sábado, 14 de abril de 2007

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Olimpíadas (XX)

E hoje temos mais Olimpíadas!

Albertville 1992


Em março de 1985, Mikhail Gorbachev havia chegado ao posto de Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética, cargo equivalente à presidência daquele país. À época, a União Soviética passava por uma crise econômica sem precedentes, além de várias tensões internas, causadas por conflitos étnicos e regionais, e externas, devido a focos de descontentamento na população dos demais países do bloco comunista. Buscando resolver estas crises e integrar a União Soviética aos mercados ocidentais, sem se afastar do comunismo, Gorbachev traçou um programa de governo cheio de reformas, para evitar o colapso da nação. Neste programa, duas eram as palavras de ordem: glasnost e perestroika. Ou, em bom português, abertura e reestruturação.

Tais reformas, porém, eram vistas como radicais demais, inaceitáveis até, para alguns dos membros mais ortodoxos do politburo, o organismo que comandava o país. Além disso, com a abertura vieram o relaxamento da censura e da repressão a partidos políticos, o que acabou reacendendo um sentimento anti-Rússia nas populações de muitas das repúblicas soviéticas, principalmente na Armênia, Azerbaijão e Lituânia. Conforme o tempo passava, protestos em diversos locais da União Soviética se tornavam cada vez mais freqüentes, o déficit estatal e a dívida externa cresciam cada vez mais, e alimentos e bens de consumo começavam a faltar, ao ponto do governo limitar as quantidades mensais que cada família podia consumir de pão, carne e açúcar. É claro que isso aqui é o resumo do resumo, pois não estou escrevendo um post sobre o fim da União Soviética, e sim sobre os Jogos Olímpicos, mas o que importa é que, para muitos membros do governo, o programa de Gorbachev não estava dando certo.

Por causa disso, em agosto de 1991 a porção linha-dura do governo, se intitulando Comitê para o Estado de Emergência, decidiu tomar uma atitude para afastar Gorbachev do poder e colocar a União Soviética "de volta nos trilhos", na visão deles. Gorbachev foi recolhido a prisão domiciliar a partir de 19 de agosto, enquanto o Comitê faria as reformas necessárias à reestruturação do país. Isto acabou sendo considerado como golpe de estado, principalmente após a transmissão ao vivo do evento para o mundo inteiro, inclusive para a própria União Soviética, algo impensável na época da censura rígida.

Inesperadamente, o povo soviético saiu às ruas para protestar. Boris Yeltsin, o chanceler da Rússia, cargo equivalente ao de primeiro-ministro, conclamou a população a não aceitar o golpe, e sob seu comando os sindicatos russos declararam uma greve geral. O Comitê tentou censurar as transmissões de rádio e TV, ordenou que a polícia debandasse com uso de violência as cerca de 50.000 pessoas que invadiram a Praça do Parlamento, mas não teve jeito. Em 21 de agosto, diante da pressão de seu próprio povo, e de muitos outros governos do planeta, o Comitê libertou Gorbachev, e o reconduziu ao cargo que ocupava então, o de primeiro e único Presidente da União Soviética, criado durante suas reformas.

Após a libertação de Gorbachev, 11 das 15 repúblicas soviéticas declararam sua independência, e a Lituânia, que já havia tentado declará-la em 1990, enfim a teve reconhecida. Gorbachev renunciou ao cargo de Secretário Geral em 24 de agosto; Yeltsin proibiu as atividades do Partido Comunista em solo russo e trocou a bandeira soviética pela russa no Kremlin em 29 de agosto; o Politburo foi dissolvido em 5 de setembro. Após muitas negociações e acordos firmados, ficou acertado que a União Soviética deixaria de existir oficialmente em 1o de janeiro de 1992. O país comunista mais poderoso do mundo se transformaria em quinze novas nações capitalistas.

Este já seria um fato impressionante por si só, mas nem foi o único: as reformas e a queda do comunismo na União Soviética levaram a um efeito dominó na Europa inteira. Em 18 de março de 1990 ocorreram eleições livres na Alemanha Oriental, que levaram a um tratado de reunificação. A Alemanha voltaria a ser um só país em 3 de outubro daquele ano, após uma comovente destruição do Muro de Berlim, um dos maiores símbolos do comunismo, pela juventude alemã. Também em 1990, as repúblicas que formavam a Iugoslávia pela primeira vez tiveram eleições pluripartidárias, o que acabou levando à independência da Eslovênia e da Croácia em 25 de julho de 1991, da Macedônia em setembro, e da Bósnia-Herzegovina em 5 de abril de 1992, o que levou à Guerra da Bósnia e ao fim da República Federal Socialista da Iugoslávia. E, em 1o de janeiro de 1993, a Tchecoslováquia se separaria em duas repúblicas, a República Tcheca e a Eslováquia, praticamente selando o destino do comunismo na Europa.

Neste novo e conturbado mundo, o primeiro evento esportivo de grande porte seriam os Jogos de Inverno de 1992, que ocorreriam na pequenina cidade francesa de Albertville, encrustada nos Alpes. Albertville ganhou o direito a sediar os Jogos bem antes dessa confusão toda, na reunião do COI de 1986, quando venceu seis outras cidades: Anchorage, no Alasca, Estados Unidos; Cortina d'Ampezzo, Itália; Berchtesgaden, Alemanha Ocidental; Lillehammer, Noruega; Falu, Suécia; e Sófia, capital da Bulgária. De todas, Albertville era a menorzinha, mas o charme da região e um bom planejamento acabaram dando a ela uma vantagem sobre as demais.

Realizar uma Olimpíada em uma cidade tão pequena, porém, gerou um efeito colateral curioso: o programa olímpico contava com 57 provas, mas apenas as 18 da patinação foram disputadas em Albertville, além de lá terem sido realizadas as Cerimônias de Abertura e Encerramento. Todas as demais, por falta de locais apropriados nos limites da cidade, tiveram de ocorrer em cidades vizinhas e resorts próximos da região de Savoie, onde Albertville está localizada, sendo os mais famosos os de Méribel Les Allues, que hospedou o esqui alpino feminino e o hóquei no gelo, e do Val d'Isére, onde aconteceu o esqui alpino masculino. Esta "distribuição" das provas acabou levando a críticas dos delegados dos países derrotados na votação, que alegaram que Albertville só teria sido escolhida porque fica na França.

Mesmo com toda essa polêmica, provas espalhadas por um monte de lugares, e o fim do comunismo para atrapalhar, os Jogos de Albertville foram belos Jogos. Realizados entre 8 e 23 de fevereiro, contaram com a presença de 1.801 atletas, sendo 488 mulheres, que competiram em 57 provas de 12 esportes: biatlo, bobsleding, combinado nórdico, esqui alpino, esqui cross country, esqui estilo livre, hóquei no gelo, luge, patinação artística no gelo, patinação no gelo em velocidade, patinação no gelo em velocidade em pista curta e saltos com esqui (clique aqui para ver todas as provas do programa). Três foram os esportes de demonstração: curling, esqui em velocidade e quatro provas do esqui estilo livre. 64 nações foram representadas, incluindo a Alemanha, que não competia como uma nação única desde 1936; Estônia e Letônia, que também não apareciam desde 1936; a Lituânia, ausente desde 1928; e Croácia e Eslovênia, participando pela primeira vez de uma Olimpíada. Sem tempo para reestruturar seus comitês olímpicos antes do evento, seis ex-repúblicas soviéticas - Rússia, Ucrânia, Cazaquistão, Belarus, Uzbequistão e Armênia - competiram com uma só delegação, chamada de Equipe Unificada, sob a bandeira dos Anéis Olímpicos. A tocha olímpica visitou 14 cidades francesas, incluindo Grenoble, sede dos Jogos de 1968, até acender a pira pelas mãos de Michel Platini, maior ídolo do futebol francês, e de François-Cyrille Grange, um menino de oito anos que mais tarde viria a se tornar também jogador de futebol. O mascote dos Jogos foi Magique, uma estrela composta por formas geométicas, meio parecida com um origami.

O prêmio de esporte mais esquisito do programa com certeza vai para o esqui estilo livre - não pelo esporte em si, que consiste em descer uma rampa em alta velocidade e fazer acrobacias enquanto o esquiador ainda está no ar; as posições são definidas por notas atribuídas a estas acrobacias, não à velocidade ou distância alcançadas pelo atleta. O que foi esquisito no esqui estilo livre é que só uma de suas três modalidades, a conhecida como mogul, fez parte do programa oficial, deixando as modalidades de aerials e ballet como esportes de demonstração - detalhe: em 1988, todas as três modalidades haviam sido de demonstração.

Bem, seja como for, na modalidade de moguls, a única que valeu uma medalha olímpica, o atleta deve desviar de montinhos de neve na rampa - os moguls - e efetuar dois saltos, sendo que o tempo no qual ele faz isso também conta pontos. No masculino, os donos da casa conseguiram ouro e prata, com Edgar Grospiron e Olivier Allamand, enquanto no feminino o ouro foi para os Estados Unidos, com Dana Weinbrecht. Na modalidade aerial, a rampa termina com uma inclinação para cima, e o esquiador é impulsionado ao ar, onde deve fazer suas manobras; em 1992 os melhores foram o canadense Philippe LaRoche e a suíça Colette Brand. Por fim, a modalidade ballet, que não existe mais, era semelhante ao aerial, mas o atleta deveria fazer uma rotina de movimentos obrigatórios ao som de música; nos Jogos o ouro masculino foi para o francês Fabrice Becker, e o feminino para a suíça Conny Kissling.

Outro esporte de demonstração foi o responsável por uma das maiores controvérsias da história dos Jogos. Trata-se do esqui em velocidade, considerado um dos esportes mais perigosos do mundo, segundo no qual um ser humano consegue alcançar a maior velocidade sem nenhum auxílio de equipamento motorizado - atrás apenas do paraquedismo - e incluído no programa a pedido do próprio COI, que queria avaliá-lo para inclusão em uma futura edição dos Jogos de Inverno. Nesse esporte, os esquiadores descem uma rampa de 1 km de extensão, e aquele que alcançar a maior velocidade média durante a descida é o vencedor - o atual recorde mundial é de 251,4 km/h. No penúltimo dia de competições em Les Arcs, cidade a 60 km de Albertville onde foi construída a rampa, durante um treinamento, o local reservado para o pouso dos atletas foi temporariamente fechado para limpeza e assentamento. O suíço Nicolas Bochatay, que estava no alto da rampa, não ouviu o aviso sonoro de que a pista estava fechada e efetuou sua descida, se chocando a mais de 100 km/h contra um dos tratores envolvidos na limpeza e morrendo instantaneamente. A controvérsia ficou por conta do fato de que o COI tirou o corpo fora, alegando não ter nenhuma responsabilidade sobre o assunto, já que o esqui em velocidade era um esporte de demonstração, e não um esporte oficial do programa olímpico. A família de Bochatay acabaria recebendo uma indenização da Federação Internacional de Esqui, que inclusive assumiria a responsabilidade pela inclusão do esporte no programa - desnecessário dizer, após esta "avaliação", o esqui em velocidade jamais entrou para o programa olímpico.

No esqui cross country masculino, o domínio norueguês foi total: Vegard Ulvang venceu os 10 e os 30 km, e foi prata nos 15 km perseguição, enquanto Bjørn Dæhlie foi ouro nos 15 km perseguição e nos 50 km, e prata nos 30 km. A Noruega ainda conseguiu o ouro do revezamento 4 x 10 km, e o bronze dos 30 km com Terje Langli. No feminino o maior destaque foi a russa Ljubov Egorova, ouro nos 10 km perseguição e nos 15 km, prata nos 5 e nos 30 km. Outra russa, Elena Välbe, conseguiu bronze nas quatro provas. Graças a Egorova e Välbe, a Equipe Unificada também amealhou o ouro do revezamento 4 x 5 km. Também merece destaque a italiana Stefania Belmondo, ouro nos 30 km, prata nos 10 km perseguição e bronze no revezamento. Natural da pequeníssima cidade de Vinadio, de apenas 160 habitantes, Belmondo quase transformou sua cidade em uma cidade fantasma, já que mais da metade de seus conterrâneos viajaram à França para vê-la competir.

Já que estamos no esqui, vamos ao alpino, onde ocorreram vários fatos interessantes. Primeiro, o carismático italiano Alberto Tomba "La Bomba" se tornou o primeiro atleta a reprisar um ouro no esqui alpino, ao ganhar o do slalom gigante, e ainda adicionou uma prata do slalom à sua coleção. No feminino, a austríaca Petra Kronberger ganhou dois ouros, no slalom e no combinado, e Annelise Coberger, da Nova Zelândia, se tornou a primeira pessoa do Hemisfério Sul a ganhar uma medalha em Jogos de Inverno, uma prata no slalom. Falando em prata, a prova do slalom gigante rendeu duas, já que a norte-americana Diann Roffe e a austríaca Anita Wachter, prata também no combinado, terminaram rigorosamente empatadas. Nos saltos com esqui, o finlandês Toni Nieminen, 17 anos, se tornou o atleta mais jovem a conquistar um ouro numa Olimpíada de Inverno, e conseguiu logo dois, na colina alta e na prova por equipes, além de um bronze na colina baixa. No combinado nórdico ocorreram várias surpresas, com os franceses Fabrice Guy e Sylvain Guillaume conseguindo ouro e prata, e o Japão levando ouro na prova por equipes.

Na patinação em velocidade o maior destaque veio da Coréia do Sul, Kim Ki-Hoon, que ganhou o ouro nas duas provas da pista curta, os 1.000 metros e o revezamento 5.000 metros. As provas da pista mais longa foram dominadas pela Alemanha, que, somando provas masculinas e femininas, ganhou cinco ouros, três pratas e três bronzes, incluindo o pódio todo nos 5.000 metros feminino. As provas femininas, aliás, viram exibições de gala da norte-americana Bonnie Blair, ouro nos 500 e nos 1.000 metros; e da alemã Gunda Niemann, ouro nos 3.000 e 5.000 e prata nos 1.500 metros.

As provas de trenó foram dominadas pela Alemanha - prata no bobsleding de quatro ocupantes, prata e bronze no de dois, ouro no luge simples masculino, ouro e prata no luge duplas masculino, bronze no luge feminino - e Áustria - ouro no bobsleding de quatro ocupantes, prata e bronze no luge simples masculino, ouro e prata no luge feminino. A Alemanha também mandou bem no biatlo, onde Mark Kirchner subiu ao pódio nas três provas masculinas - ouro nos 10 km e no revezamento 4 x 7,5 km, prata nos 20 km - e foi imitado por Antje Misersky, pódio nas três provas femininas - ouro nos 15 km, prata nos 7,5 km e no revezamento 3 x 7,5 km. A Alemanha consagrou sua reunificação com o topo do quadro não-oficial de medalhas, seguida de perto pela Equipe Unificada, que ainda contava com alguns dos melhores atletas da União Soviética.

Por fim, as Olimpíadas de Albertville marcaram a estréia do Brasil nos Jogos Olímpicos de Inverno, com uma delegação de sete atletas, seis homens e uma mulher, todos do esqui alpino, que viajaram à França graças ao Fundo Solidariedade Olímpica, e competiram muito mais pelo prazer de representar o país no evento do que para ganhar medalhas. A melhor colocação de um brasileiro coube a Christian Lothar Munder, 40o no downhill, e Evelyn Schuler, também 40a, no slalom gigante. Evelyn também conseguiu a 46a colocação no slalom super gigante.

Ainda era cedo para saber como o fim do comunismo na Europa iria afetar os Jogos Olímpicos. Mas, em meio a tantas mudanças, o COI decidiu implementar mais uma: ainda em sua reunião de 1986, o COI decidiu que os Jogos de Albertville seriam os últimos Jogos de Inverno realizados no mesmo ano que uma Olimpíada de Verão. Os Jogos de Inverno seguintes ocorreriam apenas dois anos depois, em 1994, e a partir daí voltariam ao intervalo de quatro anos, sendo os seguintes em 1998, sempre intercalados com as Olimpíadas de Verão. Acabou que aí eles ficaram sendo sempre no mesmo ano da Copa do Mundo, mas eu acho que ninguém no COI se importa com isso.

Barcelona 1992


A cidade catalã de Barcelona, na Espanha, anunciou ao COI sua intenção de sediar as Olimpíadas de 1992 com enorme antecedência, em 17 de junho de 1980. Bobos eles não eram: Juan Antonio Samaranch, que assumiria a presidência da entidade a partir de 3 de agosto daquele ano, era nascido na cidade, e evidentemente prometeu total apoio à candidatura. Animado, o Rei Juan Carlos I também prometeu todo o apoio necessário para que uma Olimpíada finalmente fosse realizada na Espanha. Por muito tempo, inclusive, isso parecia inevitável, já que Barcelona era candidata única. Apenas em janeiro de 1983, Brisbane, na Austrália, se ofereceria como concorrente.

O sucesso dos Jogos de 1984, porém, afastou de vez o temor que levava poucas cidades a se candidatarem a sede, presente já desde a escolha da sede de 1976. Aos poucos, mais candidatas foram surgindo: Amsterdã, capital da Holanda, sede dos Jogos de 1928; Paris, a capital francesa, duas Olimpíadas no currículo; Estocolmo, a capital sueca, sede em 1912; a bela Milão, na Itália; Birmingham, na Inglaterra; e Belgrado, a capital da Iugoslávia. Diante de tantas oponentes de peso, Barcelona precisava de um trunfo ainda maior que ter como filho o Presidente do COI. Precisava de eficiência.

A cidade começou suas obras seis anos antes do provável início dos Jogos, já em 1986, quando ocorreria a reunião do COI que escolheria a sede de 1992. Em 17 de outubro, data da votação, já dispunha de 60.000 voluntários inscritos para trabalhar no evento, além da maior parte dos recursos financeiros, graças ao comprometimento do governo da Catalunha e da Coroa Espanhola. Não foi uma votação fácil, porém: Barcelona precisou de três rodadas para ser escolhida. Após o resultado, mais de cem mil pessoas saíram às ruas da cidade para comemorar, mesmo que ainda faltasse muito a fazer.

Estima-se que Barcelona tenha gastado 9,3 bilhões de dólares para organizar sua Olimpíada. Essa dinheirama toda veio não somente do governo, mas de um batalhão de mais de 150 patrocinadores, alguns arregimentados pelo próprio Samaranch, incluindo tanto multinacionais como a IBM e a Nestlé, quanto pequenas empresas locais, como a rede de lojas de roupas El Corte Inglés e a vinícola Freixenet. O dinheiro foi muito bem gasto em instalações bonitas e de alto nível, a começar pela Vila Olímpica, construída em uma área conhecida como Parc del Mar, a dez minutos do centro, entre a cidade e o Mediterrâneo, região industrial e degradada, totalmente revitalizada graças aos Jogos. No Montjuic, o principal monte da paisagem de Barcelona, foi construído o Anel Olímpico, uma belíssima obra que reuniu as quatro instalações mais importantes do evento: o Estádio Olímpico, onde foram realizadas as provas de atletismo e as Cerimônias de Abertura e Encerramento; o Palau San Jordi, ginásio de basquete, vôlei e ginástica; uma fabulosa piscina para a natação; e o Instituto Nacional de Educação Física, palco das lutas. A tecnologia também se fez presente, a começar por um moderno sistema de coleta de lixo, composto de 1.100 bocas coletoras espalhadas pela cidade, que sugavam qualquer lixo nelas atirado e enviava a uma central de tratamento. Os jornalistas tiveram acesso a nada menos que 3.600 terminais de computação conectados diretamente a três supercomputadores, capazes não somente de dar o resultado de todas as disputas em tempo real como também de garantir acesso a dados biográficos dos atletas. Pela primeira vez a televisão transmitiria ao vivo todas as regatas da vela; a natação contaria com uma câmera subaquática; o nado sincronizado com um periscópio, capaz de mostrar simultaneamente o que ocorria dentro e fora da água; a canoagem com "portõezinhos" semelhantes aos do turfe, que se abriam automaticamente ao início da prova, para evitar largadas queimadas; e o atletismo com uma câmera montada em um trilho, que acompanharia os corredores durante a reta final, como se o público corresse junto com eles. Mas a maior inovação de Barcelona não veio graças à tecnologia, mas sim a uma decisão do COI: finalmente estariam livres para participar dos Jogos Olímpicos os atletas profissionais, aqueles que fazem do esporte seu sustento, se dedicam exclusivamente a ele, e por isso mesmo aumentam o nível das competições com sua presença.

Os Jogos de Barcelona ocorreram entre 25 de julho e 8 de agosto, contando com a participação de 9.959 atletas, sendo 2.851 mulheres, que representaram nada menos que 170 nações, dentre elas a Alemanha reunificada, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Estônia, Letônia, Lituânia, e, mais importante, a África do Sul, finalmente reintegrada aos Jogos Olímpicos após o fim do regime racista do apartheid. A Equipe Unificada fez sua segunda e última aparição olímpica, desta vez com 12 membros, os seis que haviam participado em Albertville mais Azerbaijão, Geórgia, Quirguistão, Moldova, Tajiquistão e Turcomenistão. Os membros da Equipe Unificada ainda receberam um presente do COI: na Cerimônia de Abertura, marcharam sob a bandeira dos Anéis Olímpicos, mas, ao subir ao pódio, cada atleta via a bandeira de sua própria pátria ser hasteada, enquanto o hino de sua nação era executado. Também foram agraciados pelo COI alguns atletas do que restou da Iugoslávia, punida pela ONU por causa da Guerra da Bósnia, que pediu ao COI que, assim como havia feito com a África do Sul durante o apartheid, não permitisse a participação da Iugoslávia nos Jogos de Barcelona. À Iugoslávia realmente não foi permitido participar, mas 58 atletas iugoslavos ainda tomaram parte no certame, competindo com o nome de Participantes Independentes, sob a bandeira dos Anéis Olímpicos. Os Participantes Independentes chegaram até a ganhar uma medalha de prata e duas de bronze, todas no tiro.

Fizeram parte do programa olímpico de Barcelona 257 provas de 29 esportes, atletismo, badminton, basquete, beisebol, boxe, canoagem, ciclismo, equitação, esgrima, futebol, ginástica artística, ginástica rítmica, handebol, hóquei, judô, levantamento de peso, luta olímpica, nado sincronizado, natação, pentatlo moderno, polo aquático, remo, saltos ornamentais, tênis, tênis de mesa, tiro com arco, tiro esportivo, vela e vôlei; mais três esportes de demonstração, hóquei sobre patins, pelota basca e taekwondo (clique aqui para ver todas as provas do programa). Os Jogos de Barcelona, aliás, foram os últimos a incluir esportes de demonstração no programa; em sua reunião de 1989, o COI decidiu que, a partir dos Jogos de Inverno de 1994, esportes de demonstração não seriam mais permitidos. Esta decisão foi tomada porque, apesar de não serem considerados parte da Olimpíada - suas medalhas eram diferentes, e seus medalhistas não entravam para os registros do COI como medalhistas olímpicos - os esportes de demonstração, pelo regulamento, deveriam receber a mesma atenção que os esportes do programa, ou seja, seus atletas deveriam ficar hospedados na Vila Olímpica, e suas instalações deveriam estar de acordo com o padrão olímpico. Como o público nos esportes de demonstração não era dos melhores, e estes praticamente eram ignorados pela imprensa, acabava que era investido muito dinheiro e trabalho para pouco retorno, então era melhor concentrar os esforços nos esportes verdadeiramente olímpicos.

O mascote de Barcelona foi o último realmente memorável, o cachorrinho Cobi, de formas típicas da arte da cidade, criado pelo artista Javier Mariscal. No início o público o achou muito estranho, mas, graças a uma maciça divulgação, ele acabou se tornando extremamente popular, vendendo milhares de camisetas, bonés, pins, e toda sorte de merchandising. Cobi foi o último a conseguir este feito, sendo seus sucessores solenemente ignorados pela mídia e pelo público.

A Cerimônia de Abertura foi belíssima, com um espetáculo de música e dança, uma teatralização da lenda de Hércules, que incluiu um mar cenográfico e um navio de verdade, shows do tenor Plácido Domingo, da bailarina Cristina Hoyos, e do grupo La Furia del Baus. Mas a maior surpresa ficou por conta da pira olímpica, um segredo guardado a sete chaves pela organização. A pira ficava alta demais, em um dos lados do estádio, sem escada ou rampa aparente para algum atleta acendê-la. Então entrou no estádio o canoista Hermínio Menéndez. Menéndez não acendeu a pira, mas a tocha carregada por Juan Antonio San Epifanio, maior ídolo do basquete de Barcelona. Tampouco coube a Epi, como era conhecido, a honra de acender a pira. Ao invés disso, ele se dirigiu a Antonio Rebollo, atleta paralímpico do tiro com arco, e acendeu não uma tocha que ele carregava, mas uma de suas flechas, Rebollo então disparou a flecha na direção da pira, que se inflamou com o fogo sagrado. Para quem estava assistindo de casa, parecia que a flecha havia caído certeira dentro da pira, mas na verdade ela apenas passou por sobre a mesma, caindo do lado de fora do estádio, em uma região já previamente esvaziada por segurança. Alguns turistas, porém, estavam próximos a esse local, e a divulgação de suas fotos da flecha em chamas do lado de fora do estádio gerou uma grande polêmica, com acusações de que o fogo que queimava não era o de Olímpia. Na verdade, no momento em que a flecha passou, a pira já estava emanando gás combustível, e foi este gás que se inflamou, não sendo necessário que a flecha acertasse seu alvo, apenas que passasse pelo gás.

Dentre os atletas, o maior destaque de Barcelona não foi um, mas um time inteiro, o de basquete dos Estados Unidos, composto de onze superastros da NBA, a liga profissional de basquete norte-americana, mais um universitário, eleito o melhor do país. Apelidado de Dream Team (o "Time dos Sonhos") por ter dentre seus jogadores fenômenos como Michael Jordan, Magic Johnson e Larry Bird, o time não tomou conhecimento dos adversários, dando exibições de gala em todas as partidas, vencendo todas com mais de cem pontos. Mas talvez o mais curioso deste torneio de basquete, que já tinha os Estados Unidos como aclamados medalhistas de ouro desde a convocação, tenha sido o restante do pódio: com a prata ficou a Croácia, antiga base do bom time da Iugoslávia, e com o bronze a Lituânia, antiga base do igualmente bom time soviético. A Equipe Unificada, com o que restara da União Soviética, terminou em quarto lugar, seguida do Brasil, que até fez uma boa campanha, perdendo apenas para os três medalhistas e para a Espanha dona da casa.

Mas o Brasil teve um grande consolo, seu time de vôlei, único de Barcelona capaz de ser comparado com o Dream Team norte-americano do basquete. Evidentemente não em badalação, já que antes do torneio ninguém apostava em uma vitória brasileira, mas o excelente time comandado por José Roberto Guimarães, que contava com jogadores como Giovane, Maurício, Tande e Marcelo Negrão, detonou todos os adversários, sendo campeão invicto e perdendo apenas três sets em oito jogos, para Cuba e a Equipe Unificada na fase de classificação, e para os Estados Unidos na semifinal. Apelidado de Geração de Ouro, este time de vôlei, primeiro ouro olímpico do Brasil em um esporte coletivo, foi responsável por um verdadeiro boom do esporte no país, atualmente um dos mais vencedores que temos, e aparentemente o único capaz de rivalizar com o futebol em popularidade.

Além do ouro do vôlei, o Brasil, representado por 198 atletas, sendo 50 mulheres, ganhou duas outras medalhas, um segundo ouro com Rogério Sampaio Cardoso nos meio-leves do judô, vencendo suas três primeiras lutas por ippon - um golpe perfeito ou imobilização de trinta segundos - uma complicada semifinal graças a uma advertência do juiz ao adversário, e a final por uma grande diferença de pontos; e uma prata com Gustavo Borges nos 100 metros livre da natação, esta bem mais dramática: Gustavo claramente chegou em segundo lugar, mas a placa que acusaria sua batida teve um defeito, e o painel eletrônico não registrou seu tempo. Gustavo teve de esperar quinze eternos minutos até que uma representação da delegação brasileira fosse julgada, e sua medalha garantida.

Dentre os brasileiros que quase chegaram lá estão Zequinha Barbosa, quarto lugar nos 800 metros do atletismo, e Robson Caetano, também quarto lugar, nos 200 metros e no revezamento 4 x 400 metros, ao lado Edielson Tenório, Sérgio Mathias e Sidney Telles dos Santos; o tenista Jaime Oncins, que perdeu nas quartas de final das simples; e o time de vôlei feminino, com atletas como Ana Moser, Hilma e Fernanda Venturini, que venceu Holanda e China, mas perdeu para Cuba, na fase de classificação, derrotou o Japão nas quartas de final, mas na semifinal, devido a muitos erros, perdeu para a Equipe Unificada. Desanimadas com seu desempenho, as meninas acabaram perdendo também para os Estados Unidos, e terminaram a competição em quarto lugar.

Um esporte para o qual o Brasil sequer conseguiu se classificar no pré-olímpico foi o futebol, que tinha como favoritos a Espanha e a Itália. A Itália, porém, acabou derrotada pela Polônia, que automaticamente se transformou na favorita ao título. Na final, Espanha e Polônia se enfrentaram em um jogo tenso, empatado até os acréscimos do segundo tempo, quando Kiko fez o gol que daria o ouro à Espanha, para delírio dos torcedores. A maior surpresa do campeonato foi a seleção de Gana, medalha de bronze ao derrotar a Austrália, e que já anunciava que os africanos estavam vindo com força total. A Espanha também conseguiria um inesperado ouro em outro esporte coletivo, do qual participava apenas pela segunda vez, o hóquei feminino, que tinha como capitã do time Eli Maragall, sobrinha do prefeito de Barcelona e principal responsável pela medalha, ao marcar um gol na prorrogação na final diante da Alemanha.

O torneio de tênis parecia ter sido feito sob medida para novos triunfos espanhóis: as quadras eram de saibro, o tipo de piso preferido pelos donos da casa, e bem mais lentas que outras quadras de saibro do circuito, como as de Roland Garros. Além disso, o torneio foi disputado no Vall d'Hebron, conhecido por seu calor, e diante de platéias enormes, 6.500 pessoas por jogo. Mesmo com tudo isso, os espanhóis não conseguiram um ouro sequer, sendo que quem chegou mais perto foi Jordi Arrese, prata nas simples masculinas, derrotado na final pelo suíço Marc Rosset, que atravessava um grande momento, derrotando durante o torneio até o número um do mundo na época, o norte-americano Jim Courier. Nas simples femininas ocorreu uma grande surpresa, com a alemã Steffi Graf, ouro em 1984 e 1988, e ganhadora de praticamente tudo nos anos seguintes, sendo derrotada na final pela norte-americana Jennifer Capriati, que na época tinha apenas 16 anos.

O judô foi um esporte de muitas emoções, a começar pelo ouro da espanhola Miriam Blasco, categoria leves, primeiro de sua pátria nesta Olimpíada, que o dedicou a seu treinador, morto um mês antes em um acidente. Yael Arad foi ainda mais longe, e ganhou a primeira medalha de Israel, prata na categoria meio-médios, vinte anos após o atentado ocorrido nas Olimpíadas de Munique. No dia seguinte à conquista de Arad, Shay Smadga se tornaria o primeiro homem a ganhar uma medalha para Israel, bronze nos leves.

Após dois boicotes seguidos, Cuba retornou às Olimpíadas, e mostrou sua força no boxe, onde ganhou sete dos doze ouros. Seu maior destaque foi Felix Savon, dos pesados, considerado o herdeiro do lendário Teófilo Stevenson. A comemoração mais tocante foi a do norte-americano Oscar de la Roya, filho de um mexicano, que, ao ganhar o ouro dos leves, comemorou com bandeiras dos Estados Unidos e do México nas mãos.

Na ginástica, o maior destaque foi um homem, Vitaly Scherbo, de Belarus, representando a Equipe Unificada, seis medalhas de ouro. Curiosamente, nas duas provas que não ganhou ouro, Scherbo nem subiu ao pódio, sequer se classificando às finais da barra horizontal, e terminando em sexto lugar nos exercícios de solo, onde se apresentou desleixadamente. Nos saltos ornamentais, o destaque foi uma chinesa, Fu Mingxia, de apenas 13 anos, ouro na plataforma, cinqüenta pontos à frente da ucraniana Yelena Miroshina. O ciclismo viu uma exibição de gala do britânico Chris Boardman, que levou para a prova uma bicicleta revolucionária, projetada pela Lotus da Fórmula 1, toda em materiais levíssimos. E o beisebol, finalmente integrado ao programa olímpico após sete aparições como esporte de demonstração, não teve Estados Unidos no pódio. Os norte-americanos se limitaram ao quarto lugar, deixando Cuba com o ouro, Taiwan com a prata e o Japão com o bronze.

Os destaques do atletismo começam pelo britânico Linford Christie, que ganhou o ouro dos 100 metros aos 32 anos. Nos 400 metros feminino, o ouro e o recorde olímpico foram para a francesa Marie-José Perec, que ainda se livrou de um estigma de fraquejar na hora das decisões importantes. E a prova mais emocionante foi a dos 10.000 metros feminino, onde a escocesa Liz McColgan liderou mantendo um bom ritmo até os seis mil metros, quando foi ultrapassada pela sul-africana Elena Meyer. Na última volta, quando todos já achavam que Meyer iria vencer a prova, a etíope Derartu Tulu surgiu com uma arrancada impressionante, a ultrapassou e ganhou o ouro. Meyer, de toda forma, ganhou a primeira medalha da África do Sul desde 1960, e, emocionada, deu uma volta olímpica de mãos dadas com Tulu.

Na natação masculina, os russos da Equipe Unificada dominaram o nado livre, com o velocíssimo Alexander Popov levando o ouro dos 50 e dos 100 metros, e seu compatriota Yevgeny Sadovyi subindo ao alto do pódio nos 200 e 400 metros. O húngaro Tamas Darnyi, primeiro homem do planeta a nadar os 200 metros medley em menos de dois minutos, ganhou esta prova e também os 400 metros. Os Estados Unidos não tiveram nenhum grande destaque individual, mas conseguiram o maior número de ouros, seis. No feminino, a Alemanha reunificada não conseguiu manter o mesmo nível que sua parte Oriental apresentou nos anos anteriores, e o destaque acabou sendo das nadadoras da China, que surpreenderam ganhando quatro ouros e cinco pratas. O maior destaque individual foi a húngara Krisztina Egerszegi, 18 anos, ouro e recorde mundial nos 100 e 200 metros costas, e um surpreendente ouro nos 400 metros medley.

Apesar de seus poucos destaques individuais, os Jogos de Barcelona conseguiram entrar para a história dentre os mais belos e organizados. Ao final, o público cantou emocionado Amigos Para Siempre, melodia entonada por José Carreras e Sarah Brightman na Cerimônia de Encerramento, onde Cobi pegou seu barquinho e subiu aos céus. Com o fim da disputa entre capitalismo e comunismo, o momento era propício para que as Olimpíadas se tornassem o palco de uma grande confraternização mundial, tendo o esporte como convidado. Afinal, foi pra isso que elas haviam sido recriadas, quase cem anos antes.


Série Olimpíadas

Albertville 1992
Barcelona 1992

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