Durante a arrumação para encaixotar as tralhas, como de costume, algumas coisas que nós nem sabíamos que tínhamos apareceram, junto com outras das quais nem nos lembrávamos. Uma dessas coisas foi uma folha de caderno com um monte de assuntos escritos, alguns riscados. Tal folha não tinha título, mas a reconheci: foi uma lista que fiz lá nos primórdios do átomo, quando passei a falar das coisas que eu gosto, estilo que o blog mantém até hoje. Evidentemente, a folha era uma lista das tais "coisas que eu gosto", e as riscadas eram aquelas sobre as quais já havia falado.
Confesso que eu nem me lembrava mais que um dia havia feito tal lista, mas até que me mostrei bastante coerente em meus gostos: dentre os assuntos não riscados, apenas um não virou post até hoje; todos os demais, mais cedo ou mais tarde, foram abordados por aqui. Eu já joguei a lista fora, mas não custa nada completá-la. Assim, o tema de hoje é a trilogia De Volta para o Futuro, o único assunto "rejeitado". Mas não mais!
Hoje em dia, DVpoF (?) é um grande clássico da ficção científica, considerado um dos melhores filmes da década de 80, e que gera inúmeras piadas e referenciações em diversos outros filmes e seriados. Tudo isso começou, porém, com uma idéia simples, no final da década de 1970, no dia em que o diretor e roteirista Bob Gale folheava um Livro do Ano - aqueles livros cheios de fotos que as escolas dos Estados Unidos produzem para seus estudantes - que pertencera ao seu pai. Enquanto folheava, Gale imaginava como seria interessante se ele pudesse voltar no tempo e conhecer seu pai durante a adolescência, principalmente porque eles foram dois tipos de estudantes totalmente opostos: Gale fora nerd e retraído, seu pai fora o aluno mais popular da escola. Coisas de americanos.
Alguns dias depois, Gale imaginou que sua idéia poderia render um ótimo filme sobre viagem no tempo, e a apresentou ao seu amigo Robert Zemeckis, também diretor e roteirista. Gale e Zemeckis escreveram o roteiro de DVpoF em setembro de 1980, mas, envolvidos com outros projetos, não tiveram tempo para realizá-lo logo. A oportunidade só surgiria quase cinco anos mais tarde, quando um amigo em comum da dupla, o diretor Steven Spielberg, perguntaria se o roteiro ainda existia, e o que havia sido feito dele.
Zemeckis, Gale e Spielberg, então, começaram a apresentar o roteiro a vários estúdios. O primeiro foi a Disney, que não o aceitou por considerar que um filme onde uma mãe se apaixona pelo próprio filho, mesmo que este tenha feito uma viagem no tempo, não era apropriado para os padrões da empresa. A Fox o rejeitou pelo motivo exatamente contrário: comparado a outras comédias adolescentes da época, DVpoF era inocente demais. Quem deu a luz verde foi a Universal, mas somente após uma série de modificações no roteiro (das quais falaremos adiante). A Universal também não gostou do título original do filme, Spaceman from Pluto (algo como "O Homem Espacial de Plutão"), uma referência à cena em que Marty finge ser um alienígena, e insistiu que um filme sobre viagem no tempo deveria ter a palavra "futuro" no título. Ainda bem, diga-se de passagem.
As filmagens de DVpoF começaram em novembro de 1984, com Zemeckis na direção e Spielberg como produtor. A primeira escolha da dupla para o papel do protagonista Marty McFly foi o jovem ator Michael J. Fox, que estava filmando seu primeiro filme como protagonista, O Garoto do Futuro (que provavelmente só ganhou este título em português por causa dele), no mesmo local que a equipe de DVpoF utilizaria como set. Fox, porém, recusou o papel, pois seu personagem na série de TV Caras e Caretas iria ganhar mais importância, e ele não conseguiria conciliar ambos os projetos. As filmagens de DVpoF começaram com Eric Stoltz no papel de McFly, mas, após quatro semanas, Spielberg se mostrou descontente com seu desempenho, achando que ele estava levando o papel a sério demais, em um tom inadequado para uma comédia leve. Uma nova proposta foi então feita a Fox, que acabou aceitando, mas tendo que filmar Caras e Caretas durante o dia, DVpoF durante a noite, e as eventuais cenas diurnas do filme aos fins de semana, em uma escala estafante que lhe deixava apenas com duas ou três horas para dormir por dia. Para amenizar o sofrimento, a equipe adiantou as filmagens o máximo que pôde, mas mesmo assim elas ainda duraram cinco meses. Zemeckis também decidiu aproveitar várias das cenas filmadas com Stoltz onde ele não estivesse visível ou não pudesse ser identificado, assim como todas as cenas filmadas antes da entrada de Fox que não envolvessem seu personagem.
Com o novo título de Back to the Future, DVpoF estrearia em julho de 1985, menos de três meses após o final das filmagens. A enorme maioria das críticas foi favorável, o roteiro foi extremamente elogiado, e o público também adorou: orçado em 19 milhões de dólares, o filme rendeu 210 milhões apenas nos Estados Unidos, tornando-se o mais rentável de todo o ano de 1985. O filme foi indicado a quatro Oscars, de melhor roteiro original, melhor canção, melhor som e melhores efeitos sonoros, mas só ganhou este último.
Mas sobre o que, afinal, é o filme? Na fictícia cidade de Hill Valley, Califórnia, em 1985, vive o adolescente Marty McFly (Fox), um típico jovem da década de 1980, que toca guitarra e anda de skate. Marty tem uma vida social relativamente bem resolvida, uma namorada chamada Jennifer (Claudia Wells), e é amigo do cientista um tanto maluco Emmett Brown (Christopher Lloyd), apelidado "Doutor" ("Doc", em inglês). Sua única frustração na vida é que seu pai, George (Crispin Glover) é um banana, constantemente explorado por seu chefe, Biff Tannen (Thomas F. Wilson). Até o motivo como seu pai e sua mãe, Lorraine (Lea Thompson) se conheceram é meio ridículo: o pai dela o atropelou quando ele voltava para casa após a escola.
Um dia, Marty recebe um chamado do Doutor, que deseja lhe mostrar sua mais nova invenção: um carro modelo DeLorean transformado em máquina do tempo. Impulsionado por plutônio, ao alcançar a marca de 88 milhas por hora (mais ou menos 140 Km/h) ele gera um campo elétrico que lhe permite viajar para qualquer data no passado ou no futuro. O Doutor programa o carro, a título de exemplo, para o dia 5 de novembro de 1955, o dia em que ele inventou o Capacitor de Fluxo, a peça que torna a viagem no tempo possível. Enquanto ele está exibindo seu invento, porém, é atacado e morto por terroristas líbios, dos quais roubara o plutônio necessário para fazer o carro funcionar. Para fugir, Marty entra no carro e acelera, e, ao alcançar as fatídicas 88 milhas por hora, é teletransportado para 1955.
Em 1955, Marty conhece George, que viria a ser seu pai, um adolescente nerd constantemente importunado pelo valentão Biff, e acaba se metendo em uma grande confusão: ao acompanhá-lo até em casa, é Marty quem acaba atropelado pelo pai de Lorraine, que viria a ser sua mãe. Ato contínuo, ela se apaixona por ele, e não por George. Assim, além de ter de arrumar uma forma de impulsionar o DeLorean através do tempo para voltar a 1985 - já que o plutônio, aparentemente, foi consumido na viagem de ida - Marty tem que providenciar para que seus pais se conheçam de outra forma, ou ele mesmo nem virá a nascer, sendo apagado da linha do tempo. Para a primeira empreitada, ele contará com a ajuda do próprio Doutor, 30 anos mais jovem e extremamente relutante em saber mais sobre o futuro. Para a segunda, ele precisará de muita sorte, pois seu pai já é um banana, e sua mãe é surpreendentemente avançada para a época.
Evidentemente, Marty é bem sucedido em ambas as empreitadas, e mais: suas ações no passado acabam alterando o futuro, fazendo com que seu pai se torne um famoso escritor, e Biff um lavador de carros que trabalha para os McFly, que agora têm uma situação financeira bem melhor. O final do filme é propositalmente aberto, com o Doutor levando Marty e Jennifer para o ano de 2015 (30 anos no futuro), para resolver um problema envolvendo os filhos do casal.
Curiosamente, nem tudo seria desta forma. Como eu disse, a Universal mudou vários pontos do roteiro, desde coisas simples como substituir um chimpanzé de estimação do Doutor por um cachorro chamado Einstein e trocar o nome da mãe de Marty de Eileen para Lorraine, até pontos bem mais enlouquecidos: no roteiro original, a máquina do tempo não seria um carro, e conseguiria a energia necessária para retornar a 1985 através de um teste nuclear feito pelo governo americano em 1955; o solo de guitarra de Marty em 1955 causaria uma confusão que faria com que o rock jamais se estabelecesse como ritmo musical, fazendo com que o ritmo da moda em 1985 fosse o mambo; e Marty revelaria ao Doutor de 1955 que o ingrediente secreto para fazer o Capacitor de Fluxo funcionar seria Coca-Cola, e graças a isso, quando ele retornasse a 1985, o mundo estaria cheio de carros voadores e equipamentos eletrônicos ao estilo Jetsons, todos inventados pelo Doutor e movidos a Coca-Cola, o que obrigaria Marty a tentar consertar as coisas - o que provavelmente seria o mote da seqüência.
Embora uma seqüência fosse mais que óbvia, ela não chegaria aos cinemas até novembro de 1989, quando estreou De Volta para o Futuro II (Back to the Future Part II, no original), novamente dirigido por Zemeckis, produzido por Spielberg e escrito por Zemeckis e Gale. E mais uma vez alterações foram feitas pela Universal: na idéia original, Marty e o Doutor voltariam no tempo até 1967, e graças a um defeito no DeLorean, teriam de fazê-lo voar por sobre o Grand Canyon para que ele funcionasse e pudesse voltar.
No filme "verdadeiro", a história envolve muito mais viagens no tempo: primeiro, o Doutor leva Marty e Jennifer (agora Elizabeth Shue) até 2015, para que Marty evite que seu filho, Marty Jr. (também interpretado por Fox) se envolva em um roubo planejado por Griff Tannen, neto de Biff (também interpretado por Wilson), o que, segundo o Doutor, causaria a ruína de toda a família McFly. Marty consegue, mas, ao ver em uma loja um almanaque com os resultados de todos os eventos esportivos até o ano 2000, decide comprá-lo para usar os resultados em apostas e ganhar muito dinheiro. Condenando-o, o Doutor joga o almanaque fora, mas, sem que eles percebam, o Biff de 2015 pega o almanaque e usa o DeLorean enquanto eles não estão vendo para viajar no tempo e entregá-lo ao Biff de 1955.
O resultado é que, quando eles retornam a 1985, tudo mudou: Biff agora é um milionário, graças aos ganhos com sucessivas apostas certas ao longo de sua juventude, e dono de quase toda Hill Valley, uma cidade decadente e tomada pelo crime. Para poder consertar essa bagunça, Marty deve retornar a 1955, e impedir que Biff receba o almanaque de si mesmo - sem interferir nos acontecimentos causados por ele mesmo em sua primeira viagem no tempo, o que poderia causar uma confusão ainda maior. No fim, Marty consegue, mas o DeLorean é atingido por um raio enquanto o Doutor está lá dentro, mandando-o para 1885. Para salvá-lo, Marty procura o Doutor de 1955, o único capaz de enviá-lo em uma nova viagem no tempo.
DVpoF2 foi bem mais caro que seu antecessor, custando 40 milhões de dólares, e rendeu bem menos, apenas 118 milhões nos Estados Unidos, sendo 27 milhões apenas no primeiro fim de semana; ainda assim, ele foi considerado bem sucedido pela Universal. Uma nova tecnologia, chamada VistaGlide, foi inventada especialmente para o filme, para as cenas em que Michael J. Fox tinha de contracenar consigo mesmo. Os principais problemas da produção, porém, não vieram dos efeitos especiais, mas do elenco: alegando problemas pessoais, Claudia Wells não aceitou repetir seu papel como Jennifer, sendo substituída por Elizabeth Shue, o que acabou fazendo com que todo o final de DVpoF, que também serve como início de DVpoF2, tivesse de ser refilmado com a nova atriz. Mas o pior foi o incidente que envolveu Crispin Glover, que também não repetiu seu papel como George: segundo Zemeckis e Gale, ele teria pedido o mesmo salário pago a Michael J. Fox para aceitar fazer a continuação, o que a Universal considerou inaceitável, mas Glover alega que desde o início eles não o queriam na continuação por causa de um desentendimento que ele teve com Zemeckis quanto à importância do personagem no segundo filme. Como muitas das cenas de 1955 envolviam George McFly, a solução foi utilizar cenas que ficaram de fora de DVpoF após a edição, e, nas cenas novas, o ator Jeffrey Weissman interpretaria George, mas sempre de longe, meio desfocado, e sem falas. Glover processou a Universal pelo uso de suas cenas extras sem autorização, e, após um acordo, foi indenizado em um valor até hoje não revelado.
Assim como DVpoF, DVpoF2 deixava o final aberto para uma nova seqüência; desta vez, porém, ela seria filmada simultaneamente com o anterior. Apesar disso, De Volta para o Futuro III (Back to the Future Part III) só estrearia seis meses depois, em maio de 1990, por razões de mercado. A parte 3 foi a mais malsucedida da trilogia, custando mais 40 milhões e rendendo apenas 87,6 milhões nos Estados Unidos. Muitos atribuíram este desempenho ao fato dele não ter tantas viagens no tempo quanto seu antecessor, e ser praticamente um filme de faroeste. Como fãs de faroeste, porém, Zemeckis e Gale ficaram extremamente satisfeitos com o filme, que até contém um monte de referências e homenagens ao gênero.
Quando o DeLorean foi atingido pelo raio e mandou o Doutor para 1885, este deixou uma carta para Marty, revelando onde ele escondeu a máquina do tempo, mas com instruções de que Marty não deveria tentar resgatá-lo, mas sim voltar a 1985 e destruir o carro para sempre. Quando Marty e o Doutor de 1955 encontram o DeLorean, porém, Marty descobre que o Doutor de 1885 morreu apenas seis dias após escrever a carta, assassinado por Bufford Tannen (também Wilson), apelidado "Cachorro Louco", antepassado de Biff. Com a ajuda do Doutor de 1955, Marty decide ir até 1885 e impedir o assassinato. Chegando lá, ele conhece seus antepassados, Seamus (também Fox) e Maggie McFly (também Thompson), e encontra o Doutor trabalhando como ferreiro. Marty e o Doutor tentam voltar para 1985, mas descobrem que o carro está sem gasolina, que ainda não existia no Velho Oeste. A única alternativa encontrada para alcançar 88 milhas por hora seria empurrar o carro com uma locomotiva a vapor. Enquanto tentam colocar este plano em prática, Marty e o Doutor acabam conhecendo a professora Clara Clayton (Mary Steenburgen), que se apaixona pelo cientista. No fim, Marty consegue retornar para 1985, mas não junto com o Doutor, que volta no último momento para salvar Clara de um perigo. Marty se reencontra com Jennifer e o DeLorean é destruído, pondo fim à seqüência de viagens no tempo. Ou pelo menos é o que parece.
Embora as seqüências não tenham feito sucesso - e o primeiro seja realmente melhor - os três filmes se encaixam perfeitamente, sendo cheios de referências uns aos outros. Isso somado ao clima irreverente e aos personagens extremamente carismáticos foi um dos principais fatores para que DVpoF se tornasse o clássico que é hoje, e praticamente uma referência em termos de filmes sobre viagem no tempo. Felizmente, DVpoF parece imune à onda de reciclagem de roteiros que tem assolado Hollywood nos últimos anos. Vamos torcer para que continue assim. O DeLorean merece descansar em paz.
Ah... eu gostei mais do 2.
ResponderExcluirLegal a sua matéria(aliás, TODO o blog dá gosto de ler, tamanho é o seu talento cm as palavras!), mas você poderia atualizar essa matéria com o desenho de Back To The Future!
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