domingo, 16 de dezembro de 2018

Escrito por em 16.12.18 com 1 comentário

Deuses Americanos

Hoje o átomo completa OITOCENTOS posts. Digo mais uma vez que jamais esperava, e cada vez que um número expressivo desses é alcançado, fico mais e mais espantado. Juro, quando comecei a escrever o blog, e até mesmo quando mudei seu estilo para falar sobre as coisas que eu gosto, deixando as divagações de lado, imaginei que ele iria durar uns três anos, que eu iria escrever uns duzentos posts, e depois iria perder o interesse, ficar sem tempo, não arrumar mais assunto, ou qualquer coisa desse tipo, e ele seria encerrado. Hoje, mais de quinze anos depois de ter começado, já não sei mais se um dia vou parar.

De qualquer forma, quando cheguei lá pelo post 790, comecei a pensar sobre qual poderia ser o assunto do post 800. Tive até algumas boas ideias, mas, infelizmente, não pude chegar a botar em prática nenhuma delas - uma das razões, inclusive a mesma razão pela qual o post 801 só será publicado no ano que vem, é que, nesse segundo semestre, eu realmente acabei ficando com menos tempo do que gostaria para caçar assuntos e escrever posts, de forma que até o meu planejamento atrasou: já há um bom tempo, eu escrevo os posts com quatro ou cinco semanas de antecedência, enquanto esse eu estou escrevendo no primeiro fim de semana de dezembro, ou seja, com apenas duas. Com o planejamento atrasado e o post 800 se aproximando, fui obrigado a usar o Plano B: pegar um assunto que estava reservado para virar post após o 800 e transformá-lo no 800.

Por sorte, eu tinha um assunto extremamente adequado: tirando o post 100, no qual resolvi fazer um "post comemorativo", todos os meus "posts centenários" antes do 500, que também foi comemorativo (assim como, se Deus quiser, será o 1.000), foram sobre literatura: o 200 foi sobre O Senhor dos Anéis, o 300 sobre Tormenta (que a rigor é um RPG, mas, como usa livros e tem contos ambientados no cenário, não deixa de ser literatura), e o 400 sobre As Crônicas de Nárnia. Pois bem, eu tinha um assunto da categoria literatura reservado para virar post, e achei que teria super a ver colocá-lo no post 800 - afinal, é um dos melhores livros que eu já li na vida, escrito por um dos meus autores preferidos. Trata-se de Deuses Americanos, o tema do octocentésimo post do átomo!

Deuses Americanos foi escrito por Neil Gaiman, que tem um post inteirinho só pra ele aqui no átomo caso você queira saber mais sobre esse autor tão fascinante. Inglês, Gaiman se mudou para os Estados Unidos em 1992, aos 31 anos de idade. Fascinado por um lugar que, segundo ele mesmo, não conseguia compreender, ele pensou em escrever um romance no qual pudesse descrever o país, com sua cultura e suas idiossincrasias, para, no processo, tentar entender o que fazem os EUA serem os EUA. Alguns anos depois, durante uma viagem à Islândia, ele teria a ideia sobre como deveria ser esse livro, e enviou uma carta à sua editora, no qual usava o título "Deuses Americanos", que seria provisório, até que ele pensasse em um melhor. A editora, porém, criou uma capa para o livro, e a enviou a Gaiman para aprovação. Ele gostou tanto da capa que não tinha mais como mudar o nome - de fato, gostou tanto da capa que a pendurou na parede para inspiração: o livro estava ali, só faltava escrevê-lo.

Gaiman, então, se lançou a uma viagem pelo interior dos Estados Unidos, conhecendo locais turísticos, comendo comidas típicas, tentando absorver o máximo do modo de vida do povo norte-americano. Enquanto viajava, ele escrevia, sempre que tinha tempo, tentando fazer com que a viagem do protagonista fosse idêntica à sua própria; ele não escreveria sobre nenhum lugar que não tivesse visitado, e, quando ficasse em dúvida sobre em que direção a viagem do protagonista deveria seguir, escrevia uma espécie de "capítulo extra" - o livro está cheio deles - que contava histórias secundárias, com outros personagens, retomando a história principal quando a dúvida se dissipasse. Por sugestão da editora, Gaiman criou um blog, no qual documentava todo o processo de escrita do livro; após o lançamento, esse blog se transformaria no blog oficial do autor, e existe até hoje, com Gaiman frequentemente o atualizando, falando sobre variados assuntos.

Gaiman escreveria um primeiro rascunho, bem grande e bastante cru, durante suas viagens. Então, retornaria à sua casa e e escreveria um segundo rascunho, menor e mais coeso, o qual entregaria à editora. A editora achou que o livro estava grandioso e sinuoso demais, e pediu para que ele desse uma reduzida, levando a um terceiro rascunho. Esse, sim, seria publicado, em 19 de junho de 2001, pela William Morrow, com o título original de American Gods. Imediatamente após o lançamento, Gaiman sairia em uma turnê, para promover o livro e dar autógrafos, por várias cidades dos Estados Unidos; curiosamente, a primeira parada dessa turnê seria em Nova Iorque, na livraria Border Books, no World Trade Center. Gaiman chegaria em casa, de volta da turnê, justamente no dia 11 de setembro de 2001, quando o World Trade Center e a Border Books seriam destruídos para sempre.

Deuses Americanos foi o primeiro livro controverso escrito por Gaiman: poucas pessoas gostaram ou desgostaram um pouquinho, a maioria ou adorou, ou detestou de verdade - com as duas principais críticas, ora vejam só, sendo as de que o livro "não era americano o bastante" ou que "era americano demais". Apesar disso, o livro foi um gigantesco sucesso, ganhando quatro dos principais prêmios da literatura mundial: o Hugo Award e o Nebula Award, dedicados a obras de ficção científica, ambos na categoria Melhor Romance; o Bram Stoker Award, dedicado a obras de horror, também na categoria Melhor Romance; e o Locus Award, na categoria Melhor Romance de Fantasia - uma prova de que o livro talvez fosse tão controverso que nem mesmo os críticos conseguiram definir em qual estilo ele melhor se encaixava.

O protagonista de Deuses Americanos é Shadow Moon (que, evidentemente, não é o mesmo de Kamen Rider Black), que, após passar anos na prisão por ter participado de um assalto a um banco, consegue sair em liberdade condicional. Seu maior desejo é rever sua esposa, Laura, mas uma série de circunstâncias inesperadas faz com que ele passe a trabalhar como segurança para o misterioso Sr. Wednesday, o qual conhece durante o voo de volta para sua cidade natal. Wednesday vive de trambiques, e está visitando vários "amigos antigos" para convencê-los a se unir a ele para enfrentar uma "tempestade" que está por vir. A maioria dos amigos de Wednesday, entretanto, não está interessada, e tem de ser convencida, muitas vezes por Shadow.

O nome do livro é Deuses Americanos porque Wednesday e seus amigos - como o carrancudo e irritadiço Czernobog, o falastrão e piadista Sr. Nancy, e a sensual Bilquis - são, na verdade, aspectos de deuses de várias mitologias diferentes, trazidas aos Estados Unidos pelos imigrantes que os adoravam em seus países de origem. A modernidade, entretanto, levou ao surgimento de novos deuses - como o deus da internet, a deusa da televisão e os deuses do mercado financeiro - que se opõem aos deuses antigos, considerando-os ultrapassados e sem lugar no mundo atual. A tal tempestade à qual Wednesday se refere seria um ataque final dos novos deuses aos antigos, visando exterminá-los e tomar seu lugar.

Pouco após o lançamento de Deuses Americanos, os dois sócios da editora inglesa Hill House negociariam com a William Morrow o lançamento de uma "edição especial" do livro no Reino Unido - onde a versão original do livro havia sido lançada, também em junho de 2001, pela editora Headline. Essa negociação se daria sem a participação de Gaiman, e, segundo ele, "se pretendia um milagre da arte da produção de livros". Pouco à vontade para executar as ideias dos editores, ele lhes perguntaria se não prefeririam relançar o livro com seu texto original, sem os cortes feitos a pedido da William Morrow. Os sócios da Hill House aceitariam, mas a tarefa de reincorporar as partes descartadas ao texto efetivamente publicado se mostraria mais difícil do que Gaiman havia previsto, primeiro porque ele havia tido que adequar o texto às remoções após fazê-las, segundo porque havia feito modificações de última hora nas provas de revisão, que faziam com que muitas das partes removidas já não encaixassem onde deveriam. Ainda assim, Gaiman, com a ajuda de Pete Adkins, um dos sócios da Hill House, reincorporou o máximo de trechos inicialmente descartados que pôde, e ainda inseriu alguns novos, para que a edição especial ficasse com cerca de doze mil palavras a mais que a original.

A Edição Especial de Deuses Americanos seria lançada pela Hill House em 2003, em uma tiragem de 750 exemplares de capa dura e numerados - bastante caros, por sinal. Na ocasião do décimo aniversário do lançamento do livro original, em junho de 2011, a William Morrow e a Headline relançariam a Edição Especial, dessa vez com o nome de Edição Preferida do Autor, com capa brochura, tiragem ilimitada (e, consequentemente, sem numeração), e preço mais acessível. Essa é a versão que atualmente pode ser encontrada aqui no Brasil, lançada pela Editora Intrínseca.

Além dessas duas versões, Deuses Americanos ainda ganharia uma "Edição Especial de Colecionador", lançada pela editora The Folio Society em março de 2017. Essa nova edição não traz adições, apenas pequenas correções e modificações no texto em nome da fluidez e da coerência, e, assim como a Edição Especial limitada da Hill House, só foi lançada no Reino Unido (pelo menos por enquanto). Após seu lançamento, Gaiman descreveria a edição como "o texto mais limpo que jamais existiu".

Também em 2017, Deuses Americanos ganharia uma versão em quadrinhos, lançada pela editora Dark Horse. Até agora, foram lançadas duas minisséries, Deuses Americanos: Sombras (American Gods: Shadows), que adapta a primeira das três partes do livro, em nove edições publicadas entre março e novembro daquele ano, com arte de P. Craig Russell, Scott Hampton, Walter Simonson, Colleen Doran e Glenn Fabry, e pode ser encontrada no Brasil em edição encadernada; e American Gods: My Ainsel, que adapta a segunda parte do livro, em oito edições lançadas entre março e novembro de 2018, com arte de P. Craig Russell, Scott Hampton e Mark Buckingham. A terceira e última parte deverá ser adaptada em mais uma minissérie, a ser lançada em 2019.

Ainda em 2017, estrearia no canal por assinatura Starz uma série de TV inspirada em Deuses Americanos (que usa o nome original do livro, American Gods, já que aparentemente desistiram de traduzir títulos de séries aqui no Brasil). A primeira temporada teve oito episódios, exibidos entre 30 de abril e 18 de junho, e contou com Ricky Whittle como Shadow, Emily Browning como sua esposa Laura, Ian McShane como o Sr. Wednesday, Crispin Glover como o Sr. World, Yetide Badaki como Bilquis, Pablo Schreiber como Mad Sweeney, Bruce Langley como o deus da internet, Gillian Anderson como a deusa da televisão, Peter Stormare como Czernobog, Orlando Jones como o Sr. Nancy, e Kristin Chenoweth como Easter, dentre outros. A primeira temporada adapta mais ou menos a primeira parte do livro, com alguns eventos da segunda parte intercalados. Uma segunda temporada, que adaptará o restante da segunda parte, está prevista para estrear em março de 2019; o atraso se deu devido a problemas na produção, dentre eles a saída dos dois produtores e de Anderson, substituída pela atriz sul-coreana Kahyun Kim.

Em 20 de setembro de 2005, Deuses Americanos ganharia uma espécie de spin off, o livro Os Filhos de Anansi (Anansi Boys, no original), lançado também pela William Morrow. Os protagonistas de Os Filhos de Anansi são os dois filhos do Sr. Nancy, o mortal Fat Charlie e o semideus Spider, que se conhecem por acaso quando Charlie, que vive em Londres, tem de viajar até a Flórida, nos Estados Unidos, para o funeral do pai. Mais carregado de humor do que Deuses Americanos, Os Filhos de Anansi é, segundo Gaiman, "uma história fantástica e bem-humorada sobre relações familiares, profecias terríveis, divindades vingativas e aves muito malignas".

Curiosamente, Gaiman teria a ideia para escrever Os Filhos de Anansi antes mesmo de começar a trabalhar em Deuses Americanos, mas, após receber a capa desse último e sair em sua viagem, ele decidiria incluir o Sr. Nancy em Deuses Americanos e deixar Os Filhos de Anansi para depois. Os Filhos de Anansi também ganharia o Locus Award de Melhor Romance de Fantasia, e também seria indicado ao Hugo Award de Melhor Romance (de ficção científica, vejam só), mas, a pedido do próprio Gaiman, não concorreria - os vencedores do Hugo são determinados por votação popular, então um nome forte como o de Gaiman tem mais chances de ganhar que o de um novato, e Gaiman, que já tinha três Hugo (um por Deuses Americanos em 2001, um por Coraline, de 2002, e um pelo conto A Study in Emerald, de 2004), achou que seria preferível dar a chance de ganhar o prêmio a algum ator novo, o que não aconteceu, com o prêmio indo para Robert Charles Wilson, cujo primeiro romance foi publicado em 1986, e que já havia concorrido em 1999, 2001 (quando perdeu para Deuses Americanos) e 2004 (e concorreria e perderia mais uma vez em 2010); pelo menos, mesmo não sendo ele um novato, foi o primeiro prêmio da carreira de Wilson.

Gaiman também escreveria dois contos estrelados por Shadow: The Monarch of the Glen, ambientado dois anos após Deuses Americanos, publicado na coletânea Legends II: New Short Novels by the Masters of Modern Fantasy, lançada em 2003, e que também conta com contos de George R.R. Martin (de As Crônicas de Gelo e Fogo), Orson Scott Card (de O Jogo do Exterminador) e Terry Brooks (de Shannara), dentre outros; e Cão Negro, ambientado três anos após o livro, e publicado na coletânea de contos de Gaiman Alerta de Risco, lançada em 2015.

Em uma entrevista para a Mtv em 2011, Gaiman declarou ter interesse em escrever uma continuação direta para Deuses Americanos, e que pensou nisso inclusive enquanto estava escrevendo o livro; essa sequência, segundo ele, seria focada nos novos deuses. Até hoje, porém, não há notícias sobre se ele realmente a estaria escrevendo, ou mesmo se continua com essa ideia.

Um comentário:

  1. Na verdade o "deus da internet" é o Technical Boy, que inclui tudo o que há de tecnológico. Obviamente que a versão da série é muito mais focada na internet do que a versão do livro, até por conta das mudanças que ocorreram nos 16 anos entre as duas. Já a "deusa da televisão" é Mídia, e inclui todas as formas modernas de comunicação, das quais a televisão é a mais visível.

    Obviamente isso é só nitpicking de um nerd sem nada melhor para fazer, o post é excelente. 😜

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