Zamyatin nasceu em 1 de fevereiro de 1884, na época do Império Russo, na cidade de Lebedyan, 300 km ao sul de Moscou. Filho único de um reverendo da Igreja Ortodoxa com uma pianista, teve uma infância solitária, e, ao concluir a escola, em 1902, decidiu se alistar na Marinha. Enquanto cursava engenharia na Academia Naval, teve seu primeiro contato com o marxismo-leninismo, e decidiu se filiar ao Partido Trabalhista Social Democrata Russo, se tornando um bolchevique. Na Revolução Russa de 1905, foi preso e mandado para a Sibéria, mas conseguiu fugir, vivendo ilegalmente em São Petersburgo até 1906, quando conseguiu emigrar para a Finlândia e concluir seu curso de engenheiro. Voltaria para a Rússia em 1910, e decidiria começar a escrever ficção como um hobby. Seus textos o levariam a ser preso pela segunda vez, em 1911, mas dessa vez ele ficaria em Moscou, e, em 1913, seria anistiado. As histórias escritas por Zamyatin eram publicadas principalmente em periódicos marxistas, e duas delas chamariam bastante atenção: Uyezdnoye ("a cidade"), de 1913, na qual satirizava a vida em uma pequena cidade russa do interior, e Na Kulichkakh (algo como "no fim do mundo"), na qual ridicularizava a Marinha Imperial Russa. Apesar disso, por ser considerado um engenheiro extremamente competente, Zamyatin teve uma carreira brilhante na marinha, principalmente construindo navios quebra-gelo. Em 1916, ele seria enviado para a Inglaterra, para supervisionar a construção de um desses navios, e, por causa disso, acabou perdendo a Revolução de 1917, retornando para a Rússia apenas no final daquele ano. Em uma entrevista posterior, declararia que "foi a mesma coisa que um dia acordar e descobrir que já estava casado há dez anos, sem nunca ter se apaixonado".
Após retornar à Rússia, Zamyatin trabalharia como editor de jornal, daria aulas sobre com escrever ficção, e traduziria obras de Jack London, O. Henry e H.G. Wells, que seriam lançadas pela primeira vez em russo. Seus primeiros trabalhos publicados após seu retorno seriam obras que satirizavam o modo de vida dos ingleses, Ostrovitiane ("os moradores da ilha") e Lovets Chelovekov ("os pescadores de homens"). De início, Zamyatin apoiaria sem ressalvas a Revolução de 1917 e o comunismo, mas, aos poucos, principalmente por causa da censura à qual suas obras eram submetidas - a maioria delas não sendo aprovada para publicação - acabaria se tornando um opositor do regime, sendo considerado um dissidente. Em um ensaio de 1921, ele escreveria que "a verdadeira literatura só pode existir quando criada por loucos, eremitas, hereges, sonhadores, rebeldes e céticos, e não por oficiais governamentais aplicados e confiáveis". Com a mudança de posicionamento político, os textos de Zamyatin começariam a satirizar, principalmente, o Partido Comunista Soviético e a ideologia comunista como um todo. Isso, evidentemente, não agradaria ao governo, que passaria a tornar cada vez mais difícil a publicação de seus textos.
Zamyatin escreveria Nós entre 1920 e 1921, mas não conseguiria publicá-lo de jeito nenhum. Ao submeter uma cópia à censura, ela voltaria integralmente censurada, ou seja, nem mudando partes do texto ele conseguiria a aprovação. Não querendo se dar por vencido, Zamyatin e seu amigo Gregory Zilboorg, um psicanalista que havia sido expulso da União Soviética e estava morando como refugiado em Nova Iorque, Estados Unidos, criariam um arriscado plano: não se sabe como, Zamyatin conseguiu contrabandear uma cópia de Nós para os Estados Unidos, e Zilboorg, ao recebê-la, a traduziu para o inglês e a ofereceu à editora E.P. Dutton and Company. Talvez só a história do contrabando já seria suficiente para garantir a publicação do livro, mas a história cativou os editores da Dutton, que a publicariam em 1924, creditado a Eugene Zamyatin, em duas versões, de capa mole e de capa dura, com uma fotografia tirada pelo russo Georgy Petrusov como arte de capa.
Em 1927, Zamyatin iria ainda mais longe, e contrabandearia uma cópia de Nós para Marc Slonim, outro exilado, que editava um jornal anti-comunista em Praga, Tchecoslováquia. Slonim publicaria Nós em tcheco, e cópias dessa edição conseguiriam ser contrabandeadas de volta para a União Soviética, sendo passadas de mão em mão. O governo soviético ficaria furioso, e colocaria Zamyatin numa lista negra, impedindo a publicação de qualquer texto seu na União Soviética enquanto a punição estivesse em vigor. Zamyatin consideraria isso uma sentença de morte, já que de nada adianta escrever sem poder publicar, e, em 1931, escreveria uma carta diretamente a Joseph Stalin, pedindo permissão para deixar a União Soviética definitivamente. Stalin não estava muito a fim de permitir, mas, com a intervenção do também autor Maxim Gorky - que provavelmente convenceu o Premier de que deixar Zamyatin ir seria a única forma de ele parar de encher o saco - ele receberia autorização para emigrar com sua esposa para Paris, França, onde trabalharia como roteirista de cinema - sendo um de seus primeiro trabalhos O Submundo, adaptação da peça de teatro homônima de Gorky, dirigida por Jean Renoir e lançada em 1936.
Zamyatin morreria um ano depois, em 1937, de ataque cardíaco, vivendo na extrema pobreza. Slonim compareceria a seu funeral, que ocorreria em um pequeno cemitério num subúrbio de Paris. Durante décadas, graças à lista negra do governo, ele seria um desconhecido em sua própria pátria, e, graças à histeria anticomunista, Nós permaneceria pouco conhecido até mesmo no ocidente - mesmo sendo uma crítica ao sistema que seus boicotadores queriam combater. O texto original em russo de Nós seria publicado pela primeira vez em 1952, não na União Soviética, mas nos Estados Unidos, pela editora Chekova, em edição voltada à comunidade russa de Nova Iorque. Sua primeira publicação na União Soviética ocorreria apenas em 1988, pela Editora Kniga, como parte de uma coleção das obras completas de Zamyatin, na época da glasnost, a abertura da União Soviética para o mundo além da Cortina de Ferro. Na época, Nós já havia sido traduzido para outros oito idiomas; hoje, contando com o inglês, são vinte, incluindo o português, graças à edição lançada em 2017 pela Editora Aleph (creditada a Ievguêni Zamiátin).
Nós foi um dos primeiros livros publicados ambientado em um futuro distópico, e, dos anteriores a ele, somente The Iron Heel, de Jack London, publicado em 1908, foi bem sucedido. George Orwell escreveria 1984, publicado em 1949, oito meses após ler uma edição francesa de Nós, para a qual escreveu uma resenha; Orwell também jura que Aldous Huxley teria se inspirado em Nós para escrever Admirável Mundo Novo, mas Huxley sempre negou, e declarou inclusive só ter lido Nós após a publicação de seu próprio livro, em 1932. Outros autores que assumiram ter se inspirado em Nós foram Vladimir Nabokov, para Convite para uma Decapitação, de 1936; Ayn Rand, para Anthem, de 1938; Kurt Vonnegut para Revolução no Futuro, de 1952; e Ursula K. Leguin para Os Despossuídos, de 1974. O livro Lyubov v Tumanye Budushchego ("o amor na névoa do futuro"), único conhecido do autor russo Andrei Marsov, também publicado em 1924, costuma ser citado como uma das obras influenciadas por Nós, embora não se saiba se Marsov chegou a ler o texto de Zamyatin antes de sua publicação.
A história é ambientada no Estado Único, uma gigantesca cidade-estado comandada pelo Benfeitor, onde ninguém possui nomes, apenas números, a individualidade é desestimulada em nome da coletividade (todas as estruturas são feitas de vidro, para que ninguém tenha privacidade, e não há roupas customizadas, com todos usando uniformes iguais), e todas as tarefas de todas as pessoas têm de seguir horários rígidos, estabelecidos por uma Tábua de Horários (todo mundo acorda na mesma hora, trabalha na mesma hora, e até passeia na mesma hora, antes de ir dormir na mesma hora). Essa sociedade tão curiosa foi o resultado da evolução social durante duzentos anos após uma guerra que devastou 80% da população da Terra; o Estado Único foi a única parte habitável do planeta que sobrou, sendo cercado pela Muralha Verde, além da qual a natureza é selvagem e a sobrevivência do homem é impossível.
O protagonista da história é D-503, engenheiro responsável pela construção da nave espacial Integral, um ambicioso projeto do governo para levar as benesses do Estado Único a outros planetas e outras civilizações. O texto de Nós, escrito pelo engenheiro (e, portanto, narrado em primeira pessoa), deveria ser o relato de como funciona o Estado Único, para que essas outras civilizações se familiarizassem com o conceito, mas, conforme os elementos da história se desenrolam, o livro se transforma em uma espécie de diário de D-503: um dia, durante a Hora do Passeio, ele conhece a misteriosa I-330, que não vive de acordo com os preceitos do Estado Único - embora tenha de disfarçar para não ser presa como subversiva - e, graças às aventuras nas quais envolve D-503, ele logo se vê apaixonado por ela - conceito que sequer deveria existir no Estado Único, onde até mesmo os relacionamentos interpessoais são determinados pelo Estado, como o namoro de D-503 com O-90, a moça que ele tem a permissão do Estado para namorar. O envolvimento de D-503 com I-330 leva a vários questionamentos sobre a sociedade em que vivem, e o engenheiro logo começa a achar que sua vida pode estar em perigo, principalmente porque ele parece estar sempre sendo seguido pelo misterioso S-4711.
Uma coisa interessante sobre os nomes dos personagens de Nós - além do fato de que todos os homens possuem números ímpares, e as mulheres números pares - é que as letras de seus nomes parecem estar de acordo com sua aparência física ou personalidade - O-90 é gordinha e rechonchuda, enquanto I-330 é alta e esguia, e S-4711 é descrito como corcunda e recurvado. Antes que vocês pensem que D-503 é barrigudo, cabe dizer que a letra D em russo (Д) se parece com uma casinha, então eu não sei o motivo pelo qual essa foi escolhida para o protagonista. Outros personagens de destaque do livro são R-13, um escritor que D-503, sempre que descreve, chama atenção para seus lábios grossos, que fazem com que ele fale distribuindo perdigotos por todos os lados; e IU-10, a responsável pelo prédio onde D-503 mora, descrita como uma mulher de meia-idade com bochechas de buldogue. Cabe dizer que IU-10 é a única personagem do livro que tem duas letras no nome, mas isso tem uma explicação: há uma letra em russo (Ю) cujo som é "iu" (normalmente transliterada como "yu"), presente, por exemplo, na palavra soyuz (союз), que significa "união", e é o nome da nave que leva os astronautas para a Estação Espacial Internacional.
Curiosamente, Zamyatin não escolheria as letras e nomes dos personagens aleatoriamente, e sim inspirado no desenho de um navio quebra-gelo projetado por ele, o St. Alexander Nevsky, no qual o compartimento D-503 ficava entre o O-90 e o I-330. R-13 e IU-10 também eram compartimentos importantes do navio, mas S-4711 não; a teoria mais aceita é a de que Zamyatin teria tirado esse número da água de colônia que usava - pois era muito popular na Europa da época uma água de colônia chamada justamente 4711, fabricada pela Mäurer & Wirtz, da Alemanha, desde 1799, embora não haja evidências de que ela fosse vendida na Rússia ou usada por Zamyatin (que também poderia tê-la conhecido durante o tempo em que viveu na Inglaterra). Também vale citar que o auditório onde D-503 e seus amigos do projeto da Integral se reúnem é o Auditório 112, número da cela na qual Zamyatin ficou preso em Moscou em 1911.
Vários estudos foram feitos sobre Nós para além da crítica ao regime soviético; um dos mais famosos conseguiu traçar paralelos bíblicos com o texto, colocando D-503 no papel de Adão, I-330 como Eva, e S-4711 como a serpente (por isso a letra de seu nome seria S). Outro estudo famoso foi o de Christopher Collins, que encontrou na obra paralelos com as teorias do psicanalista Carl Gustav Jung, relativos ao conflito interno do homem moderno. Há ainda um estudo que relaciona as cores e formas descritas por Zamyatin como parte do Estado Único e do mundo exterior às obras do pintor expressionista Kandinsky. Uma interpretação menos popular é a de que o livro seria uma crítica não ao Estado, mas às religiões organizadas, que tirariam a liberdade e a individualidade de seus seguidores incutindo neles o medo do desconhecido e a promessa de recompensas caso sigam seus preceitos.
Seja como for, quatro obras são consideradas como as maiores influências sobre Zamyatin para que ele escrevesse Nós: The Sleeper Awakes, de H.G. Wells, publicado em 1910, que Zamyatin traduziu para o lançamento na Rússia, sobre um homem que dorme durante 203 anos, acordando para descobrir que é o homem mais rico da Inglaterra, mas sem poder usufruir de sua riqueza devido à forma como a sociedade e o Estado estão estruturados; Notas do Subterrâneo e Os Irmãos Karamazov, ambos de Fiódor Dostoyevski, nos quais ele teria se inspirado para sua crítica a uma sociedade militarizada e ateísta; e A Nova Utopia, de Jerome K. Jerome, publicado originalmente em 1891, e na Rússia em 1917, também ambientado em uma cidade futurista na qual ninguém tem nome, todos usam túnicas cinza idênticas (com números, sendo que as mulheres têm números pares e os homens têm números ímpares), e têm o mesmo cabelo curto e preto, pois a igualdade é favorecida acima de todos os outros fatores sociais. Vale dizer que, antes da Revolução de 1917, Jerome, que era inglês, era um dos autores mais populares na Rússia, com seu livro Três Homens em um Bote sendo leitura obrigatória nas escolas russas.
Em diversos momentos, D-503 cita o taylorismo como a fundação dos ditames do Estado Único. O taylorismo é uma teoria real, criada pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor para aumentar a produtividade e eficiência das indústrias; em Nós, o taylorismo é aplicado não somente ao trabalho, mas a todos os aspectos da vida cotidiana - vide a Tábua de Horários. Apesar de Taylor ser norte-americano, no final da década de 1910 o governo soviético realmente pensou em implantar o taylorismo em diversas áreas da sociedade, em um projeto liderado pelo poeta e sindicalista Aleksei Gastev, que participou ativamente da Revolução. Zamyatin era terminantemente contra, e isso pode tê-lo influenciado a colocar o taylorismo como um dos pilares do Estado Único.
Apesar de ser uma obra tão importante e tão influente, Nós ainda não ganhou nenhuma adaptação cinematográfica; suas duas únicas adaptações são um filme para a TV realizado pelo canal alemão ZDF em 1982 e um curta de pouco mais de 28 minutos chamado A Fortaleza de Vidro, que não segue fielmente o livro, sendo focado na história de amor entre os protagonistas. Lançado em 2016 e dirigido pelo francês Alain Bourret, A Fortaleza de Vidro é em preto e branco e faz uso de uma técnica conhecida como freeze frame, o que contribui para a atmosfera surreal do filme.
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