sábado, 17 de fevereiro de 2024

Escrito por em 17.2.24 com 0 comentários

Shinty / International Rules Football

Eu adoro fazer posts sobre esportes, e, se ultimamente não os tenho feito, é porque às vezes acho que já falei sobre todos. É claro que isso não é verdade, mas os que faltam são, em sua maioria, tão exóticos que é até mesmo difícil encontrar informações sobre eles - faz tempo, por exemplo, que eu quero fazer um post sobre silambam, mas não encontro as informações que eu gostaria. Existe um esporte, entretanto, sobre o qual eu penso em falar desde 2008 - porque o descobri quando estava escrevendo meu post sobre hóquei - e sempre acabo desistindo por achar que ele é exótico demais, mesmo tendo todas as informações que eu gostaria sobre ele a meu alcance. Essa semana, após refletir que eu já falei sobre buzkashi e tamburello, cheguei à conclusão de que ele ser exótico não é uma boa desculpa, e decidi finalmente escrever o post. Esse esporte se chama shinty, e é o tema do post de hoje.

O shinty é um esporte parecido com o hóquei, surgido na Escócia, onde ele se chama camanachd - sendo shinty seu nome na Inglaterra, que acabou se tornando também seu nome internacional, talvez por ser mais fácil. Apesar das semelhanças, o shinty não é um parente do hóquei, e sim do hurling, esporte irlandês sobre o qual eu também já falei aqui no átomo; estudiosos acreditam que, há cerca de dois mil anos, existiu um esporte que teria dado origem ao shinty, ao hurling, e a um esporte hoje praticamente extinto chamado bando, jogado no País de Gales - uma das provas é que o herói Cúchulainn, da mitologia celta, praticava um esporte que tinha similaridades tanto com o hurling quanto com o shinty, e uma versão do hurling praticada na Irlanda do Norte é bem mais parecida com o shinty do que com o hurling que foi padronizado pela Associação Atlética Gaélica (GAA).

As origens do nome shinty são incertas, com alguns acreditando que ele teria vindo da expressão shin t'ye, usada pela torcida para apoiar o time durante os jogos, outros argumentando que seria uma corruptela de nomes regionais como shinnis, shinnack, shinnup ou sinteag. O próprio nome camanachd não é padronizado na Escócia, com o esporte também sendo chamado, em diferentes regiões, de cluich-bhall ("joga-bola"), caman, cammock, carrick e cnapag. Na região de Caithness, o esporte é conhecido como knotty, contando com algumas regras diferentes, e, na Irlanda do Norte, é chamado de commons, uma corruptela de camanachd.

Seja como for, as primeiras referências escritas ao shinty são do ano 1600, com o esporte jogado hoje tendo surgido cerca de cem anos depois. A regulação do esporte, entretanto, só ocorreria durante a Era Vitoriana, com o surgimento dos primeiros clubes de shinty, nas cidades de Glasgow e Londres, e, consequentemente, dos primeiros torneios. O marco histórico do shinty é um jogo realizado entre o Glenurquhart Shinty Club e o  Strathglass Shinty Club, na cidade de Inverness, Escócia, em 1887; com mais de mil espectadores, um recorde para a época, o jogo teve confusão porque cada time acreditava que as regras pelas quais estava acostumado a jogar eram as corretas, o que expôs a necessidade da criação de um órgão para padronizar as regras em todo o país. Esse órgão seria a Comann na Camanachd (a "Associação de Camanachd", em gaélico escocês), fundada em 1893 na cidade de Kingussie, mas no mesmo ano se transferindo para Inverness, onde está localizada até hoje.

Inicialmente criada apenas para unificar as regras do shinty, sem organizar torneios ou dar suporte a outras organizações, até 1981 a Comann na Camanachd contava exclusivamente com voluntários, que trabalhavam nela apenas por seu amor ao esporte. Naquele ano, entretanto, um relatório encomendado pela entidade revelou graves problemas na forma como o shinty era organizado e gerenciado, prevendo que, assim como o bando, ele poderia desaparecer caso não ocorresse uma reestruturação e profissionalização da entidade. Desde então, a Comann na Camanachd passaria a contar com membros fixos remunerados e com entidades afiliadas, dentre as quais a mais importante é a Glasgow Celtic Society, voltada à preservação da cultura celta e responsável pela organização de um dos mais importantes torneios de shinty da Escócia, a Scottish Sea Farms Celtic Society Cup. Outro órgão de extrema importância que se filiou à Comann na Camanachd em 1981 foi a Schools Camanachd Association, responsável por implementar o shinty nas escolas escocesas, sem a qual o esporte já teria desaparecido há muito mais tempo; a Schools Camanachd Association seria dissolvida em 2015, quando a Secretaria de Promoção Escolar da Comann na Camanachd assumiria todas as suas funções.

Hoje, além de ser responsável pelas regras do shinty, pela organização de suas principais competições, e pela convocação da Seleção Escocesa, a Comann na Camanachd luta para popularizar o shinty fora da Escócia, o que vem se tornando uma luta ingrata. Atualmente, o único país além da Escócia que conta com shinty profissional é a Inglaterra, onde o esporte é regulado pela English Shinty Association - existe um campeonato inglês, e um clube chamado London Camanachd disputa o campeonato escocês. Fora do Reino Unido, o shinty é praticado, de forma amadora, na Irlanda, Canadá, Estados Unidos e Rússia, nesses três últimos tendo sido introduzido por imigrantes escoceses. Não são disputados jogos internacionais entre clubes desses países, e somente os Estados Unidos já tiveram uma seleção nacional, que enfrentou a Inglaterra em dois amistosos, em 2013 e 2014.

Mas como se joga shinty? Assim como no hóquei e no hurling, o objetivo é usar um taco para fazer com que uma bola entre num gol. O taco é obrigatoriamente feito de madeira, sem nenhum componente de metal, plástico ou materiais sintéticos, tem 1,1 m de comprimento, e deve ser capaz de passar por dentro de um aro de 6,4 cm de diâmetro sem tocá-lo. O taco é levemente curvado, como o do hóquei, mas não tem lâmina; visto de frente, porém, sua ponta é um triângulo, o que faz com que ele tenha três lados ao invés de quatro (ou dois, já que, em um taco de hóquei, dois lados são tão finos que não podem ser usados para conduzir a bola, enquanto no shinty todos os três podem). A bola é feita de um núcleo de cortiça envolto em duas peças de couro costuradas, como uma bola de beisebol; sua circunferência deve estar entre 19 e 20 cm, e seu peso entre 71 e 85 g. Tradicionalmente a bola é branca ou preta, mas atualmente já são usadas bolas de cores fluorescentes para melhor visualização da plateia.

O campo do shinty tem entre 128 e 155 m de comprimento por entre 64 e 73 m de largura (medidas quebradas porque originalmente eram em unidades imperiais) e é gramado, sendo que, desde 2009, a Comann na Camanachd permite grama artificial. As únicas marcações no campo são um círculo central de 9 m de diâmetro; as marcas do pênalti, a 18 m de cada gol, dentro de um semicírculo de 4,5 m de raio; os círculos de escanteio, na verdade semicírculos de 1,8 m de raio, centrados nas quinas do campo; e as áreas, compostas por dois semicírculos de 9 m de raio ligados por uma linha reta de frente com o gol. Cada gol tem 3 m de altura por 3,66 m de largura. O uniforme do shinty é parecido com o do futebol, com camisas de mangas curtas ou compridas, calções e meias; o goleiro usa calças compridas e um capacete especial com uma tela de acrílico em frente ao rosto - já que a bola pode alcançar mais de 100 km/h após uma tacada - mas usa um taco igual ao dos demais jogadores, e não usa luvas.

O jogador deve usar o taco para conduzir a bola, tanto faz se ela está correndo pelo chão, arremessada pelo ar ou sendo carregada no taco. É permitido usar o taco para bloquear um oponente, mas não é permitido usar o taco para atingir ou puxar o taco de outro jogador; também é permitido derrubar os oponentes em disputas de bola, desde que isso seja feito com um contato ombro a ombro. Se a bola estiver correndo pelo campo ou viajando pelo ar, um jogador pode interromper seu movimento com o taco, com o peito ou com os pés, um ou ambos, desde que o pé usado esteja tocando o chão. O goleiro pode usar as mãos, mas não pode pegar a bola, apenas interromper seu movimento com a mão espalmada - também sendo proibido socar a bola. Um jogador só pode tocar na bola se estiver com pelo menos um dos pés com a sola em contato com o chão; jogadores caídos ou que estejam saltando não podem tocar a bola, nem com o taco, nem com o corpo. Também é proibido movimentar o taco no ar sem ser para atingir a bola, ou de forma que o árbitro considere perigosa.

Se a bola sair pela linha de fundo com o último jogador que a tocou sendo do time que está defendendo, o time que está atacando terá direito a um escanteio, com a bola posicionada sobre o círculo de escanteio mais próximo do local onde ela saiu e todos os oponentes a no mínimo 3 m de distância; caso o último a tocar seja um jogador do time que estava atacando, o time defendendo terá direito a um tiro livre a partir de sua própria marca do pênalti (mas não em direção a seu próprio gol, evidentemente). Uma bola que saia pela linha lateral resulta em um shy: um jogador do time que não colocou a bola para fora deve se posicionar com os dois pés sobre a linha no ponto onde ela saiu, jogá-la para cima e recolocá-la para dentro de campo acertando-a com o cabo do taco, de forma que ela estivesse a uma altura superior à da sua cabeça quando foi atingida.

Faltas são punidas com uma tiro livre do ponto onde a falta ocorreu, com todos os oponentes tendo de estar a no mínimo 3 m de distância. Se a falta ocorrer dentro da área, será um pênalti, cobrado da marca do pênalti do time que causou a falta, com todos os demais jogadores, exceto o que vai cobrar o pênalti e o goleiro que vai tentar defender, devendo se posicionar antes do semicírculo de pênalti. Para que um gol seja válido, a bola tem que ultrapassar totalmente a linha do gol, e deve ter sido impulsionada pelo taco, não valendo o gol caso a bola tenha entrado após tocar por último em alguma parte do corpo do jogador. Exceto no caso do pênalti, nenhum gol pode resultar de um tiro livre, ou seja, não adianta cobrar uma falta ou escanteio pra dentro do gol que não será gol.

Uma partida de shinty dura dois tempos de 45 minutos cada, com intervalo de 15 minutos após o qual os times mudam de campo, sendo que o relógio não para nunca, exceto em caso de atendimento médico, e, como no rugby, o tempo não acaba com a bola em jogo, seguindo até ela sair de campo após serem completados os 45 minutos. Cada gol vale 1 ponto, e ganha quem fizer mais; é possível o jogo terminar empatado, mas, se for um jogo eliminatório, é disputada uma prorrogação, de dois tempos de 15 minutos cada, e, persistindo o empate, disputa de pênaltis. A partida tem três árbitros, como no futebol: um central, que acompanha os jogadores, e um "bandeirinha" de cada lado do campo, para validar os gols e auxiliar o árbitro central em lances que ele possa não ter visto.

Um time de shinty possui 12 jogadores, um deles sendo o goleiro, e uma quantidade de reservas que depende das regras do torneio em questão; sejam quantos forem os reservas, apenas 3 substituições podem ser feitas por cada time, mas, curiosamente, elas não precisam ser feitas com a bola parada, com um jogador podendo ser substituído a qualquer momento. Também curiosamente, o posicionamento de cada jogador no campo depende, dentre outras coisas, se o time é do norte ou do sul da Escócia - com o de Londres sendo considerado sul. Times do norte costumam adotar um posicionamento semelhante ao do futebol, com um jogador em frente ao goleiro, dois nas laterais, um mais à frente, duas linhas de três e um atacante sozinho na frente; times do sul usam uma formação mais semelhante à do shinty original, com cinco jogadores em cada lateral e um sozinho no meio - ou seja, duas linhas de dois, uma de três, mais duas de dois.

O shinty possui quatro competições nacionais consideradas o grand slam do esporte; todas são disputadas em sistema eliminatório (mata-mata), com cada time fazendo dois jogos, um em casa e um fora, contra cada oponente, e os resultados sendo somados, exceto a final, que é disputada em jogo único. Dessas, a mais importante de todas é a Camanachd Cup, disputada anualmente desde 1896. Tradicionalmente, a Camanachd Cup contava com um grupo apenas com os times do norte e outro apenas com os do sul, com o "campeão do norte" enfrentando o "campeão do sul" na final, mas, desde 1983, o sorteio é feito de forma que todos os times fiquem "misturados", com a primeira final entre dois times do norte ocorrendo já em 1984, mas a primeira entre dois times do sul ocorrendo apenas em 2012. Até hoje, nenhuma final foi para os pênaltis, e a única que precisou de prorrogação foi a de 2011. O maior campeão é o time de Kynes Athletic, com 22 títulos.

As outras três competições do grand slam são a MacAulay Cup, disputada desde 1947; a MacTavish Cup, desde 1898; e a Scottish Sea Farms Celtic Society Cup, desde 1879. Para fechar um grand slam, porém, um time só precisa ganhar três das quatro competições, já que a MacTavish Cup é exclusiva para times do norte, e a Scottish Sea Farms Celtic Society Cup é exclusiva para times do sul. Até hoje, quatro times já conseguiram o grand slam, sendo três do norte (Kingussie 7 vezes, Newtonmore 3 vezes, Lovat 1 vez) e apenas um do sul, e uma vez só, Kynes Athletic em 1966.

Além das competições nacionais, o shinty conta com várias ligas regionais, algumas profissionais, algumas semiprofissionais, algumas amadoras; todas elas são no sistema de pontos corridos - todo mundo enfrenta todo mundo, e quem tiver mais pontos ao final da última rodada é o campeão. Somente em 1996, porém, a Comann na Camanachd decidiria criar uma competição nacional de pontos corridos, a Mowi Premiership, que conta com 10 times e um sistema de acesso e descenso, com os dois últimos sendo rebaixados para a National Division One, da qual os dois primeiros são promovidos para a Mowi. O maior campeão da Mowi é Kingussie, com 14 títulos; a Mowi, entretanto, não gera tanto interesse nos torcedores quanto as competições do grand slam e as regionais por pontos corridos, por maiores que sejam os esforços da Comann na Camanachd para promovê-la.

Tudo o que eu falei até agora foi sobre o shinty masculino, mas o shinty também é disputado no feminino, embora com algumas diferenças. O shinty feminino só começaria a ser disputado profissionalmente na Escócia em 1990, com a fundação da Woman's Camanachd Association; até então, mulheres disputavam apenas partidas amadoras, ou junto com os homens, em times masculinos, em torneios regionais de nível mais baixo. Em 2023, a Woman's Camanachd Association seria absorvida pela Comann na Camanachd, se tornando uma secretaria chamada Camanachd nam Ban. O número de times no feminino ainda é bem menor que no masculino, tanto a nível nacional quanto regional, mas vem crescendo nos últimos anos. O principal torneio do feminino é o Valerie Fraser Trophy, torneio disputado em sistema de mata-mata desde 2002, que tem como maior campeão Glengarry, com seis títulos; o principal torneio de pontos corridos é a WCA National Division One, disputada desde 2005, atualmente com sete times, que tem como maiores campeões Glengarry e Glasgow Mid Argyll, com quatro títulos cada. O uniforme do feminino tem uma saia-short no lugar dos calções e capacetes obrigatórios para todas as jogadoras. Nos jogos do Valerie Fraser Trophy e da Division One os times, ao invés de 12, têm 10 jogadoras cada; os da Division Two, têm 8 jogadoras cada; e os torneios regionais têm times de 6 jogadoras cada, com campos da metade do tamanho do oficial, para facilitar a inscrição de novos times.

Voltando ao masculino, em 1896, o London Camanachd decidiria desafiar o time da GAA de Londres para um amistoso, usando regras que combinassem as características do shinty e do hurling. O jogo, vencido pela GAA, foi um sucesso, e, no ano seguinte, o clube de shinty Glasgow Cowal e o clube de hurling Dublin Celtic decidiriam repetir a dose em dois jogos, um na Escócia e um na Irlanda, ambos vencidos pelo time escocês. Ainda em 1897, ocorreria um novo jogo em Londres entre o Camanachd e a GAA, que terminaria empatado. Por razões várias, principalmente por os times não conseguirem decidir regras comuns (cada um dos quatro jogos usou um conjunto de regras diferente), esses jogos, apesar de sucessos de público, não seriam repetidos, até que, em 1922, a seleção irlandesa de hurling convidaria a seleção escocesa de shinty para um amistoso em Dublin. A dose se repetiria em 1924 e 1932, e em 1933 seria realizado um jogo em Glasgow - os dois primeiros dessa série seriam vencidos pela Escócia, os dois seguintes pela Irlanda. Depois dessa série começariam conversas para que o confronto se tornasse anual, que seriam interrompidas pela Segunda Guerra Mundial, com um quinto jogo, em Edimburgo e vencido pela Irlanda, sendo realizado apenas em 1947.

Os esforços para tornar o confronto anual esbarrariam no forte sentimento anti-britânico que dominou a GAA após a Guerra, que a levava se recusar a participar das conversas com a Comann na Camanachd. Somente na década de 1970 as duas organizações chegariam a um acordo, criando um conjunto de regras oficial. Infelizmente, eles não pensariam em um nome específico para o novo esporte, que ficaria com o comprido nome de composite rules shinty–hurling, apelidado de shinty-hurling pela imprensa e jogadores. Um jogo anual, então, seria disputado entre 1972 e 1979, exceto em 1975, com a sede se alternando entre Escócia e Irlanda (exceto em 1974 e 1976, quando ocorreriam dois jogos seguidos na Escócia, e em 1979, quando o jogo seria na Ilha de Man). Todos esses jogos seriam vencidos pela Irlanda, e a série seria interrompida porque a seleção escocesa reclamava que as regras eram mais parecidas com as do hurling do que com as do shinty, o que daria vantagem aos irlandeses. Após uma década de negociações, GAA e Comann na Camanachd chegariam a um novo conjunto de regras, e a série anual retornaria entre 1993 e 1999, mais uma vez com jogos alternados na Escócia e na Irlanda, agora todos vencidos pela Escócia, exceto o de 1994, que terminou empatado. E aí foi a vez de os irlandeses reclamarem que as regras estavam muito parecidas com as do shinty.

Não querendo se dar por vencidos, GAA e Comann na Camanachd reuniriam um grande painel de jogadores, ex-jogadores, técnicos e ex-técnicos de hurling e shinty, incluindo muitos que haviam participado dos jogos de shinty-hurling, que criaria um conjunto de regras especialmente pensadas para que nenhuma das duas seleções tivesse vantagem por estar mais acostumada com seu próprio esporte. Esse conjunto faria sua estreia oficial em 2003, em um novo torneio chamado Shinty-Hurling International Series.

Apesar do Series no nome, se trata de um jogo único, com o vencedor do jogo sendo, também, o campeão da série. O primeiro jogo ocorreria em Inverness, na Escócia, e, até 2009, a sede seria alternada entre Escócia e Irlanda, com a GAA organizando os jogos na Irlanda e a Comann na Camanachd os na Escócia; a partir de 2016, ficaria estipulado que seriam disputados três jogos seguidos na Escócia e então três na Irlanda, com os três entre 2016 e 2018 também sendo disputados em Inverness (aliás, todos os jogos na Escócia foram disputados em Inverness, exceto o de 2007, em Fort William), mas os jogos de 2020, 2021 e 2022 foram cancelados por causa da pandemia, de forma que a Irlanda sediou os jogos de 2019 e 2023, e vai sediar os de 2024 antes de a Escócia ter direito a mais três. Entre 2010 e 2015, seriam realizados dois jogos por ano, um em cada país, e os resultados seriam somados para determinar o vencedor da série. Até hoje, foram disputadas 18 edições da Shinty-Hurling International Series, com a Escócia tendo vencido 9, a Irlanda tendo vencido 8, e a de 2004 tendo terminado empatada. Em todos os anos em que houve apenas um jogo, o país-sede foi campeão, exceto em 2019, quando a Escócia venceu o jogo disputado na Irlanda, mas em 2010 a Escócia ganhou na Irlanda e a Irlanda na Escócia (com a Irlanda sendo campeã no somatório), e em 2011, 2012 e 2013 a Irlanda ganhou os dois jogos.

Junto com a Shinty-Hurling International Series foi criada a Camogie-Shinty International Series, na qual é disputado um esporte chamado composite rules camogie-shinty, que nada mais é que a versão feminina do shinty-hurling - já que a versão feminina do hurling se chama camogie. Diferentemente da masculina, a série feminina foi disputada em jogo único em todas as edições, de 2003 a 2016, estando em suspenso desde então, por algum problema que eu não descobri qual foi com a seleção irlandesa de camogie - e que fez com que, de 2012 a 2016, a Irlanda fosse representada na série por seleções de províncias (Clare, Dublin, Down, Kildare e Dublin, respectivamente) ao invés de pela seleção nacional. Entre 2003 e 2015, os jogos se alternaram entre Escócia e Irlanda, com a edição de 2011 sendo cancelada, o que fez com que dois jogos seguidos, em 2010 e 2012, fossem disputados na Irlanda; os dois últimos, em 2015 e 2016, foram disputados na Escócia. A série feminina teve um total de 13 jogos, com 8 vitórias da Escócia, 4 da Irlanda (embora a de 2016 tenha sido creditada a Dublin), e, assim como no masculino, o jogo de 2004 terminando empatado.

O campo usado no shinty-hurling é o mesmo do shinty, mas os gols são os mesmos do hurling. Cada jogador usa os tacos de seu próprio esporte, ou seja, os irlandeses usam tacos de hurling, os escoceses usam tacos de shinty. É usada uma bola de hurling em um dos tempos de jogo e uma bola de shinty no outro, sendo determinado por sorteio qual será usada primeiro. A partida dura dois tempos de 35 minutos cada, e cada time tem 14 jogadores. Nenhum jogador pode tocar na bola com as mãos, exceto os goleiros e um jogador que esteja tentando impedir um gol, posicionado sobre a linha de gol; também não é permitido chutar a bola, mas é permitido conduzi-la com os pés. Se a bola entrar na parte de baixo do gol (onde tem a rede), o time ganha 3 pontos, e, se ela passar por cima do travessão, ganha 1 ponto - exceto se ela estava no chão e totalmente parada antes de ser atingida pelo taco, quando o gol valerá 2 pontos independentemente de se a bola passou por cima ou por baixo do travessão.

Antes de terminarmos, eu gostaria de aproveitar a ocasião para falar sobre um outro esporte hibrido, o international rules football, que combina as regras do futebol gaélico (sobre o qual eu falei no mesmo post do hurling) com as do futebol australiano (sobre o qual eu também já falei aqui no átomo, junto com o netbol). O international rules football foi criado em 1967 pelo ex-árbitro de futebol australiano Harry Beitzel e pelo ex-jogador de futebol gaélico James Harkin, que nasceu em Melbourne, Austrália, mas tinha nacionalidade irlandesa e jogou na Irlanda durante toda sua carreira. Em sua primeira versão, o jogo era idêntico ao futebol gaélico, com apenas duas diferenças: os jogadores podiam quicar a bola no chão, e não eram obrigados a chutá-la de volta para as mãos enquanto corriam. Beitzel e Harkin convocariam uma seleção de jogadores de futebol australiano que, após dois jogos como "aquecimento" (o primeiro em Darwin, Austrália, seguindo as regras do futebol australiano, contra uma seleção de jogadores da Northwesrten Territory Football League, o segundo em Dublin, Irlanda, seguindo as regras do futebol gaélico, contra um clube chamado Civil Service), faria dois jogos no Croke Park, em Dublin, o primeiro contra o time de Meath, o segundo contra o time de Mayo (entre os dois, seria disputado um amistoso, usando as regras do futebol australiano, em Crystal Palace, Londres, contra uma seleção de australianos que morava na Grã-Bretanha), e um no Gaelic Park, em Nova Iorque, Estados Unidos, contra o time de futebol gaélico da cidade, sendo esse último o único desses jogos que a seleção australiana perdeu. Juntos, esses seis jogos ficariam conhecidos como The Australian Football World Tour of 1967.

A World Tour seria um sucesso e, no ano seguinte, a seleção australiana de international rules football faria mais uma, enfrentando, no Croke Park, os times de Dublin, Meath e Kerry, e o time de Nova Iorque no Estádio de Wembley, em Londres, dessa vez vencendo todas as partidas. Depois disso, a GAA e a VFL, responsável pela regulação do futebol australiano (e que, em 1990, mudaria de nome para AFL), começariam uma série de reuniões para tentar definir as regras oficiais do international rules football e tentar criar um evento anual - primeiramente pensado não como um jogo entre seleções, mas entre o campeão da AFL e o campeão do All-Ireland Senior Football Championship, o mais importante campeonato do futebol gaélico. Enquanto essas conversas aconteciam, vários clubes, por conta própria, decidiriam marcar amistosos, como o Meath, que ainda em 1968 viajou para a Austrália e ganhou da seleção australiana em um jogo em Melbourne. Somente em 1984 VFL e GAA chegariam a um consenso, sendo publicadas as regras oficiais e começando a International Rules Series, uma disputa entre a seleção australiana e a seleção irlandesa.

Pelas regras atuais do international rules football, o campo e a bola usados são os mesmos do futebol gaélico, e cada time tem 15 jogadores, sendo um goleiro. Os jogadores devem quicar a bola no chão ou chutá-la de volta para as mãos a cada 10 metros ou seis passos, sendo permitidos apenas dois quiques por posse de bola, com o jogador devendo passá-la antes do terceiro, mas quantos chutes o jogador quiser. A bola também pode ser pega do chão diretamente com as mãos, sem ser necessário tocá-la com o pé antes, mas não é permitido passar uma bola do chão para um colega, nem tocar em uma bola que está no chão com as mãos se o jogador não estiver de com a sola de pelo menos um dos pés em contato com o chão. É permitido derrubar jogadores do time adversário, desde que o contato seja feito entre a linha dos ombros e a linha dos joelhos, e há o mark, que garante um tiro livre toda vez que um jogador consegue segurar com as duas mãos uma bola que tenha percorrido no mínimo 15 metros após um chute. Faltas são normalmente cobradas com tiro livre, mas, a critério do árbitro, pode ser dada a vantagem ao invés de marcada uma falta.

O gol é uma curiosa combinação do gol do futebol australiano com o do futebol gaélico, sendo formado por quatro postes, cada um a 6,5 m de distância do seguinte. Entre os dois postes do meio há um travessão, a 2,5 m de altura, e, embaixo do travessão, há uma rede. Uma bola que acerte a rede (gol) vale 6 pontos, uma bola que passe por cima do travessão entre os dois postes do centro (over) vale 3 pontos, e uma bola que passe entre um dos postes mais da ponta e um do centro (behind) vale 1 ponto. O placar é anotado separadamente com o total entre parênteses, ou seja, um placar de um gol, quatro overs e dez behinds, totalizando 28 pontos, é escrito 1-4-10 (28). Uma partida dura quatro tempos de 18 minutos cada, para um total de 72 minutos.

A principal competição do international rules football era a International Rules Series, criada em 1984. Inicialmente, era uma série de três jogos, todos no mesmo país, alternando entre Irlanda e Austrália, com a seleção que vencesse dois dos três sendo a campeã. Esse formato seria usado em 1984, 1986, 1987 e 1990, com a série entrando em um hiato e retornando em 1998 com apenas dois jogos e os resultados sendo somados para determinar o campeão. A série seria anual entre 1998 e 2017, mas não seria realizada em 2007 e 2016, e, em 2014 e 2015, seria em jogo único - mesmo com as interrupções, o rodízio de sede jamais se alterou, sempre ocorrendo uma edição na Irlanda, a seguinte na Austrália. Em 2018, devido, principalmente, a falta de interesse dos jogadores, a série seria suspensa, sem data para retornar - embora já há algum tempo corram boatos de que ela vai retornar nesse ano de 2024, inclusive com uma série anual feminina - o único ano que contou com um jogo feminino foi 2006, na Irlanda, com vitória da própria. Curiosamente, quando a série masculina foi interrompida, haviam sido disputadas 20 edições, com a Austrália vencendo 10 e a Irlanda as outras 10.

Diferentemente do shinty-hurling, mesmo sem a International Rules Series o international rules football continua sendo praticado ao redor do planeta, principalmente por fãs de futebol australiano que se aproveitam do campo retangular e da bola esférica, mais fáceis de ser encontrados do que o campo e bola ovais do futebol australiano. A nível amador, o international rules football é disputado não só na Austrália e Irlanda, mas também na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Nova Zelândia e no Caribe, com jogos entre estudantes universitários também sendo disputados em vários países da Europa e da Ásia - um dos jogos mais tradicionais atualmente é o que ocorre uma vez por ano na Universidade de Birmigham, Inglaterra, entre os times de futebol australiano e futebol gaélico da universidade. A AFL considera o international rules football uma poderosa ferramenta para a popularização do futebol australiano, e a GAA o credita como sendo responsável por um surto recente de popularidade do futebol gaélico na Europa continental.

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