domingo, 28 de março de 2021

Escrito por em 28.3.21 com 0 comentários

Kudô

Hoje eu vou falar sobre mais uma luta esportiva, o kudô. Eu descobri o kudô quando estava pesquisando sobre os World Games, já que o comitê organizador da edição de 2013, em Cali, Colômbia, tentou incluí-lo sem sucesso no programa. Intrigado sobre o que seria um kudô, dei uma pesquisadinha, e acabei achando algumas informações interessantes. Essa semana, enquanto pensava sobre qual assunto poderia escrever, me lembrei do kudô e achei que seria uma boa.

O kudô foi inventado pelo japonês Azuma Takashi, nascido em 1949, que, aos 16 anos, decidiria praticar judô em um clube mantido por sua escola, em sua cidade natal de Kesennuma. Após concluir o colégio, Takashi se alistaria no exército, onde teria contato também com o caratê, e, ao dar baixa para estudar na Universidade de Waseda, em 1972, decidiria praticar o caratê kyokushin.

Criado em 1964 por Masutatsu Oyama, mais conhecido como Mas Oyama, que nasceu em 1923 na Coreia com o nome de Choi Yeong-eui e imigrou para o Japão em 1938, o caratê kyokushin (palavra que, em japonês, significa "verdade suprema") é uma variante extremamente focada no contato físico, com treinos exaustivos e rígida disciplina, que hoje não tem muito apelo entre os jovens (mais da metade dos praticantes tem 40 anos ou mais), mas que, na época em que Takashi começou, era uma novidade bastante atraente no Japão. Takashi se dedicaria ao kyokushin pela maior parte de sua vida, alcançando o nono dan, além de seguir com o judô por um bom tempo, chegando ao terceiro dan.

Mesmo sendo um praticante e admirador, Takashi tinha severas críticas ao kyokushin. Ele percebeu, por exemplo, que lesões graves à cabeça dos praticantes eram comuns, com muitos tendo de inclusive abandonar o esporte. Ele também era da opinião de que os lutadores mais baixos ficavam em grande desvantagem quando enfrentavam lutadores mais altos - tendo 1,65m, ele havia tomado tantos golpes na face desferidos por lutadores mais altos que seu nariz ficou permanentemente torto. Takashi era especialista em duas técnicas, a da cabeçada e a de segurar o oponente pelo colarinho, mas, em competições, raramente tinha chance de utilizá-las, pois quase todos os lutadores preferiam atacar com chutes o tempo todo, o que lhes possibilitava manter distância do oponente e marcar mais pontos.

Com tudo isso em mente, em 1981, sem abandonar o kyokushin, Takashi decidiria criar sua própria arte marcial, à qual daria o nome de caratê daidojuku (palavra que significa algo como "luta corpo a corpo"). No início, o caratê daidojuku era pouco mais que uma mistura do kyokushin com o judô, usando as técnicas de cada um que Takashi considerava mais efetivas para criar um estilo versátil e realístico, tendo como foco que, mesmo em competições esportivas, a impressão fosse de que os lutadores estavam se enfrentando pra valer. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, Takashi estudaria outras lutas desportivas, e selecionaria técnicas de boxe, muay thai, jiu jitsu e até mesmo do wrestling norte-americano que achava que poderiam contribuir para seu daidojuku. No início da década de 1990, ele decidiria que os praticantes precisariam usar proteções, como capacetes, pois lutar apenas com o gi estava resultando em muitas lesões.

Tudo isso ocorreria enquanto o estilo já estava sendo ensinado a alunos: Taksahi abriria seu primeiro dojo já em 1981, na cidade de Miyagi, e naquele mesmo ano organizaria seu primeiro torneio entre seus alunos. Aos poucos, outros dojo começaram a surgir, sendo que alguns, sem saber se poderiam ou não usar o nome daidojuku, optariam por chamar o estilo, idêntico ao criado por Takashi, de caratê kakuto ou caratê hokutoki. O daidojuku se beneficiaria bastante do boom das artes marciais que ocorreria no Japão na década de 1990, principalmente por ser considerado uma arte marcial mista, uma das poucas com dojo no Japão na época. Lutadores de daidojuku ajudariam a popularizar o famoso torneio K-1, e um aluno de Takashi, Minoki Ichihara, seria o primeiro japonês a aceitar participar do UFC, enfrentando o brasileiro Royce Gracie (e perdendo); na época, torneios de artes marciais mistas não eram vistos como "sérios", e os dojo de artes marciais relutavam em permitir que seus alunos participassem delas, um preconceito que Takashi não teve.

Após a participação de Ichihara no UFC, a imprensa japonesa começaria a pressionar por um confronto entre Kenichi Osada, outro aluno de Takashi, considerado o principal nome do daidojuku, e Masaaki Satake, considerado o principal nome do caratê seidokaikan, outro que teve origem no kyokushin e contava com bastante contato físico. O confronto nunca ocorreria, mas o daidojuku e o seidokaikan se tornariam as duas mais famosas artes marciais japonesas da época, com seus lutadores sendo manchete em jornais e estampando a capa das principais revistas sobre artes marciais do país. Em 1995 Takashi decidiria mudar o nome da organização que criou para cuidar das regras e torneios de seu esporte de Karate-Do Daidojuku para Federação Internacional de Caratê Kakuto Daidojuku (KKIF), que, mesmo com apenas um membro, se tornaria a principal entidade no planeta a regular e organizar o daidojuku.

Havia um detalhe, porém, que desagradava Takashi: com tudo o que estava acontecendo, ele achava que o esporte estava muito centrado na autopromoção, quando seu principal objetivo era o de criar uma nova arte marcial, que, assim como o judô, seguisse o código do budô, servindo para defesa pessoal e como filosofia de vida. Assim, em 2001, ele surpreenderia ao convocar uma coletiva de imprensa na qual anunciaria que estava mudando vários dos fundamentos do daidojuku, que não teria mais nada a ver com o caratê e passaria a ser uma arte marcial completamente independente, chamada kudô (o "caminho do céu"). Na mesma coletiva, ele anunciaria que a KKIF estava mudando de nome para Federação Internacional de Kudô (KIF), e a realização do primeiro Campeonato Mundial de Kudô, que aceitaria a participação de praticantes de diversas artes marciais, desde que todos se comprometessem a seguir as regras e os princípios do kudô.

Desde seu início, a KIF é uma federação internacional diferente, pois, além de regular o kudô e organizar seus torneios internacionais, ela dá suporte para atividades sociais e para a inclusão do kudô no programa de educação física das escolas, contando com o apoio do Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciência e Tecnologia do Japão. Hoje, a KIF já conta com 52 membros, incluindo o Brasil. O país com o maior número de praticantes registrados não é o Japão, mas a Rússia, onde o daidojuku começou a ser praticado em 1991 na cidade de Vladivostok; Takashi iria a Moscou pessoalmente para a fundação da Federação Russa de Caratê Daidojuku (hoje Federação Russa de Kudô), em 1994, mesmo ano no qual seria realizado o primeiro torneio de daidojuku fora do Japão, também em Moscou. O primeiro lutador estrangeiro a vencer um torneio dentro do Japão também seria um russo, Alexey Kononenko, em 1996, assim como o primeiro estrangeiro a chegar ao sexto dan, Roman Anashkin, em 2013.

Falando nisso, assim como outras artes marciais, o kudô tem um sistema de ranqueamento dividido em kyu e dan e representado por faixas coloridas amarradas na cintura dos praticantes (que se chamam kudoka), que simbolizam sua proficiência nas técnicas do estilo. Todo kudoka começa "sem kyu", passando então para o décimo e seguindo em ordem decrescente (10, 9, 8, 7...) até o primeiro, quando pode fazer o exame para o primeiro dan; a partir daí a ordem é crescente (1, 2, 3, 4...), sendo, atualmente, o mais alto dan possível o nono, do qual fazem parte Takashi e alguns de seus primeiros alunos. Uma diferença do kudô em relação a outras artes marciais é que, devido à opinião de Takashi de que isso seria mais justo, um kudoka pode galgar um nível no ranqueamento não só passando nos exames de troca de faixa, mas também devido a seu bom desempenho em torneios, exceto no caso do primeiro kyu para o primeiro dan, quando o exame é obrigatório; o próprio Anashkin se beneficiou dessa regra, passando do quinto para o sexto dan após vencer vários torneios.

Outra diferença estabelecida por Takashi é que o ranqueamento de cada kudoka determina quais golpes são válidos nas lutas das quais ele participa, sendo que, caso ocorra de lutadores de ranqueamentos diferentes se enfrentarem, devem ser usadas apenas as técnicas permitidas ao de ranqueamento mais baixo. Essa regra vale para kudoka do décimo ao terceiro kyu, com os kudoka a partir do segundo kyu estando liberados para usar todas as técnicas, e kudoka sem kyu não podendo participar de torneios. Em relação às cores das faixas, kudoka sem kyu usam faixas brancas, do décimo e nono usam faixas roxas, do oitavo e sétimo usam faixas azuis, do sexto e quinto usam faixas amarelas, do quarto e terceiro usam faixas verdes, do segundo e primeiro usam faixas marrons, e kudoka de qualquer dan usam faixas pretas.

Outra novidade criada para o kudô por Takashi, baseada na sua impressão de que os lutadores mais altos tinham vantagem sobre os mais baixinhos, é que o kudô não tem categorias de peso, e sim categorias de PI. PI é a sigla para physical index, ou índice físico, e corresponde à soma do peso do lutador, em kg, com sua altura, em cm - assim, um lutador de 1,65 m e 70 kg tem PI 235. Tanto no masculino quanto no feminino, são seis categorias: até PI 230, de 231 a 240, de 241 a 250, de 251 a 260, de 261 a 270 e acima de PI 270. O kudô é atualmente a única luta esportiva com competições internacionais a considerar a altura dos lutadores na hora de definir as categorias.

O uniforme de competição do kudô se chama kudogi, e é no mesmo estilo dos de lutas como judô e caratê: uma calça comprida presa através de um cordão na cintura e uma camisa, comprida o suficiente para chegar abaixo da cintura, de mangas até os cotovelos e aberta na frente, ficando fechada pela faixa do ranqueamento; as mulheres devem usar uma camiseta branca ou top esportivo por baixo da camisa. Em torneios organizados pela KIF, um dos lutadores sempre usa gi branco, enquanto o outro sempre usa gi azul, com os equipamentos de proteção sendo na cor branca para ambos. Os equipamentos de proteção obrigatórios são capacete e luvas, além de protetor genital para os homens e de seios para as mulheres. As luvas possuem uma parte bem larga e acolchoada que cobre as costas das mãos e os nós dos dedos, e uma parte elástica que cobre os punhos e as palmas das mãos, ficando as pontas dos dedos livres; o capacete, além de contar com uma proteção acolchoada para testa, orelhas, queixo e nuca, conta com um "visor" de plexiglas transparente, que permite a visualização completa do rosto do lutador ao mesmo tempo que o protege de golpes - devido a esse visor, é comum lutadores de kudô lutarem usando óculos ao invés de lentes de contato.

O objetivo em uma luta de kudô é que o combate pareça o mais realístico possível, o que faz com que haja poucas regras. Os golpes válidos do kudô incluem socos, chutes, cotoveladas, joelhadas, cabeçadas, arremessos, agarrões, combinações (agarrar o oponente e dar uma joelhada ao mesmo tempo, por exemplo) e até mesmo luta no solo, com técnicas de estrangulamento semelhantes às do judô. O kudô não possui kata, com todo o treinamento sendo focado no combate; suas aulas incluem, entretanto, o reigi, as aulas de etiqueta japonesa, nas quais são treinadas a concentração, a resistência mental e o foco.

O kudô é disputado em um tatami quadrado, de 13 m de lado, no centro do qual há um quadrado de 9 m de lado, obrigatoriamente de cor diferente. O quadrado menor é a área válida de luta, e, para um golpe ser considerado válido, ele tem que começar dentro dessa área (mesmo que o oponente seja atingido fora dela). Sair da área válida de luta de propósito é falta, e um lutador pode ser punido por falta de combatividade se o fizer reiteradamente. Toda vez que ambos os lutadores saírem da área válida de luta, o árbitro central deve interromper a luta e recomeçá-la com eles em suas posições iniciais. Além do árbitro central, que acompanha a luta dentro do tatami, próximo aos lutadores, há outros quatro, um em cada quina do tatami, que podem chamar a atenção do árbitro em caso de pontos ou faltas que ocorram sem que ele tenha visto.

As únicas áreas do corpo do oponente que não são válidas para serem atingidas são as costas, a nuca e as genitais; todas as demais podem ser atingidas com qualquer tipo de golpe. Os pontos são conferidos não por técnica, mas por efetividade, com os árbitros tendo de levar em conta se o oponente "sentiu o golpe" ou se apenas foi atingido por ele - caso no qual não é aplicada pontuação. Dependendo da efetividade do golpe e da área atingida, ele pode valer 1,  2, 4 ou 8 pontos, com essas pontuações sendo chamadas, assim como no judô, koka, yuko, wazari e ippon; assim como no judô, um ippon encerra a luta imediatamente, mas, diferentemente do que ocorre lá, dois wazari não valem um ippon. Para obter um ippon, um lutador deve conseguir um golpe que faça, com sua força, o oponente recuar no mínimo dois passos, tocar o chão com qualquer parte do corpo que não sejam as solas dos pés ou as palmas das mãos, ou ficar em um estado que o árbitro central considere que não é possível ele continuar lutando. Curiosamente, além de vencer a luta por ippon, um lutador também pode vencer por nocaute, quando o árbitro avalia que o oponente não pode continuar lutando após receber uma sequência de golpes ou um golpe qualquer que não tenha força para ser considerado um ippon.

Além de pontuar com seus próprios golpes, um lutador pode ganhar pontos através das penalidades do oponente, com cada penalidade valendo um ponto. A penalidade mais comum é a falta de combatividade, que inclui fugir da luta, ficar somente esperando o oponente atacar, atacar sem o intuito de marcar pontos, apenas para deixar o tempo passar, dentre outros comportamentos. Também incorre em penalidade o lutador que usar golpes inválidos, faltar com o respeito com o oponente ou os árbitros, ou não atender aos comandos do árbitro central (como o de interromper a luta); um lutador que seja reincidente nessas práticas durante uma luta pode ser desclassificado, ficando o oponente automaticamente com a vitória.

Como já foi dito, o kudô também tem técnicas de solo, aplicadas quando um dos lutadores é derrubado pelo oponente. De acordo com as regras da KIF, a luta de solo só pode ocorrer durante 30 segundos, no máximo duas vezes por luta (ou seja, 30 segundos, ficam de pé, e, em outra ocasião posterior, mais 30 segundos). Um lutador que leve a luta para o solo por uma terceira vez recebe uma penalidade, assim como o que não respeita o comando de interromper a luta após os 30 segundos terem se esgotado. Durante os 30 segundos em que estão no solo, ambos os lutadores podem tentar aplicar várias técnicas, que valem 1, 2 ou 4 pontos, dependendo de sua efetividade e do tempo que o oponente ficou imobilizado por elas; também é possível ganhar a luta por submissão (quando é aplicada uma técnica da qual o oponente não consegue se desvencilhar por mais de 20 segundos) ou por estrangulamento (quando o oponente desiste da luta por estar sentindo dor ou dificuldade de respirar, com o árbitro também podendo dar a vitória por estrangulamento se perceber que o lutador vai perder a consciência).

Uma luta de kudô dura três minutos corridos sem intervalo, ao fim dos quais o lutador que tiver mais pontos será o vencedor. Em caso de empate no final desse tempo, são disputadas até duas prorrogações de três minutos cada. Se o empate persistir ao final da segunda prorrogação, o vencedor é escolhido por decisão dos árbitros, levando em conta fatores como qual foi mais combativo, qual utilizou as melhores técnicas e qual teve os golpes mais eficientes. Assim como outras lutas de contato, no kudô os lutadores têm direito a um "tempo médico", no qual o relógio fica parado, caso precisem de atendimento; esse tempo é de um minuto por luta, mas pode ser dividido por vários atendimentos - com o lutador sendo desclassificado caso o estoure.

O kudô possui dois campeonatos de igual importância, o Campeonato Mundial de Kudô e a Copa do Mundo de Kudô; ambos possuem o mesmo formato e são abertos a todos os lutadores cujas federações nacionais são membros da KIF, sendo a única diferença a de que o Campeonato Mundial é sempre realizado no Japão, e a Copa do Mundo é realizada a cada edição em um país diferente. O Campeonato Mundial é disputado a cada quatro anos desde 2001, e a Copa do Mundo é disputada a cada dois anos desde 2011. Atualmente ambos possuem sete categorias cada, as seis do masculino, baseadas no PI, e a categoria feminina aberta, da qual podem participar lutadoras de qualquer PI - o que ocorre porque o número de lutadoras de kudô ainda é muito baixo.

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