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sábado, 24 de maio de 2025

Escrito por em 24.5.25 com 0 comentários

Lutas Exóticas

Hoje eu vou falar mais uma vez sobre esportes exóticos, e mais uma vez por causa dos Jogos Mundiais Nômades. Porque eu tenho a intenção de, assim como eu fiz com as Olimpíadas, falar sobre todos os esportes que já fizeram parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades, e percebi que três dos que estão faltando são lutas. Diante disso, decidi juntar mais uma luta, sobre a qual eu penso em falar já há algum tempo, mas não queria fazer um post só pra ela, e criar esse post aqui - que, por falta de um nome melhor, se chamará lutas exóticas.

Vamos, então, começar justamente pela luta que nunca esteve nos Jogos Mundiais Nômades, o silambam. O silambam é uma luta de origem indiana, e surgiu na região onde hoje está localizado o estado de Tamil Nadu, território originalmente pertencente ao povo tâmil. Segundo a lenda, o silambam surgiu por volta do ano 1000 a.C., e foi criado pelo sábio Agastya Munivar, como um treinamento para o corpo e a mente - silam significa "montanha", e bam significa "bambu", uma referência à dureza e à leveza, ao vigor da defesa e à arma usada para os ataques. A primeira menção escrita a essa luta data do século II a.C., no texto religioso Sillappadikkaram, que diz que ele já era praticado na região desde dois séculos antes. E achados arqueológicos sugerem que o silambam pode existir desde 10.000 a.C., sendo dez vezes mais velho do que a lenda de Agastya diz que ele é.

Seja como for, o silambam, assim como todas as artes marciais, passou por diversas modificações ao longo do tempo, sempre mantendo sua essência. A primeira foi na dinastia Pandya, entre os anos 560 e 590, quando o rei Kadungon determinou que a prática do silambam era obrigatória por todos os militares. A prática da luta caiu em desuso nos anos seguintes, mas teria um volta à moda a partir de 1613, no reinado de Varagunarama. Entre 1760 e 1799, o rei Kattabomman retomaria a obrigatoriedade do ensino do silambam entre os militares, que usariam a luta para expulsar de Tamil Nadu os colonizadores ingleses. No final, os ingleses venceriam e proibiriam a prática do silambam em todo o território indiano, o que quase levaria ao desaparecimento da arte marcial. Após a independência, em 1947, de forma tímida, os mestres de silambam passariam não somente a tentar trazer a luta de volta ao seu período de glória, mas também a espalhariam por todo o país - como a Índia tem muitos idiomas, é comum o silambam ser conhecido em cada estado por um nome diferente: nedu vadi em Kerala, karra saamu em Andhra Pradesh, dhanta varisai em Karnataka, lathi em Uttar Pradesh (onde fica o Taj Mahal), marithani em Maharashtra (onde fica Mumbai), dhal lakadi em Gujarat, patta pachi no Punjab e em Haryana, e kathga em Jharkhand e Bihar.

Com o silambam sendo praticado em todo o país e sendo levado por imigrantes indianos para todo o planeta, começariam os esforços para transformá-lo em um esporte, unificando suas regras e realizando campeonatos. Esses esforços culminariam, em 1994, na fundação da federação indiana de silambam (AISF), e, em 1999, da associação mundial de silambam (WSA), sediada na Malásia, que hoje conta com 25 membros dos cinco continentes, e organiza, a cada dois anos desde 2004, o Campeonato Mundial de Silambam. A WSA atualmente está testando as regras de uma versão paralímpica do silambam, e tem como ambicioso projeto a inclusão do silambam nas Olimpíadas e Paralimpíadas - o que parece improvável sem um substancial aumento no número de praticantes e de países-membros. O silambam foi esporte de demonstração nos Jogos da Commonwealth de 1998, realizados em Kuala Lumpur, capital da Malásia, o que deu um empurrão para a criação da WSA, mas não trouxe a popularização esperada para o esporte.

O silambam usa vários tipos de armas. A mais tradicional é o bam, um bastão de bambu de 2,5 cm de diâmetro, cujo comprimento deve ser suficiente para que ele, apoiado no chão, chegue à altura das sobrancelhas do lutador. Esse comprimento permite que o lutador mantenha uma certa distância do oponente, impedindo o uso contra ele de armas como facas e espadas. Outras armas além do bam são os sedikuchi, dois bastões de bambu curtos, com cerca de 1 m de comprimento cada, usados um em cada mão; a lança vel; a faca katti; a espada curva vall; o chicote savuku; a curiosa espada surul kaththi, composta por uma empunhadura e entre duas e cinco lâminas com entre 30 e 50 cm de comprimento cada ligadas por elos de correntes, o que faz com que ela seja flexível como um chicote; as aruval, duas foices de mais ou menos 1 m de comprimento, usadas uma em cada mão; o panthukol, bastão de 1,5 m de comprimento que tem em cada ponta uma corrente e uma bola penduradas, que podem ser espinhentas ou estar em chamas; o katar, adaga tradicional indiana de lâmina triangular e empunhadura em formato de H; e o maduvu, madu ou maru, curiosa arma feita com os chifres do antílope indiano, também usada uma em cada mão, difícil de manejar e de curto alcance, mas mortal nas mãos de um mestre, que, com seu uso apropriado, pode até desarmar oponentes ou impedir que eles o atinjam com qualquer arma.

Assim como o wushu, o silambam possui uma categoria "artística", chamada thanithiramai, na qual o objetivo não é derrotar um oponente, e sim demonstrar a perícia do lutador com as armas ou desarmado. A WSA reconhece dez provas individuais, sendo duas para o bam, cada uma com movimentos válidos próprios (chamadas kambu veechu e alangara veechu), uma para os sedikuchi (erattai kambu veechu), uma para a vel (vel kambu veechu), duas para a vall (otrai vall veechu, com uma espada, e erattai vall veechu, com duas), duas para a surul kaththi (otrai surul vall veechu, com uma espada, e erattai surul vall veechu, com duas), uma para o maduvu (maduvu veechu) e uma desarmada (kuthu varisai). O thanithiramai também possui uma versão em duplas, chamada autha korvai jodi, na qual os competidores fingem estar enfrentando um ao outro, e uma em trios, chamada kulu ayutha veechu, na qual também são avaliados sincronismo e interação. Tanto nas duplas quanto nos trios podem ser usadas quaisquer armas da versão individual (bam, sedikuchi, vel, vall, surul kaththi ou maduvu).

O uniforme do silambam é composto por uma camisa branca de algodão de mangas curtas e gola redonda com detalhes em preto nas barras, com o único detalhe colorido permitido sendo o símbolo do clube, país ou patrocinador no peito, com as mulheres podendo usar um top esportivo branco ou preto por baixo; sapatilhas e meias também de cor branca, podendo ter detalhes em preto; e calças compridas largas de cor preta, também de algodão. Para a modalidade de luta, que se chama kambu sandai e sempre usa o bam, os lutadores também devem usar coletes protetores, protetores faciais com grade, tipo o de um catcher do beisebol, protetores de virilha e caneleiras. Assim como em outras lutas desportivas, no kambu sandai os lutadores são divididos em categorias de peso, para maior justiça. Tanto no masculino quanto no feminino são nove categorias diferentes, mas no masculino as categorias são até 50 kg, até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 85 kg e acima de 85 kg, enquanto no feminino são até 45 kg, até 50 kg, até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg e acima de 80 kg.

A área de luta do silambam, usada tanto no thanithiramai quanto no kambu sandai é um quadrado de 10 x 10 m, semelhante a um tatame, preferencialmente de cor azul clara, com um dos cantos de cor vermelha e o diagonalmente à sua frente de cor azul escura; um dos lutadores sempre usará colete vermelho e o outro azul, dependendo do canto no qual começam a luta. Para o kambu sandai, dentro desse quadrado são traçados três círculos concêntricos: o mais largo tem 7,32 m de diâmetro e é de cor vermelha, o do meio tem 6,1 m de diâmetro e é de cor amarela, e o menor tem 1,83 m de diâmetro e é de cor branca. Entre o círculo vermelho e as laterais do quadrado é a zona livre, onde não pode ficar nenhum elemento; entre o vermelho e o amarelo é a zona de advertência; entre o amarelo e o branco é a zona de combate; e o círculo branco delimita a zona de início.

Numa competição de kambu sandai, os lutadores começam com os pés sobre o círculo branco e, a um comando do árbitro central, iniciam o combate, que deve ocorrer dentro da zona de combate. Pisar voluntariamente na zona de advertência gera, bem, uma advertência, mas cair lá em decorrência de um movimento ou ser empurrado para lá pelo adversário não resulta em nada, a não ser uma advertência para o adversário, dependendo do caso. Um golpe que comece na zona de combate mas termine na zona de advertência pode ser considerado válido, dependendo da forma como foi executado. Uma luta de kambu sandai é oficiada por um árbitro central, que fica dentro da área de luta com os lutadores; uma mesa, posicionada à direita do canto azul, que controla o tempo e anota os pontos e faltas; e um painel de cinco jurados, dois posicionados à esquerda do canto vermelho, dois à esquerda do azul, e um à direita do vermelho, que conferem os pontos aos lutadores.

Uma luta de kambu sandai é disputada em melhor de três rounds de três minutos cada. A cada round a pontuação é zerada; se o mesmo lutador ganhar os dois primeiros rounds, ele é declarado vencedor da luta, mas, se cada lutador ganhar um round, é disputado um terceiro, com aquele que ganhar o terceiro round sendo o vencedor. Tocar o oponente sem força vale 1 ponto, golpes com força efetuados com o lutador mantendo pelo menos um pé no chão valem 2 pontos, e golpes efetuados com o lutador no ar, ou seja, com os dois pés fora do chão, valem 3 pontos. As áreas válidas para o lutador acertar com o bam são peito, ombros, braços, barriga, costelas, coxas, canelas e pés; acertar o bam do oponente não vale pontos, mas também não é falta, enquanto acertar uma área proibida, como cabeça, pescoço, costas, mãos ou virilha pode resultar em ponto para o adversário ou desclassificação - assim como usar golpes inválidos ou ter conduta antidesportiva.

Já para o thanithiramai é traçada na área de luta apenas o círculo branco, mas a área de competição efetiva tem apenas 9 x 9 m, com o 1 m restante sendo de cor vermelha e representando a zona proibida. Os competidores começam dentro do círculo branco, e devem fazer sua apresentação sem tocar a zona proibida, pois isso resulta em perda de pontos. Eles serão avaliados por um painel de cinco jurados, todos posicionados à direita do canto vermelho - de frente com a mesa, que controla o tempo e anota as pontuações dos lutadores, posicionada à direita do canto azul. Nas modalidades individuais cada competidor terá 2 minutos para se apresentar, e, nas de duplas e trios, cada conjunto terá 3 minutos, em todos os casos recebendo notas por realizar corretamente os movimentos obrigatórios, pela beleza plástica dos elementos opcionais, pela transição fluida entre um movimento e outro, e pela aplicabilidade dos movimentos apresentados em uma situação real de combate.

Vamos passar para uma luta de origem coreana, o taekkyeon, também grafado taekkyon, taekgyeon ou taekyyun. O taekkyeon é considerado a arte marcial mais antiga da Coreia, mas suas origens exatas são desconhecidas. Sua primeira referência escrita está no livro Jaemulbo, escrito entre 1776 e 1800, na Dinastia Joseon, mas estudiosos afirmam que ele pode ter sido criado no século III. Sua primeira referência no ocidente seria no livro Korean Games, do antropólogo norte-americano Stewart Cullin, publicado em 1895; segundo Cullin, durante a Dinastia Joseon o taekkyeon era amplamente praticado, e existia em duas versões, uma usada pelos militares, com aplicações práticas em combate, outra popular dentre as camadas mais pobres da população, com torneios ocorrendo durante festivais. Também vale citar o prefácio de um livro sobre o taekkyeon escrito pelo mestre Song Deok-gi, mais conhecido pelo pseudônimo Hyeonam: "não se pode precisar quando o taekkyeon surgiu, mas, até o fim do Reino da Coreia, as pessoas o praticavam".

Seja como for, após o fim da Dinastia Joseon, o taekkyeon cairia em declínio, até que, no início do século XX, só seria praticado na capital (então chamada Hanyang). Durante a ocupação japonesa na Segunda Guerra Mundial, a prática do taekkyeon seria proibida, e a arte marcial quase desapareceria; seria graças a Deok-gi, considerado "o último mestre de taekkyeon vivo", que a arte marcial seria salva do esquecimento: após o final da Guerra da Coreia, Deok-gi, que havia sido aluno do grande mestre Im Ho, e permaneceu ensinando o taekkyeon em segredo durante a ocupação, conseguiria convencer o presidente Syngman Rhee da importância de sua preservação, e, após uma apresentação no aniversário do presidente, em 26 de março de 1958, receberia permissão e apoio financeiro para viajar por toda a Coreia do Sul ensinando e divulgando o taekkyeon.

A partir de então, o taekkyeon passaria a ser visto como um importante elo com a história da Coreia, até que, em 1983, graças a um movimento liderado por um aluno de Deok-gi chamado Shin Han-seung, seria declarado Patrimônio Imaterial pelo governo sul-coreano, que financiaria a abertura de escolas nas quais ele pudesse ser ensinado e estimularia sua inclusão no programa esportivo das universidades. O primeiro torneio nacional de taekkyeon ocorreria na cidade de Busan em junho de 1985, após o qual seriam fundadas duas organizações: a Widae Taekkyon, que busca preservar a pureza da arte marcial, e a federação mundial de taekkyeon (WTKF), sediada na Califórnia e fundada por pupilos de Han-seung, que foca na parte esportiva do taekkyeon, adaptando suas regras para permitir sua popularização ao redor do planeta e a organização de campeonatos - as duas organizações são rivais, com a WTKF achando que a Widae condena o taekkyeon ao atraso, enquanto a Widae considera que a WTKF deturpa a essência da arte marcial.

A principal característica do taekkyeon é o jogo de pernas, chamado pumbalki, ou "andar em triângulos". Realizado em um ritmo próprio, semelhante a uma dança, com o qual o lutador se move como se estivesse desenhando um triângulo no chão com os pés, o pumbalki tem como objetivo fortalecer a linha da cintura e harmonizar os ataques e defesas. Outro conceito característico é o hwalgaejit, movimentos feitos com os braços que visam distrair o oponente para que ele seja surpreendido pelos golpes, mas que originalmente foram criados para ajudar o lutador a manter o equilíbrio durante o pumbalki. Por causa desses dois conceitos, uma luta de taekkyeon é plasticamente muito interessante, se parecendo com uma dança. Os principais golpes usados são os chutes (baljil) e agarrões, com o objetivo do lutador sendo derrubar o oponente ou empurrá-lo para fora da área de competição, e não acertá-lo com força como no taekwondo.

Pelas regras da WTKF, o taekkyeon é disputado em um tatame quadrado, de 3 x 3 m; a área central desse quadrado, de cor verde e 2 x 2 m, é a área válida de luta, e o restante, de cor vermelha, é a zona livre, onde não pode haver nenhum elemento. Para que um golpe seja válido, ambos os lutadores têm de estar dentro da área de luta, mas uma queda é considerada válida se um golpe começar na área de luta e o oponente cair fora dela. O uniforme consiste de uma calça branca de algodão, sapatilhas brancas e uma camisa tradicional, também feita de algodão, de mangas compridas que devem ser dobradas até a altura dos cotovelos, e aberta na frente, sendo usada uma faixa amarrada na cintura para fechá-la - mulheres podem usar um top ou camiseta por baixo. A faixa normalmente é preta e a camisa pode ser de qualquer cor, mas, em competições oficiais, um dos lutadores sempre usa camisa azul e o outro vermelha.

Uma luta de taekkyeon é disputada em melhor de três rounds, sendo que cada round dura até que um dos lutadores seja derrubado, e aquele que derrubar o oponente duas vezes é declarado vencedor. A luta é oficiada por três árbitros, sendo que um fica de pé junto aos lutadores, e os outros dois ficam sentados em cantos opostos do tatame. Em torneios oficiais, o árbitro central usa o mesmo uniforme dos lutadores, mas com camisa e faixa de cor amarela, e traz um leque na mão com os quais faz os sinais de pontos e faltas. Quando um lutador comete uma falta, ele recebe uma advertência, e, dependendo da gravidade da falta ou do número de advertências, ele pode ser considerado perdedor do round ou da luta. Em torneios oficiais, os lutadores são divididos em categorias de peso, mas a WTKF não tem categorias oficiais, com a divisão normalmente ocorrendo de 5 em 5 kg (até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, e assim por diante).

Embora a popularidade do taekkyeon cresça a cada dia, ainda é difícil organizar torneios, e a WTKF ainda não conseguiu organizar um Mundial, atuando principalmente na organização de torneios nos Estados Unidos. Todos os torneios de taekkyeon são organizados a nível regional ou nacional, com os torneios na Coreia do Sul sendo de responsabilidade de três organizações, a Federação Coreana de Taekkyon (KTF), fundada em 1991 e sediada dentro do Parque Olímpico de Seul; a Associação Coreana de Taekgyeon Tradicional (KTTA), fundada em 1995 e baseada na cidade de Chungju, que segue regras ligeiramente diferentes, criadas pelo mestre Jeong Kyung-hwa, segundo ele mais próximas das usadas na Dinastia Joseon; e a Associação de Taekyyun Kyulyun (KTK), fundada em 2000, sediada em Seul, que organiza o campeonato asiático e o mais famoso torneio de taekkyeon da Coreia do Sul, o Taekyyun Battle, organizado anualmente desde 2004.

A coisa mais próxima que o taekkyeon teve de um campeonato mundial foi justamente sua inclusão como esporte de demonstração na primeira edição dos Jogos Mundiais Nômades, em 2014, no Quirguistão. Foi realizado apenas um torneio masculino, sem valer medalhas, mas com lutadores de 10 países, muitos deles na verdade lutadores de taekwondo. Vale citar também que, em 2011, o taekkyeon foi incluído na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, se tornando a primeira arte marcial a conseguir esse feito.

O terceiro esporte que veremos hoje é o bokh, que já esteve em duas edições dos Jogos Mundiais Nômades: em 2018, no Quirguistão, como parte do programa, e em 2022, na Turquia, como esporte de demonstração, sem valer medalhas. O bokh surgiu na Mongólia, também em tempos imemoriais: pinturas datadas do ano 7000 a.C. encontradas na região da província de Bayankhongor já mostram dois homens lutando com uma multidão assistindo, embora não se possa saber se eles seguiam as regras do bokh ou não; a mais antiga referência específica ao bokh está em duas placas de bronze encontradas dentre as ruínas do Império Xiongnu, que durou de 206 a.C. a 220 d.C. Como de costume, o bokh era um treinamento militar, que visava aumentar a força, o vigor e os reflexos das tropas; Genghis Khan era um entusiasta do bokh, e estabeleceu o costume, seguido por todos os imperadores posteriores, de promover a luta não somente em treinamentos, mas também em festivais, chamados Naadam. Segundo registros, os melhores lutadores também avançavam mais rapidamente no exército, conseguindo promoções e patentes melhores.

O bokh era a principal atração dos Jogos de Urga, que ocorreram entre 1778 e 1924, com seus lutadores sendo verdadeiros superastros, responsáveis por atrair multidões para assistir suas lutas; nesse período, suas regras já estavam bem estabelecidas, com as atuais sendo praticamente idênticas. Os Jogos de Urga seriam interrompidos com a Revolução Comunista, mas a prática do bokh não, com os Naadams ainda sendo realizados, e os principais lutadores sendo condecorados com a Medalha do Trabalhador. O mais famoso lutador de bokh da história foi Jambyn Sharavjamts, que, aos 18 anos, ganhou o título de avarga (titã) ao ser campeão dos Jogos de Urga de 1894; ele somente se aposentaria em 1951, aos 75 anos, e há vídeos dele competindo em um Naadam em 1945, prestes a completar 70 anos e derrotando três oponentes muito mais jovens.

Com o fim do comunismo na Mongólia, em 1992, começariam esforços para preservar a integridade do esporte, para evitar que pressões financeiras o descaracterizassem, que culminaram com a fundação da Federação Internacional de Bokh Mongol (que tem a bizarra sigla AEMWF) - na Mongólia, desde a Revolução Comunista até hoje, o bokh é regulado pelo Ministério do Esporte. O principal campeonato da AEMWF é o Campeonato de Luta para a Etnia Mongol, que tem esse nome curioso porque é aberto a lutadores de todo o planeta, mas apenas mongóis ou descendentes de mongóis podem participar. Realizado anualmente desde 2009, com a sede se alternando entre Mongólia, Rússia e China, o Campeonato possui duas categorias (inicialmente abaixo e acima de 75 kg, atualmente abaixo e acima de 85 kg) e é exclusivamente masculino; ainda assim, ele é considerado a maior vitrine para a popularização do bokh no restante do mundo.

Mas onde o bokh brilha é mesmo na Mongólia, onde são realizados centenas de torneios por ano; o maior de todos é o Naadam Nacional, realizado anualmente em julho na capital, Ulaanbaatar, com a presença de 512 lutadores - ou 1024 em edições especiais. Abaixo dele estão os Aimag Naadam, 21 torneios regionais com 128 ou 256 lutadores cada, e abaixo deles ficam os Sum Naadam, 329 torneios locais com a presença de 32 ou 64 lutadores cada. Todos os Naadam são organizados pelo Ministério do Esporte, são exclusivamente masculinos, e disputados na categoria absolutos, ou seja, sem divisão dos lutadores por peso - a média de peso dos lutadores em um Naadam fica por volta dos 115 kg, mas já ocorreu de um lutador de 70 kg ter de enfrentar um de 160 kg. Para evitar que isso aconteça, os lutadores não são sorteados, com todas as lutas sendo definidas pela organização do torneio, o que também permite que os favoritos não se enfrentem nas primeiras rodadas; sorteios só costumam ser usados no Naadam Nacional, e, mesmo assim, somente a partir das oitavas de final.

Da mesma forma que artes marciais como o judô e o caratê usam faixas coloridas para determinar a perícia dos lutadores, o bokh usa títulos. O título mais baixo é o de Falcão do Sum, conferido ao lutador que alcance a semifinal em um Sum Naadam; o vencedor de um Sum Naadam é coroado Elefante do Sum. Nos Aimag Naadam, um lutador que alcance as semifinais ganha o título de Falcão, o vice-campeão o de Elefante, e o campeão o de Leão do Aimag. No Naadam Nacional, um lutador que alcance as oitavas de final ganha o título de Falcão do Estado, as quartas de final o de Gavião, as semifinais o de Elefante, o vice-campeão ganha o título de Garuda, e o campeão o de Leão do Estado. Um lutador que ganhe 2 Naadam Nacionais é coroado Titã, um que ganhe 4 se torna Grande Titã, e um que ganhe 5 se torna Titã Gigante. À exceção do Titã, um lutador que alcance em um torneio o mesmo título que havia alcançado no anterior ganha o título de unen zorigt, que significa "verdadeiramente corajoso" - por exemplo, um lutador que seja falcão dois anos seguidos se torna um "falcão verdadeiramente corajoso".

Outros torneios além dos Naadam também são organizados anualmente na Mongólia e fora dela; os mais famosos são os chamados Danshig, torneios com 128 ou 256 lutadores organizados por prefeituras ou governos regionais para celebrar alguma ocasião, como o aniversário de uma cidade. Fora da Mongólia, o torneio mais famoso é o Altargan, realizado anualmente na República Russa da Buriácia, que tem uma grande população mongol, e conta com a presença de lutadores da Mongólia, da Buriácia e da província chinesa da Mongólia Interior. Também é muito famoso o Torneio de Ano Novo, disputado anualmente em Ulaanbaatar com a presença de 256 lutadores, e considerado o segundo torneio mais importante abaixo do Naadam Nacional - normalmente, inclusive, quem ganha o Torneio de Ano Novo ganha o Naadam Nacional do mesmo ano. Outros torneios comemorativos podem ser realizados em qualquer época, como um realizado em Ulaanbaatar em 2011 que contou com 6002 lutadores, entrando para o Livro Guinness dos Recordes.

O bokh é disputado em uma área que pode ser um quadrado de 20 x 20 m ou um círculo de 20 m de diâmetro; a superfície pode ser um tatame, um gramado, ou de areia, desde que não tenha nenhum traço de cascalho. A mais famosa arena de bokh do mundo é a Bökhiin Örgöö em Ulaanbaatar, onde são disputados o Torneio de Inverno e o Naadam Nacional, mas, na maioria dos torneios, incluindo os Sum Naadam, a luta é disputada ao ar livre. A área de luta não conta com nenhuma marcação, mas o oponente deve ser derrubado dentro da área válida para que a vitória possa ser contabilizada. Há apenas um árbitro, que acompanha os lutadores, e cada lutador tem direito a um zasuul, que não é um treinador, mas uma espécie de amigo que o incentiva durante a luta, podendo até mesmo entrar na área de luta e dar tapinhas em seu corpo.

As regras do bokh são as mais simples possível: basta fazer com que qualquer parte do corpo do oponente acima dos joelhos (exceto as mãos) encoste no chão e você será o vencedor - não há rounds, quem cair perde e é eliminado do torneio. Também não há limite de tempo, mas, se o árbitro decidir que a luta está demorando demais, pode exigir que os lutadores parem a luta e recomecem em uma posição que facilite que eles sejam derrubados. Nos Sum Naadam é comum os lutadores começarem já agarrados, mas o normal é eles começarem sem contato físico. As regras da AEMWF permitem que os lutadores agarrem as pernas dos oponentes, mas, na Mongólia, só é permitido agarrar da cintura para cima. Nas regras usadas na China, é permitido contato entre as pernas dos lutadores - como em uma rasteira - mas, no restante do mundo, os lutadores só podem usar as mãos. Lutadores que demonstrem conduta antidesportiva ou usem movimentos proibidos - como agarrar o oponente pela roupa - podem ser desclassificados pelo árbitro.

Mas o mais interessante do bokh eu deixei para o final: o uniforme. Adaptado das roupas tradicionalmente usadas pelos soldados mongóis, ele é composto por três peças: o zodog, um colete de mangas compridas feito de lã, algodão ou seda, que deixa a barriga de fora e ainda por cima é totalmente aberto na frente, sendo amarrado, para não cair, por uma fita na altura do umbigo, segundo a lenda, para que nenhuma mulher possa se fingir de homem e disputar um torneio; o shuudag, que se parece com uma sunga de algodão; e os gutal, botas de couro que devem cobrir até metade das panturrilhas. Também é obrigatório que os lutadores entrem e saiam da área de competição realizando uma dança; normalmente são danças tradicionais, mas os lutadores mais famosos ou mais vitoriosos costumam criar suas próprias danças, pelas quais são reconhecidos pelos fãs.

Para terminar, vamos ver o gyulesh, também grafado gülesh. O gyulesh é uma luta de submissão que surgiu no Azerbaijão, e já fez parte dos Jogos Mundiais Nômades três vezes: em 2016 e 2018 como parte do programa, e em 2022 como esporte de demonstração. É uma luta exclusivamente masculina, e, como qualquer luta de submissão, tem como objetivo derrubar o oponente no chão, sendo vencedor quem conseguir fazer com que o oponente encoste as duas omoplatas no solo. Uma de suas principais características, entretanto, é que, antes da luta, os lutadores devem fazer uma apresentação coreográfica parecida com uma dança, chamada meydan gazmek, que deve ter duração máxima de um minuto, e ser realizada ao som de uma música típica chamada dzanghi. Os lutadores, conhecidos como pekhlevans se apresentam juntos, cada um com sua própria coreografia, mas devendo apresentar movimentos obrigatórios, que incluem levantar as mãos enquanto se aproximam do oponente, tocar as mãos do oponente e saltar para longe do oponente.

Além de ser obrigatória, a apresentação influencia na luta: a seu final, os árbitros decidirão qual dos dois pekhlevans se apresentou melhor, e esse será avaliado como plus, enquanto o outro será avaliado como minus. Caso a luta termine empatada, a vitória será do pekhlevan avaliado como plus, o que faz com que o minus tenha de se empenhar mais durante a luta. Depois do fim da apresentação e da escolha do plus, os pekhlevans se cumprimentam com um aperto de mão, e depois realizam um ritual durante o qual eles irão, de frente um para o outro e em posição de luta, andar como se estivessem desenhando um círculo, chocando-se três vezes de forma que seus ombros se toquem e eles façam um movimento como se tivessem sido repelidos a cada vez. Após a terceira vez, eles pulam para trás, o árbitro principal apita, e a luta começa. Uma luta de gyulesh tem duração de cinco minutos.

Atualmente, para ajudar na popularização do esporte, o gyulesh é disputado no mesmo mat da luta olímpica; o uniforme consiste de uma calça de algodão amarrada na cintura com um cordão, cujas pernas terminam logo abaixo dos joelhos, também sendo amarradas com cordões, para ficarem justas, mais meias e sapatilhas de luta. Tradicionalmente, ambos os lutadores usavam calças de cor preta, mas atualmente, em torneios, um usa calça vermelha e o outro, azul. Os principais golpes usados são agarrões e arremessos, e os lutadores são especialistas em rolar e se levantar de novo quando derrubados - porque simplesmente tocar as omoplatas no solo não caracteriza derrota, com o contato devendo ser de no mínimo 1 segundo. A luta é oficiada por três árbitros, sendo um central, que a acompanha junto aos pekhlevans no mat; um juiz de linha, que fica fora do mat mas pode apontar faltas, irregularidades, ou até mesmo a vitória, caso o árbitro central não a veja; e um chefe de arbitragem, que controla o tempo da luta e os pontos.

Além de vencer a luta fazendo com que o oponente toque as omoplatas no solo, um pekhlevan pode vencer por pontos: se ele conseguir fazer com que o oponente caia no chão de barriga para baixo, ganhará 1 ponto; conseguir fazer com que ele toque a cabeça ou os ombros no solo vale 2 pontos; fazer com que ele caia de costas no solo, sem tocar as omoplatas, vale 3 pontos; e conseguir levantar o oponente e jogá-lo no solo com força e amplitude vale 5 pontos. Da mesma forma, faltas e irregularidades durante a luta podem fazer com que os pekhlevans percam pontos. Outra forma de ganhar a luta é através de touché: se um dos lutadores tocar o solo com as duas mãos, e o outro conseguir segurá-lo de forma que o árbitro determine que é impossível para ele se levantar, a luta termina com vitória por touché para o que está segurando. Da mesma forma, se um lutador toca as omoplatas no solo durante menos de um segundo, mas, com o mesmo movimento, o oponente consegue fazer com que ele toque uma segunda vez, mesmo que também por menos de um segundo, o lutador perde por touché.

Como de costume, o gyulesh é uma luta antiquíssima, sendo praticada no Azerbaijão há séculos, e originalmente usada no treinamento de militares. Durante a época da União Soviética ele teve uma queda de popularidade, mas, desde a década de 1990, vem tendo um renascimento, graças aos esforços da Federação de Luta do Azerbaijão (AGF), que organiza vários torneios locais e regionais no país, bem como o campeonato nacional, disputado anualmente sempre nas cidades de Baku, Ganja ou Ordubad, que possuem arenas exclusivas para a sua prática. As categorias de peso no campeonato nacional são até 60 kg, até 70 kg, até 80 kg, até 90 kg, e acima de 90 kg, mas outros torneios podem ter categorias diferentes. Ainda não existe uma federação internacional ou um campeonato mundial, e, quando ocorre um torneio internacional, como os Jogos Mundiais Nômades, os lutadores de fora do Azerbaijão costumam ser originários de outras lutas, como o pahlavani ou até mesmo a luta olímpica.
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sábado, 25 de janeiro de 2025

Escrito por em 25.1.25 com 0 comentários

Esportes Nômades

Eu sou completamente fascinado pelos Jogos Mundiais Nômades, desde que descobri que eles existem. Não sei se pelo fato de descobrir que existe mais um torneio esportivo do qual pouca gente aqui no Brasil já ouviu falar - "mais um" porque algo semelhante aconteceu quando eu descobri que existiam os World Games - ou porque os esportes do programa são verdadeiramente exóticos, completamente diferentes dos que a gente está acostumado, mas eu busco me informar sobre tudo o que tenha relação com o torneio, o que nem sempre é fácil, já que quase não há informações em inglês e eu não falo nem quirguiz, nem cazaque, as duas línguas nas quais a maior parte das informações está disponível na internet. Evidentemente, desde que eu descobri que o torneio existe, eu também tenho tentado falar sobre os esportes do programa aqui no átomo, os inserindo em posts sobre esportes que tenham relação com eles, ou escrevendo posts específicos, como os do buzkhashi e do ordo.

Acontece que alguns desses esportes não se encaixam em lugar nenhum, nem têm detalhes suficientes para ganhar um post só deles, e deles eu já tinha meio que desistido, achando que nunca falaria sobre eles aqui. Só que a edição mais recente, realizada em Astana, Cazaquistão, no ano passado, trouxe mais alguns esporte novos, o que me animou a juntar todos e escrever esse post. Hoje, portanto, é dia, no átomo, de cinco esportes que fizeram parte dos Jogos Mundiais Nômades sobre os quais eu ainda não havia falado. De esportes nômades, por falta de um título melhor para o post.

E vamos começar por um verdadeiramente exótico, o salbuurun, que não surgiu como um esporte, mas como uma necessidade: na antiguidade, os povos nômades da Ásia Central precisavam caçar pequenos animais para obter carne e peles necessárias à sua subsistência, mas acreditavam que matar animais usando armas, como lanças e machados, era cruel e danificava o couro dos bichos. Eles, então, decidiram treinar aves de rapina para caçar por eles, considerando que a ave matar o animal era mais misericordioso e mais limpo, já que ela não mata com suas garras ou bico, mas quebrando seu pescoço. Esse treinamento não era exclusivo da Ásia Central, sendo conhecido em diversos lugares como falcoaria; o que acontece é que a arte tinha esse nome justamente por usar falcões, que, na região que hoje corresponde ao Quirguistão, eram considerados pouco eficientes. Os nômades da região, então, decidiriam ousar e treinar a águia dourada, mais letal animal alado da Ásia Central e um dos mais poderosos e inteligentes do mundo, para enviá-la em missões de caça. A águia dourada é tão forte que podia caçar não somente coelhos e raposas, mas também lobos, contribuindo, dessa forma, para a segurança da aldeia.

A maioria das aldeias possuía apenas um ou dois treinadores - chamados berkutchi, já que a águia dourada, em quirguiz, é berkut - com a tradição sendo passada de pai para filho. Um dos motivos é que o treinamento é dificílimo, e um berkutchi literalmente dedica sua vida a seu ofício. Para que uma águia seja considerada totalmente treinada e confiável, o treinador leva entre 3 e 4 anos, com o processo começando com o berkutchi capturando um filhote de águia diretamente do ninho - o que é extremamente perigoso, já que ele pode ser atacado e até mesmo morto pela mamãe águia. Uma vez que o filhote tenha sido adquirido, o berkutchi tem que ficar junto a ele 24 horas por dia, para que o reconheça como um amigo e para que se torne dependente dele - durante toda a sua infância, a águia não poderá se alimentar sozinha, com toda a sua alimentação devendo ser providenciada pelo berkutchi. Parte do treinamento também envolve manter a águia no escuro, com a cabeça coberta por um capuz de couro, enquanto o treinador conversa com ela e canta para ela, para que ela se acostume e reconheça sua voz e seus comandos.

Uma vez que a águia esteja pronta para o treinamento prático, é usada uma raposa empalhada, presa a uma corda. Esse treinamento faz com que a águia se acostume a matar mas não comer a presa, nem carregá-la para longe - e o fato de a raposa ser empalhada e estar presa também permite que ela seja usada no treinamento de várias águias. A águia também é treinada para, depois de matar o animal, voltar e pousar na mão do berkutchi, que usa uma luva especial de couro, sem trazê-lo, para não se cansar. Quando a águia está suficientemente treinada com a raposa empalhada, o berkutchi passa a levá-la para caçar animais reais, mantendo sua cabeça coberta até avistar uma presa em potencial. Como recompensa, a águia recebe uma pequena parte da carne de cada animal que matar logo após o treinador recuperá-lo; o restante é levado para a aldeia, onde o restante da carne e a pele serão aproveitados.

Uma águia dourada pode viver cerca de 40 anos caso não ocorra nenhum acidente, de forma que são raros os berkutchi que treinam mais de uma ao longo da vida. Águia e berkutchi têm um relacionamento monogâmico, com o animal sendo considerado parte da família do treinador, que, quando está fora da temporada de caça, ainda precisa passar a maior parte de seu tempo conversando com a águia e a alimentando, senão há o risco de ela voltar a ser selvagem e todo o treinamento ser perdido. A tradição manda que, quando a águia passa dos 20 anos de idade, o berkutchi a liberte para que ela passe pelo menos metade de sua vida como o animal selvagem que ela nasceu para ser. O treinamento é tão eficaz, entretanto, que as águias não querem se separar de seus treinadores, levando cerca de uma semana para, naturalmente, decidirem voltar à vida selvagem, com o treinador não podendo obrigá-la nem maltratá-la para que ela retorne mais cedo.

O tempo passou, e a caça parou de ser necessária, com os povos nômades deixando de ser nômades, se estabelecendo em vilarejos que se transformariam em cidades, e passando a se dedicar à agricultura e à criação de animais. A caça usando águias poderia ter desaparecido completamente nessa época, se não fosse pelo fato de que, devido à sua importância para a sobrevivência das aldeias, as águias douradas passaram a ser consideradas animais sagrados, com os berkutchi, ganhando status elevado dentre a população, se tornando guardiões das técnicas que possibilitavam a ajuda dos animais durante as caçadas, seguindo com o treinamento mesmo que esse já não fosse vital. Ainda assim, o número de berkutchi decrescia a cada ano, até que, em 1997, o governo do Quirguistão, para evitar que a tradição desaparecesse, decidiu criar a Federação Nacional de Salbuurun, nome que criou para um esporte que envolve, dentre outras coisas, a caça usando a águia dourada.

A prática do salbuurun como esporte não começaria em 1997, entretanto; praticamente desde que a caça parou de ser essencial à subsistência do povo quirguiz, treinadores de todo o país se reuniam em festivais, o mais famoso deles em Issyk Kul, onde ainda estão a maioria dos berkutchi, para exibir suas técnicas em festivais, durante os quais a carne dos animais caçados é usada para banquetes comemorativos, a pele para artesanato vendido a turistas, e as próprias demonstrações de caçada sirvam para manter o interesse dos jovens no ofício. O que a Federação de Salbuurun fez foi estabelecer regras para que o esporte pudesse ser disputado de forma competitiva ao invés de somente como demonstração, o que também ajuda em sua popularização. A Federação de Salbuurun também mantém um registro de todos os berkutchi em atividade no país, bem como de suas águias, devidamente identificadas e registradas, para garantir a seriedade do treinamento.

A Federação de Salbuurun também atua em conjunto com guias turísticos, para que esses berkutchi possam ser contratados para demonstrações de caçada para grupos de turistas, contribuindo com sua renda. Existe até mesmo uma cidade, Bokonbayevo, com um local próprio e famoso para as demonstrações, visitada por centenas de turistas todos os anos. Curiosamente, ao contrário de outras federações esportivas, a Federação de Salbuurun, que só atua a nível nacional no Quirguistão, não tem interesse em internacionalizar o esporte, já que a águia dourada é um animal nativo do Quirguistão, os berkutchi são considerados parte da história e tradição quirguiz, e estimular que um monte de forasteiros saia por aí treinando águias somente para competir pode levar à destruição do que eles estão querendo preservar. As regras do esporte, então, foram pensadas para que competidores internacionais possam usar seus próprios pássaros, sejam eles águias, falcões ou gaviões.

O salbuurun esportivo é um esporte em equipes, com cada equipe contando com um líder, que é uma espécie de técnico, e três competidores, que são os treinadores dos animais usados. Cada treinador compete separadamente, mas os pontos que cada um fizer são somados para determinar a pontuação total da equipe. As equipes são pareadas duas a duas e aquela com mais pontos avança, até que só reste a equipe campeã. Em cada torneio, são disputadas três disciplinas, cada uma contando com um vencedor em separado. O salbuurun fez parte do programa de duas edições dos Jogos Mundiais Nômades, ambas disputadas no Quirguistão, em 2016 e 2018, contando com participantes do Quirguistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Mongólia, Rússia, Geórgia e Itália.

A primeira disciplina se chama burkut saluu, e é a que deriva da caçada original com águias. Cada equipe conta com o líder e três berkutchi, e competirá em duas provas. A primeira se chama chyrga, e nela um representante da organização vai à frente galopando um cavalo que arrasta, amarrado por uma corda, um "animal falso", feito de peles de raposa; quando esse animal está a 150 metros do local onde o berkutchi está, ele lança sua águia para atacá-lo. Cada berkutchi pode lançar sua águia apenas uma vez, sendo avaliados a velocidade e a força do ataque. Se tudo estiver dentro dos parâmetros, o berkutchi ganha um ponto. Na segunda prova, chamada undok, a águia começa em um poleiro a 200 m do berkutchi, que, a um sinal do árbitro, a chama, agitando em sua mão uma isca. Mais uma vez, o berkutchi só pode chamar a águia uma vez, e ganha um ponto caso ela venha e pouse em sua mão dentro de um minuto. Os pontos de ambas as provas são somados para determinar a equipe vencedora, e o tempo que as águias levaram para completar as provas é usado como critério de desempate.

A segunda disciplina se chama dalba oinotuu, e usa falcões ao invés de águias, com os treinadores se chamando kushchu. Cada kuschu tem uma corda de 1,5 m de comprimento na ponta da qual há um "pombo falso", feito de penas de pombo, faisão e perdiz. No início da competição, o kushchu se posiciona numa área delimitada por cones, lança seu falcão a voo, e começa a girar o pombo falso acima de sua cabeça, imitando os movimentos de um pombo verdadeiro. Durante três minutos, o falcão atacará o pombo, sendo avaliados sua velocidade e força. Para cada vez que o falcão atacar o pombo corretamente, o kushchu ganhará um ponto. A cada vez que o falcão atacar o pombo, o kushchu deve dar-lhe um petisco como recompensa, que carrega em uma espécie de pochete, lançá-lo a voo novamente e começar a girar o pombo novamente, com o relógio ficando parado enquanto o falcão não estiver voando.

A terceira disciplina se chama taigan zharysh, e nela são usados cães de caça, da raça taigan, característica da Ásia Central. Assim como na chyrga, um representante da organização vai à frente galopando um cavalo que arrasta um animal falso, que pode ser feito de peles de raposa ou de lebre. O cavalo corre uma distância de 350 m a uma velocidade entre 60 e 65 km/h. A um comando do árbitro, três treinadores da mesma equipe soltam seus cachorros simultaneamente, com a prova terminando assim que um deles alcança o animal. Cada embate é determinado em melhor de três, ou seja, primeiro a equipe A solta seus cachorros, então a B, e aquela cujo cachorro alcançou o animal em menos tempo ganha um ponto, com tudo se repetindo novamente, sendo vencedora e avançando a equipe que primeiro somar dois pontos.

O salbuurun tem um "parente" nascido no Cazaquistão, o kusbegilik. O kusbegilik é regulado pela Associação de Etnoesporte do Cazaquistão, e, assim como o salbuurun, nasceu de uma tentativa de preservar a tradição de caça com aves de rapina, que também existia naquele país. O kusbegilik também tem três disciplinas, mas todas as três usam aves de rapina, e, ao contrário do salbuurun, que usa animais falsos, suas competições usam animais vivos, o que tem sido durante anos motivo de protesto de entidades de defesa dos animais. Em 2015, o governo do Cazaquistão criaria uma comissão para avaliar e restringir o uso de animais vivos, mas ela decidiria proibir apenas o uso de lobos, mantendo o de raposas, lebres e pássaros. O kusbegilik fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2024, disputados em Astana, Cazaquistão; participaram treinadores do Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Geórgia, Mongólia, Hungria, Turquia, China, Canadá e Islândia.

De forma diferente do salbuurun, o kusbegilik é um esporte individual. Cada disciplina é dividida em um número de provas, com todos os treinadores participando de todas as provas da disciplina, e sua pontuação em cada prova sendo somada para determinar o vencedor, que será aquele com a maior pontuação final. Caso haja empate, o tempo que as aves levaram para completar cada prova é usado como critério de desempate.

A primeira disciplina é a das águias, chamada burkit, e é dividida em três provas. A primeira é parecida com a undok; nela o treinador começa montado em um cavalo, e a águia em um poleiro a uma distância de 500 metros. A um comando do árbitro, o treinador deve chamar a águia apenas uma vez, e, dentro de um minuto, ela deve levantar voo e pousar em seu braço. Caso isso aconteça, o treinador ganha 10 pontos; se ela primeiro pousar em outro lugar, depois na mão dele, ganha 5 pontos; se ela voar, mas estourar o tempo, 1 ponto; e se nem voar, 0 ponto. A segunda é parecida com a chyrga, e nela um representante da organização vai a cavalo arrastando um coelho, em um trajeto entre 350 e 500 metros. A um comando do árbitro, o treinador lança a águia em direção ao coelho: se ela o pegar em um único movimento, ganha 10 pontos; se fizer um círculo ou tocar o solo antes de pegá-lo, 5 pontos; se alcançar o coelho mas não pegá-lo, 1 ponto; e, se o cavalo chegar ao final da pista sem que a águia tenha alcançado o coelho, 0 ponto. Na terceira prova, o treinador está montado a cavalo, com a águia em seu braço com a cabeça coberta, e uma raposa é escondida no meio da vegetação. A um comando do árbitro, a cobertura é removida, e a águia tem 1 minuto para atacar a raposa. Se o ataque ocorrer, o treinador ganha 10 pontos, com 1 ponto sendo deduzido para cada vez que a águia tocar no chão. Se o tempo estourar, o treinador ganha 1 ponto, e, se a águia não voar, ou voar na direção errada, 0 ponto. Até 2015, havia uma quarta prova, a da caça ao lobo, que atualmente está suspensa.

A segunda disciplina se chama itelgi, e é disputada com falcões, dividida em quatro provas, sendo que a primeira é idêntica à da águia, mas com o falcão começando a 300 metros. A segunda é parecida com a dalba oinotuu, com o treinador girando um pombo numa corda e o falcão tendo 3 minutos para atacá-lo, ganhando 1 ponto cada vez que o acerta. A terceira é idêntica à terceira da águia, com a mesma pontuação, mas é usado um faisão. A quarta também é idêntica, mas sendo usado um coelho.

A terceira disciplina usa gaviões, e se chama karshyga. São três provas, com mais uma vez a primeira sendo idêntica, mas com o gavião começando a uma distância de 200 metros. Na segunda, um pombo é solto no ar, e o gavião deve atacá-lo em pleno voo; o ataque vale 10 pontos, com 1 ponto sendo deduzido a cada vez que o gavião ataca o pombo mas não o mata. Há um limite de tempo de 1 minuto, que, se estourar sem que o gavião tenha matado o pombo, o treinador ganha apenas 1 ponto. Se o gavião não atacar o pombo nenhuma vez, o treinador ganha 0 ponto. A terceira prova é idêntica à quarta prova do falcão.

Vamos passar agora para o asyk atu, um parente do ordo, que nós já vimos aqui em um outro post do átomo. Assim como o ordo, o asyk atu usa ossos do tornozelo de ovelhas como peças; em quirguiz, essa peça se chama alchick, mas, em cazaque, se chama asyk, com atu significando "jogo" - ou seja, asyk atu é o "jogo do asyk". Assim como no ordo, o objetivo é arremessar um asyk para acertar outros asyks que começam o jogo no chão. Todo o resto é diferente, entretanto. O asyk atu também fez parte somente dos Jogos Mundiais Nômades de 2024, contando com a participação de 12 países. Diferentemente do ordo, ele é disputado no masculino e no feminino, e conta com competições individuais e por equipes, com cada equipe sendo composta por três jogadores; a disputa pode ocorrer ao ar livre ou em ambiente fechado.

É interessante registrar que, no Cazaquistão, é vendida uma espécie de tapete, já com todas as marcações necessárias, e normalmente decorado, que basta estendê-lo no chão e o jogo já pode ser praticado, em qualquer lugar. Essas marcações são duas linhas, uma 12 m de comprimento, outra de 1,15 m, que se cruzam exatamente em seu centro, e um círculo de 10 m de diâmetro, centrado na interseção dessas duas linhas. Sobre a linha menor, serão posicionados 15 asyks; cada jogador também tem um asyk, maior e de cor diferente, chamado saka. Posicionado da ponta da linha vertical, ou seja, a 6 metros dos asyks, o jogador deverá arremessar o saka para que ele acerte um dos asyks, com força suficiente para que ele saia do círculo. Se conseguir, o jogador tem direito a um novo arremesso; se não, o asyk volta para sua posição inicial, e a vez passa para o oponente. Os jogadores alternam os lados da linha a cada arremesso, passando para a outra ponta quando o arremesso é bem sucedido, e com o jogador seguinte arremessando da ponta oposta ao que o anterior estava quando errou. Em jogos por equipes, os jogadores se alternam conforme entram em jogo, ou seja, primeiro o jogador A1, quando ele errar o B1, quando ele errar o A2, quando ele errar o B2, e assim por diante.

A partida é disputada em melhor de cinco meetings, com o jogador ou equipe que primeiro ganhar três meetings vencendo da partida. Cada meeting tem duração máxima de 15 minutos, sendo vencedor quem tiver mais pontos ao final desse tempo, exceto se um jogador ou equipe conseguir 8 pontos, quando o meeting será imediatamente encerrado com sua vitória. Caso o tempo do meeting termine com um empate, é jogado um tie break de 3 minutos; persistindo o empate, cada jogador ou equipe terá direito a três tentativas (no caso das equipes, uma por jogador), mas arremessando da linha do círculo, ou seja, a 5 metros. Se, mesmo assim, persistir o empate, é feita uma espécie de sorteio, com cada jogador jogando um asyk e ganhando uma determinada quantidade de pontos de acordo com o lado que ficar para cima, como se ele fosse um dado, até que um ganhe mais pontos que o outro.

O asyk atu é um dos passatempos mais antigos do mundo, com peças e tabuleiros sendo encontrados em sítios arqueológicos que datam do século I. Sua transformação em esporte, porém, é bastante recente, sendo creditada a dois cientistas, Zh.S. Sabyrzhanov e E.B. Narymbaev, que, em 2011, publicaram um conjunto de regras que acreditavam ser o mais próximo possível das originais e submeteram o trabalho ao Ministério do Esporte do Cazaquistão. Em 2013, o asyk atu seria considerado esporte pelo governo cazaque, que implementaria sua prática em todas as escolas públicas do país; em 2017, ele seria considerado pela UNESCO patrimônio imaterial da humanidade, e, em 2018, seria fundada a Federação Internacional de Asyk Atu, sediada no Cazaquistão, que hoje conta com 18 membros, todos da Ásia e Europa. Devido às (poucas) semelhanças entre o asyk atu e o ordo, jogadores de um costumam participar de torneios do outro, e uma equipe cazaque de asyk atu até mesmo já foi campeã de um torneio de ordo disputado no Quirguistão em 2021.

Nas escolas do Cazaquistão, o asyk atu é ensinado exclusivamente para os meninos; as meninas disputam um jogo chamado bes asyk, também regulado pela Federação Internacional de Asyk Atu. Nele, cada jogador tem quatro asyk e um saka, e joga com seus próprios, sem que eles sejam compartilhados. Os jogadores se posicionam sentados no chão, de pernas cruzadas, podendo ser usado o tapete do asyk atu ou outra cobertura para que a superfície de jogo fique uniforme. Uma partida inteira tem 12 rodadas, cada uma com um nome e regras próprias; caso falhe em cumprir qualquer uma das regras da rodada, o jogador encerra sua participação, mas os outros continuam avançando até todos serem eliminados ou concluírem a última rodada.

Antes de cada uma das três primeiras rodadas, o jogador coloca os quatro asyks e o saka na mão, e, com um movimento próprio, os espalha à sua frente, pegando então o saka com uma das mãos e deixando os asyks no chão. Cada rodada tem uma quantidade de movimentos necessários e uma quantidade de asyk que o jogador deverá recolher com cada movimento. A cada movimento, o jogador joga o saka para cima, recolhe a quantidade de asyks requerida, e então deve pegar o saka com a mesma mão que o lançou. Os asyks recolhidos não ficam na mão que vai pegar o saka quando ele descer, devendo ser separados; o método mais usado é o jogador apoiar sua outra mão no chão, com a palma para cima, e usá-la para separar os asyks recolhidos, mas eles podem simplesmente ser colocados próximos ao corpo do jogador. Na primeira rodada, chamada birlik, a cada vez que jogar o saka para cima, o jogador deverá recolher um dos asyks, ou seja, precisará de quatro movimentos para concluir a rodada. Na segunda, chamada ekilik, a cada vez que jogar o saka para cima, o jogador deverá pegar dois asyks, concluindo a rodada em dois movimentos. Na terceira, ushtik, são necessários dois movimentos: da primeira vez em que jogar o saka pra cima, o jogador pega três asyks, e, da segunda, o que ficou sobrando.

As rodadas seguintes possuem algumas regras diferentes. Na quarta, torttik, o jogador não espalha os asyks antes de começar: ele primeiro joga o saka pra cima, então deve arrumar os quatro asyks da forma que quiser, pegar o saka, jogá-lo novamente para cima, recolher todos os quatro asyks em um único movimento, separá-los, e então pegar o saka que está caindo. Na quinta, zhalak, os asyks sequer são usados: primeiro o jogador joga o saka para cima, então bate com a mão cinco vezes no chão e pega o saka de novo. Na sexta, alakan, os asyks voltam a ser espalhados, mas não são separados após recolhidos, devendo ficar na mão que vai pegar o saka, sendo usada a mesma regra da primeira rodada, com quatro movimentos e os asyks sendo recolhidos um por vez. Na sétima rodada, tort burysh, primeiro os asyks são arrumados para formar um quadrado de forma que fiquem todos equidistantes e a no mínimo 7 cm uns dos outros, então o saka é jogado para cima, todos são recolhidos em um único movimento, e o jogador pega o saka com os asyks ainda na mão.

Na oitava rodada, almastyru, primeiro o jogador espalha os asyks, então ele joga o saka para cima, pega um dos asyks e, com ele ainda na mão, pega o saka. Então ele joga o saka novamente para cima, devolve o asyk para o mesmo lugar onde ele estava, pega outro asyk e pega o saka. Depois que ele tiver feito isso com todos os quatro asyks, um por um, ele joga o saka para cima, pega todos os quatro de uma vez e pega o saka com eles ainda na mão. A nona rodada, undemes, tem a mesma regra da sexta, mas com uma diferença: toda vez que o jogador pegar o saka, ele não pode fazer nenhum som, ou seja, não pode bater nos asyks que estão em sua mão. A décima rodada, sart-surt, é idêntica, mas ao contrário: o saka deve fazer som, obrigatoriamente acertando um dos asyks que o jogador tem na mão. A décima-primeira rodada, karshu, tem a mesma regra da primeira, mas o jogador deve pegar o saka com as costas da mão para cima, ou seja, capturando-o no ar ao invés de deixando ele cair na palma de sua mão.

Na décima-segunda e última rodada, otau, com a mão que não vai jogar o saka para cima, o jogador faz uma "caverna", apoiando-a no chão de forma que, entre o polegar e os outros dedos haja um arco, mais ou menos como um gol. Após jogar o saka para cima, o jogador, ao invés de recolher um asyk, deve dar um peteleco nele para que ele passe por dentro do arco, sem bater nos dedos, terminando seu movimento do outro lado. Os asyks levam petelecos um por um, sendo necessários quatro petelecos para completar a rodada.

Após todos os jogadores serem eliminados, é feita a rodada de pontuação: o jogador coloca seus quatro asyks e seu saka enfileirados na palma de sua mão, faz um movimento para jogá-los para cima e então vira a mão, devendo fazer com que eles pousem nas costas de sua mão. Então ele faz um movimento para jogá-los para cima de novo, vira novamente a mão e tenta recolhê-los na palma de sua mão, fechando a mão ao terminar. A pontuação de cada jogador será de 10 pontos para cada peça que tiver na mão após essas duas jogadas, multiplicados pelo número da rodada anterior àquela onde ele foi eliminado - o máximo de pontos que um jogador pode fazer, portanto, é 600, se conseguir completar a última rodada e pegar todas as cinco peças. Em caso de empate, ganha quem concluiu a última rodada em menos tempo, então quem concluiu a penúltima em menos tempo, e assim por diante.

O quarto esporte que veremos hoje é o tenge ilu, também originário do Cazaquistão, e que se parece um pouco com o tent pegging, outro esporte que já vimos aqui no átomo, com a principal diferença sendo que o tent pegging usa armas como espadas e lanças, enquanto no tenge ilu os competidores atuam com as mãos nuas. O tenge ilu foi esporte de demonstração nos Jogos Mundiais Nômades de 2022, em Izmir, Turquia, e esteve no programa principal dos de 2024. Além de no Cazaquistão, onde surgiu como treinamento de soldados antes de virar esporte, o tenge ilu é popular na Mongólia, Quirguistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Rússia e China; atletas do tent pegging também costumam se arriscar em alguns torneios.

O tenge ilu, que é regulado pela federação cazaque, e por enquanto não tem federação internacional, é disputado a cavalo, em uma pista de terra batida que tem 150 metros de comprimento por 20 de largura, delimitada em seu início e final por duas linhas brancas de 10 cm de largura cada. O objetivo de cada competidor é correr a cavalo por essa pista recolhendo os tenge, que, de longe, se parecem com petecas, mas são saquinhos de tecido, normalmente de cor vermelha, cheios de areia e com a boca amarrada por uma fita, de forma que parte do tecido forme um "penacho" na parte de cima; cada tenge tem aproximadamente 8 cm de altura, e deve pesar exatamente 200 g. O objetivo do cavaleiro é, se pendurando na lateral do cavalo, "recolher" o maior número de tenge possível; antigamente, isso exigia que ele pegasse o tenge e levasse até a linha de chegada, mas, atualmente, ele pode apenas zunir o tenge para fora da pista que ele será considerado recolhido, o que tornou as provas mais dinâmicas. Cada tenge recolhido vale 1 ponto.

Cada cavaleiro tem direito a duas passagens pela pista, com os pontos e o tempo de ambas sendo somados para determinar seu resultado final. Cada prova tem um tempo máximo, que, se estourar, resulta na perda de 1 ponto para cada segundo além do limite. O tenge ilu pode ser disputado de forma individual ou por equipes, e a competição pode ser eliminatória, com os cavaleiros ou equipes sendo pareados dois a dois, os vencedores avançando e os perdedores sendo eliminados, ou em etapas, com os melhores de cada etapa passando para a seguinte e o melhor da etapa final sendo o vencedor. Caso haja empate em pontos, o desempate é feito pelo tempo. É um esporte tradicionalmente masculino, mas alguns torneios já possuem provas femininas ou aceitam equipes mistas.

Cada partida conta com dois árbitros de início e fim, o de início localizado na linha de partida e o de fim na linha de chegada, cada um com uma bandeira verde, e um árbitro para cada tenge, localizado de forma paralela ao tenge, com uma bandeira vermelha. O árbitro de início levanta a bandeira quando o cavaleiro passa pela linha de partida, determinando que o tempo comece a contar, e o de fim levanta quando ele cruza a linha de chegada, determinando que o tempo pare de ser contado; cada árbitro de tenge levanta sua bandeira quando o tenge é corretamente recolhido. Os árbitros não ficam dentro da área de competição, e sim atrás de uma placa que delimita a pista na largura, e que também pode servir para expor patrocínio.

O tenge ilu possui três disciplinas. A mais popular se chama bes beles, e nela cada cavaleiro tem direito a 35 segundos na pista. Metade dos tenge é colocada do lado direito da pista e metade do lado esquerdo, e, na segunda passagem, o cavaleiro correrá no sentido contrário da primeira - ou seja, na segunda passagem a linha de chegada é a linha de partida e vice-versa. No início de cada passagem, cada tenge é posicionado a 10 m de distância do anterior. Nas etapas iniciais, são usados cinco tenge em cada passagem, o primeiro a 75 metros da linha de partida; nas etapas finais, são sete tenge, com o primeiro sendo posicionado a 65 m da linha de partida. Todos os tenge são posicionados de forma que o cavaleiro se pendure do lado direito do cavalo.

A segunda disciplina é a kos kulash, e é muito mais difícil. Pra começar, metade dos tenge estão do lado direito do cavaleiro, enquanto a outra metade está do lado esquerdo, o que significa que, no meio da prova, ele tem que mudar o lado no qual ele está pendurado no cavalo. As duas passagens são feitas no mesmo sentido; o primeiro tenge é posicionado a 65 m da linha de partida e os seguintes a 10 m do anterior, exceto o primeiro do lado esquerdo, que é posicionado 40 m após o último do lado direito. Nas etapas iniciais são quatro tenge, dois de cada lado, enquanto nas etapas finais são seis, três de cada lado. Como se isso não fosse difícil o suficiente, o tempo limite em cada passagem é praticamente a metade: 16 segundos para cada cavaleiro.

A terceira disciplina se chama zheti kut, e é uma espécie de mistura das duas. Nas etapas iniciais, são usados cinco tenge, o primeiro a 75 m da linha de partida e os seguintes a 10 m do anterior cada, e nas etapas finais são sete, o primeiro a 65 m da linha de partida, todos os tenge do lado direito do cavaleiro, mas o tempo limite é de apenas 16 segundos, e as duas passagens são feitas no mesmo sentido. Também vale citar que, em todas as três disciplinas, um cavaleiro que caia do cavalo pode montar de novo e completar a prova, mas seu tempo continua contando, e a corrida deve ser sempre para a frente, sem nenhum cavaleiro poder voltar e recolher tenge que ficaram para trás.

Para terminar, vamos ver o chevgan, também grafado chovgan, chowgan, chogan, cowgan ou chovqan, que foi esporte de demonstração nos Jogos Mundiais Nômades de 2022. O chevgan é um esporte que surgiu na Pérsia, por volta do século VI a.C., e que, ao migrar para a Índia, deu origem ao polo. Indo para o outro lado, porém, para o Azerbaijão, ele desenvolveu regras levemente diferentes, passando a ser considerado um esporte em separado, chamado çovken. Na época em que o Azerbaijão fez parte da União Soviética, sua prática foi reprimida ou substituída pela do polo, de forma que ele quase desapareceu, mas, a partir de 2006, com a criação da Federação Azeri de Chevgan, ele voltou a ser disputado, e vem se popularizando mais e mais a cada ano, inclusive tendo sido eleito pela UNESCO como patrimônio imaterial da humanidade em 2013.

O chevgan é disputado em um campo de 275 metros de comprimento por 145 de largura, cercado por uma mureta. Esse campo pode ser gramado ou de terra batida, ao ar livre ou coberto. Em cada uma das linhas de fundo há um gol, delimitado por dois postes, de 3 m de largura, e em frente a cada gol é marcada a área, com um semicírculo de 6 m de raio centrado no meio do gol. A bola é feita de borracha oca ou de couro com um núcleo de lã, com cerca de 80 mm de diâmetro e 120 g de peso.

Uma equipe de chevgan conta com seis jogadores, sendo quatro atacantes e dois defensores. Os defensores não podem passar da linha do meio do campo e não podem marcar gols - aliás, os gols só são válidos se marcados pelos atacantes e se tanto o cavalo quanto a bola estiverem fora da área no momento em que ela foi atirada para lá. Para mover a bola, os jogadores usam bastões de cerca de 1,3 m de comprimento, que lembram cajados de pastores de cabeça para baixo, contando com uma parte curvada em seu final. Uma partida de chegvan dura dois tempos de 15 minutos cada, e vence o time que fizer mais gols. Em caso de empate em um jogo decisivo, é jogada uma prorrogação na qual vence quem marcar um gol primeiro.

O torneio mais famoso do chevgan é a President's Cup, realizada anualmente em dezembro desde 2006, que conta com oito times, cada um representando uma cidade na qual o esporte é popular. Infelizmente, o chevgan não é praticado em lugar nenhum além do Azerbaijão, então, a menos que esse cenário mude, ou que jogadores de polo estejam dispostos a se arriscar, é impossível a realização de um torneio internacional.
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sábado, 14 de dezembro de 2024

Escrito por em 14.12.24 com 0 comentários

Lutas Tradicionais Turcas

Faz tempo que eu não escrevo um post sobre esportes, e um dos motivos é que às vezes eu acho que já falei de todos os "normais", só tendo sobrado aqueles super exóticos e difíceis de encontrar as informações que eu preciso. Essa semana, entretanto, eu estava pensando que seria legal fazer mais um post sobre esportes antes de o ano acabar, e me lembrei de que, quando fiz o post sobre os Jogos Mundiais Nômades, lá no início de 2022, comecei a reunir informações para escrever um post sobre as lutas tradicionais turcas, já que uma delas estava no programa das edições de 2016 e 2018, e pelo menos duas estavam confirmadas no programa da edição de 2022 (que acabou tendo quatro). Em determinado momento eu achei que estava ficando muito difícil reunir as informações e desisti, mas hoje resolvi tentar de novo, e, mesmo sem conseguir achar tudo o que eu queria, decidi escrever o post. Assim, hoje é dia de lutas tradicionais turcas no átomo!

Eu não faço ideia de quantas lutas tradicionais turcas existam - a Wikipédia lista 16, embora de 14 só cite o nome - mas, nesse post, eu vou falar de seis - não por acaso, as seis que são atualmente reguladas pela Federação Turca de Lutas Tradicionais (TGGF, da sigla em turco). Duas delas são disputadas em âmbito nacional e, até 2021, eram reguladas pela Federação Turca de Luta (TGF), mesmo órgão que regula a luta olímpica (luta livre e luta greco-romana) na Turquia; as outras quatro são disputadas somente a nível regional, e até 2021 eram reguladas pela Federação Turca de Esportes Tradicionais (GSDF), que regula vários esportes tradicionais da Turquia, como o okçuluk (tiro com arco tradicional turco) e o kizak (trenó tradicional turco). Todas as seis possuem praticantes fora da Turquia, mas não são populares internacionalmente a ponto de permitir a realização de campeonatos mundiais, de forma que a maior parte de seus campeonatos ocorre na Turquia, com a participação ou não de estrangeiros.

Todas as seis lutas que veremos hoje compartilham algumas características em comum. Pra começar, todas são exclusivamente masculinas e disputadas sobre grama natural, que ocupa um quadrado de 30 x 30 m, que pode ser delimitado por estacas e cordas, como se fosse um ringue de boxe, ou por uma linha branca pintada no chão, como as de um campo de futebol. Cada luta conta com apenas um árbitro, que acompanha os lutadores de perto, mas costuma ter também uma mesa, para contabilizar pontos, cronometrar o tempo, e, em alguns casos, chamar a atenção do árbitro para alguma falta ou conduta inadequada que ele deixou passar. Cada uma das lutas possui rituais que são realizados antes de os lutadores começarem a lutar, com esses rituais sendo diferentes dependendo da luta.

Outra coisa: "luta", em turco, é güreşi, por isso os nomes de todas as seis vão ter essa palavra no final; como nem sempre é possível escrever um ş, ela também costuma ser grafada gures, guresi ou gureshi. Eu vou usar gureshi porque é a grafia usada pela World Ethnogames Confederation (WEC), co-organizadora dos Jogos Mundiais Nômades, sendo, portanto, a grafia com a qual eu estou mais acostumado. Finalmente, no idioma turco existe i com pingo e i sem pingo, cada um com um som diferente; a WEC substitui todos os i sem pingo nos nomes das lutas e de alguns termos relacionados a elas por y, então eu vou fazer isso também - mas fiquem sabendo que, ao procurar por essas lutas na internet, vocês podem encontrar seus nomes escritos com i, com ou sem pingo, ao invés de y.

Tudo isso esclarecido, vamos começar por uma das duas lutas nacionais, que também é a mais conhecida fora da Turquia. Essa luta se chama yagli gureshi, nome que pode ser traduzido para "luta do óleo" - e que vem do fato de que os lutadores se lambuzam de óleo (na verdade, de azeite) antes da luta. Vale citar como curiosidade que, segundo a Capcom, esse é o estilo de luta praticado por Hakan, de Street Fighter IV.

A luta do óleo é considerada uma das formas de luta mais antigas do mundo, com registros históricos mostrando que ela era praticada na Suméria e na Babilônia. Ao longo dos anos, ela teria chegado à Grécia, e no século III a.C. teria um surto de popularidade no Império Romano. Segundo conta a história, mais ou menos nessa época ela seria extremamente popular nos Balcãs, que seriam invadidos pelo Império Otomano. Ao invés de como esporte, entretanto, os otomanos, antepassados dos atuais turcos, usavam a luta de forma cerimonial, durante festivais. Seria apenas por volta do século XIII, já na atual Turquia, que a yagli gureshi ganharia regras para poder ser disputada de forma competitiva.

O único uniforme que os lutadores da yagli guresh usam é uma calça feita de couro, com uma tira reforçada na cintura e pernas que acabam no meio das panturrilhas, de cor preta, chamada kisbet ou kispet. Originalmente, o kisbet era feito de couro de búfalo e podia pesar até 13 kg; atualmente, ele é feito de couro de boi, e pesa entre 1,8 e 2,5 kg quando untado - antes da luta, os lutadores untam todo o seu corpo, incluindo seus kisbets, com azeite de oliva, sendo que um lutador deve untar o outro, em sinal de respeito.

Um lutador é declarado vencedor caso alcance uma das seguintes condições de vitória: fazer com que o oponente se deite de costas no chão, com a barriga virada para cima; fazer com que o oponente se sente apoiando ambas as mãos no chão simultaneamente; fazer o oponente apoiar ambos os cotovelos no chão simultaneamente; fazer o oponente tocar o chão com o cotovelo e a mão do mesmo braço; levantar o oponente do chão e ou caminhar três passos ou fazer um giro de 360 graus. Curiosamente, as regras também dizem que, se um lutador conseguir abaixar o kisbet do oponente, expondo suas genitais, ele ganha a luta, embora atualmente essa prática seja desencorajada e já faça um bom tempo que ninguém ganha assim.

Existe ainda uma forma de ganhar a luta chamada paça kazyk, que seria equivalente a um nocaute ou ippon, e consiste em colocar os braços ao redor da cintura do adversário, em contato com a faixa do kisbet, durante três segundos, o que, como ambos estão lambuzados de óleo, é mais fácil de explicar do que de fazer. Originalmente, essa era a única forma de ganhar a luta, que não tinha duração pré-determinada, mas, em 1975, após uma luta que durou, acreditem ou não, dois dias, a TGF decidiu estabelecer novas condições de vitória e um limite de tempo para que a luta tenha um vencedor. A yagli gureshi é dividida em duas categorias, pehlivan ("lutadores", voltada aos iniciantes) e bashpehlivan ("mestres", voltada aos veteranos). Na categoria pehlivan, a duração máxima de uma luta é de 30 minutos, enquanto na bashpehlivan é de 40 minutos - ainda assim um tempo absurdo, se considerarmos que a maioria das lutas esportivas dura um décimo disso.

Assim como em qualquer luta esportiva, não basta o lutador chegar lá e querer agarrar oponente de qualquer jeito; há uma técnica própria para se fazer isso, com movimentos válidos e inválidos. Um lutador que insista em usar movimentos inválidos é advertido, e, dependendo do caso, desclassificado, sendo a desclassificação do oponente também uma forma de vencer a luta. Caso o tempo regulamentar termine sem vencedor, é feito um intervalo de cinco minutos após o qual começa uma prorrogação, de 10 minutos para pehlivan e 15 minutos para bashpehlivan. Durante essa prorrogação, os lutadores receberão pontos pela aplicação dos golpes, e, se nenhum dos lutadores alcançar uma condição de vitória, o lutador com mais pontos será o vencedor.

Torneios de yagli gureshi, amadores e profissionais, são disputados em toda a Turquia durante todo o ano, exceto durante o inverno, mas o mais famoso é o chamado Kyrkpynar, realizado anualmente no final de junho, durante três dias, na cidade de Edirne (antiga Adrianópolis). Com registros que comprovam que ele é disputado anualmente desde 1362, só não tendo sido realizado cerca de 70 vezes ao longo de 663 anos, o Kyrkpynar está no Livro Guinness dos Recordes como a competição esportiva mais antiga ainda continuamente realizada. Somente turcos podem participar, e, diferentemente de outras lutas esportivas, não há categorias de peso, sendo a divisão feita apenas entre pehlivan e bashpehlivan. O campeão da bashpehlivan recebe o título de "lutador chefe", que mantém até o torneio do ano seguinte, e quem ganha três anos seguidos recebe um cinturão de ouro 18 quilates.

Além da Turquia, outros países que possuem campeonatos profissionais de yagli gureshi são Japão, Bulgária, Grécia e Holanda - esse último, por incrível que pareça, o mais desenvolvido no yagli gureshi após a Turquia. Desde 1997, a Holanda realiza, em Amsterdã, o Campeonato Europeu, considerado o segundo torneio mais importante da yagli gureshi após o Kyrkpynar. Como, em 2000, o campeão europeu foi proibido de participar do Kyrkpynar por não ser turco, desde 2001 o Campeonato Europeu é aberto a lutadores de todas as nacionalidades, inclusive não-europeus, mas exceto turcos. De forma semelhante a outros torneios de luta, o Campeonato Europeu divide os lutadores em categorias de peso, que atualmente são até 80 kg, até 95 kg, até 110 kg e acima de 110 kg. A yagli gureshi fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022, disputados em Izmir, Turquia, com essas mesmas categorias de peso, e aberta a lutadores de todas as nacionalidades.

A segunda luta disputada em âmbito nacional é a karakucak gureshi, que surgiu dentre o povo oghuz, que se formou na Ásia Central por volta do século VIII e migrou para a Anatólia no século XIII; hoje, a maior parte da população da Turquia é descendente dos orghuz, que se converteram ao islamismo no século XI. Graças a uma revisão das regras feita pela TGF em 1975, atualmente a karakucak gureshi é bastante parecida com a yagli gureshi, com a principal diferença sendo que, na karakucak gureshi, não é usado qualquer tipo de óleo. O uniforme da karakucak gureshi também é diferente, embora semelhante: chamado pirpit, se parece com uma bermuda, é feito de lona, e normalmente são usadas as cores azul ou verde.

Outra diferença notável é que, na karakucak gureshi, não basta agarrar o pirpit do adversário (nem baixá-lo e deixar seu pirpit à mostra, desculpem o trocadilho), sendo essencial conseguir uma das seis outras condições de vitória. Uma luta da karakucak gureshi também é bem mais curta, durando apenas seis minutos, com uma prorrogação de três minutos caso não haja vencedor. Assim como na yagli gureshi, durante a prorrogação os lutadores ganham pontos, que também determinarão o resultado caso nenhum dos dois consiga uma condição de vitória. A karakucak gureshi possui categorias de peso, com a TGGF definindo nada menos que dez delas: até 48 kg, até 53 kg, até 57 kg, até 62 kg, até 68 kg, até 74 kg, até 82 kg, até 90 kg, até 100 kg e até 130 kg.

Campeonatos de karakucak gureshi são disputados em todas as regiões da Turquia, e servem como classificatórias para o Campeonato Nacional, disputado anualmente - mas cuja popularidade não chega nem perto da do Kyrkpynar. Falando nisso, embora ambas sejam reguladas pela mesma federação e disputadas nacionalmente, a yagli gureshi é infinitamente mais popular que a karakucak gureshi, tanto em termos de praticantes quanto de público, por ser considerada a verdadeira luta tradicional do povo turco. Além de na Turquia, a karakucak gureshi é disputada profissionalmente na Mongólia, Azerbaijão, Turcomenistão e na Rùssia, mais especificamente nas repúblicas autônomas da Iacútia, Tataristão e Crimeia. Diferentemente do que ocorre com a yagli gureshi, estrangeiros podem participar do Campeonato Nacional de karakucak gureshi, mas devem se classificar através de um regional turco antes, o que acaba desanimando a maioria dos lutadores, que prefere lutar somente em seus países de origem.

De uns tempos pra cá, a karakucak gureshi vem tendo uma relação de amor e ódio com a luta olímpica: muitos dos lutadores turcos mais bem sucedidos na luta livre e na luta greco-romana, incluindo campeões europeus, mundiais e medalhistas olímpicos, começaram suas carreiras na karakucak gureshi, passando depois para a luta olímpica, existindo inclusive quem defenda que o treinamento na karakucak gureshi dá alguma vantagem na luta olímpica; o fato de a karakucak gureshi ser disputada em um gramado, mais barato que um mat, também torna mais fácil a iniciação dos jovens nesse tipo de luta. O problema é que, justamente pelo sucesso dos turcos na luta olímpica, a maioria dos jovens quer iniciar já nela, com o número de iniciantes na karakucak gureshi diminuindo a cada ano, e a TGF já fazendo campanhas para que ela não desapareça.

Vamos passar agora para as quatro lutas que eram antigamente reguladas pela GSDF. Como foi dito, essas são lutas regionais, e não são praticadas em todo o território da Turquia, embora duas delas sejam disputadas fora do país. A mais famosa das quatro é a ashyrtmaly aba gureshi, disputada nas regiões de Gaziantep, Adana e Osmaniye, além de no Azerbaijão, Turcomenistão, Tajiquistão e Rússia. Por causa disso, a ashyrtmaly aba gureshi seria a primeira das lutas tradicionais turcas a ser incluída no programa dos Jogos Mundiais Nômades, estando presente nas edições de 2016, 2018, 2022 e 2024. A ashyrtmaly aba gureshi é uma luta de cinturão, com muitas semelhanças com as que eu já abordei aqui no átomo; por causa disso, praticantes de outras lutas de cinturão às vezes se arriscam em torneios de ashyrtmaly aba gureshi.

O aba do nome da luta também é o nome do uniforme, que consiste em uma espécie de colete aberto na frente e uma bermuda, ambos feitos de couro e tradicionalmente de cor preta, embora possam ter detalhes em outras cores. Na ashyrtmaly aba gureshi, o colete é curto, terminando antes da cintura, e o cinturão é amarrado entre o colete e a bermuda. O colete e o cinturão, que possui uma forma própria para ser amarrado, não são fáceis de serem vestidos, e devem ser colocados e removidos à vista de todos, com cada lutador contando com um membro da arbitragem que o ajuda a se vestir antes da luta e se despir ao final.

Na ashyrtmaly aba gureshi só é permitido segurar o cinturão do adversário com a mão direita. No início da luta, um dos lutadores é sorteado, e já começa segurando o cinturão do adversário, mas com seu braço passando por cima do ombro esquerdo do outro. Cada lutador só pode usar as mãos para segurar o cinturão ou o colete do adversário, sendo proibido segurar braços, pernas, pescoço ou usar a mão para empurrar o oponente. A ashyrtmaly aba gureshi possui movimentos válidos tanto para a luta de pé quanto com os dois lutadores no solo, mas, se o árbitro decidir que a luta de solo está se prolongando sem que dela vá resultar um vencedor, ele pode interromper a luta e recomeçá-la com ambos os lutadores de pé. A luta de solo deve sempre começar em decorrência de um arremesso; um lutador se jogar no chão de propósito para forçá-la é considerado conduta antidesportiva.

Uma luta de ashyrtmaly aba gureshi é dividida em três sets de 10 minutos cada. O vencedor da luta será o lutador que vencer mais sets, mas não necessariamente dois, já que, caso o tempo se esgote sem que haja um vencedor, o set é considerado empatado - é possível vencer, portanto, com um set e dois empates. Caso todos os três sets terminem empatados, é disputada uma prorrogação sem limite de tempo, até sair um vencedor. Ainda é comum em alguns torneios da Turquia que a ashyrtmaly aba gureshi seja disputada sem limite de tempo; nesse caso, cada set só acaba quando um dos lutadores vence, e quem vencer dois sets primeiro ganha a luta. A ashyrtmaly aba gureshi possui categorias de peso, que, segundo a TGGF, são oito: até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 90 kg e até 120 kg.

Um lutador será vencedor de um set caso consiga fazer com que o oponente se deite de bruços, com sua barriga tocando totalmente o chão; fazer com que o oponente toque com ambos os ombros simultaneamente no chão; ou fazer com que o oponente se deite de lado no chão, tocando com o quadril e o ombro do mesmo lado no chão. Caso o lutador que começou com o oponente segurando seu cinturão consiga fazer com que o oponente solte antes de ele mesmo segurar o cinturão do oponente, ele também ganha o set. Um lutador que insista em usar movimentos inválidos pode perder o set automaticamente, ou, se esse comportamento colocar a vida ou a integridade física do oponente em risco, pode perder toda a luta, independentemente de em qual set estava e quantos ele tinha ganhado.

A ashyrtmaly aba gureshi possui uma "parente" chamada kapyshmaly aba gureshi, disputada principalmente na região de Hatay; ambas descendem da mesma luta original, mas, ao longo dos anos, foram se tornando bem diferentes. Chamada muitas vezes apenas de aba gureshi, a kapyshmaly aba gureshi, que também é uma luta de cinturão, possui muito menos praticantes dentro da Turquia do que a ashyrtmaly aba gureshi, e também é bem menos popular internacionalmente, não sendo especialmente popular em nenhum outro país. A kapyshmaly aba gureshi fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022.

Na kapyshmaly aba gureshi, o colete é feito de feltro e lã, sendo mais macio e mais comprido, terminando na altura das nádegas do lutador, e o cinturão é amarrado para fechar o colete, que pode ser de várias cores - normalmente com cada um dos lutadores usando um colete de um cor. Os lutadores podem segurar o cinturão com as duas mãos, e a luta de solo, que começa assim que um dos lutadores toca com pelo menos um de seus joelhos no chão por qualquer motivo, tem duração máxima de 1 minuto, com a luta sendo interrompida e recomeçando com os lutadores de pé. Também é proibido segurar qualquer parte do oponente que não seja o colete ou o cinturão, bem como empurrá-lo. Para ganhar um set, o lutador tem que fazer com que o oponente toque o chão com ambos os ombros simultaneamente, ou com que ele caia de costas, com a barriga virada para cima. Ninguém perde o set por soltar a mão do adversário, mas pode perder o set ou a luta caso insista em conduta faltosa. As categorias de peso são as mesmas da ashyrtmaly aba gureshi, mas a duração padrão de uma luta é a metade: três sets de cinco minutos cada, com prorrogação sem limite de tempo caso todos os três terminem empatados.

A terceira luta regional que veremos é a shalvar gureshi, originária da região de Kahramanmarash, mas também praticada no Irã, Mongólia, Azerbaijão, Quirguistão, Turcomenistão e Rússia. O nome da luta também vem de seu uniforme, o shalvar, uma bermuda bem justa feita de pelo de cabra, tradicionalmente tingida na cor verde; se a luta não for na grama, os lutadores também usam meias e sapatilhas. Falando nisso, a shalvar gureshi é a única das lutas que veremos hoje que não precisa obrigatoriamente ser disputada na grama, com a TGGF permitindo que ela seja disputada em ambiente interno, com piso antiderrapante e não abrasivo, na areia, ou até mesmo na neve, o que faz com que ela possa ser disputada durante todo o ano. Também é a única que veremos hoje que já teve um campeonato mundial, disputado em 2020 em Kahramanmarash. A shalvar gureshi também fez parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2022.

A shalvar gureshi é uma luta de submissão, na qual os lutadores, que durante toda a luta ficarão meio curvados para a frente, tentarão utilizar os movimentos válidos para colocar os oponentes deitados no chão e imobilizá-los, ganhando pontos de acordo com o tipo de imobilização. Se um dos lutadores conseguir imobilizar o oponente deitado de costas, de barriga para cima, ele ganha a luta instantaneamente. Lutadores que infrinjam as regras recebem advertências e penalidades, que podem fazer com que eles percam pontos. Uma luta dura 10 minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos vence; se, ao final do tempo, a luta estiver empatada, começa uma prorrogação que dura até um dos lutadores pontuar. É obrigatório lutar de pé; se os lutadores forem ao solo e uma imobilização não começar imediatamente, o árbitro interrompe a luta e manda eles recomeçarem de pé. As categorias de peso são as mesmas da karakucak gureshi.

Aliás, exceto por alguns movimentos que são válidos em uma das lutas mas não são na outra, pelo fato de haver pontuação desde o início, e por só haver uma condição de vitória instantânea, a shalvar gureshi é bem parecida com a karakucak gureshi, o que é apontado como principal entrave à sua popularização no restante da Turquia; recentemente, entretanto, devido ao fato de poder ser praticada em ambiente fechado, a shalvar gureshi vem se popularizando no restante da Europa, principalmente em países com muitos imigrantes turcos, como a Alemanha, o que pode levar à curiosa situação de a luta ter mais praticantes fora da Turquia do que dentro dela. Apesar das semelhanças entre os estilos, lutadores turcos de shalvar gureshi não costumam migrar nem para a karakucak gureshi, nem para a luta olímpica, se orgulhando de defender uma luta tradicional turca com raízes culturais em sua região.

A última luta que veremos hoje é a kushak gureshi, que, de certa forma é a mais diferente: enquanto as outras três lutas regionais se originaram e hoje são praticadas em regiões do sul da Turquia, próximas à fronteira com a Síria e o Iraque, a kushak gureshi é praticada na região de Eskishehir, no norte, próxima à porção europeia da Turquia. A kushak gureshi teria nascido na Crimeia e sido levada por imigrantes da etnia tatar para a Turquia; por causa disso, na Turquia, fora de Eskishehir, ela também é conhecida como tatar gureshi. Ela também é praticada no Turcomenistão, na Romênia, onde por alguma razão é bastante popular, e nas repúblicas autônomas russas da Iacútia e do Tataristão.

A kushak gureshi é uma luta de cinturão; o uniforme dos lutadores consiste de um camisão de mangas curtas e gola em V, uma calça do mesmo tecido, ambos levemente folgados, e uma faixa do mesmo tecido, o cinturão, amarrado na cintura. No início da luta, um lutador segura o cinturão do outro com ambas as mãos, posicionando a mão direita pelo lado de dentro da faixa e a mão esquerda pelo lado de fora. Um lutador que solte qualquer uma das mãos, exceto se em decorrência de uma ordem do árbitro, é imediatamente desclassificado, com a vitória indo para o outro. Mas o objetivo principal da luta não é desclassificar o oponente, e sim derrubá-lo. Derrubar o oponente de forma que ambos os seus ombros toquem o chão simultaneamente resulta em vitória automática, mas derrubá-lo de forma com que ele caia de costas, de lado ou sentado também vale pontos. A luta dura três minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos vence. Caso não haja um vencedor, é disputada uma prorrogação que dura até alguém pontuar. As categorias de peso são as mesmas da ashyrtmaly aba gureshi.

De todas as lutas tradicionais turcas da TGGF, a kushak gureshi é a mais ameaçada. Devido ao grande número de lutas de cinturão populares na Ásia, como o kurash, o alysh, o koresh e o guresh, muitos lutadores de kushak gureshi preferem participar de torneios internacionais dessas lutas ao invés de dos torneios regionais e nacional turcos, que, ano após ano, se veem esvaziados. Os maiores investimentos da TGGF, atualmente, são voltados à yagli gureshi, à ashyrtmaly aba gureshi e à shalvar gureshi, talvez por eles considerarem essas lutas mais legitimamente turcas que as demais. Muitos pedem para que, assim como a shalvar gureshi, a kushak gureshi possa ser disputada oficialmente em ambiente fechado, mas os puristas argumentam que ela então se tornaria muito parecida com as lutas de cinturão da Ásia Central, perdendo sua identidade. Talvez a inesperada popularidade da luta na Romênia seja boa para sua preservação.
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sábado, 13 de abril de 2024

Escrito por em 13.4.24 com 1 comentário

Kho-Kho / Ordo

Hoje eu vou falar sobre dois esportes exóticos, porque parece que eu já falei sobre todos os normais. Vamos começar por um que eu conheci assistindo filmes indianos no streaming, chamado kho-kho.

O kho-kho (cujo nome não se pronuncia "cocô", e sim algo como "rorrô", com um R aspirado semelhante ao H da língua inglesa) é um dos esportes mais antigos da Índia, com evidências apontando que ele já era praticado no século IV a.C., e referências à sua prática constando do Mahabharata, texto épico mitológico que conta a origem da Índia e do hinduísmo. Alguns estudiosos acreditam que o kho-kho seria uma evolução de um esporte ainda mais antigo, chamado rathera e praticado usando carruagens (sendo ratha a palavra em sânscrito para "carruagem"); verdade ou não, inicialmente ele se chamava kho-dhwani krida, "um jogo no qual se faz o som kho", e esse kho não significa absolutamente nada, sendo apenas o som que os jogadores fazem ao trocar de lugar.

A forma moderna do kho-kho, jogada até hoje, foi criada em 1914 pelo Deccan Gymkhana Club, da cidade de Pune, próxima a Mumbai. Dois anos depois, em 1916, seria criada a Federação Indiana de Kho-Kho (KKIF), que visava garantir que as regras criadas em Pune fossem usadas em todo o país, permitindo a realização de torneios. Um dos principais fatores que levaram à popularidade do kho-kho ao longo do século XX foi sua inclusão no programa das escolas; sendo um esporte que não precisa de equipamentos sofisticados, ele é ideal para a prática nas comunidades mais pobres, o que transformou rapidamente o kho-kho em um sucesso nas aulas de educação física das escolas do interior. Com sua inclusão nas escolas, o kho-kho também evoluiria: originalmente jogado na lama, ele passaria a ser praticado na terra batida ou em superfícies acarpetadas, dependendo das condições de cada escola, em ambos os casos proporcionando um jogo mais veloz e dinâmico - mas superfícies de concreto, como as das quadras esportivas escolares, não são recomendadas devido ao alto índice de lesões.

Embora hoje a KKIF já atue em todo o território indiano, o kho-kho ainda é mais popular no sul da Índia que no norte, o que faz com que a entidade tenha um programa especial voltado para a popularização do esporte nos estados onde ele é menos praticado. Nos últimos anos, tem crescido também a prática do kho-kho fora da Índia, levado principalmente por imigrantes indianos; apesar de ainda não existir uma federação internacional de kho-kho, vários países já contam com federações nacionais, quase todos da Ásia, como Bangladesh, Sri Lanka, Butão, Nepal, Irã, Malásia, Indonésia e Coreia do Sul - uma das poucas exceções é a Inglaterra, cuja federação nacional foi fundada em 2014. O kho-kho já faz parte do programa dos Jogos do Sul da Ásia, e almeja ser incluído nos Jogos Asiáticos, versão daquele continente de nossos Jogos Panamericanos.

O kho-kho é disputado em um campo de 27 metros de comprimento por 16 de largura. No sentido do comprimento, próximas à metade do campo, são traçadas duas linhas de 24 m de comprimento cada, distantes 30 cm uma da outra; essas linhas formam a chamada central lane. Em cada uma das pontas da central lane há um poste cilíndrico, com entre 9 e 10 cm de diâmetro e entre 120 e 125 cm de altura; no sentido da largura, uma linha atravessa o centro de cada poste, sendo a área de 1,5 m de comprimento além de cada poste conhecida como zona neutra. Tirando a zona neutra, o campo de jogo é dividido em nove partes pelas chamadas cross lanes, que cortam o campo no sentido da largura; cada cross lane é formada por duas linhas paralelas, uma a 35 cm da outra, havendo um total de 8 cross lanes. A distância entre cada cross lane e a seguinte é de 2,3 m, e a da primeira e da última para cada poste é de 2,55 m. As interseções das cross lanes com a central lane criam oito creases, retângulos de 35 cm de comprimento por 30 cm de largura.

Uma equipe de kho-kho é formada por nove jogadores. No início da partida, será sorteado um time que será o perseguidor e um que será o perseguido. Oito dos jogadores do time perseguidor se sentarão nas creases, quatro virados para cada metade do campo, de forma alternada - se o primeiro estiver olhando para a metade da direita, o segundo deverá olhar para a metade da esquerda, o terceiro para a metade da direita, e assim por diante. O nono jogador será o primeiro perseguidor, e se posicionará ao lado de um dos postes, escolhendo uma das metades do campo. Do time perseguido, três jogadores começam em campo, nas posições que bem entenderem, enquanto os outros seis ficam de fora, esperando sua vez. A um sinal do árbitro, o jogo começa.

O objetivo do primeiro perseguidor é encostar em um dos três jogadores do time perseguido; se ele conseguir, o jogador no qual ele encostou estará eliminado. Quando os três que estão em campo forem eliminados, entram os três seguintes na ordem determinada pelo técnico ou capitão. Assim como no beisebol, um jogador "eliminado" não é excluído do jogo; se todos os nove forem eliminados, e ainda houver tempo, aqueles três que começaram a partida voltam para o campo, não havendo limite para o número de vezes que um jogador pode voltar para o campo. Um jogador também é eliminado caso pise fora da área de jogo por qualquer motivo, ou caso demore muito para entrar em campo quando um novo trio tiver de assumir seu lugar. Para cada jogador eliminado, o time perseguidor soma um ponto.

Para que as coisas não fiquem muito fáceis, existem algumas regras que os jogadores devem seguir. Para começar, embora os jogadores do time perseguido possam correr em qualquer direção, mudar de direção à vontade, e até mudar o lado do campo onde estão correndo, o perseguidor só pode correr na metade do campo que ele escolheu antes de o jogo começar, e nunca pode mudar de direção no sentido do comprimento - se ele estava correndo da esquerda para a direita, não pode mudar e passar a correr da direita para a esquerda. Para que o jogo não fique impossível, há duas formas de mudar de lado e direção. A mais simples é o perseguidor ir até a zona neutra e dar a volta no poste; se ele fizer isso, ele passa a poder correr no lado oposto do campo e na direção contrária que ele estava correndo.

O kho-kho é, porém, um esporte coletivo, e ficar dando voltas nos postes demanda muito tempo, o que nos leva ao aspecto principal do jogo: o kho. A qualquer momento, o jogador perseguidor pode encostar em um de seus colegas de time que estão sentados e falar "kho", no que se chama "fazer um kho". No momento em que o kho é feito, o jogador que estava sentado se levanta e passa a ser o novo perseguidor, e o que estava perseguindo se senta no lugar dele, olhando para o mesmo lado do campo que ele estava olhando antes do kho. Após se levantar, o jogador só pode correr no lado do campo para o qual estava olhando, e, uma vez que comece a correr, não pode mudar de direção - a menos que, como já vimos, dê a volta em um dos postes. Para que o kho seja válido, o perseguidor não pode ter passado da cross lane correspondente à crease onde está sentado o colega, e o colega só pode se levantar e começar a correr depois que ele for tocado e a palavra kho for pronunciada; o antigo perseguidor deve se sentar em seu lugar assim que possível.

Caso o perseguidor pise fora do campo, faça kho em algum colega pelo qual já passou, mude de direção ou de lado de campo quando está correndo sem dar a volta no poste, ou demore muito para se sentar após fazer o kho, ele incorrerá em falta. Um jogador que incorra em falta não poderá eliminar nenhum oponente até alcançar a zona neutra mais distante do ponto onde está e dar a volta no poste, quando poderá voltar a tentar eliminar os oponentes normalmente.

Uma partida de kho-kho dura quatro tempos de nove minutos cada, com os times se alternando entre perseguidor e perseguido - se, no primeiro tempo, o time A foi o perseguidor, no segundo tempo ele será o perseguido, no terceiro será o perseguidor, e no quarto será o perseguido. O vencedor será o time que, ao final do quarto tempo, tiver marcado mais pontos, com o jogo podendo ser mais curto caso o time que seria o perseguidor no quarto tempo já esteja ganhando ao final do terceiro, ou consiga ultrapassar o outro time ao longo do quarto. É possível um jogo terminar empatado, mas, caso seja um jogo eliminatório, é disputado o chamado minimum chase: são jogados mais dois tempos com "morte súbita", que se encerram assim que o primeiro jogador é eliminado, e o time vencedor será aquele que conseguir eliminar um oponente mais rápido.

Sendo um esporte regional popular dentre crianças, o kho-kho tem diversas variações; nas escolas, a mais popular é o time kho-kho, no qual a partida dura só dois tempos, com cada tempo se encerrando quando os nove jogadores do time perseguido forem eliminados, e sendo vencedor o time que conseguiu eliminar seus nove oponentes mais rápido. Na zona rural, a variação mais popular é a circle kho-kho, na qual o campo de jogo é composto por dois círculos concêntricos e não há postes; um perseguidor não pode passar do círculo externo para o interno e vice-versa, e seus colegas não ficam sentados, mas de pé espalhados pelo campo, metade olhando para o círculo interno, metade de costas para ele - quando é feito o kho, jogadores que estavam olhando para o círculo interno só podem correr dentro dele, enquanto os que estavam de costas só podem correr fora dele, mas os perseguidos podem mudar de círculo à vontade.

Em 2022, a KKIF criaria uma variante chamada Ultimate Kho Kho (UKK), visando jogos profissionais mais emocionantes. No UKK, o jogo é mais curto, durando 4 tempos de 7 minutos cada, e o time perseguidor tem apenas 7 jogadores em campo (mas o perseguido ainda tem 9); por isso, há apenas 7 cross lanes e 7 creases, com o campo tendo apenas 22 m de comprimento. O jogo é indoor, sendo disputado em uma superfície semelhante à de uma quadra de vôlei, e cada eliminação vale 2 pontos. É feita uma pausa de 30 segundos entre a eliminação do terceiro jogador de um grupo e a entrada do grupo seguinte; e, caso um grupo perseguido consiga permanecer sem ter nenhum jogador eliminado durante 3 minutos (a chamada Dream Run), o time perseguido ganha 1 ponto, e mais 1 ponto para cada 30 segundos sem ter seu primeiro jogador eliminado depois disso. Antes de cada partida, um dos jogadores de cada time é escolhido para ser o wazir; quando o time está perseguindo, o wazir, se for o perseguidor ativo, pode mudar de direção livremente. Cada time perseguidor também pode, uma vez por tempo, decidir chamar um powerplay, durante o qual terá dois wazirs, o que começou a partida e outro escolhido por ele; o powerplay começa quando um grupo de 3 perseguidos entra em campo e dura até todos os três serem eliminados. O powerplay também está sempre ativo durante o Minumium Chase, caso ele seja necessário.

O principal torneio do UKK também se chama UKK, e já teve duas edições, uma disputada em 2022 e uma que começou em dezembro de 2023 e terminou em janeiro de 2024, ambas exclusivamente masculinas - embora o kho-kho amador tenha versões masculina, feminina e mista, essa última a mais popular nas escolas. Segundo dados das emissoras de TV da Índia, se não forem considerados os torneios de críquete, o UKK é o terceiro torneio esportivo de maior público do país, atrás da Pro Kabaddi League e da Indian Super League (de futebol); isso fez com que a KKIF já começasse a planejar uma expansão para o futuro, com mais times (atualmente são apenas seis) e talvez um torneio feminino.

Internacionalmente, o principal torneio do kho-kho é o Campeonato Asiático, realizado em 1996, 2000, 2016 e 2023. O torneio é organizado pela KKIF, que tem a intenção de torná-lo anual com a mesma fórmula do de 2023: oito etapas ao longo do ano nas quais os times somam pontos, sendo campeão quem tiver mais ao final da última. A Índia ganhou as quatro edições no masculino, mas apenas três no feminino, com a de 2000 tendo sido conquistada por Bangladesh. Em 2024, a KKIF também organizou um Campeonato Mundial de Kho-Kho (com a presença das seleções da Inglaterra, Austrália e Quênia, além das asiáticas), sediado na Índia, que conquistou os títulos do masculino e do feminino.

No estado de Maharashtra, onde fica Mumbai, é muito popular um esporte aparentado do kho-kho, chamado atya patya, que conta com sua própria federação, a Federação Indiana de Atya Patya, fundada em 1982, e é conhecido em outras regiões da Índia pelos nomes killithattu, klithatu, wanjh wati, gallery, sur-pati, lon-pati, darya-banth, saragari, saramani, tilli, uppinat, uppupatti, choupal pati, panchwati e chikka. O campo é mais estreito, com apenas 7 m de largura, e as cross lanes são nove, separadas 3,4 m uma da outra; não há postes nem zona neutra. No início do jogo, o time que está defendendo coloca um jogador em cada uma das creases, e o time que está atacando começa com dois jogadores de cada lado do campo, um em cada metade; dois vão correr da esquerda para a direita, enquanto os outros dois vão correr da direita para a esquerda. Os defensores só podem se movimentar nas cross lanes, e seu objetivo é tocar os atacantes, que podem mudar de direção no sentido da largura, mas não no sentido do comprimento - ou seja, só podem correr para a frente. O time atacante ganha 1 ponto para cada cross lane que cada jogador seu ultrapassou completamente antes de ser eliminado. Um jogador que consiga passar por todas as nove grita "tond", e então pode voltar e correr no sentido contrário; se ele conseguir cruzar todas as nove de novo, ele marca uma Lona, e os atacantes que estão em quadra mas não foram eliminados podem retornar às suas posições iniciais para recomeçar a correr. Se os quatro atacantes forem eliminados, outros quatro entram em seu lugar, sendo permitido um jogador ser atacante mais de uma vez durante o mesmo tempo de jogo. A partida é dividida em quatro tempos de 7 minutos cada, com os times se alternando entre atacantes e defensores. Até hoje só foi disputado um Campeonato Asiático de Atya Patya, no Butão, em 2013, exclusivamente no masculino e conquistado pela Índia.

Outro parente do kho-kho é o langdi, popular no sudeste da Índia, embora seja hoje considerado mais um jogo de crianças que um esporte. O campo de jogo é um quadrado de 10 m de lado, e cada time tem 12 jogadores; uma partida dura quatro tempos de 9 minutos cada, com os times se alternando entre atacante e defensor. O time defensor começa com três jogadores em campo, enquanto o atacante começa com apenas um. Todos os jogadores podem correr em qualquer direção, mas o atacante deve fazê-lo pulando em um pé só - o pé direito no primeiro tempo em que o time atua como atacante, o pé esquerdo no segundo. Cada vez que o atacante toca em um defensor, ou se um defensor pisar fora do campo, o defensor é eliminado e o time atacante ganha 1 ponto; quando os três defensores são eliminados, entram os três seguintes. Se o atacante pisar no chão com o pé errado, ou se pisar fora do campo, é o atacante que é eliminado; o time defensor não ganha pontos, mas outro atacante deve substituí-lo.

O segundo esporte que veremos hoje se chama ordo, e eu o conheci quando descobri os Jogos Mundiais Nômades, sobre os quais já falei aqui no átomo. Descrito como "um jogo de tabuleiro gigante disputado na areia" ou "bocha usando ossos", o ordo é um esporte milenar, considerado o mais antigo dos esportes tradicionais do Quirguistão. Ele é tão antigo que não há nenhum registro de quando ele teria surgido, com suas regras, pela maior parte de sua história, tendo sido transmitidas por tradição oral; há inclusive uma alegação do governo da Mongólia - onde o ordo também é popular - de que o esporte teria surgido na Mongólia e sido levado para o Quirguistão, algo que o governo do Quirguistão contesta com veemência.

Uma partida de ordo simboliza uma invasão ao palácio do Khan - ordo, em quirguiz, era justamente o nome do palácio do Khan. Tradicionalmente, ele é disputado sobre uma superfície de areia, na qual é traçado um círculo de 80 cm de diâmetro que representa o palácio do Khan. Cada time tem oito jogadores, sendo sete titulares e um reserva, que pode substituir um dos outros a qualquer momento durante a partida, mas o que foi substituído não pode mais voltar. Cada time também tem um técnico, que pode orientar os jogadores de forma limitada durante a partida, gritando certas instruções e sugestões, mas sem poder entrar na área de jogo. Assim como no críquete, primeiro um time joga, depois o outro, visando igualar ou superar a pontuação do que jogou primeiro.

Três tipos de peças são usadas no jogo de ordo; 35 delas se chamam alchicks, representam os guardas do Khan, e são feitas com ossos do tornozelo de ovelhas. Uma das peças é um disco de bronze de 2 cm de diâmetro, que representa o Khan; os alchicks e o Khan começam o jogo dentro do círculo, com o Khan exatamente no centro do círculo e os alchicks cercando-o. A terceira peça será usada pelos jogadores para tentar remover os alchicks e o Khan do círculo, se chama tompoy, e é feita do osso do tornozelo de uma vaca. Tradicionalmente, os alchicks são de cor vermelha e o Khan é de cor marrom, um dos times joga com um tompoy vermelho e o outro com um tompoy amarelo, mas, recentemente, já passou a ser permitido que cada tompoy seja da cor do uniforme de cada time, embora um dos times ainda seja o "vermelho" e o outro o "amarelo", mesmo que seus uniformes não sejam dessas cores.

No início de cada partida, o capitão de cada time pega um alchick e joga para cima, de forma que ele passe da altura de sua cabeça. Se os dois alchicks caírem com o mesmo lado para cima, é feito um novo arremesso, mas, se cada um cair com um lado para cima, o time cujo alchick caiu com o lado mais arredondado, chamado aykur, pra cima começa. Cada jogador deverá se posicionar em uma postura própria, apoiado em um pé só, com os dedos tocando a linha do círculo e o dedão apontando para dentro do círculo, e arremessar o tompoy para que ele bata nos alchicks e os remova do círculo. Existem várias técnicas diferentes para lançar o tompoy, cada uma delas apropriada para uma configuração de alchicks - já que, no início do jogo, todos os alchicks estarão arrumadinhos no centro do círculo, mas, a cada arremesso, eles vão se espalhando. Cada jogador tem direito a três arremessos, mas tem que acertar pelo menos um alchick em cada um deles; se o jogador arremessar o tompoy e não acertar nenhum alchick do círculo, ele passa sua vez. Um jogador que pise incorretamente na hora de fazer seu arremesso, que toque nos alchicks, que jogue o tompoy para fora do círculo, ou que cometa outras infrações previstas nas regras também perde sua vez. Cada jogador pode remover até cinco alchicks do círculo, também passando a vez quando remove o quinto.

Quando um jogador passa a vez, o seguinte em uma lista previamente determinada pelo técnico assume seu lugar. Não há limite para quantas vezes cada jogador pode jogar, mas cada um dos sete deve jogar pelo menos uma vez antes que eles comecem a se repetir, e jogadores que tirem cinco alchicks do círculo saem da rotação. Os jogadores vão se alternando e arremessando até que consigam remover todos os alchicks de dentro do círculo; quando isso acontece, os jogadores que estavam fora da votação retornam, e o objetivo passa a ser remover o Khan do círculo, sendo que, para remover o Khan, o jogador pode pisar dentro do círculo, embora ainda tenha que se apoiar em um pé só, e seu dedão tenha que apontar na direção do Khan - além disso, em todos os arremessos para remover o Khan, o tompoy tem que deixar a mão do jogador por baixo da linha de seus joelhos. Um time tem 60 minutos (também conhecido como uma hora) para concluir seu turno; caso consiga remover o Khan do círculo antes desse tempo, o time faz um malak.

Quando o primeiro time faz o malak, ou quando os 60 minutos se esgotam, passa a ser a vez do outro time, que seguirá as mesmas regras. Ao final do turno do segundo time, se um dos dois times tiver feito malak mas o outro não, o time que fez malak vence. Se ambos tiverem feito, o jogo termina empatado. Se for um jogo eliminatório, uma partida-desempate começa imediatamente.

E se, vocês devem estar se perguntando, nenhum dos dois times fizer malak? Caso pelo menos um dos times não tenha conseguido remover todos os alchicks, ganha quem removeu mais. Caso ambos tenham deixado só o Khan, o jogo conta com dois árbitros, que observam se a postura dos jogadores e os arremessos estão corretos, se um jogador cometeu alguma falta, e se os alchicks e o Khan realmente saíram do círculo. Um desses árbitros carrega um equipamento muito importante: uma régua de 40 cm, que tem um lado vermelho e o outro amarelo. Se o time que arremessou primeiro deixou só o Khan, mas não fez malak, o árbitro mede, a partir do centro do círculo, a distância que o Khan ficou da borda do círculo, e a anota. Se o segundo time ficar na mesma situação, o árbitro também mede essa distância, e vence o time cujo Khan ficou mais perto da borda do círculo. Ainda é possível empatar, caso os dois times removam a mesma quantidade de alchicks, ou caso os dois Khans fiquem na mesma distância.

Torneios de ordo tradicionalmente são disputados em pontos corridos, sem jogos eliminatórios; nesse sistema, um time que ganhou a partida porque fez malak e o outro não ganha 3 pontos, um time que ganhou a partida sem fazer malak ganha 2 pontos, e, em caso de empate, cada time ganha 1 ponto. Em torneios com jogos eliminatórios, essa pontuação é usada na fase de grupos, mas, na fase eliminatória, os vencedores vão avançando e os perdedores vão sendo eliminados.

O ordo é regulado pela Federação Quirguiz de Ordo, fundada apenas em 2012; além de no Quirguistão e na Mongólia, que tem sua própria federação nacional, e regras um pouquinho diferentes, o ordo é jogado no Cazaquistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Turcomenistão, Paquistão, Afeganistão, China e Nepal. Sua única competição internacional é os Jogos Mundiais Nômades, dos quais faz parte do programa desde a primeira edição, em 2014, tendo ficado de fora em 2022 mas já estando previsto para voltar em 2024. Por questões de tradição, o ordo é disputado somente no masculino - embora não haja absolutamente nada que impeça as mulheres de jogá-lo além do machismo.

Antes de terminarmos por hoje, cabe dizer que há um jogo de tabuleiro chamado Ordo, criado pelo alemão Dieter Stein e lançado em 2009, que não tem absolutamente nada a ver com o esporte, com as regras sendo completamente diferentes; o Ordo de Stein se tornou relativamente famoso, porém, e já há até versões dele para computador e celular.
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