domingo, 24 de janeiro de 2021

Escrito por em 24.1.21 com 1 comentário

Tiro com Arco (III)

Mês passado, eu fiz aqui um post sobre tiro com arco, falando sobre várias provas que não são sancionadas pela World Archery, a federação internacional que regula o tiro com arco, mas que ainda são muito praticadas em todo o planeta. Acontece que o tiro com arco é um esporte muito vasto, com centenas de provas e estilos diferentes, e todas as provas que eu abordei mês passado foram criadas na Europa ou nos Estados Unidos, e, portanto, seguem todas o mesmo estilo, somente mudando detalhes como a pontuação, a distância para o alvo e o número de flechas disparadas. Foi um post muito interessante de se fazer, e um ótimo complemento para o meu post original sobre tiro com arco, mas eu senti que ficou faltando algo sobre os outros estilos de tiro com arco praticados no planeta; assim, hoje eu resolvi voltar ao assunto para falar de alguns esportes de tiro com arco que surgiram na Ásia. Vale dizer que esses não são todos os esportes de tiro com arco asiáticos que existem, porque existem dezenas, mas apenas os cinco que eu achei mais interessantes, principalmente por suas provas terem detalhes diferentes das provas de tiro com arco com as quais estamos acostumados. Sem mais delongas, hoje, mais uma vez, é dia de tiro com arco no átomo!

Vamos começar pelo esporte de tiro com arco asiático mais praticado no mundo, o kyudô, criado no Japão, onde as primeiras gravuras representando um arqueiro e um alvo datam do ano 500 a.C. Até o final do século XV, porém, era mais valorizado no Japão o tiro com arco montado a cavalo, parte importante da estratégia de guerra dos exércitos samurai; no final do século XV, Heki Masatsugu criaria uma técnica conhecida como "voar para perfurar o centro", que aumentaria imensamente o número de acertos dos arqueiros a pé, e levaria à criação de centenas de escolas de kyujutsu, a arte de atirar com o arco, não somente para soldados, mas também para nobres que queriam praticar a atividade como passatempo. Essas escolas durariam pouco, entretanto, praticamente desaparecendo no século seguinte, quando os portugueses introduziriam as armas de fogo no Japão. No século XVII, graças ao período de paz prolongada conhecido como Era Edo, as escolas de arquearia começariam a reabrir, mas com o tiro com arco se tornando algo ritualístico, praticado pelos nobres como uma espécie de cerimônia, e não como uma competição esportiva. A maioria dos professores de arquearia dessa época eram monges zen-budistas, que acreditavam que o tiro com arco, propriamente executado, poderia contribuir para a meditação, a contemplação e a iluminação; assim, eles trariam para o tiro com arco conceitos de outras artes marciais, e chamariam sua prática de kyudô, o "caminho do arco". Originalmente, portanto, o kyudô nem era um esporte, e sim uma filosofia e um estilo de vida. 

Durante a Era Meiji, no século XIX, o Japão começou a se abrir ao ocidente, e vários elementos tradicionais da cultura japonesa, principalmente as artes marciais, seriam abandonados pela população, por serem considerados antiquados e ultrapassados. Muitos dos antigos professores, porém, continuariam a praticar o kyudô, e, em 1896, decidiriam se reunir para tentar transformar o kyudô em um esporte competitivo e salvá-lo da extinção. Toshizane Honda, professor da Universidade Imperial de Tóquio, decidiria unir os aspectos ritualísticos do kyudô com as habilidades de guerra do kyujutsu, criando um estilo que chamaria de Honda-ryu ("escola Honda"), o que fez com que ele hoje seja considerado o pai do kyudô moderno. A verdadeira codificação e regulação do kyudô como esporte, entretanto, só teria início em 1949, quando seria fundada a Federação Japonesa de Kyudô (ZNKR, da sigla em japonês), que, em 1953, publicaria o primeiro conjunto de regras oficial do kyudô, definindo não somente as regras de competição, mas também, como ocorre com outras artes marciais, o ranqueamento dos praticantes conforme sua habilidade.

O kyudô começaria a se espalhar fora do Japão bem antes da da formação da ZNKR, com a criação da primeira escola na Itália datando de 1898, e o autor Eugen Herrigel publicando seu livro Zen e a Arte do Tiro com Arco, que criaria um certo interesse pelo kyudô em sua Alemanha natal, em 1948; durante muitos anos, porém, o kyudô foi visto no ocidente como uma curiosidade, sendo praticado apenas por quem já havia visitado o Japão ou por descendentes de japoneses, sem conseguir despertar o mesmo interesse que lutas como o judô ou caratê. Esse cenário só começaria a mudar na década de 1980, quando o monge Shibata Sensei viajaria o mundo fazendo apresentações de kyudô em templos e mosteiros budistas e estimulando a criação de escolas de kyudô nas cidades que visitava. A partir de então, vários países começariam a fundar federações nacionais de kyudô, que organizavam torneios segundo as regras da ZNKR. Em 2006, a própria ZNKR (que ainda existe) decidiria agrupar essas federações sob o nome de Federação Internacional de Kyudô (IKYF), que hoje conta com 28 membros plenos (países que participam de torneios internacionais de kyudô) e 19 membros associados (países onde o kyudô é praticado, mas sem participação em torneios); o Brasil é membro associado desde 2008, representado pela Brasil Kyudo Kai.

O arco do kyudô, chamado yumi, é gigantesco se comparado com os que estamos acostumados, tendo por volta de 2,21 m de comprimento. Tradicionalmente, ele é feito de bambu, madeira e couro, mas a IKYF permite que arcos de competição sejam feitos de materiais como fibra de carbono e alumínio, mais resistentes. Em contrapartida, as flechas, chamadas ya, mesmo para competição, são feitas de bambu, com rêmiges feitas de penas de aves, principalmente peru ou cisne, e ponta esculpida na própria flecha, sem seta; o tamanho da flecha depende da distância entre as mãos do arqueiro com a corda totalmente esticada, devendo ser no mínimo 6 e no máximo 10 cm maior do que essa distância. Outro equipamento usado por todos os arqueiros é a yugake, uma luva de couro que pode cobrir três ou quatro dedos (de qualquer forma sempre cobrindo o polegar, indicador e médio) e pode ter polegar rígido ou flexível; a principal função da luva é ajudar a fazer força ao puxar a corda, mas ela também ajuda os arqueiros a segurar uma flecha extra enquanto disparam - o que faz parte das regras, como veremos em breve.

O uniforme do kyudô é extremamente tradicional, e conta, além de uma camisa branca de algodão, de mangas até os cotovelos e aberta na frente, com uma calça preta bastante larga para os homens, ou uma saia plissada preta longa para as mulheres; a camisa não possui botões ou fechos, e fica fechada graças à cintura da calça ou saia, que conta com botões que a deixam bastante justa. Opcionalmente, os arqueiros podem usar meias, brancas ou pretas, e uma camisa justa preta de mangas compridas por baixo da camisa branca; para as mulheres é obrigatório o muneate, uma peça de couro branca ou preta que cobre os seios e parte da barriga, amarrada nas costas, que tem como função proteger o corpo do contato com a corda do arco. Como foi dito, assim como outras artes marciais, o kyudô tem um sistema de ranqueamento para denotar a perícia do arqueiro, embora o uniforme não traga nenhuma indicação de seu ranking - nada de faixas coloridas, por exemplo. Todo praticante de kyudô começa no décimo kyu, e vai avançando em contagem regressiva até o primeiro kyu, quando pode fazer o teste para o primeiro dan, e chegar até o oitavo dan; todos os participantes de torneios internacionais devem ser pelo menos de primeiro dan.

O método de disparo da flecha também segue rígidas regras de tradição, determinadas pela ZNKR, e que devem ser respeitadas por todos os arqueiros, sob pena de desclassificação. Esse método é conhecido como "oito passos", pois possui oito etapas. Para começar, todos os arqueiros, inclusive os canhotos, devem segurar o arco com a mão esquerda e a corda com a mão direita, e, ao se posicionar para atirar, devem ficar de lado para o alvo, com seu ombro esquerdo apontando para ele, e abrir as pernas colocando os pés a uma distância um do outro igual ao comprimento de uma de suas flechas, com os dedões apontando para fora. No segundo passo, ele deve fazer com que suas costas se curvem levemente para trás, de forma que seus ombros fiquem perfeitamente paralelos a seus calcanhares. No terceiro passo, ele aponta o braço esquerdo na direção do alvo, segura a corda com a mão direita, e só então pode virar a cabeça para olhar o alvo. No quarto passo, ele levanta o arco até que sua mão fique acima da cabeça. No quinto passo, ele vai baixando o arco, enquanto simultaneamente empurra o arco para a frente com a mão esquerda e, já com a flecha encaixada na corda, a puxa com a mão direita. No sexto passo, o arqueiro deve puxar a corda até que sua mão fique embaixo de sua orelha direita, com a flecha paralela à sua boca. No sétimo passo, ele solta a corda, enquanto relaxa a mão esquerda mas continua levando a mão direita para trás; se o movimento for realizado corretamente, o arco vai girar em torno de seu próprio eixo durante o disparo, terminando com a corda do outro lado do braço do arqueiro. Finalmente, no oitavo passo, ele baixa o arco devagar, enquanto relaxa e baixa a mão direita, até que ambas as mãos estejam apontando para baixo; só aí ele pode tirar os olhos do alvo. Vale citar também que, quando um arqueiro não está atirando, ele deve ficar ajoelhado, com os calcanhares tocando suas nádegas, as mãos sobre os joelhos, e de cabeça baixa, olhando para o chão.

Em uma prova de kyudô, cada arqueiro dispara quatro flechas, em duas rodadas de duas flechas cada. Quando ele está disparando as primeiras duas, as outras duas devem ficar no chão, em frente e seus pés, alinhadas com seus ombros e apontando para o alvo. Em cada rodada, o arqueiro coloca a primeira flecha no arco, e a dispara enquanto segura a segunda com sua mão direita, de forma que sua ponta aponte para baixo; depois que todos tiverem disparado a primeira flecha, ele coloca a segunda no arco e a dispara, somente se ajoelhando depois que tiver disparado as duas. Cada arqueiro tem quatro minutos para disparar suas duas flechas, mas, como só pode disparar a segunda após todos terem disparado a primeira, arqueiros que demorem de propósito para atrapalhar os oponentes podem ser punidos.

O kyudô tem dois tipos diferentes de prova, o kinteki kyogi e o enteki kyogi, sendo que ambas podem ser disputadas no individual (kojin) ou por equipes (dantai), usando o sistema eliminatório, no qual os arqueiros ou equipes são pareados dois a dois, com o vencedor de cada embate avançando e o perdedor sendo eliminado, ou cumulativo, no qual todos os arqueiros disparam suas flechas e o vencedor é o de maior pontuação. Em torneios por equipes e individuais que usem o método cumulativo, os arqueiros competem em grupos de até seis ao mesmo tempo (cada um com seu próprio alvo), sendo que, por equipes, mesmo no cumulativo, apenas duas equipes podem estar na área de competição de cada vez.

O kinteki kyogi é a prova mais tradicional do kyudô, e pode ser disputada em dois sistemas de pontuação diferentes, usando dois tipos de alvo diferentes. Ambos são feitos de madeira, têm 12 cm de espessura, e são posicionados a 28 m do arqueiro; o chamado kasumi mato tem 36 cm de diâmetro e seis círculos concêntricos alternados nas cores preta e branca, enquanto o hoshi mato tem 24 cm de diâmetro e é branco com um círculo preto de 12 cm de diâmetro no meio. O sistema de pontuação mais tradicional é o tekichu, no qual cada acerto se chama atari, e cada erro se chama hazure, sendo que no hoshi mato só são considerados acertos flechas que atinjam o círculo preto. O vencedor é o arqueiro que tiver mais acertos, e, em caso de empate, pode ocorrer o izume kyosha, uma competição na qual os empatados disparam suas flechas até que um erre, quando será eliminado, ou, se estiver sendo usado o kasumi mato, o enkin kyosha, no qual o arqueiro que tiver acertado suas flechas mais próximas do centro é considerado vencedor. O segundo sistema de pontuação se chama saiten, no qual um painel de cinco árbitros avalia a postura do arqueiro e sua fidelidade aos oito passos, e confere uma nota após a flecha acertar o alvo. No saiten cada arqueiro dispara sempre sozinho, e o vencedor é aquele com a maior nota após todos terem se apresentado.

Já o enteki kyogi é bem parecido com a prova que é disputada nas Olimpíadas, usando um alvo que se chama tokuten mato, que tem 1 m de diâmetro, e é posicionado a 60 m de distância do arqueiro. O tokuten mato tem cinco círculos concêntricos, sendo que, de fora para dentro, suas cores e valores são branco (1 ponto), preto (3 pontos), azul (5 pontos), vermelho (7 pontos) e amarelo (10 pontos). O vencedor, evidentemente, é o que somar mais pontos, sendo que, em caso de empate, pode ser usado o enkin kyosha (quem acertou mais vezes os círculos menores ganha) ou o izume kyosha (os empatados disparam cada um uma flecha, e o que fizer a menor pontuação é eliminado). Desde 2014, a IKYF também regula provas de enteki kyogi usando o sistema tekichu, com kazumi mato que podem ter 1 m, 79 cm ou 50 cm de diâmetro.

O mais importante torneio do kyudô internacional é o World Kyudo Taikai (o Campeonato Mundial de Kyudô), disputado a cada quatro anos desde 2010, que conta com provas masculinas e femininas, individuais e por equipes, de kinteki kyogi tekichu e de enteki kyogi tokuten; o torneio de maior prestígio, porém, é o All Japan Kyudo Taikai, organizado pela ZNKR anualmente desde 1949, sempre no Japão, exclusivamente no individual masculino, de kinteki kyogi tekichu, e aberto somente a japoneses. Outro torneio de grande prestígio é o All Japan Invitational College Championship, um torneio entre universidades japonesas, por equipes, de kinteki kyogi tekichu, disputado anualmente no masculino desde 1950 e no feminino desde 2000. O kyudô já quase foi esporte olímpico, já que fez parte do programa do budô nas Olimpíadas de 1964, em Tóquio; na ocasião, porém, não foi disputado torneio nem houve distribuição de medalhas, ocorrendo apenas uma demonstração das técnicas.

Do Japão vamos para a Coreia, conhecer o gungdo. Durante a maior parte da história da Coreia, o tiro com arco permaneceu restrito aos militares, sem que os civis se interessassem em praticá-lo; em 1899, quando o Príncipe Henrique da Prússia visitou o país, o exército coreano fez uma demonstração de várias artes marciais e habilidades militares, dentre elas a arquearia, e o Príncipe ficou muito impressionado com a precisão dos arqueiros, perguntando ao Imperador Gwangmu se seria possível assistir a uma competição de tiro com arco. Só que na Coreia, diferentemente do que ocorria na Europa, não existiam competições esportivas de tiro com arco, e o Príncipe, atônito ao receber essa resposta, sugeriu ao Imperador que transformasse o tiro com arco coreano em um esporte. O Imperador gostou da sugestão, e determinou a abertura de várias escolas de tiro com arco, financiadas pelo governo, em todo o país.

Nos anos seguintes, seriam padronizados o tipo de arco usado, o tipo de alvo, e as regras da competição; o tiro com arco só se tornaria verdadeiramente popular na Coreia, entretanto, na década de 1920, durante a ocupação japonesa, quando a população, ao ver os japoneses praticando kyudô, se interessaria pelo esporte, e preferiria o tradicional coreano como forma de resistência - o próprio nome gungdo seria criado nessa época, imitando o nome do esporte japonês, já que gung, em coreano, significa "arco". A Associação Coreana de Tiro com Arco Tradicional (KTAA), que finalmente regularia o gungdo como esporte, seria coincidentemente fundada no mesmo ano que a ZNKR, 1949, após o fim da Segunda Guerra Mundial, que encerraria, também, a ocupação japonesa na Coreia; até hoje, porém, o gungdo não possui uma federação internacional - embora a KTAA ocasionalmente organize competições internacionais, ele só é verdadeiramente popular nas Coreias do Sul e do Norte. A mais importante competição da KTAA é o Campeonato Nacional, disputado na Coreia do Sul anualmente desde 1949 no masculino e 1978 no feminino.

O alvo do gungdo é um retângulo branco de 2 m de largura por 2,66 m de altura, dentro do qual há três figuras geométricas: um retângulo preto de 1,40 m de largura e 30 cm de altura, 40 cm abaixo do topo do alvo, um quadrado, também preto, de 1,40 m de lado, 25 cm abaixo do retângulo, e um círculo vermelho de 1 m de raio, dentro do quadrado. O alvo fica a 145 m de distância do arqueiro, e não é perfeitamente vertical, tendo uma inclinação para trás de 15 graus em relação ao solo. Cada arqueiro dispara 15 flechas, em três rodadas de cinco flechas cada, tendo 30 segundos para disparar cada flecha; cada flecha que acerta o círculo vermelho vale um ponto, as que acertam em qualquer outro lugar (ou não acertam o alvo) não valem nada. Em caso de empate, o desempate é pela "flecha de ouro", ou seja, os empatados disparam uma flecha de cada vez até que um erre. Até três arqueiros podem competir de cada vez, cada um com seu próprio alvo - algumas competições colocam números, ocidentais ou coreanos, dentro do círculo vermelho, na cor branca, para identificar os alvos - sendo que um alvo deve ficar a pelo menos 5 m de distância de seus vizinhos.

O arco do gungdo, chamado gakgung ("arco de chifre") é feito de bambu, madeira, chifre de búfalo e borracha; para obter a flexibilidade necessária, a madeira precisa ficar de molho na água salgada durante um ano. O arco é pequeno, com por volta de 1,20 m de comprimento, e as flechas, de aproximadamente 75 cm de comprimento, são feitas de bambu, com setas afiadas de madeira e rêmiges de penas de aves. Atualmente, a KTAA permite o uso de arcos e flechas feitos de materiais modernos, como fibra de vidro e fibra de carbono, exceto no Campeonato Nacional, onde somente arcos e flechas de bambu podem ser usados. Um elemento característico do gungdo é o "anel de dedão", um anel feito de madeira, chifre, osso ou pedra que evita a formação de bolhas no polegar do arqueiro, causadas pela forma como a corda é manuseada durante o disparo.

Vamos passar agora para o okçuluk, que é o tiro com arco tradicional turco, cujas origens remontam ao treinamento dos soldados do Império Otomano. O okçuluk é bastante popular na Turquia, mas, fora dela, não é muito praticado, exceto em comunidades de imigrantes turcos; por isso, ele não possui uma federação internacional, sendo regulado pela Federação Turca de Tiro com Arco Tradicional (TGTOF, da sigla em turco). O okçuluk é um esporte totalmente amador, com as principais competições sendo realizadas entre clubes ou a nível universitário - não existe um "campeonato turco de okçuluk" ou algo assim, por exemplo.

O arco usado no okçuluk é bem pequeno, com por volta de 1 m de comprimento, e é feito de maneira totalmente artesanal, contando com um núcleo de madeira, um reforço feito de chifre de boi no lado que vai ficar virado para o arqueiro durante o disparo, e uma camada feita com tendões de boi na frente, tudo isso colado usando uma cola obtida através da fervura de barbatanas de peixes; hoje, os principais fabricantes de arcos para okçuluk obtêm seus materiais de abatedouros e peixarias, que iriam mesmo descartar essas partes. Os tendões na frente do arco são responsáveis pela força que vai disparar a flecha, que, no okçuluk, é conferida muito mais pelo arco do que pela corda, que é até um pouco frouxa; os tendões exercem uma pressão tão forte sobre o arco que, quando ele está sem a corda, seus braços se dobram para a frente, fazendo com que o arco fique em formato de C - colocar a corda é um trabalho tão complexo, aliás, que deu origem a um ditado em turco, "existem mais de 120 maneiras de se colocar uma corda em um arco", usado para dizer que cada problema, por mais complexo que seja, sempre tem uma solução. As flechas são feitas de madeira ou bambu, com a ponta sendo esculpida na própria flecha; as rêmiges tradicionalmente são feitas de penas de aves, mas hoje em dia algumas são feitas de cerdas de plástico. Uma flecha de okçuluk tem entre 70 e 85 cm de comprimento.

O okçuluk possui duas disciplinas, o tiro ao alvo e o tiro a distância. O tiro a distância (hava koşusu) é considerado mais tradicional, pois era o mais popular no Império Otomano. As regras são as mesmas da flight archery: cada competidor aponta o arco levemente para cima e dispara sua flecha, sendo vencedor aquele que fizer com que a flecha viaje a maior distância antes de atingir o solo. O tiro a distância usa um apetrecho chamado siper, feito de metal, em formato elíptico (parece uma saboneteira) e que conta com uma tira de couro, que deve ser amarrada no pulso do arqueiro, na mão que vai segurar o arco. O siper conta com um sulco no qual a flecha deve ser encaixada, e serve para aumentar sua velocidade após o disparo, e, consequentemente, fazer com que ela chegue mais longe. Cada flecha deve ter o sobrenome e a inicial do primeiro nome do competidor, podendo contar também com pintura de identificação, desde que essa não passe de 15 cm a partir da ponta da flecha.

A área de competição do tiro a distância conta com um local próprio para os competidores se prepararem, e uma mureta detrás da qual eles vão fazer o disparo, com todas as pessoas presentes, como árbitros e plateia, devendo ficar atrás do arqueiro. A área válida para que a flecha caia é em formato de V, com o vértice centrado no ponto de onde o arqueiro vai fazer o disparo, e deve ter pelo menos 700 m livres de quaisquer obstáculos, com precauções para que pessoas e animais não a invadam, com bandeiras marcando as distâncias a cada 50 m a partir dos 300 m. Dependendo da competição, cada arqueiro dispara entre 3 e 11 flechas, valendo sempre a maior distância obtida para se determinar o vencedor.

Já o tiro ao alvo (puta koşusu) é uma competição mais ao estilo das que estamos acostumados, com os arqueiros disparando suas flechas em direção a um alvo e marcando pontos. Aliás, eu não escrevi nem vocês leram errado, o nome do alvo usado no okçuluk é puta. Esse alvo tem formato de pera, com 1,1 m de altura, 70 cm de largura na parte mais larga e 35 cm na parte mais estreita; originalmente era feito de couro, mas, atualmente, pode ser feito de madeira, cortiça, ou impresso em um papel que ficará preso em um cavalete quadrado de madeira. O alvo normalmente é de cor marrom, e possui dois círculos grandes e 18 pequenos; os grandes, um centrado na parte larga (com 20 cm de diâmetro) e outro na estreita (com 15 cm de diâmetro), costumam ser decorados, enquanto os pequenos (com 5 cm de diâmetro cada), sempre nas cores branca e preta, estão dispostos em um padrão em volta do círculo grande da parte mais larga.

Existem provas indoor e outdoor de tiro ao alvo. Nas provas outdoor, o alvo fica posicionado a uma distância de 60 m do arqueiro no feminino e a 70 m no masculino; cada arqueiro dispara 63 flechas, sendo 7 séries de 9 flechas cada. Nas provas indoor, o alvo fica a 18 m, tanto no masculino quanto no feminino, e cada arqueiro dispara 35 flechas, sendo 7 séries de 5 flechas cada. Não há emparelhamento, com todos os arqueiros competindo juntos, e, a cada série de flechas, o de pior pontuação sendo eliminado; ao final da última flecha, o que tiver mais pontos é o vencedor. Acertar um círculo pequeno vale 1 ponto, acertar o círculo grande da parte mais larga vale 3 pontos, e acertar o círculo grande da parte mais estreita vale 5 pontos no outdoor ou 3 pontos no indoor (porque a distância é menor, então a tarefa é mais fácil). Existem algumas competições de "tiro ao alvo de precisão" nas quais a parte mais larga é coberta com uma chapa de metal, para que os competidores só consigam pontuar se acertarem o círculo da parte mais estreita.

Vamos voltar para o oriente, mais especificamente para a Mongólia, para ver o tiro com arco tradicional mongol, que, infelizmente, não tem um nome mais curto. Assim como o okçuluk, o tiro com arco tradicional mongol tem sua origem no treinamento dos exércitos dos conquistadores mongóis, e hoje é um esporte completamente amador, sem torneios profissionais, sendo popular somente na Mongólia e praticamente inexistente no resto do mundo. Evidentemente, isso faz com que não exista uma federação internacional, com a regulação cabendo à Associação Mongol de Tiro com Arco Nacional (MÜKK, da sigla em mongol), que cuida para que suas regras não desapareçam e suas tradições sejam preservadas, e supervisiona a organização de entre 20 e 30 torneios por ano, todos dentro da Mongólia. O tiro com arco tradicional mongol é considerado pela UNESCO Patrimônio Imaterial da Humanidade desde 2010, e sua principal competição ocorre durante o festival do Naadam, realizado anualmente em julho, que conta com provas de corrida de cavalo, luta e tiro com arco.

Por determinação da MÜKK, todos os arcos utilizados em competições de tiro com arco tradicional mongol devem ser fabricados na Mongólia, de acordo com regras estabelecidas pela entidade, que respeitam a forma como eles vem sendo feitos há centenas de anos. Os arcos são feitos de forma totalmente artesanal, usando madeira de bétula, bambu, chifres e tendões de carneiro, e são tão leves que boiam na água. Uma característica curiosa é que a temperatura ambiente influencia em sua performance: no frio, o arco enrijece, e seus tiros se tornam mais precisos, enquanto no calor ele fica mais mole, sendo mais difícil para o arqueiro disparar com precisão. Um arco de tiro com arco tradicional mongol tem entre 1,4 m e 1,8 m de comprimento, de acordo com a altura do arqueiro, e leva em torno de seis meses para ficar pronto. As flechas têm entre 75 cm e 1 m de comprimento, 1 cm de diâmetro, e são feitas de madeira de bétula. As rêmiges são feitas de penas de aves, e a seta, também feita de madeira, tem 4 cm de comprimento, cerca de 2 cm de diâmetro e não tem "bico", o que faz com que pareça que flecha tem uma rolha na ponta.

A corda do arco era tradicionalmente feita de intestino de carneiro, mas, atualmente, a MÜKK permite cordas de nylon e outros materiais sintéticos, em nome da segurança dos arqueiros - pois a corda tradicional se partia e causava acidentes mais facilmente. A corda é bastante grossa em relação aos demais arcos, com cerca de 5 mm de diâmetro, e é presa ao arco por tiras de couro (de carneiro, evidentemente), que se esticam junto com a corda. Uma das principais características do tiro com arco tradicional mongol é a forma de segurar a corda, com o polegar, o que faz com que os nós dos dedos apontem para a frente como se o arqueiro fosse dar um soco. A flecha não é segurada pelo arqueiro antes do disparo, mas fica apoiada sobre as costas de sua mão, por isso, possui uma ranhura na parte de trás, antes das rêmiges, que deve ser encaixada na corda, para maior firmeza.

O tiro com arco tradicional mongol tem três provas diferentes, chamadas uriankhai, buriat e khalkh - os nomes das tribos mongóis pelas quais, segundo a tradição, elas foram inventadas. A prova do khalkh é a mais popular, e é composta de duas partes, chamadas khana e khasaa. Em ambas as partes, os alvos são pequenos cilindros ocos, feitos de intestino de carneiro curtido e trançado, de 8 cm de altura por 8 cm de diâmetro. Na parte do khana, 50 cilindros são arrumados para formar um "muro", com 21 cilindros na base, 20 sobre eles e 19 no topo, o que faz com que o muro tenha 4 m de comprimento e 24 cm (3 cilindros) de altura; já na parte do khasaa são usados 30 cilindros, 18 embaixo e 12 em cima, sendo que os três de cada ponta da base são posicionados deitados. O objetivo em ambas as partes é derrubar os cilindros com as flechas, sendo que cada cilindro derrubado vale 1 ponto; é possível derrubar mais de um com uma única flecha, já que, quando os de baixo caem, levam os de cima junto. Alguns cilindros são envolvidos em tecido, normalmente vermelho ou amarelo, mas apenas para facilitar a visualização, também valendo 1 ponto cada. A distância da qual são disparadas as flechas é a mesma para as duas partes: 65 m no feminino e 75 m no masculino. Cada arqueiro dispara 40 flechas no khana e 20 no khasaa, 60 no total, em rodadas de cinco flechas cada, mas só se classificam para o khasaa os arqueiros que fizerem pelo menos 33 pontos no khana; o número de pontos obtidos nas duas partes é somado para determinar o vencedor.

Já na prova do buriat, os alvos são cilindros de couro recheados de pelos e lã, também de 8 cm de diâmetro e 8 cm de altura, de cor preta com uma faixa de tecido vermelho ou amarelo amarrada no meio. 20 desses cilindros são posicionados deitados e alinhados, face com face. Cada arqueiro dispara 20 flechas, em quatro rodadas de cinco flechas cada, e o objetivo é não só acertar os cilindros, mas fazer com que eles rolem para pelo menos 20 cm de distância de sua posição inicial, com cada cilindro atingido com sucesso valendo 1 ponto. A distancia dos arqueiros para os cilindros é de 30 m no feminino e 45 m no masculino. Finalmente, a prova do uriankhai é parecida com o buriat, mas é tradicionalmente disputada somente no masculino, e nela os alvos são esferas de 8 cm de diâmetro, feitas de tiras de couro trançadas, que pesam entre 350 e 450 g cada. 12 dessas esferas são posicionadas em uma linha, e cada arqueiro dispara apenas três flechas, da distância de 40 m. O objetivo é acertar uma das esferas e fazer com que ela role pelo menos 8 cm, o que é mais difícil do que parece, devido a seu peso.

Em todos os três tipos de prova, há uma dupla de árbitros que ficam um de cada lado do alvo, para apontar se o tiro foi válido, contar os pontos e arrumar novamente o alvo - sim, porque, a cada tiro, o alvo é reconstruído; no khalk, por exemplo, é impossível derrubar todo o muro. É importante registrar também que, em todas as três provas, pelas regras da MÜKK, uma área de competição pode ter até 8 alvos paralelos, cada um com três arqueiros que se alternam nas rodadas de flechas, ou seja, até 24 arqueiros podem competir de cada vez; nesse caso, a distância entre um alvo e outro deve ser de pelo menos 4 m. A competição não é eliminatória, porém, com a colocação final não dependendo de em qual "trio" cada arqueiro estava.

Existe ainda um quarto tipo de prova, chamado övlijn, que não é reconhecida pela MÜKK, mas costuma ser disputada em alguns festivais realizados durante os meses de inverno - övlijn, inclusive, significa "inverno" em mongol. Nessa prova as flechas têm uma seta feita de latão, mas do mesmo diâmetro da flecha, sem nenhuma protuberância, como se fosse uma ponta esculpida nela; a razão é que nessa prova a flecha precisa perfurar um objeto, ao invés de derrubá-lo - esse objeto é um disco de madeira com 20 cm de diâmetro e cerca de 8 cm de espessura, cujas faces atualmente são pintadas em cores vivas como vermelho ou laranja. Após o arqueiro puxar a corda, um árbitro joga o disco para o alto, com uma das faces virada para o arqueiro, que deve atingi-la com a flecha antes que o disco toque o chão. A distância é de 30 m, e cada arqueiro dispara 3 flechas (com a anterior sendo tirada do disco antes do tiro seguinte, em caso de acerto).

Para terminar por hoje, vamos ver o tiro com arco tradicional nômade, que surgiu na Ásia Central, e hoje é extremamente popular no Quirguistão - a ponto de criar um problema para a Federação Quirguiz de Tiro com Arco, já que a maioria dos arqueiros prefere o tiro com arco tradicional, o que faz com que o Quirguistão jamais tenha conseguido classificar um atleta para uma competição internacional do tiro com arco da World Archery. Além de no Quirguistão, o tiro com arco tradicional nômade é popular no Uzbequistão, Turcomenistão, e em partes do Cazaquistão, Rússia e Mongólia. Como de costume, é um esporte totalmente amador, sem campeonatos profissionais, e não possui uma federação internacional, com seu principal órgão regulador sendo a Federação Quirguiz de Salbuurun (KRSF) - o salbuurun é um esporte que simula uma caçada, contando com provas de falcoaria, montaria, corrida de cachorros e tiro com arco, também muito popular no Quirguistão.

O arco do tiro com arco tradicional nômade também é feito de forma totalmente artesanal, usando madeira, chifres e tendões, com diferentes regiões usando diferentes tipos de árvores e animais em sua confecção; assim como ocorre com o tiro com arco tradicional mongol, em todas as competições sancionadas pela KRSF os arcos e as flechas usados têm de ser fabricados no Quirguistão, inclusive os usados por competidores estrangeiros. O arco possui cerca de 1,40 m de comprimento, e as flechas, feitas de madeira, com rêmiges de penas de aves e setas afiadas de latão, sem protuberâncias, têm cerca de 1 m de comprimento. A parte mais curiosa de uma prova de tiro com arco tradicional nômade, entretanto, é o alvo: trata-se de um cavalete de 60 cm de largura por 1 m de altura, no qual será afixado um papel com a figura de um animal, normalmente um íbex (espécie de cabra nativa da Ásia Central), sobre a qual são pintados três círculos concêntricos, de 30, 20 e 10 cm de diâmetro, nas cores verde, vermelha e amarela, valendo 1, 2 e 3 pontos, respectivamente.

Uma competição de tiro com arco tradicional nômade é composta de três etapas, sendo que, em cada uma, cada arqueiro dispara 10 flechas em duas rodadas de 5 flechas cada, tendo dois minutos para disparar suas cinco flechas. Na primeira etapa, os arqueiros se posicionam da forma usual em uma competição de tiro com arco, levemente de lado mas encarando os alvos; na segunda etapa, eles se posicionam de costas, com os calcanhares virados para o alvo, e devem girar o tronco para poder enxergá-lo e disparar as flechas; já na terceira etapa os arqueiros se posicionam de frente, mas ajoelhados, com um dos joelhos tocando o solo e o outro apontado para o alvo, com a sola desse pé em contato total com o solo. Nas fases eliminatórias da competição, a distância dos arqueiros para os alvos é de 30 m no feminino e 35 m no masculino, enquanto na final é de 35 m no feminino e 40 m no masculino.

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