domingo, 8 de setembro de 2019

Escrito por em 8.9.19 com 0 comentários

Aikidô

Em 2017, meio de propósito, meio sem querer, eu fiz uma série de posts sobre lutas esportivas, um por mês. Como essa série começou meio que acidentalmente, eu acabei não pensando muito em qual luta iria ser abordada em qual mês, falando sempre da que eu estivesse com mais vontade naquele momento. Essa falta de planejamento fez com que duas lutas que eu queria abordar ficassem de fora, e, não querendo prolongar o assunto para 2018, eu acabei não falando delas. Acontece, porém, que uma dessas lutas já fez parte do programa dos World Games, e, se eu quiser algum dia falar sobre todos os esportes que já fizeram parte do programa dos World Games, assim como eu fiz com o das Olimpíadas, um dia eu vou ter que falar sobre ela. Essa semana, eu decidi que esse dia será hoje. Hoje é dia de aikidô no átomo.

O aikidô foi criado no início do século XX pelo mestre japonês Morihei Ueshiba, que nasceu em 1883. Filho de um fazendeiro, Ueshiba estudou várias artes marciais na adolescência, e lutou na Guerra Russo-Japonesa, que durou de 1904 a 1905. Ao retornar da guerra, ele conheceu Takeda Soukaku, professor de artes marciais que buscava reviver uma antiga arte da época dos samurais, que tinha o complicado nome de Daito-ryu Aiki-jujutsu, adaptando-a de acordo com os conceitos das demais artes marciais da época. Ueshiba treinaria com Soukaku de 1907 a 1919, quando decidiria abrir seu próprio dojo. Na mesma época, ele se uniria a um movimento religioso conhecido como Omoto-kyo, e, em 1924, decidiria acompanhar o líder do movimento em uma expedição à Mongólia. Enquanto cruzavam a China, porém, os dois seriam capturados por soldados chineses e deportados de volta ao Japão. Segundo Ueshiba, a viagem fez com que ele passasse por uma profunda experiência espiritual, durante a qual um espírito dourado surgiu do chão e envolveu seu corpo. Seja lá o que aconteceu, os que conviviam com Ueshiba deixariam registrado que, após essa experiência, sua perícia nas artes marciais aumentaria enormemente, chegando ao nível de um verdadeiro mestre.

Essa perícia traria fama a Ueshiba, que, em 1926, decidiria se mudar para Tóquio e abrir um novo dojo, o Akikai Hombu. Ao longo dos anos seguintes, ele se dedicaria a criar uma nova arte marcial, cujos fundamentos seriam os mesmos do Daito-ryu Aiki-jujutsu, mas que também usaria elementos do Tenjin Shin'yo-ryu, que Ueshiba estudou em 1901, do Gotoha Yagyu Shingan-ryu, que ele estudou entre 1903 e 1908, e do judô, que ele estudou com Kiyoichi Takagi em 1911. No início, Ueshiba chamava sua arte marcial de Aiki Budô, a "arte marcial da combinação de energia"; ninguém sabe quando o nome mudou para aikidô (o "caminho da combinação de energia"), nome que passou a ser oficial a partir de 1942, quando o governo japonês ordenou uma catalogação de todas as artes marciais praticadas no país. Em 1948, Ueshiba criaria a Fundação Akikai, que se tornaria responsável pela regulação do aikidô no Japão, visando garantir que seus preceitos jamais fossem deturpados.

A primeira vez que o aikidô foi demonstrado fora do Japão foi em 1951, quando um dos alunos de Ueshiba, Minoru Mochizuki, visitou a França e fez uma demonstração para um grupo de alunos franceses de judô. No ano seguinte, Tadashi Abe seria escolhido como o representante oficial da Fundação Akikai na Europa, abrindo um dojo também na França, onde ensinaria aikidô durante sete anos. O segundo dojo de aikidô fora do Japão seria aberto em 1953 no Havaí, por Koichi Tohei; no mesmo ano, Kenji Tomiki faria um tour por 15 estados, apresentando o aikidô oficialmente aos Estados Unidos. Os dojo seguintes seriam abertos na Inglaterra (1955), Itália (1964), Alemanha e Austrália (ambos em 1965). A partir da década de 1970, o aikidô se espalharia pelo mundo com mais velocidade do que a Fundação Akikai conseguia acompanhar, e, hoje, já é uma arte marcial praticada em todo o planeta.

Por causa dessa rápida expansão, o aikidô, assim como outras artes marciais, acabaria tendo um monte de variações, conhecidas como estilos. Cada um dos estilos é controlado por uma organização diferente, sendo que nenhuma delas é reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional - o que faz com que o aikidô não seja um esporte reconhecido, e, portanto, não possa fazer parte das Olimpíadas. O aikidô considerado "oficial" é aquele que ainda segue as regras estabelecidas por Ueshiba, originalmente regulado pela Fundação Akikai. Após a morte de Ueshiba, em 1969, ficaria determinado que a Fundação sempre seria comandada por um de seus descendentes, sendo o atual presidente seu neto, Moriteru Ueshiba. Em 1976, a Fundação Akikai criaria a Federação Internacional de Aikidô (IAF), para manter os mesmos princípios do aikidô em todo o planeta. A IAF funciona como se fosse uma federação esportiva (mas, a rigor, não o é, e já já veremos o porquê), e hoje conta com 56 membros, dentre eles o Brasil. A IAF é membro fundador da IWGA, a organização responsável pelos World Games, e já participou do evento cinco vezes (1989, 1993, 1997, 2001 e 2005), mas sempre como esporte de demonstração (e já já veremos o porquê também). Como de praxe, é sobre as regras da IAF que eu vou falar nesse post, sendo que as demais organizações podem ter regras diferentes.

Falando um pouquinho sobre eles, três estilos surgiram enquanto Ueshiba ainda estava vivo: o Yoseikan Aikidô, em 1931, o Yoshinkan Aikidô, em 1955, e o Shodokan Aikidô, em 1967. Logo depois da morte de Ueshiba, Koichi Tohei se desentendeu com seu filho, Kisshomaru Ueshiba, e decidiu deixar a Fundação Akikai e criar o Shin Shin Toitsu Aikidô. O mais recente estilo é o Iwama Ryu Aikidô, praticado desde a década de 1970, mas que só foi formalizado em 2004. Todos os estilos foram criados por ex-alunos de Ueshiba, que visavam aprimorar e modernizar a arte marcial; alguns são até bem vistos pela Fundação Akikai, mas o Shodokan Aikidô, por exemplo, é renegado, pela família Ueshiba por considerar que seus preceitos estão em desacordo com os ensinamentos de seu criador. Cada um dos estilos possui sua própria organização que o regula em todo o planeta, bem como seus próprios dojo e escolas - a do Shodokan Aikidô, por exemplo, é a Federação Internacional de Shodokan Aikidô (SAF), que conta apenas com 18 membros, dentre eles o Brasil.

O principal princípio do aikidô é o de que todo ataque pode ser recebido e redirecionado para o atacante sem causar nenhum dano, nem a quem está sendo atacado, nem a quem está atacando. Através de arremessos e técnicas de imobilização, um praticante de aikidô teoricamente consegue fazer com que qualquer ataque contra si seja frustrado sem que nenhum dos envolvidos no ataque sofra qualquer dano ou ferimento. O treinamento do aikidô sempre conta com duas pessoas em papéis distintos, o uke e o tori. Todo praticante de aikidô deve treinar para saber desempenhar igualmente bem ambas as funções, não existindo praticantes especializados em cada uma delas. Basicamente, o uke finge que desfere um ataque contra o tori, que usa uma técnica para redirecionar sua energia contra ele mesmo, sem machucá-lo. Nos níveis mais avançados, o uke pode aplicar um contra-golpe, para desequilibrar o tori e imobilizá-lo. O ato de receber um golpe de aikidô se chama ukemi, e também é treinado à exaustão, para que os praticantes saibam cair e rolar sem sofrer dano. Instrutores normalmente avaliam o ukemi com base não somente na técnica dos alunos, mas também na atenção que cada um deles deu a seu parceiro de treino e ao ambiente no qual o treino está sendo realizado.

Os golpes aplicados pelo uke em seu ataque não são socos e chutes, e sim movimentos que lembram ataques com armas: os uchi imitam com os braços estendidos e mãos espalmadas golpes que seriam aplicados com espadas, enquanto os tsuki, que lembram socos, na verdade imitam estocadas feitas com facas ou punhais. Em níveis avançados é permitido usar chutes, mas isso é desencorajado pelos instrutores, já que receber um chute e rolar corretamente sem sofrer dano é bastante difícil. Os principais ataques são direcionados ao topo da cabeça, à lateral da cabeça, ao rosto e ao tronco - peito, abdômen e plexo solar - do oponente. Existem também ataques chamados dori, nos quais o praticante segura o oponente. Existem cinco tipos de dori: uma das mãos segurando um dos pulsos do oponente, ambas as mãos segurando um dos pulsos do oponente, ambas as mãos segurando ambos os pulsos do oponente, ambas as mãos segurando ambos os ombros do oponente, e ambas as mãos segurando a gola do uniforme do oponente.

Uma vez que receba o ataque, o tori usará uma das técnicas do aikidô para neutralizá-lo. A maioria das técnicas foi adaptada por Ueshiba do Daito-ryu Aiki-jujutsu, mas algumas foram inventadas do zero por ele. Existem dois tipos de técnicas, os arremessos, que usam a força do ataque para desequilibrar o uke e lançá-lo contra o chão, e as imobilizações, que causam desconforto, fazendo com que o ataque seja interrompido, ou colocam o membro usado no ataque em posição na qual o ataque não pode ser realizado - um exemplo de imobilização é o ikkyo, no qual o tori coloca uma das mãos no cotovelo do uke e a outra em seu pulso, rotacionando seu antebraço para baixo e aplicando pressão no nervo ulnar, o que causa um grande desconforto e interrompe o ataque. Embora existam apenas cerca de vinte técnicas básicas, elas podem ser combinadas com vários movimentos do corpo do tori para frente e para trás, criando mais de mil técnicas diferentes - o ikkyo por exemplo, pode ser aplicado contra um oponente que está realizando um movimento de ataque, ou contra um oponente que já teve um ataque anulado mas deu um passo para trás para recuperar o equilíbrio.

Existe ainda um tipo de golpe chamado atemi, que são falsos-ataques usados para distrair ou desestabilizar o uke, permitindo que a técnica seja usada mais facilmente. Os atemi imitam socos e golpes com a mão espalmada, normalmente são direcionados ao rosto do adversário, e visam não atingi-lo, e sim causar uma reação - como desviar o rosto ou jogar a cabeça para trás - que permitirá, então, que o tori use sua técnica. Alguns atemi são usados propositalmente para que o uke os bloqueie, sendo a técnica aplicada em seguida ao bloqueio. Ueshiba considerava os atemi como parte essencial do aikidô, pois eles quebravam a concentração do atacante e permitiam maior controle da luta pelo defensor.

Embora isso possa soar estranho, o aikidô também treina a defesa contra ataques armados. As três armas utilizadas são o bastão (jo), a faca (tanto) e a espada de madeira (bokken). Cada uma das armas possui técnicas próprias, a maioria delas visando retirar a arma das mãos do oponente para depois imobilizá-lo - já que arremessar um oponente armado não seria muito seguro. Existe, também, um treinamento específico para usar as técnicas contra vários oponentes simultâneos, chamado randori. As técnicas usadas no randori são as mesmas do treinamento de um contra um, mas devem ser usadas de forma que, após lidar contra um oponente, o praticante já esteja corretamente posicionado para lidar com o próximo.

O uniforme do aikidô se chama aikidogi, é sempre de cor branca, e é composto por uma calça comprida amarrada na cintura com um cordão e uma camisa aberta, de mangas que terminam nos cotovelos, amarrada na cintura por uma faixa - mulheres podem usar uma camiseta branca por baixo dessa camisa, para evitar exposições indesejadas. Também é permitido aos praticantes do aikidô usar uma segunda calça por cima da calça do aikidogi, chamada hakama, que é bastante larga e leve, sempre de cor preta ou azul marinho, e tem um elástico na cintura. Tradicionalmente, a hakama era usada apenas por professores e por alunos de faixa preta, mas hoje algumas escolas permitem que todos os alunos a usem.

Falando em faixa preta, o aikidô possui, assim como outras artes marciais, um sistema de ranqueamento, usado para registrar a perícia de cada aluno em suas técnicas. Esse ranqueamento se faz presente através das faixas que os praticantes usam para fechar a camisa do aikidogi, mas, no aikidô, curiosamente, só existem faixas de duas cores, branca e preta. Assim como no judô, os alunos do aikidô começam no sexto kyu, e, após adquirir conhecimento e técnica suficiente, podem fazer uma prova para passar para o quinto, então para o quarto, e assim sucessivamente, até o primeiro kyu. Então, se já tiver mais de 16 anos, pode fazer uma prova para passar para o primeiro dan, então para o segundo, e assim por diante. Teoricamente, o número de dan é infinito, mas os maiores mestres do aikidô pertencem ao décimo dan, o que de certa forma limita seu número em dez. Todos os ranqueados como kyu usam faixas brancas, e todos os ranqueados como dan usam faixas pretas.

O motivo pelo qual a IAF não é verdadeiramente uma federação esportiva é que o aikidô não é um esporte competitivo, sendo considerado pela Fundação Akikai e pela própria IAF como um exercício físico, mental e espiritual - malcomparando, da mesma forma que a yoga. Isso ocorre porque Ueshiba era terminantemente contra o uso do aikidô em competições, alegando que ele deveria ser usado pera fortalecer o corpo e a mente, e não para produzir um vencedor e um perdedor. Seguindo esses ensinamentos, a IAF não somente não organiza nenhum campeonato ou torneio de aikidô, como também proíbe que seus atletas filiados participem de campeonatos ou torneios organizados por outras entidades. A IWGA respeita essa decisão, o que fez com que, todas as vezes que o aikidô participou dos World Games, fosse como "esporte convidado", com apenas demonstrações de suas técnicas, sem a distribuição de medalhas.

A grande maioria das organizações que regulam os estilos do aikidô respeita os ensinamentos de Ueshiba, não organizando campeonatos nem torneios. A maior exceção é a SAF, que regula o Shodokan Aikidô, o segundo estilo com o maior número de praticantes, só ficando atrás do aikidô da IAF. Também conhecido como "aikidô competitivo" ou "aikidô esportivo", o Shodokan Aikidô foi criado dois anos antes da morte de Ueshiba por Kanji Tomiki, o representante da Akikai escolhido para demonstrar o aikidô nos Estados Unidos em 1953. Além de ter sido aluno de Ueshiba, Tomiki foi aluno de Jigoro Kano, o criador do judô, e acreditava que o aikidô poderia se beneficiar muito do sistema competitivo que já existia no judô. Essa divergência de opinião levou a um rompimento entre Tomiki e Ueshiba, e à sua expulsão da Akikai em 1967, ano no qual ele abriria seu próprio dojo na cidade de Osaka. Inicialmente, seu estilo era conhecido como Tomiki Aikidô, só recebendo o nome oficial de Shodokan Aikidô em 1976, três anos antes da morte de Tomiki. Durante anos, Ueshiba e a Akikai tentaram convencer Tomiki a mudar o nome de sua arte marcial, considerando desrespeitoso o uso do nome aikidô para um esporte competitivo; Tomiki sempre se manteve firme em sua decisão, e inclusive, após a morte de Ueshiba, tinha esperanças de que mais estilos iriam passar a organizar seus próprios campeonatos.

Pelas regras da SAF, não há a separação entre uke e tori, com ambos os atletas podendo realizar ataques, arremessos e imobilizações. Cada embate dura dois minutos, com prorrogação infinita durante a qual quem pontua primeiro ganha, se ao fim dos dois minutos a luta estiver empatada. Cada ataque bem sucedido vale um ponto, bem como fazer o oponente perder o equilíbrio ou sair da área designada para o combate. Puxar o oponente pelo aikidogi ou errar uma esquiva resultam em um ponto para o oponente. Realizar um arremesso ou imobilização perdendo a boa postura e o equilíbrio vale 2 pontos, e realizar um arremesso ou imobilização mantendo a boa postura e o equilíbrio vale um ippon e a vitória instantânea. Um atleta que cometa uma falta antidesportiva recebe um chui, e dois chui na mesma luta também resultam em vitória instantânea do oponente. A principal competição da SAF é o Campeonato Mundial de Aikidô, realizado no masculino e no feminino a cada dois anos desde 1989, sempre alternando como sede uma cidade japonesa e uma de algum outro país - embora, até hoje, somente Estados Unidos, Reino Unido e Austrália tenham sido esse "outro país". Como a SAF tem poucos membros, suas competições são abertas a qualquer atleta de qualquer estilo do aikidô - embora, como já foi dito, os da IAF são proibidos de participar.

Uma das principais críticas feitas pelos praticantes de outras artes marciais ao aikidô é a de que, por causa de sua natureza não-competitiva, o aikidô não possui realismo: os ataques feitos pelo uke costumam ser vistos como fracos, lentos e ensaiados, o que resulta em respostas condicionadas do tori, que não contribuem para o desenvolvimento de sua perícia. Muitos dos estilos do aikidô vêm tentando rebater essas críticas permitindo que os uke usem ataques mais fortes, velozes e imprevisíveis, mas aí os mais tradicionalistas é que criticam, dizendo que isso vai contra a filosofia de que nenhum dos envolvidos na prática pode se ferir. Os tradicionalistas não se incomodam com as críticas dos demais artistas marciais, respondendo que o aikidô não foi criado para ataques ou defesas, e sim para desenvolvimento espiritual - a principal crítica dos tradicionalistas ao Shodokan Aikidô, inclusive, é a de que a parte filosófica e espiritual dos ensinamentos de Ueshiba foi deixada de lado por seus praticantes, que se preocupam apenas com a parte física.

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