domingo, 6 de janeiro de 2019

Escrito por em 6.1.19 com 0 comentários

Jessica Jones

Nas histórias em quadrinhos, existe um recurso chamado retcon. Bom, não só nas histórias em quadrinhos, na verdade o retcon também é usado em filmes e séries, mas é nas histórias em quadrinhos que ele se mostra mais frequente. Retcon é a abreviação de retroactive continuity, ou "continuidade retroativa", termo que surgiu pela primeira vez no livro A Teologia de Wolfhart Pannenberg, de E. Frank Tuppers, publicado em 1973, e diz respeito a uma alteração no passado dos personagens, de uma forma que pareça que aquilo sempre foi daquele jeito, apenas jamais foi mencionado antes. Um bom exemplo de retcon é a amizade entre Charles Xavier, fundador dos X-Men, e Magneto, arqui-inimigo da equipe: originalmente, Xavier e Magneto eram desconhecidos, e tudo o que Xavier sabia de Magneto era que ele era "um mutante maligno", que queria usar seus poderes para subjugar a humanidade; somente anos depois foi que Stan Lee decidiu que a história funcionaria melhor se eles fossem antigos amigos com pontos de vista opostos, e começou a escrever todas as histórias como se isso sempre tivesse sido verdade.

Sempre que alguém fala em retcon, porém, o exemplo que me vem à mente não é simplesmente uma alteração em uma característica do passado de um personagem, e sim um personagem inteiro: Jessica Jones. Criada pelo roteirista Brian Michael Bendis e pelo desenhista Michael Gaydos em 2001, Jessica pode ter feito sua estreia nos quadrinhos naquele ano, mas, na verdade, faz parte do Universo Marvel desde a estreia do Homem-Aranha, em 1962 - só que ninguém nunca tinha contado isso pra gente. O que poderia ter sido uma ideia caça-níqueis rapidamente esquecida, porém, se transformaria em uma das mais interessantes e populares personagens do Universo Marvel, graças à forma como Bendis conduziu sua história. Eu mesmo, que não costumo gostar dos personagens novos - talvez uma prova de que eu estou ficando velho - adoro as histórias dela, e concordo que ela foi uma adição muito bem-vinda.

Eu já pensei em falar sobre Jessica Jones duas vezes aqui no átomo. A primeira eu não me lembro quando foi, nem por que desisti. A segunda foi logo depois de falar sobre a Mulher-Aranha, e desisti porque não quis fazer três posts sobre super-heroínas seguidos - já que, logo depois da Mulher-Aranha, fiz um sobre a Mulher-Hulk. Hoje, entretanto, após já se ter passado algum tempo, cheguei à conclusão de que seria um bom dia para um post sobre ela. Hoje é dia de Jessica Jones no átomo!

A estreia de Jessica Jones nos quadrinhos está diretamente ligada à Mulher-Aranha: como vocês podem ler no meu post sobre ela, após estrear de forma bombástica e estrelar uma série bastante bem-sucedida, a Mulher-Aranha começaria a perder prestígio no início da década de 1980, graças a decisões equivocadas de seus roteiristas. Essa perda de prestígio se refletiria em queda nas vendas, que levariam não somente ao cancelamento da revista, mas também à decisão de matar a personagem - o que se mostrou um tiro pela culatra, com cartas e mais cartas reclamando de sua morte chegando à Marvel todos os meses. Diante da fúria dos leitores, a Marvel pouco pôde fazer a não ser decidir ressuscitar a Mulher-Aranha, só que, depois de retornar dos mortos, ela seria muito pouco aproveitada, não voltando a ter uma revista própria, e só fazendo participações especiais eventualmente.

Em 1988, o roteirista Chris Claremont decidiria usar a Mulher-Aranha como uma personagem coadjuvante na recém-lançada revista solo do Wolverine, mas com uma mudança importante: ela não usaria mais uniforme, nem mesmo o nome "Mulher-Aranha"; embora ainda tivesse todos os seus poderes, ela atuaria sob seu nome verdadeiro, Jessica Drew, e trabalharia como detetive particular. Essa "versão civil" da Mulher-Aranha seria usada pela Marvel até 2005, quando o próprio Bendis decidiria fazer com que ela voltasse a ser uma heroína de uniforme, incorporando-a à equipe dos Vingadores, mas, entre 1988 e 2005 ela seria muito pouco aproveitada - após participar de 16 edições da revista do Wolverine, ela só voltaria a aparecer em 1999, na revista de uma nova Mulher-Aranha, Mattie Franklin, e, depois disso, em 2003, na revista da própria Jessica Jones.

Antes de trazer a Mulher-Aranha de volta ao uniforme, Bendis já havia pensado em trabalhar com ela em 2000, mas de uma forma diferente: aproveitando que, no cânone da Marvel, Jessica Drew havia definitivamente pendurado as chuteiras, ele pensou em criar uma nova série estrelada por ela na qual ela atuaria apenas como detetive particular, e, com frequência, fizesse alusão ao fato de que não é mais super-heroína, através de frases como "eu não faço mais isso", se negando a usar seus poderes, ou se mostrando destreinada caso precisasse usá-los. Ele levaria sua ideia ao editor da Marvel na época, Bill Jemas, que, curiosamente, a adoraria, mas seria contra o uso de Drew. Segundo Jemas, se usasse Drew, Bendis teria que lidar com todo o passado já estabelecido da personagem, e que, para alcançar o "potencial máximo" da série, o ideal seria que ele criasse uma personagem nova.

Bendis gostou da ideia, e nem foi muito original ao executá-la: ele manteria o nome Jessica, mas mudaria o sobrenome para aquele que é mais comum nos Estados Unidos, Jones - o equivalente em quantidade ao nosso "da Silva" - também mantendo a principal característica da personagem: ela seria uma ex-super-heroína que decidiria atuar apenas como detetive particular, somente fazendo uso de seus poderes quando absolutamente necessário. Durante outra conversa com Jemas, eles chegariam à conclusão de que a série seria ainda melhor se fosse destinada "a adultos", contendo palavrões, violência explícita e sensualidade. Essa ideia evoluiria de forma que a série de Jessica Jones seria a primeira de um novo selo, chamado MAX - nome inspirado no tal "potencial máximo" ao qual Jemas se referiu - apenas de quadrinhos para adultos. Desde 2001, sob o selo MAX, já foram publicadas revistas estreladas por heróis como Justiceiro, Demolidor, Viúva Negra, Luke Cage, Blade e Deadpool, sempre com elementos raramente vistos nos demais quadrinhos da editora, em especial muita violência.

A revista de estreia de Jessica Jones não se chamava "Jessica Jones", e sim Alias, palavra que significa "alcunha" ou "codinome", e que é o nome do escritório que Jessica abre após se aposentar da vida de super-heroína - traduzido no Brasil para Codinome Investigações. Lançada em novembro de 2001, Alias teve um total de 28 edições, a última de janeiro de 2004, todas escritas por Bendis e desenhadas por Gaydos, que tem um estilo de arte bastante exótico, incomum para revistas do gênero - os flashbacks que mostram Jessica ainda como super-heroína ficam por conta de Mark Bagley, Rick Mays, Rodney Ramos e Al Vey, que têm um estilo mais característico dos quadrinhos de super-heróis. As capas ficariam a cargo de David Mack, que usaria aquarelas e colagens.

Os poderes de Jessica são "o padrão dos super-heróis": ela é absurdamente forte, ao ponto de conseguir levantar um carro como se fosse um pacote de biscoitos; apesar de não ser invulnerável, é extremamente resistente, saindo apenas com alguns ossos quebrados de situações que matariam uma pessoa comum e se curando de danos severos, como órgãos perfurados, como se fossem contusões simples; e pode voar, sendo que, em seus dias de super-heroína, voava rápida e perfeitamente, mas, agora, destreinada, só consegue voar, segundo ela mesma, "muito mal", por poucas distâncias, a baixa velocidade e sem conseguir manobrar direito.

Nas primeiras edições, Jessica tenta se firmar como investigadora particular de casos "normais", mas logo se vê irremediavelmente cercada de super-heróis - durante suas aventuras, ela contracena com Miss Marvel, Luke Cage, Homem-Formiga e Capitão América, dentre outros. Em um arco de história particularmente interessante, ela não somente tem de salvar a terceira Mulher-Aranha, Mattie Franklin, de um vilão manipulador, como também o faz com a ajuda de Jessica Drew, a Mulher-Aranha original. Como a história de Jessica Jones só funcionaria caso ela já fosse uma super-heroína das antigas no Universo Marvel, Bendis deixou isso bem claro desde o início, revelando que, na adolescência, ela estudava no Colégio Midtown, o mesmo frequentado por Peter Parker, sendo, inclusive, apaixonada pelo futuro Homem-Aranha. Bendis chegaria ao ponto de encontrar uma revista antiga do Homem-Aranha, das primeiras edições, na qual aparecia uma menina coadjuvante sem nome, e decidir que aquela seria Jessica Jones, modelando sua aparência de acordo com a da tal menina. Assim como o Homem-Aranha (e mais da metade dos heróis da Marvel), Jessica ganharia seus poderes por acidente, e, após presenciar uma luta do Homem-Aranha contra o Homem-Areia, decidiria ela mesma se tornar uma heroína fantasiada e combater o crime, adotando o nome de Safira (Jewel, "joia", no original em inglês).

Como Safira, ela faria amizade com Carol Danvers, a Miss Marvel original, e quase chegaria a entrar para os Vingadores - um evento inesperado, porém, faria com que ela perdesse a fé no super-heroísmo e mudasse de estilo, adotando uma vestimenta mais modesta e um novo codinome, Paladina (Knightress, algo como "cavaleira", em inglês). Atuando nas sombras, Paladina se especializaria em combater a máfia e o crime organizado, raramente lidando com super-vilões. Ao se desiludir mais uma vez com essa vida, ela finalmente decidiria abandonar a carreira de super-heroína e se tornar detetive particular.

Nas últimas edições de Alias, Bendis revisitaria a origem de Jessica Jones, revelando como ela teria ganhado seus poderes e o porquê de ela desistir de ser Safira. Para começar, ela não nasceu Jessica Jones, e sim Jessica Campbell; durante uma viagem de carro com seu pai, mãe e irmã, eles se envolveriam em um acidente com um comboio do exército que levava material radioativo, do qual ela seria a única sobrevivente. Jessica ficaria em coma durante anos, acordando durante o ataque de Galactus, logo após a chegada à Terra do Surfista Prateado. Órfã, ela seria adotada pela família Jones, e, pouco depois, descobriria ter superpoderes.

Anos depois, já como Safira, ela tentaria deter um ataque do supervilão Zebediah Killgrave, conhecido como Homem Púrpura, criado por Stan Lee e Joe Orlando em 1964, e que, assim como a Mulher-Aranha, estava fora de circulação há um bom tempo. Jessica não sabia, porém, que o Homem Púrpura tem o poder de controlar as mentes dos que estão próximos a ele, e caiu facilmente sobre o controle do vilão, que nutre um ódio especial por heróis fantasiados. Graças a esse ódio, o Homem Púrpura manteria Jessica dominada por nada menos que oito meses, humilhando-a durante todo esse tempo. Um dia, ele ordenaria que ela matasse o Demolidor, e, ao se ver livre de seu campo de influência, começaria a ganhar de volta o controle aos poucos - mas não sem antes se envolver em uma grande confusão, que faria com que ela decidisse abandonar a carreira de Safira para sempre.

Curiosamente, Alias foi a razão pela qual o selo MAX foi criado, e o selo MAX foi a razão pela qual Alias acabou. Bendis queria levar a história em outras direções, mas se via pressionado por Jemas a manter sempre o estilo característico do selo - ele nem se incomodava com os palavrões e a sensualidade, mas estava cansado da violência, que, no fim das contas, nem combinava com a personagem. Diante disso, ele decidiria abrir mão do estilo adulto e levar Jessica Jones para uma publicação regular da Marvel, na qual continuaria contracenando com super-heróis sem ser um deles, mas, dessa vez, como jornalista - ou quase. Assim, a segunda revista de Jessica Jones seria The Pulse, cujo primeiro número seria lançado em abril de 2004.

Em Alias, ficaria estabelecido que Safira, por qualquer razão, era uma das poucas (talvez a única) super-heroína que J. Jonah Jameson, editor do Clarim Diário e nêmese do Homem-Aranha, elogiava, e ele manteria as boas relações com Jessica mesmo depois de ela desistir de ser super-heroína. The Pulse seria o nome de uma nova revista publicada pelo Clarim, especializada em fofocas de super-heróis, na qual Jessica, a convite de Jameson, atuaria como consultora especial, auxiliando os jornalistas Ben Urich e Kat Farrell. Nas últimas edições de Alias, Jessica descobriria estar grávida de Luke Cage, e, durante as edições de The Pulse, a gravidez se desenvolveria até que, na edição 11, nasceria Danielle, a filha do casal. Infelizmente, The Pulse não faria tanto sucesso quanto Alias, e acabaria cancelada após apenas 14 edições, a última de maio de 2006.

Depois do cancelamento de The Pulse, Jessica se casaria com Luke Cage no especial New Avengers Annual 1, de junho de 2006, e passaria a ser uma coadjuvante de luxo na série Young Avengers, além de membro não-oficial dos Novos Vingadores. Durante a saga Guerra Civil, temerosa pelo futuro de Danielle, ela se registra como super-humana, o que abala seu relacionamento com Cage. Em seguida, durante a saga Invasão Secreta, Danielle é sequestrada pelos Skrulls e salva por Cage, o que leva os dois a reatarem. Durante uma conversa com Peter Parker, ele a convence a voltar a ser uma super-heroína, com o argumento de que ela será um exemplo melhor para a filha por seus atos do que por suas palavras. Assim, ela volta a usar a identidade de Safira na revista New Avengers, que foi relançada com a numeração recomeçando do 1 em junho de 2010.

Jessica não permaneceria como Safira por muito tempo; na New Avengers 8, ela decidiria mudar de nome para Poderosa (Power Woman no original), em homenagem a seu marido Cage (que, em inglês, usa o codinome Power Man, embora sua versão traduzida, Poderoso, raramente seja usada aqui no Brasil), e por acreditar que esse nome seria um exemplo melhor para sua filha. Como Poderosa, Jessica se uniria à nova equipe de Vingadores que Cage reuniria, os Poderosos Vingadores, estreando na segunda versão da revista The Mighty Avengers, que seria relançada com numeração recomeçando do 1 em novembro de 2013. Jessica, entretanto, não ficaria satisfeita nem por fazer parte da nova equipe, nem por seu marido ter decidido reuni-la, pois considerava que Danielle estava constantemente em perigo pelo fato de viver na base de operações do grupo. Ela então convenceria Cage a se mudar para um apartamento, e, embora ele tenha continuado como líder da equipe, ela sairia.

Em 2016, Bendis e Gaydos retornariam às histórias de Jessica pela primeira vez desde o cancelamento de The Pulse, quando a heroína estrearia em uma nova revista, finalmente chamada Jessica Jones. A nova série seria bem parecida com Alias, com Jessica mais uma vez atuando como detetive particular, mas menos insegura e menos receosa de usar seus poderes. O tom da revista também era bem mais adulto que o usual na Marvel, embora não chegasse a ser tão adulto quanto Alias. Jessica Jones duraria um total de 18 edições, a última lançada em maio de 2018; o cancelamento ocorreria porque Bendis decidiria trocar a Marvel pela DC, e Tom Breevort, editor da Marvel na época, decidiria não substituí-lo por outro roteirista.

Durante a saga Império Secreto, em 2017, Jessica passaria a fazer parte de uma nova equipe dos Defensores, junto com Cage, Punho de Ferro e o Demolidor (ou seja, a formação dos Defensores na série da Netflix), e, além de Jessica Jones, passaria a estrelar também a nova revista The Defenders, relançada com numeração recomeçando do 1 em agosto de 2017. Essa revista teria um total de 10 edições, a última lançada em abril de 2018.

Após o cancelamento de The Defenders, Jessica voltaria a ser coadjuvante de luxo em vários títulos da Marvel. Ela continua sendo, porém, uma das personagens mais famosas da editora, o que é comprovado pelo sucesso das duas temporadas de sua série exibida pelo serviço de streming Netflix. Não será surpresa, portanto, se, em breve, ela retornar com mais um título próprio.

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