sábado, 1 de novembro de 2025

Escrito por em 1.11.25 com 0 comentários

Contos de Fadas BLOGuil (XI)

Quando eu e minha irmã éramos crianças, lá em casa tinha um livrinho de contos de fadas que pertencia à minha mãe. Dentre histórias mais tradicionais, como A Pequena Sereia e O Gato de Botas, uma chamava a atenção: A Moura Torta. Parte dessa atenção vinha do fato de que minha mãe dizia que, quando ela era criança e lia essa história, não fazia ideia do que seria uma moura torta, somente descobrindo anos depois que mouros eram como se chamavam os árabes do norte da África que conquistaram e ocuparam a Península Ibérica entre os séculos VIII e XV, e que essa, em específico, era uma "moura torta" porque tinha uma deformidade física.

Por causa desse livro, eu achava que A Moura Torta era um conto de fadas tão famoso quanto outros da Série B presentes no livro, como Pele de Asno ou A Princesa e a Ervilha, embora tivesse uma noção de que ele não era tão famoso quanto Cinderela ou A Bela Adormecida, principalmente porque nunca fizeram um desenho Disney da Moura Torta. Conforme o tempo passava, porém, eu descobria que quase ninguém conhecia a Moura Torta, e que esse não era um conto tão famoso assim. O motivo pelo qual ele estava no livro da minha mãe me pareceu obscuro, mas, por minha intimidade com a história desde a tenra infância - escrevi que nem um narrador de contos de fadas agora - sempre a guardei em meu coração, com A Moura Torta, pelo menos pra mim, sendo um conto de fadas da Série A.

Assim, quando decidi escrever os Contos de Fadas BLOGuil, um dos primeiros que escrevi foi A Moura Torta. Por algum motivo, entretanto, jamais o publiquei. Me lembro que fiquei com medo de acharem que eu era racista, já que "moura torta" não é exatamente uma expressão politicamente correta. Seja como for, ele ficou lá escrito, mas inédito, sem ser postado no BLOGuil nem revisado para o Crônicas de Categoria. Até o dia em que eu decidi escrever essa série para o átomo e, ao contar quantos contos havia publicado no BLOGuil, descobrir que foram 11. Se eu tivesse mais um, poderia fechar o ano inteiro. E eu tinha: A Moura Torta, que hoje, finalmente, devidamente revisado, verá a luz do sol. Espero que vocês gostem.





A Moura Torta

Era uma vez um Rei que, já tendo alcançado a idade avançada de 35 anos, estando à beira da morte de acordo com a expectativa de vida da época em que essa história se passa, se ressentia de que seu filho, que já havia passado dos 15 anos, ainda não havia encontrado uma moça de quem gostasse para se desposar, já sendo considerado um solteirão encalhado pela corte real. O temor do Rei era de que ele viesse a falecer sem nora e sem netos, de forma que enviou o Príncipe para uma viagem ao redor do mundo, ordenando que ele não se atravesse a voltar sem uma noiva.

Assim, ao longo de oitenta dias, o Príncipe daria a volta ao mundo, sempre colocando defeitos em todas as moças que conhecia. Uma era muito alta, outra era muito baixa, outra gostava de pagode, que ele não suportava, outra tinha os pés feios, outra ria que nem um alarme de incêndio, e por aí vai. Quando já estava pensando que, além de solteiro, morreria no exílio, o Príncipe encontraria uma velha muito feia com dificuldades para atravessar a rua, e decidiria ajudá-la. Em retribuição, a idosa senhora deu a ele uma laranja, e recomendou que, quando ele fosse descascá-la, o fizesse próximo à água corrente. O Príncipe riu e imaginou que depois dos 40 anos as pessoas começam a ficar meio malucas, mas guardou a laranja com muito amor e carinho.

Retornando para casa, o Príncipe decidiria parar à beira de um rio, à sombra de uma árvore, para pensar como enfrentaria a fúria de seu pai, e se lembraria da laranja, decidindo chupá-la para pensar melhor. Ao descascá-la, entretranto, a laranja se transformaria na mulher mais formosa que ele já havia visto na vida. Após uma breve entrevista para se assegurar de que ela tinha zero defeito, o Príncipe decidiria se casar com ela, resolvendo, por fim, o problema que deu origem à sua viagem. Só havia um porém: a moça estava suja, fedida e maltrapilha, de forma que ele recomendou que ela tomasse um banho no rio e em seguida se escondesse na copa da árvore, enquanto ele iria ao castelo buscar roupas finas e perfumes delicados, para apresentá-la ao pai como uma Princesa.

Enquanto o garboso Príncipe fazia seu bate-volta e a futura Princesa se escondia sabe-se lá por qual motivo, eis que vem descendo a estrada uma moura torta, caregando um jarro de barro que deveria encher de água para sua patroa. Ao olhar o reflexo da linda moça na água, ela imaginou ser o seu, pensou que era bonita demais para se submeter a esse serviço, quebou o jarro numa pedra e voltou para casa. Ao saber do que aconteceu, sua patroa desandou a rir, pois a moura torta não tinha esse apelido à toa, sendo corcunda, caolha, banguela, e tendo uma perna mais curta que a outra. Punindo-a com 40 chibatadas, a patroa lhe daria um caldeirão de ferro que pesava 40 quilos, e diria que, se ela voltasse mais uma vez sem água, dobraria a quantidade de chibatadas e o peso do caldeirão.

Ao retornar ao riacho, a moura torta veria a ainda não Princesa no alto da árvore, e entenderia o que aconteceu. Jurando vingança, ela subiria também na árvore, e, usando seus poderes mágicos, enfiaria um alfinete na cabeça da moça, transformando-a em uma pomba. A última coisa que a linda mulher fez antes de sua transformação foi perguntar por que a moura torta se sujeitava a ser empregada doméstica se tinha poderes mágicos, mas a bruxa não soube responder.

Nesse exato momento, vinha o Príncipe pela estrada, com uma carruagem riquíssima, trazendo as roupas mais finas para sua amada, quando viu a moura torta no alto da árvore e, surpreso, perguntou como uma mulher tão bonita havia se transformado numa criatura tão horripilante. A moura torta respondeu que aquela era sua verdadeira aparência, revelada após o banho, e, depois de ponderar se não teria sido melhor ter se casado com uma mulher fedida, porém linda, o Príncipe vestiu a moura torta com roupas de princesa e a levou para o castelo. O Rei ficou horrizado quando conheceu sua futura nora, e boatos dizem que conselheiros o ouviram falar "escolheu tanto pra isso?", mas, achando que aquela seria sua única chance de ver seu filho casado, deu sua bênção para que ocorresse o matrimônio.

Durante os preparativos, a moura torta demonstraria ser tão feia por dentro quanto por fora, de forma que ninguém no reino entendia como o Príncipe havia se apaixonado por ela, mas ele insistia em falar que um homem não é nada sem sua palavra, e seguia com os preparativos do casamento. No dia marcado para a cerimônia, enquanto o jardineiro real colhia as flores que enfeitariam a igreja, uma bela pombinha pousou no jardim. Reconhecendo-a como sua rival, a moura torta ordenou que o jardineiro a capturasse, pois queria comê-la. Mesmo revoltado com o fato de que, além de todos os defeitos que aquela mulher tinha, ela ainda comia pombo, o jardineiro obedeceu, e estava levando a ave para a cozinha real quando se encontrou com o Príncipe por acaso. Notando um estranho calombo na cabeça do pássaro, o Príncipe decidiu cutucá-lo, e viu que era um alfinete. Ao removê-lo, a pomba se fez moça, revelando o ardil da moura torta.

O Rei notou que seu filho era um imbecil por ter caído naquela história, mas gostou mais da nova nora que da anterior, e condenou a moura torta à morte. Ela ainda tentou fugir, mas o povo da cidade, na qual as fofocas corriam rápido, a capturou, linchou, enforcou, esquartejou, queimou em praça pública e jogou suas cinzas no mesmo rio onde ela havia amaldiçoado a Princesa, como licença poética.

E, a única exceção sendo a moura torta, todos viveram felizes para sempre.

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