposta, já que ele sempre evitava temas pessoais. Ele, Suzuki, era representado no filme pela garça, e Takahata pelo Tio-Avô; na primeira versão do roteiro, o Tio-Avô aparecia mais e tinha um papel de maior destaque, mas, após a morte de Takahata, Miyazaki decidiria dar mais foco ao relacionamento de Mahito com a garça.
No filme, Mahito tem cerca de dez anos, e, após perder a mãe, vai morar com o pai no interior, na casa de sua tia (irmã de sua mãe), que possui várias criadas, todas idosas. Mahito não se adapta à vida no local, não aceita que o pai agora está em um relacionamento com a tia, que inclusive está grávida, e acaba se tornando amigo de uma misteriosa garça falante, que lhe convence de que sua mãe está viva e morando no interior de uma misteriosa torre que teria sido construída pelo tio-avô de Mahito. Um dia, a tia de Mahito desaparece, e ele e uma das criadas acabam seguindo a garça até a torre, indo parar num mundo fantástico habitado por todo tipo de criaturas estranhas, supostamente também criado pelo Tio-Avô.
A principal mensagem do filme seria a de que cada um consegue criar seu próprio mundo, mas sua história estaria aberta a múltiplas interpretações, com algumas análises considerando que Miyazaki quis dizer que as crianças do pós-guerra tinham a chance de prolongar o caos no qual o Japão estava mergulhado ou criar um futuro melhor; outras dizendo que ele advogava a favor da relisiência em face da perda e do luto; e alguns até considerando que a verdadeira mensagem era a importância de cultivar amizades e alianças de confiança. O filme possui um final aberto, que permite que cada pessoa tire suas próprias conclusões quanto ao rumo que a vida de Mahito tomou, mas deixando claro que suas experiências abriram caminho para que ele seguisse sem nenhum peso na consciência ou impedimento moral.
Distribuído pela Toho, O Menino e a Garça estrearia nos cinemas japoneses em 14 de julho de 2023, sendo o primeiro filme do Studio Ghibli a ser lançado simultaneamente no formato tradicional, em IMAX, Dolby Atmos e DTS:X. Por opção de Suzuki, o filme não teria nenhuma campanha de marketing, incluindo trailers, fotos da produção e documentários para a TV, à exceção de um único pôster, distribuído para os cinemas, e que mostrava apenas a garça; segundo Suzuki, ele estaria preocupado que questões-chave do enredo fossem acidentalmente reveladas pelo material promocional, e acreditava que ir ao cinema sem saber nada contribuiria para a experiência dos espectadores. Miyazaki ficaria preocupado que a estratégia prejudicasse o desempenho do filme, e, após uma sessão de testes em fevereiro de 2023, na qual os espectadores tiveram de assinar um documento se comprometendo a não revelar nada, pediria desculpas, dizendo "talvez vocês não tenham entendido o filme, eu mesmo não o entendi".
A estratégia de Suzuki, porém, mesmo se não puder ser considerada responsável pela bilheteria do filme, com certeza não a prejudicou: somente no primeiro fim de semana, O Menino e a Garça renderia 1,8 bilhão de ienes, se tornando a maior bilheteria de estreia para um filme do Studio Ghibli. Somente no primeiro fim de semana, ele arrecadaria 2,1 bilhões, também um recorde, e, em setembro, entraria para a lista dos 20 animes mais assistidos de todos os tempos. A bilheteria aumentaria entre cem mil e trezentos mil ienes por semana, até que, em março de 2024, quando saiu de cartaz, o filme havia arrecadado 8,98 bilhões de ienes. Fontes da indústria do cinema se diriam perplexas com o sucesso rápido diante da ausência de publicidade, e alguns publicitários especializados em campanhas de filmes chegariam a temer por seus empregos, mas, no fim, o sucesso seria creditado ao bom nome do Studio Ghibli, à base de fãs sólida de Miyazaki, e à divulgação boca a boca nas redes sociais, sendo considerado difícil de ser imitado por outras produções.
O Menino e a Garça seria pré-vendido para exibição internacional sem deta definida de estreia, o que também era raro. Os direitos de exibição nos Estados Unidos e Canadá ficariam mais uma vez com a GKids, que inscreveria o filme no Festival Internacional de Cinema de Toronto, no qual ele foi o primeiro filme de animação a abrir o festival em sua história, e o filme de maior público na abertura do festival "em décadas". O filme também seria exibido no Festival Internacional de Cinema de Vancouver e no Festival de Cinema de Nova Iorque antes de sua estreia oficial, em 8 de dezembro de 2023. Suzuki daria permissão para que a GKids fizesse uma campanha de marketing para o filme, que incluiu um trailer oficial, um programa exibido na Netflix e uma sessão de gala apresentada por Guillermo del Toro. A dublagem em inglês contaria com Luca Padovan como Mahito, Robert Pattinson como a garça, Karen Fukuhara como Lady Himi, Gemma Chan como a tia de Mahito, Christian Bale como o pai de Mahito, Mark Hamill como o Tio-Avô, Florence Pugh como Kiriko, e Willem Dafoe, Dave Bautista, Mamoudou Athie, Tony Revolori e Dan Stevens como criaturas fantásticas. O Menino e a Garça seria o primeiro filme do Studio Ghibli a alcançar o primeiro lugar nas bilheterias dos Estados Unidos, onde renderia 292,2 milhões de dólares, mais do que qualquer outro anime.
Na Europa, os direitos de distribuição ficariam com a Goodfellas, novo nome da Wild Bunch, que o lançaria nos cinemas do Reino Unido, França, Itália, Alemanha e Espanha, além de exibi-lo no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián e no Festival de Cinema de Sitges, ambos na Espanha. No Brasil, O Menino e a Garça seria distribuído pela Sato Company, e estrearia nos cinemas em 22 de fevereiro de 2024. Na China, onde estrearia em 3 de abril de 2024, o filme renderia 171,5 milhões de yuans somente no dia da estreia, estabelecendo um recorde de bilheteria para um filme estrangeiro, e renderia no total 670 milhões, recorde para um filme de animação.
A crítica inicialmente ficaria dividida, mas acabaria sendo extremamente favorável, considerando o filme mais uma obra-prima de Miyazaki; muitos críticos o considerariam "maduro" e "complexo", e diriam se preocupar que quem não está acostumado ao ritmo dos filmes do Studio Ghibli não conseguisse aproveitá-lo em sua totalidade. A crítica internacional também aclamaria o filme, considerando-o o ápice da carreira de Miyazaki, e dizendo que é possível assistir o filme múltiplas vezes, a cada uma descobrindo uma coisa nova. O Menino e a Garça renderia a Miyazaki o sexto Prêmio Ofuji Noburo de sua carreira, e ganharia o prêmio de Melhor Filme de Animação na Academia Japonesa de Cinema, no Globo de Ouro (onde também seria indicado a Melhor Trilha Sonora, trilha essa a cargo de Joe Hisaishi) e no Oscar, se tornando o segundo filme do Studio Ghibli oscarizado, após A Viagem de Chihiro.
E aqui terminamos essa série sobre o Stuudio Ghibli, que, após a conclusão de O Menino e a Garça, mais uma vez dispensou seus profissionais e fechou seu departamento de animação. Com Miyazaki e Suzuki em idade avançada, e considerando que um próximo filme pode ter uma produção igualmente longa, me parece improvável que teremos mais. Mas, como diria Miyazaki, o que temos é imortal, e permanecerá nesse mundo durante muito tempo após termos partido.
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