Enfim, o tempo passou, e ao longo dele eu descobri novas e interessantes coisas sobre baralhos. Como assunto aqui é sempre bem vindo, decidi fazer uma pesquisa ainda mais profunda, e hoje abro uma série de posts sobre este assunto tão interessante. Nela, veremos não somente a origem e as peculiaridades do baralho, mas também seus quatro tipos principais em detalhes: o baralho francês, o latino, o alemão e o suíço. Como eu já disse, a pesquisa que eu fiz para escrever estes posts foi bem mais profunda que a anterior, então, se alguma coisa estiver discordando do escrito no Bateleur, no BLOGuil, ou no post 034, o que está aqui é o que vale. E o que está lá vai ficar errado mesmo, porque eu não estou com tempo nem com paciência para atualizar.
Mesmo quem não gosta, ou quem não conhece muitos jogos de baralho, deve admitir que um baralho é uma coisa muito interessante. É um conjunto de cartas, todas diferentes entre si, aparentemente com números e figuras inexplicáveis, mas que podem ser adaptadas para se jogar uma variedade infinita de jogos. Mais que isso, provavelmente todo o mundo civilizado sabe o que é um baralho, e a maioria das pessoas sequer se importa em saber porque eles existem. Eu fico particularmente intrigado com um objeto assim, que existe desde não se sabe quando, foi inventado por não se sabe quem, mas se tornou uma parte integrante da cultura moderna - mais ou menos como a roda, guardada as devidas proporções de importância. Mas o baralho não veio do nada. Assim como tudo na vida, ele foi inventado por alguém, em algum lugar, e foi mudando e evoluindo até se tornar o que temos hoje.
Infelizmente, ninguém sabe quem inventou o baralho, nem quando. A teoria mais provável é a de que ele teria sido inventado na China, por volta do século X. Mas os primeiros baralhos, chamados ku pai, não eram usados para jogar da forma como usamos hoje; cada carta representava uma combinação possível em um lançamento de dois dados, impresso em círculos pretos e vermelhos, sendo algumas cartas decoradas com figuras. Estas cartas podiam ser usadas como parte de outros jogos, substituindo os dados, ou para jogar dominó, combinando os lados iguais como ainda se faz no jogo de dominó de hoje em dia.
Por volta do século XV, as cartas do ku pai deram origem a um novo tipo de baralho, chamado gun pai. As cartas do gun pai eram divididas em quatro grupos; os três primeiros grupos tinham nove cartas cada, e representavam moedas, centenas de moedas, e milhares de moedas. As cartas de moedas eram decoradas com círculos, as das centenas com bastões (pois as moedas chinesas, furadas no meio, eram agrupadas em bastões para serem transportadas) e as das milhares com ideogramas. O quarto grupo tinha propriedades especiais, e era composto de três cartas, uma que representava um milhão de moedas, uma representando uma flor vermelha, e uma representando uma flor branca. Um baralho de gun pai era composto de quatro cópias de cada carta, para um total de 120 cartas. Como tinham conotação monetária, as cartas de gun pai podiam ser utilizadas tanto como parte das regras do jogo quanto para apostar neles.
Como o papel na época era pouco durável, logo as cartas do ku pai e do gun pai começaram a ser fabricados em outros materiais, como osso ou marfim. Assim, após algumas adaptações, o ku pai (que significa "cartas de osso") deu origem ao dominó, enquanto o gun pai ("cartas compridas") deu origem ao jogo de Mah Jongg. O gun pai ainda acabou dando origem a um novo tipo de baralho de papel, o lat chi (curiosamente, "papel descartado"), também composto de quatro grupos, mas de nove cartas cada, representando moedas, dezenas de moedas, centenas de moedas e milhares de moedas.
Embora ninguém saiba como, a teoria mais aceita é a de que o lat chi, de alguma forma, chegou à Arábia no final do século X, onde foi adaptado e deu origem a um novo jogo totalmente diferente, chamado na'ib ("delegado"). Assim como as do lat chi, as cartas do baralho de na'ib eram divididas em quatro grupos: moedas, taças, espadas e bastões de pólo, um jogo muito popular na Arábia da época. Estes quatro grupos, para muitos, são a evidência de que o na'ib evoluiu do lat chi: assim como no baralho chinês, há um grupo de moedas; as cartas do grupo de bastões de pólo são muito semelhantes às cartas de centenas de moedas, que também tinham figuras de bastões; já os grupos de taças e espadas viriam dos ideogramas chineses usados para escrever wan ("dez mil") e shi ("dez"), muito semelhantes, respectivamente, a um cálice de cabeça para baixo e a uma espada.
Cada grupo do baralho de na'ib era composto de catorze cartas, sendo dez numéricas, contendo de um a dez desenhos do símbolo do grupo que representava, e quatro "delegados", cartas que representavam o Rei, o Vizir (ou Vice-Rei), o Deputado (ou Delegado do Rei) e o Ministro Religioso. Como o islamismo não permite representações artísticas de seres humanos, as cartas dos delegados eram ricamente decoradas, e traziam o nome da figura correspondente em árabe, mas não tinham uma figura humana no meio. Não se sabe ao certo porque os "delegados" foram incluídos no baralho, mas se supõe que eles tenham sido inspirados nas três cartas "especiais" do gun pai (a do um milhão e as das flores vermelha e branca), também presentes em algumas versões do lat chi, e que em alguns baralhos traziam figuras de reis e outros nobres.
No século XIV, o baralho de na'ib chegou à Espanha, levado pelos mouros que se instalaram na Península Ibérica. Lá, o baralho continuou evoluindo: graças a um erro de interpretação, a palavra na'ib, originalmente usada para nomear as figuras humanas do baralho, passou a ser usada para os quatro grupos de cartas. Em espanhol, na'ib virou "naipe". Os símbolos também acabaram adaptados: as moedas continuaram sendo redondas e decoradas, mas as espadas, que no baralho original árabe eram cimitarras, curvas, no espanhol se tornaram espadas européias, de lâmina reta; os bastões de pólo, jogo desconhecido na Espanha, foram substituídos por clavas rústicas de madeira; e as taças alongadas características dos árabes ganharam formas mais arredondadas, mais parecidas com cálices cerimoniais da Igreja. As cartas espanholas também eram bem menos decoradas que as árabes, para facilitar sua produção.
Os primeiros baralhos espanhóis não tinham 56 cartas como os de na'ib, mas apenas 48. As figuras eram apenas três ao invés de quatro, e, por alguma razão desconhecida, as cartas numéricas iam apenas do 1 ao 9. Quanto às figuras, existem duas teorias: ou o Ministro Religioso foi deliberadamente removido para evitar problemas com a Igreja, ou a versão que chegou à Espanha foi uma conhecida como Mulûk wa-Nuwwâb ("reis e deputados"), de origem mameluca, que também tinha apenas três figuras. Seja qual for a explicação, como na Espanha não existia nenhuma restrição a figuras humanas em cartas de baralho, logo elas foram adicionadas para melhor identificação das cartas. As figuras também acabaram adaptadas: o Rei foi mantido, mas como na Europa não existiam Vizires, para o posto de segunda carta mais alta foi escolhido o Cavaleiro, o mais nobre dos nobres, e para a posição de Deputado foi escolhido o sota, uma espécie de escudeiro ou secretário, que servia aos Cavaleiros, que por sua vez serviam ao Rei, criando assim uma relação de valor entre as três figuras do baralho. A maior prova de que este baralho derivava do na'ib era seu nome: Cartas Sarracenas.
Na metade do século XV, as Cartas Sarracenas começaram a se espalhar pela Europa. Na Alemanha, elas acabaram inspirando um outro tipo diferente de baralho, que se tornaria conhecido muitos anos depois como Cartas de Caçada. Ricamente decoradas, as Cartas de Caçada levavam este nome por mostrar, em cada carta, cenas de caçadas empreendidas por membros da nobreza. Cada fabricante criava seus próprios naipes, mas todos sempre ligados à caça esportiva, como cães, raposas, falcões, escudos, armadilhas e outros. Por serem ricamente trabalhadas, as Cartas de Caçada não eram produzidas em larga escala, sendo feitas sob encomenda para pessoas abastadas. Por este motivo, é pouco provável que tenham sido utilizadas para jogar. Existiam vários tipos de baralhos de Cartas de Caçada, sendo o mais curioso o Hofjagdspiel, composto de 56 cartas, nos naipes de cães, falcões, garças e lures (um instrumento de falcoaria, parecido com um pequeno pássaro feito de couro amarrado a uma corda). Cada naipe tinha 14 cartas, sendo nove numéricas (de 1 a 9), uma com uma bandeira com o símbolo do naipe no meio, e quatro figuras, o escudeiro, o Cavaleiro, a Rainha e o Rei. Curiosamente, todas as figuras estavam montadas a cavalo (pois estavam caçando), e a única forma de distingüí-los (fora o fato de que a Rainha era mulher) era pela elegância das roupas - sendo que o escudeiro usava as roupas mais simples, e o Rei as mais chiques. Outro baralho curioso era o Stuttgarter Kartenspiel ("cartas para jogar de Stuttgart"), cujos naipes eram cães, falcões, veados e patos. Este baralho tinha apenas 52 cartas, sendo as numéricas de 1 a 9, a bandeira, e três figuras. Curiosamente, nos naipes de cães e veados todas as figuras são mulheres (aia, dama de companhia e Rainha), enquanto nos de falcões e patos todos são homens (escudeiro, Cavaleiro e Rei).
Com o tempo, o na'ib e as Cartas Sarracenas chegaram à Itália. Lá, elas acabaram dando origem a dois estilos de baralho diferente: os fabricantes do sul decidiram imitar o modelo espanhol, com moedas, taças arredondadas, clavas e espadas retas; mas os fabricantes do norte decidiram fazer seus baralhos mais parecidos com as cartas originais árabes, com moedas, taças alongadas, espadas curvas e bastões cerimoniais, o que eles imaginaram ser os bastões de pólo. Em todas as versões, as figuras eram o escudeiro, o Cavaleiro e o Rei, mas os baralhos italianos podiam ter 52, 48, ou, mais usualmente, apenas 40 cartas, indo as numéricas apenas do 1 ao 7.
Além destas peculiaridades, surgiu ainda na Itália, provavelmente inspirado pelas Cartas de Caçada, um novo tipo de baralho, chamado Trionfi ("triunfo"), utilizado para jogar um jogo também chamado trionfi. Composto por 22 cartas, o baralho de trionfi não tinha naipes ou números, com cada uma de suas cartas representando um objeto, personagem ou local famoso da região onde o baralho era produzido. Um dia, alguém teve a brilhante idéia de juntar as cartas do trionfi a um baralho normal, e adicionar uma Rainha, presente nas Cartas de Caçada, mas não nos baralhos italianos. Surgiu assim um baralho de 78 cartas, chamado de Tarocco, palavra que veio do verbo taroccare, que caiu em desuso, mas significava "cobrir com uma folha de ouro", técnica até hoje utilizada em móveis e molduras de quadros, e na época também utilizada em alguns dos baralhos mais "chiques", como o Hofjagdspiel e o Tarô de Visconti.
Paralelamente a isso, as Cartas Sarracenas se popularizaram na Alemanha, já que as Cartas de Caçada não eram acessíveis a todos, nem usadas para jogar. Para seguir a tradição das Cartas de Caçada, os fabricantes alemães decidiram não utilizar os naipes tradicionais, mas sim inventar seus próprios, com motivos ligados à natureza e à vida no campo. Assim, as moedas viraram sinos redondos (guizos), as espadas viraram folhas, os bastões viraram castanhas, e as taças viraram corações. Os alemães mantiveram as três figuras dos baralhos espanhóis e italianos, mas, curiosamente, desmontaram os Cavaleiros: os Reis eram identificáveis por suas coroas nas cabeças e por estarem sentados em tronos, mas tanto os Cavaleiros quanto os escudeiros estavam a pé, devendo ser identificados pela posição do símbolo do naipe - nos Cavaleiros era na parte de cima da carta, nos escudeiros, na parte de baixo.
No início do século XVI, este curioso baralho chegou à França, e lá acabou sofrendo mais uma mutação: os fabricantes franceses queriam produzir baralhos em larga escala, e os naipes tradicionais, muito trabalhados, não eram fáceis de reproduzir nas placas de madeira ou metal que eram usadas na impressão. Assim, eles decidiram adaptar os naipes alemães, mais simples: folhas viraram pontas de lança, castanhas viraram trevos, os sinos viraram losangos, e os corações foram mantidos. Ao invés de usar muitas cores, os fabricantes optaram por apenas duas: dois naipes em preto e dois em vermelho. As figuras também sofreram uma nova mudança: para evitar a confusão causada por duas figuras masculinas aparentemente idênticas, os franceses decidiram trocar o Cavaleiro pela Rainha. Não há indicações, porém, de que eles tenham feito isso influenciados pelas Cartas de Caçada; o mais provável é que eles simplesmente tenham achado que, já que cada naipe tinha seu Rei, estavam faltando suas Rainhas.
No final do século XVI, foi a vez do Tarocco chegar à França. Além de substituir as cartas com naipes italianos pelas francesas - adicionando um cavaleiro de cada naipe - os fabricantes ainda mexeram nos trionfi (que passaram a ser conhecidos como "trunfos"). Na Itália, os trunfos costumavam representar figuras de poder (Imperador, Papa), medos ancestrais (Morte, Diabo), virtudes (Temperança, Força), aspectos da vida humana (Eremita, Enamorado), corpos celestes (Sol, Lua), e, em alguns baralhos, outros temas, como signos do Zodíaco, os quatro Elementos, e outros. Alguns fabricantes franceses mantiveram os trunfos originais, mas outros decidiram substituí-los por coisas mais amenas, como cenas da vida urbana e rural. O nome do jogo também acabou mudando, para Tarot, uma pronúncia francesa para Tarocco.
E aí aconteceu um novo fato curioso: da França, o Tarot acabou indo parar na Europa Central, onde foi renomeado para Tarock. O Tarock utilizava os naipes franceses, e tinha em seus trunfos cenas do cotidiano, justamente como o Tarot. O baralho francês "comum" também se espalhou para o resto da Europa: a simplicidade dos naipes e a facilidade em imprimir o baralho fez com que ele se tornasse mais popular do que todos os outros, ganhando versões em vários países.
Mas isso já é assunto para os próximos posts. No próximo desta série, começaremos pelo baralho francês, o mais famoso, mas que ainda assim tem muitos detalhes interessantes e pouco conhecidos.
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