O tempo passou e, por motivos vários, eu abandonei os meses temáticos. Mas, ano passado, resolvi, meio que do nada, fazer um Mês do Brasil, somente com temas ligados ao nosso país, e acabei ficando com vontade de ressuscitá-los. Acabei decidindo que faria pelo menos um mês temático por ano, e, pouco depois, tive uma ideia bastante legal: o Mês dos Convidados. Durante um mês inteiro, eu terei uma folga de meus deveres de escritor, e vocês serão contemplados com quatro posts de alta qualidade escritos por amigos meus - cujos temas foram escolhidos por eles, juro que não interferi. Para começar, hoje é dia de Vinícius Cordeiro no átomo! Divirtam-se!
Eu conheço o Gui há 25 anos. Lembro até hoje como nos conhecemos, conversando antes de uma aula de desenho técnico no CEFET/RJ nos idos de 1994. Foram bons tempos, quando encontrei um grupo de pessoas com gostos parecidos com o meu, inclusive na literatura, com grande predominância da literatura fantástica muito por conta da predileção por RPG que tínhamos na época.
Em 1995 a editora Martins Fontes trouxe para o Brasil a primeira tradução autorizada de O Senhor dos Anéis (a tradução anterior é pirata, feita na década de 1970 pela editora Artenova). No final de 1997, início de 1998, eu finalmente pude comprar os três livros e desde então eu leio O Senhor dos Anéis em média uma vez por ano. Óbvio que com o tempo eu comecei a catar outros livros do professor J.R.R. Tolkien para ler e me aprofundar cada vez mais na Terra-média, com todos os seus mitos e estórias.
Porém, escolher o assunto para o post de hoje foi um tanto complicado: o Gui já escreveu sobre Tolkien, O Senhor dos Anéis, O Hobbit, O Silmarillion, e até mesmo sobre o Contos Inacabados e Roverandom, os principais livros publicados da obra do professor. Porém, ainda há um monte de livros ficcionais que o Gui pode falar sobre (As Aventuras de Tom Bombadil, Mestre Gil de Ham, Ferreiro de Bosque Grande, As Cartas de Papai Noel, etc.), isso sem falar nos livros acadêmicos-literários (Sir Gawain and the Green Knight, Finn and Hengest, A Queda de Arthur, etc.), nos livros editados por Christopher Tolkien (The History of Middle-earth, The Children of Húrin, Beren and Lúthien, The Fall of Gondolin, etc.) e por outras pessoas (The Story of Kullervo, The Lay of Aotrou and Itroun, etc.), então assunto para o átomo é que não falta. :)
Mas o livro sobre o qual irei escrever hoje é uma mescla de texto acadêmico e literário: trata-se de Tree and Leaf, uma coletânea de vários textos que giram em torno do desejo de Tolkien em justificar seu interesse pelas estórias de fadas. Sem mais delongas, vamos a ele!
Tree and Leaf é uma coletânea de textos mais antigos de Tolkien, tendo sido publicado pela primeira vez em 1964. Na forma como é impresso atualmente ele contém:
- o ensaio acadêmico On Fairy-Stories (publicado originalmente em 1947);
- o conto alegórico† Leaf by Niggle (publicado originalmente em 1945);
- o poema Mythopoeia (que foi adicionado nas edições publicadas depois de 1988 e escrito em 1931); e,
- o poema épico em métrica aliterativa anglo-saxã The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm’s Son (publicado originalmente em 1953), que foi adicionado por último.
On Fairy-Stories foi originalmente escrito para a apresentação de uma palestra da série Andrew Lang, na Universidade de St. Andrews, Escócia, em 8 de março de 1939. É, em suma, a justificativa acadêmica de Tolkien para toda a sua obra (nesta época Tolkien já estava escrevendo O Senhor dos Anéis há cerca de dois anos). É um texto com uma estrutura radial, como uma teia de aranha de ideias relacionadas, mas que não derivam necessariamente uma da outra. Nele, Tolkien busca corrigir uma série de equívocos a respeito das estórias de fadas, em especial os cometidos pelos estudos de filologia e mitologia comparadas. Ele afirma que se passou tempo demais usando-se estórias de fadas e mitos como fontes de informação da antiguidade, e tempo de menos considerando-se a importância e o papel das estórias como estórias, como narrativas que parecem brotar de um impulso humano primordial: o impulso para criar o que Tolkien chamou de Mundos Secundários, para lidar com a Fantasia.
Tolkien mostra que não alimentava ilusões com o suposto papel salvador do progresso e da tecnologia: como veterano da 1ª Guerra Mundial e pai de rapazes que lutaram na 2ª Guerra Mundial, ele conhecia muito bem a destruição que a tecnologia trazia junto consigo. Em sua opinião, a escravização tecnológica da natureza pode ter como subproduto a escravização do próprio homem. Daí a importância da fantasia e do que ele chamou de "sub-criação", pois com o seu auxílio podemos fugir dessa armadilha, deixando de ser escravos ou tiranos da natureza para nos tornarmos amantes dela.
Mythopoeia é o par de On Fairy-Stories, tendo inclusive uma estrofe inteira citada no ensaio. Traduzindo do grego, mythopoeia (μυθοποιία) quer dizer "o fazer dos mitos", e foi escrito por Tolkien após uma discussão em 19 de setembro de 1931 com dois amigos dele, ambos membros do hoje lendário grupo informal de discussão literária chamado The Inklings: Hugo Dyson e C. S. Lewis (sim, o autor das Crônicas de Nárnia). O poema basicamente resume as ideias de On Fairy-Stories em forma poética, sendo um poema-programa, importante não só em si mesmo, mas principalmente pelo projeto literário que representa.
A história de Leaf by Niggle se entrelaça não só com os demais textos de Tree and Leaf mas também com a da obra-prima tolkieniana, O Senhor dos Anéis. Escrito no final dos anos 1930, o conto é um dos trabalhos mais autobiográficos de Tolkien, refletindo a ansiedade que acompanhava a criação da Saga do Anel e o que o autor via então como sua incapacidade de concluir o universo ficcional com o qual sonhava e no qual trabalhava desde a juventude. Quando a história tomou forma, conta Tolkien no prefácio original de Tree and Leaf, os hobbits Frodo, Sam, Merry e Pippin (que então nem esses nomes tinham ainda) haviam apenas começado sua jornada para Valfenda. O escritor simplesmente não sabia como a trama continuaria a partir dali.
O conto narra a história de Niggle, um pintor não muito organizado que vive perdendo tempo com detalhes e incômodos menores sem conseguir concluir a obra de sua vida. Isso reflete o próprio Tolkien, que em sua tentativa de criar uma mitologia para a Inglaterra, compulsivamente reescrevia detalhes que qualquer outra pessoa julgaria irrelevantes. Toda a obra de Tolkien ocuparia facilmente dezenas de volumes, mas muito desse material nunca foi impresso durante sua vida exatamente por causa desse excesso de perfeccionismo.
Por fim, temos o provavelmente único texto em forma dramática escrito por Tolkien, The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm’s Son. Trata-se de uma possível continuação de um poema do fim do período anglo-saxão (algo entre o fim do século X e o início do século XI) conhecido como A Batalha de Maldon, que é um fragmento sem começo nem conclusão com 325 linhas.
O poema é escrito em métrica aliterativa anglo-saxã, que é uma forma bastante diferente da tradição poética ocidental tal como a conhecemos hoje. Explicando de forma muito simplista, cada frase é dividida em duas "meias-frases", e entre elas há a "rima" de determinados fonemas seguindo regras bem restritas. Um exemplo em inglês pode ser mais útil para ilustrar isso (a aliteração está marcada com consoantes em negrito):
Here! Lend a hand! This head we know!
O lord beloved, where do you lie tonight
Was like words whispered by waking ghosts
É uma forma de poesia bem complexa e já obsoleta na Inglaterra na Idade Média, mais semelhante à "construção em pedra" do que com a composição musical, usando uma analogia feita pelo jornalista Reinaldo José Lopes.
Este livro possui duas edições comerciais publicadas no Brasil. A primeira é de 2006, publicada pela Editora Conrad sob o título Sobre Histórias de Fadas; já a segunda foi publicada em 2013 pela Editora Martins Fontes, usando a tradução literal como título: Árvore e Folha. Ambas as edições foram traduzidas por Ronald Kyrmse, o brasileiro especialista em Tolkien revisor de suas obras aqui no Brasil desde meados dos anos 1990.
Destas duas eu li apenas a edição da Conrad, que possui uma tradução bastante problemática: o texto flutua entre o excessivamente domesticador e o extremamente literal. Tratando-se de textos de um autor que era antes de tudo um filólogo, que deliberadamente fazia escolhas de palavras extremamente significativas do ponto de vista filológico, esta tradução deixou muito a desejar. Pelo que pesquisei, a tradução feita para a Martins Fontes foi aprimorada, mas não tenho como comprovar isso.
Mas existe uma terceira alternativa.
Em agosto de 2006, o jornalista Reinaldo José Lopes apresentou uma tradução de Tree and Leaf como dissertação de mestrado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da USP. Como até aquela data o livro não estava disponível comercialmente no Brasil em português, a dissertação não fere nenhum direito autoral.
Uma curiosidade é que somente nesta dissertação é que temos, mesmo que de forma incompleta, uma tradução do poema The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm’s Son: segundo Reinaldo, a combinação da imensa dificuldade em usar as regras da aliteração em português com o curto prazo que dispunha para entregar a dissertação impediram que ele terminasse a tradução deste poema. O link é este aqui.
Considerando-se que os direitos de publicação das obras do professor Tolkien em nosso país passaram da Editora Martins Fontes para a Editora Harper Collins Brasil, que prometeu retraduzir toda a obra já publicada no país, além da tradução de textos inéditos, podemos esperar que este livro receba atenção renovada num futuro próximo. E quem sabe usem a tradução do próprio Reinaldo como base, já que ele foi contratado pela editora para ser o responsável pela tradução de alguns dos livros: a versão nacional de A Queda de Gondolin e a nova tradução de O Silmarillion foram feitas por ele, que também está responsável pela nova tradução de O Hobbit.
† Cabe ressaltar que esse é um dos raríssimos textos alegóricos de Tolkien. Como escrito no prefácio de O Senhor dos Anéis, Tolkien tinha um desgosto pela alegoria, por achar que ela viola a liberdade do leitor em interpretar uma estória pelo seu próprio ponto de vista, ao ser conduzido a uma interpretação específica direcionada pelo escritor.↩
(Texto originalmente publicado no falecido blog Livre-se!, adaptado e expandido para o átomo)
0 Comentários:
Postar um comentário