Nem só de fantasia medieval vive o homem. Há alguns anos, descobri outro gênero literário que muito me agradou, e rapidamente fez de seu autor um dos meus favoritos. O gênero era denominado por seu próprio autor de "horror cósmico". O autor era H. P. Lovecraft.
Lovecraft é conhecido entre os RPGistas por uma adaptação de seu trabalho, o RPG "Call of Cthulhu", mas reduzi-lo a Cthulhu seria reduzir H. G. Wells à "Máquina do Tempo", ou Edgar Allan Poe ao "Corvo". Sua obra é maior que isso. Lovecraft foi um autor brilhante, de vida conturbada, não reconhecido em sua época, mas que praticamente reinventou a literatura de horror. Esqueçam os sustos e a carnificina. O horror de Lovecraft é psicológico, e envolve o leitor em um crescendo, que resulta em um misto de agonia e ansiedade, fazendo com que ele ao mesmo tempo queira e "não queira" saber o final da história.
Nascido Howard Phillips Lovecraft, em 20 de agosto de 1890 em Providence, Rhode Island, Estados Unidos, onde passaria toda sua vida, Lovecraft vinha de uma família tradicional, de descendência inglesa e muitas posses. Nasceu "em berço de ouro", como se costuma dizer. Aos quatro anos já demonstrava interesse pela leitura, e começou a ler precocemente as histórias dos Irmãos Grim e de Julio Verne. Mas tarde, esta literatura fora substituída pela da mitologia greco-romana. Mas esta vida de luxo e cultura teria várias reviravoltas, que marcariam sua vida para sempre.
Sua mãe o obrigou a usar o cabelo comprido até os seis anos de idade, e o tratava como menina. Praticamente não conheceu seu pai, internado em um sanatório quando Lovecraft tinha apenas três anos de idade, morrendo cinco anos depois, insano e paralizado, em decorrência da sífilis. Logo após a morte de seu pai, Lovecraft descobriu Edgar Allan Poe, que se tornou seu autor preferido. Segundo ele, "nunca mais veria a beleza do mundo sem a certeza da morte".
Aos dez anos de idade, Lovecraft descobriu a ciência, que também seria marcante para seus futuros trabalhos, se apaixonando pela astronomia e pela química. Também aos dez anos, Lovecraft perdeu sua avó materna. Estas duas perdas não fizeram nada bem à já perturbada saúde de sua mãe, que passou a ter um comportamento ainda mais insano. Lovecraft começou a ter vívidos pesadelos, que o acompanhariam até sua morte, e chegou a pensar em suicidar-se atirando-se em uma das galerias pluviais do Rio Barrington.
Aliás, Lovecraft foi açoitado pela doença durante toda sua vida. Dores de cabeça, distúrbios nervosos e um cansaço infindável sempre prejudicaram sua vida escolar, e impediram que ele concluísse Ensino Médio e ingressasse em uma faculdade. Seu avô materno, dono de uma vasta biblioteca, sempre colaborou com sua educação, e graças a isso, Lovecraft se tornou um jovem culto e erudito, sempre impressionando seus colegas formados com sua vasta cultura e literatura, bem como com sua impressionante memória.
Seu avô, porém, morreu quando Lovecraft tinha apenas 14 anos. O caos, então, se instalou em sua "família", reduzida a esta altura apenas a ele, um jovem doente, e sua mãe, cada vez mais insana. Os dois tiveram de deixar sua mansão da Era Vitoriana para dividir um sobrado com suas tias, mais um fato que marcou a triste vida do escritor para sempre. Sua mãe viria a falecer em 1921, também internada em um sanatório, como seu pai, e Lovecraft viveria com suas tias até o fim de sua vida.
Em 1914, Lovecraft começou a publicar vários poemas e contos de sua autoria em jornais locais, mas ainda sem assumir o gênero de horror. Somente em 1919 ele começaria a escrever neste estilo, após descobrir os livros de Lord Dunsany, o que lhe causou, em suas prórpias palavras "um choque" e "um vasto ímpeto" de produzir seus próprios romances.
A última das influências literárias de Lovecraft seria o escritor Arthur Machen, considerado por ele "o maior escritor vivo", cujo primeiro livro lera em 1923. Os livros de Machen eram considerados de leitura difícil, mas traziam um tema que se tornaria recorrente em todos os romances de Lovecraft: o horror ancestral desconhecido, que sobrevive até hoje, considerado como mito pela humanidade, mas que é real e retornará.
Lovecraft começou sua carreira profissional com contos de horror inspirados por Dunsany e Machen, e publicados na revista Weird Tales. Os mais notáveis foram "Dagon", escrito originalmente em 1917, mas publicado em outubro de 1923; o excelente "The Rats in the Walls", de 1923, o primeiro escrito sobre a influência de Machen, e "Imprisioned with the Pharaohs", de 1924, escrito para ninguém menos que Harry Houdini, o famosos mágico.
Outros contos famosos de Lovecraft, publicados ou não na Weird Tales, incluem "Celephaïs" (1920), que indica vários elementos psicológicos da vida do próprio autor; "The Outsider" (1921), uma história no estilo de Poe; "The Shunned House" (1924), mistura de casa-mal-assombrada com ficção científica; "The Dream Quest of Unknown Kadath" (1926), ambientado em um mundo de sonhos propositadamente pouco descrito, o que aumenta o clima de horror; "The Call of Cthulhu" (1926), sem dúvida o mais famoso, no estilo "horror-ancestral-desconhecido-que-retorna"; e "The Colour of Outer Space" (1927), o mais célebre da linha "horror cósmico", considerado pelo próprio Lovecraft, e por muitos de seus fãs, como sua obra-prima. Outros dos trabalhos favoritos do próprio autor são "The Music of Erich Zahn" (1921) e "The Dreams in the Witch-House" (1932).
O ponto mais notável da carreira de Lovecraft foram suas correspondências. Assim como Tolkien, outro de meus autores preferidos, Lovecraft possuía o hábito de escrever cartas para tudo e para todos. Acreditem ou não, ele escreveu mais 100.000 cartas em sua curta vida, superando até mesmo outros autores famosos por este hábito, como Tolkien, Voltaire, Horace Walpole e Samuel Johnson - juntos! Infelizmente, menos de 1% destas cartas foram publicadas, em uma colagem denominada "Selected Letters", com cinco volumes e 2000 páginas! Existe também um projeto para registrar todas as cartas de Lovecraft em computador, para acesso através da interenet (e que já ocupa 16Mb).
Sua mais famosa "criação", os Mitos de Cthulhu, não foram realmente criados por Lovecraft, mas por seu amigo e colaborador August Derleth, que continuou escrevendo após a morte de Lovecraft como se ambos estivessem escrevendo juntos. Tais Mitos acabaram por ganhar vida própria, gerando centenas de subprodutos, como livros de arte, histórias em quadrinhos, jogos de tabuleiro (!), o já citado RPG "Call of Cthulhu" e centenas de contos escritos por outros escritores ou fãs (entre eles, "Call of Ombuthulhu", um conto de horror lovecraftiano em quatro capítulos, escrito a quatro mãos por mim e pelo Ombudsman, que você pode conferir no Omby's Weblog).
Somente em 1939, após a morte de Lovecraft, é que seus contos começaram a ser reunidos e publicados como livros - e então a fama e os fãs começaram a surgir.
Todas as histórias de Lovecraft possuem pontos em comum: o medo do desconhecido; o horror ancestral oculto; a ciência e a ficção científica, na forma de raças alienígenas ou de outras dimensões, e de aparatos tecnológicos bizarros; e a loucura. O crescendo do horror das histórias levam os protagonistas a situações onde só existem duas saídas possíveis: a loucura e a morte. Podem ser encontrados pontos auto-biográficos em seus contos, como os pesadelos recorrentes dos protagonistas, o narrador que começa suas histórias dizendo que pode ser considerado louco, ou até mesmo a cidade fictícia de Arkham (sim, o Asilo Arkham tem algo a ver com isso), onde são ambientadas suas histórias, claramente inspirada em Providence.
Lovecraft morreu em 15 de março de 1937 (mesmo dia do meu aniversário :P), antes de completar 47 anos de idade, de câncer no intestino e inflamação nos rins, após sofrer durante um ano. Ele se referia à sua doença como "uma gripe", e se recusava a ser examinado por médicos. Morreu pobre, pois seus contos nunca lhe fizeram famoso em vida. Foi enterrado no cemitério de Swan Point, onde estava toda sua família, mas sem qualquer lápide. Somente em 1977 seus fãs decidiram marcar o local, com uma lápide que diz "Eu sou Providence".
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