quarta-feira, 14 de maio de 2008

Escrito por em 14.5.08 com 0 comentários

Street Fighter RPG

De certa forma, pode-se considerar que a década de 1990 foi um divisor de águas para o mundo dos videogames. Nela, surgiram vários jogos que, mesmo sem terem sido os primeiros em seu estilo, acabariam por criar novos padrões, seriam copiados quase infinitamente, e entrariam para a história como grandes clássicos do entretenimento. Jogos como Doom, Tomb Raider, Dance Dance Revolution e, é claro, Street Fighter II.

"É claro" porque Street Fighter II foi, de longe, o que causou maior impacto dentre todos eles. Com uma idéia super simples - o jogador escolhe um dentre 8 personagens possíveis, e deve enfrentar os demais, sem ter de passar por fases ou coletar itens, mas tendo de enfrentar quatro "chefes" no final - mas a imensa vantagem de que um jogador poderia enfrentar ao outro diretamente, e não competir com ele para ver quem termina o jogo com mais pontos, Street Fighter II não foi o primeiro dos jogos de luta - afinal, houve um "Street Fighter I" - mas se transformou em um grande fenômeno, gerando não somente 300 mil outros jogos que copiaram sua fórmula, mas todo o tipo de merchandising associado, desde action figures, passando por desenhos animados e um filme para o cinema, até um jogo de RPG. Não, você não leu errado, um dia existiu um Street Fighter RPG. E ele é o tema do post de hoje.

Para quem não está tão por dentro assim da indústria do RPG, cabe uma pequena introdução: a década de 1990 não foi especialmente profícua apenas para os videogames. Ela também o foi para a indústria dos quadrinhos, com o surgimento da Image Comics, o que hoje é até visto por alguns como uma coisa ruim, mas na época elevou as vendas de quadrinhos a patamares jamais vistos; e para o RPG, graças ao surgimento de Vampire: The Masquerade, criado por Mark Rein-Hagen em 1991 para a editora White Wolf. Até então, embora títulos de outros estilos existissem, RPG era praticamente sinônimo de fantasia medieval; Vampire não somente trouxe a ação para a "época atual" - embora o cenário não fosse o mundo no qual vivíamos, mas uma ambientação posteriormente conhecida como Mundo das Trevas, onde criaturas sobrenaturais vivem entre os humanos, e de certa forma até controlam suas vidas - como também colocava seus jogadores no papel de vampiros, criaturas da noite superpoderosas, capazes de rivalizar com qualquer clérigo ou mago de um RPG mais "tradicional". Por estes e outros motivos, Vampire se tornou um imenso sucesso, ganhou um monte de livros de referência, gerou vários outros títulos da White Wolf com criaturas sobrenaturais, Rein-Hagen ficou rico, e a indústria do RPG teve um boom inesperado, mas bem-vindo.

Infelizmente, este boom durou menos do que as editoras gostariam. Em 1994, a indústria do RPG começou a passar por uma crise, motivada basicamente pela ausência de novos jogadores. Buscando atrair pessoas que não tinham o hábito de jogar RPG, a White Wolf decidiu lançar um livro baseado em algum outro produto de sucesso. Acabou escolhendo Street Fighter, o videogame mais famoso da época, que então estava em sua versão Super Street Fighter II: The New Challengers. Assim surgiu Street Fighter: The Storytelling Game, ou simplesmente SFRPG.

Ok, a capa é horrível, mas o jogo é bom!Apesar de utilizar o mesmo sistema dos demais jogos da White Wolf, o Storyteller, SFRPG não é ambientado no Mundo das Trevas. Infelizmente, isto não ficou bem claro para alguns, que acabaram misturando vampiros, lobisomens, magos e outras criaturas sobrenaturais com street fighters, criando estranhas campanhas onde o organizador de um torneio era na verdade um servo da Wyrm ou coisa parecida. Esta mistureba acabou levando ao mito de que street fighters eram "poderosos demais" - já que podiam meter a porrada em vampiros e lobisomens - que, por sua vez, levou à recusa de muitos mestres em adotar o jogo. Além disso, os mais puristas se recusavam a ver seu Mundo das Trevas de terror gótico intimista profanado por lutadores em roupas coloridas capazes de lançar bolas de energia pelas mãos, e nem aceitavam olhar o livro para ver como ele era. O resultado disso tudo é que SFRPG até conseguiu cumprir seu objetivo de recrutar novos jogadores, mas não vendeu o suficiente para sobreviver como um novo título da White Wolf, sendo cancelado apenas um ano após seu lançamento. Apesar desta vida curta, o jogo tem até hoje muitos fãs - a maioria deles fãs de Street Fighter, não de Storyteller - e com um pouquinho de esforço é até possível achar na internet quem tenha adaptado para o sistema os personagens da série que surgiram após o cancelamento do jogo.

Apesar de toda essa controvérsia, SFRPG é um jogo bastante divertido - uma vez que você se conscientize de que seu cenário não é o Mundo das Trevas, senão ele até pode continuar sendo divertido, mas por motivos um pouco mais absurdos. Seu cenário oficial é o mesmo do jogo Street Fighter II, onde lutadores são capazes de canalizar sua energia interior na forma de incríveis golpes, lançando bolas de energia pelas mãos ou chutando à velocidade da luz, por exemplo - na verdade, como existiam muito poucas informações sobre os street fighters na época, a própria White Wolf se encarregou de inventar as origens de certos golpes, e "canalizar a energia interior" nem sempre era a preferida; Guile, por exemplo, adquiriu a capacidade de lançar seu Sonic Boom após um acidente quando seu jato quebrou a barreira do som.

O principal vilão do mundo de Street Fighter é a organização criminosa Shadoloo (também conhecida como Shadaloo ou até Shadow Law, dependendo da versão), que não somente pratica todos os crimes imagináveis - como tráfico de drogas e armas e impressão de dinheiro falso - como organiza torneios de luta ilegais para o prazer de seu comandante, M. Bison. Os jogadores, portanto, assumem o papel de street fighters, lutadores capazes de incríveis manobras de luta, que combaterão a Shadoloo, seja participando de seus torneios ou tentando interromper suas atividades criminosas. Embora o livro traga as fichas dos street fighters oficiais do jogo, os jogadores não precisam jogar com eles, sendo encorajados a criar seus próprios street fighters - até porque os do jogo são "bombados", com atributos muito superiores aos de qualquer personagem iniciante.

Seguindo o padrão dos demais livros da White Wolf, assim como os vampiros se dividem em clãs e os lobisomens em tribos, os street fighters se dividem de acordo com seus estilos de luta. Em outras palavras, ao criar seu personagem você deve definir qual o estilo de luta que ele usa, e este estilo dirá quais manobras seu personagem será capaz de utilizar enquanto luta - o famoso Shoryuken, por exemplo, só pode ser aprendido por praticantes do caratê shotokan ou do kung fu. SFRPG traz onze estilos de luta que podem ser escolhidos pelos personagens jogadores, todos relacionados aos personagens do jogo: caratê shotokan (Ryu & Ken), wushu (Chun Li), sambô (Zangief), sumô (Honda), capoeira (Blanka), kabaddi (que na verdade não é um estilo de luta, mas um esporte coletivo, mas deixa pra lá; Dhalsim), kung fu (Fei Long), kickboxing (Dee Jay), treinamento das forças armadas (Guile & Cammy), luta nativa norte-americana (T. Hawk) e boxe (Balrog). Para acomodar melhor os estilos de luta e suas manobras, o sistema de combate foi totalmente refeito - e acabou muito melhor que o original de Vampire, tanto que acabou sendo adaptado para o Mundo das Trevas no suplemento World of Darkness: Combat, de 1997. Outra curiosidade quanto aos combates - odiada pelos fãs do Mundo das Trevas, diga-se de passagem - é que os street fighters, além de ter uma "energia" enorme - vinte quadradinhos, contra sete dos Mundo das Trevas - jamais poderiam ser mortos, apenas "derrotados".

Antes de chegar à conclusão de que Street Fighetr RPG não era rentável e cancelá-lo, a White Wolf decidiu lançar alguns suplementos, com novas opções para os jogadores. O primeiro a sair, seguindo o exemplo dos demais títulos da editora, foi o tradicional Livro do Jogador, Street Fighter Player's Guide, também de 1994. Como o nome sugere, ele traz novas opções para os jogadores, incluindo como criar personagens híbridos de animais e humanos, personagens com partes cibernéticas, e personagens com poderes elementais. O livro traz ainda informações sobre personagens de apoio, como empresários, professores, médicos e outros; como criar uma equipe de street fighters profissionais; como criar e se beneficiar de uma arena; como organizar um torneio; e como lidar com a eventual "aposentadoria" ou casamento dos lutadores. Como não poderia deixar de ser, o livro também traz novas manobras, e dois novos estilos de luta, savate e ninjitsu.

Após o lançamento do Livro do Jogador, a White Wolf pôs no mercado o também tradicional Escudo do Mestre - que, para quem não é do ramo, é uma folha de papel duro que o mestre abre em frente a ele como se fosse um biombo, e tem como principal uso esconder as rolagens de dados "secretas", das quais os jogadores não podem saber o resultado; do lado que fica virado para o mestre o Escudo tem a "cola" de todas as informações importantes do jogo; do lado que fica virado para os jogadores tem uma bela figura, no caso todos os personagens do jogo posando no cenário de Guile. Street Fighter Storyteller's Screen também foi lançado em 1994, e trazia como brinde uma aventura pronta e algumas novas manobras.

No fim de 1994 ainda foi lançado mais um livro, talvez o mais aguardado por quem gostou do livro básico: Secrets of Shadoloo finalmente trazia a oportunidade de se jogar com os vilões, trazendo suas fichas e seus estilos de luta - ninjitsu espanhol (Vega), Muay Thai (Sagat) e Ler Drit (Bison) - além de muitas novas manobras, informações sobre o funcionamento da Shadoloo, e a descrição do fictício país de Mriganka, no sudeste da Ásia, onde estaria localizada a base de operações da organização criminosa - ou seja, um livro interessante tanto para quem quisesse jogar como um integrante da Shadoloo quanto para quem quisesse desbaratá-la. Completam o livro uma aventura pronta e dicas de como inserir a Shadoloo em sua campanha.

O primeiro livro lançado em 1995 era uma espécie de "compêndio": Contenders (algo como "participantes") era dividido em duas partes; na primeira, 49 personagens prontos que podiam ser utilizados pelos jogadores ou pelo mestre como NPCs, sendo 20 street fighters, sete times e seis coadjuvantes; na segunda, nada menos que 9 novos estilos de luta - aikido, baraqah, jeet kune do, jiu jitsu, lua, pankration, silat, tai chi chuan e luta livre - e muitas novas manobras, além de regras para utilizar armas brancas, como espadas e correntes, durante os combates.

O último livro de SFRPG a ver a luz do Sol foi The Perfect Warrior ("o guerreiro perfeito"), também de 1995, uma aventura pronta que trazia como brinde um novo estilo de luta, o majestic crow kung fu. Mais um livro, Shadows Over Mexico, já estava sendo preparado, mas a White Wolf decidiu cancelar a linha antes de seu lançamento.

Quase dez anos após sua "morte", SFRPG chegou ao Brasil pelas mãos da Editora Trama, que na época publicava a revista Dragão Brasil. A Trama conseguiu um contrato com a Capcom Romstar do Brasil para adaptar seus principais títulos, dentre eles Street Fighter Alpha, para seu sistema de RPG, o 3D&T. Devido a alguma confusão, a Trama e a Capcom imaginaram que a editora poderia traduzir e lançar também o SFRPG, mas esta intenção acabou esbarrando nos direitos autorais da White Wolf, que criou o sistema de jogo. Após alguma negociação, a Trama obteve permissão para publicar o livro, mas substituindo toda a arte interna, de propriedade da White Wolf, por arte oficial da Capcom - e pagando os direitos da editora norte-americana, evidentemente.

Para facilitar o acesso ao produto, a Trama decidiu não lançã-lo na forma de um livro caro, mas de três edições especiais da Dragão Brasil (DBE 9, 11 e 13). Juntas, estas três revistas formavam todo o livro básico de SFRPG - rebatizado como Street Fighter: O Jogo de RPG - e saíam pelo módico preço de 15 Reais, um terço do que custava na época uma edição traduzida de Vampire ou Werewolf. Graças a isso, SFRPG renasceu, e os jogadores e mestres brasileiros puderam experimentar todas as dificuldades de se misturar street fighters com vampiros e lobisomens que os norte-americanos já haviam vivido há quase uma década. Aparentemente, era meio difícil convencer às pessoas de que podia existir um RPG da White Wolf que não fosse ambientado no Mundo das Trevas...

Street Fighter: O Jogo de RPG vendeu consideravelmente bem, e acabou relançado em uma edição encadernada (DBE 24), também a um preço módico. Os demais suplementos, porém, seja por qual motivo for, jamais chegaram ao Brasil. Três edições da Dragão Brasil apresentaram novo material para o jogo: as edições 56 e 57 trouxeram uma aventura em duas partes chamada Sangue de Lutador, a ficha de Rose, de Street Fighter Alpha, e dois novos estilos de luta, o soul power (estilo de Rose) e uma versão do aikido bastante diferente da original de Contenders. A Dragão Brasil número 90 trouxe as fichas de Vega, Sagat e Bison, assim comos eus estilos de luta, mas algumas das manobras também são bem diferentes das vistas em Secrets of Shadoloo.

Depois disso, SFRPG morreu de vez. A versão da Trama ainda pode ser encontrada em algumas lojas de revistas antigas, e ainda existem alguns sites por aí dedicados a manter viva sua memória, mas é improvável que voltemos a ver algum material inédito. De qualquer forma, SFRPG vale pela originalidade de ter trazido um game de porrada para o mundo do RPG de uma forma interessante e divertida.

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