Ninguém pode dizer que o Barão de Coubertin era um homem que não planejava o futuro. Desde que Atenas fora escolhida como sede dos primeiros Jogos, ele decidira que sua segunda edição seria em Paris, e que a terceira, em 1904, seria em Chicago, já na época uma das maiores metrópoles dos Estados Unidos, cheia de instalações adequadas a uma boa realização de Olimpíada, como estádios, piscinas e hotéis, já que os norte-americanos sempre foram fanáticos por esportes. Infelizmente para o Barão, um imprevisto acabou mudando a Olimpíada de lugar, e contribuindo para que mais uma vez as coisas não saíssem como o esperado: estava prevista para ocorrer, em 1903, na Louisiana, uma feira de exposições para comemorar o centenário da compra do sul dos EUA, originalmente pertencente à França. Problemas de organização, porém, fizeram com que a feira fosse postergada para 1904. Ao saber que os Jogos Olímpicos ocorreriam em Chicago naquele mesmo ano, os organizadores ficaram melindrados, não querendo que sua feira disputasse atenções com um evento esportivo ainda tão jovem, e pediram ao COI que transferisse a sede dos Jogos para Saint Louis, no Missouri, a maior cidade da região na época, o que foi recusado por Coubertin. Sob pressão, os organizadores do evento em Chicago pediram ao COI que adiassem as Olimpíadas para 1905, o que Coubertin recusou novamente. Diante do impasse, Theodore Roosevelt, o Presidente dos EUA, decidiu que os jogos seriam em St. Louis e pronto, impedindo qualquer outra cidade de sediá-los. Coubertin, sentido, mandou informar que não compareceria ao evento, e nem mesmo uma carta pessoal do próprio Roosevelt conseguiu dissuadi-lo a deixar a França e ir assistir ao evento.
Somando toda essa confusão ao fato de que em 1904 não existia avião, não era difícil prever que o evento não seria exatamente um sucesso. Mais uma vez os esportes foram disputados em locais impróprios, paralelamente a exposições, eventos circenses e palestras que nada tinham a ver com os Jogos, e se arrastando por um período de quatro meses e meio, entre 1o de julho e 23 de novembro. Os organizadores tinham a ambição de realizar uma "prova olímpica" por dia, e muitas dessas sequer foram consideradas parte das Olimpíadas pelo COI ao final da competição. De fato, ao comparar com os já confusos Jogos de 1900, os de 1904 foram até um retrocesso: participaram apenas 625 atletas, pouco mais da metade dos que competiram em Paris, sendo que 533 eram norte-americanos, 41 canadenses, e os outros 51 representavam outras 10 nações. De todos estes, apenas 6 eram mulheres.
O programa oficial, somente divulgado após o encerramento, listou mais uma vez 94 provas, mas apenas 17 esportes: atletismo, boxe, cabo de guerra, ciclismo, esgrima, futebol, ginástica artística, golfe, lacrosse, levantamento de peso, luta olímpica, natação, remo, roque, saltos ornamentais, tênis e tiro com arco (clique aqui para ver todas as provas do programa). Devido ao baixo número de estrangeiros, em 44 das 86 modalidades absolutamente todos os competidores eram norte-americanos. Isto fez com que os Estados Unidos ganhassem 214 das 255 medalhas possíveis - e poderiam ter sido mais, já que as medalhas do basquete, beisebol, futebol americano, futebol gaélico, hurling e polo aquático não foram sancionadas pelo COI exatamente porque todos os times competindo nestes esportes eram norte-americanos.
Em meio a tanta desordem, os organizadores pelo menos tiveram algumas boas idéias. Para começar, em St. Louis se iniciou o costume de conferir medalhas de ouro ao primeiro colocado, de prata ao segundo, e de bronze ao terceiro. Alguns anos depois, o COI reformularia todas as suas tabelas de resultados, listando os terceiros colocados de 1896 e 1900 também como medalhistas. Em 1904 também fez sua estréia o Decatlo, um conjunto de dez provas de atletismo então realizadas no mesmo dia, até hoje uma das provas mais emocionantes e mais cultuadas pelos fãs. O norte-americano George Poage se tornou o primeiro negro a ganhar uma medalha, de bronze, nos 400 metros com barreiras. Outro norte-americano, George Eyser, ganhou seis ouros na ginástica, mesmo tendo uma prótese de madeira no lugar da perna direita. E o alemão Emil Rausch ganhou três ouros na natação, mesmo sendo as provas disputadas em um tanque lamacento que continha até sapos. Rausch poderia ter ganho mais uma medalha, se sua equipe de revezamento não tivesse sido impedida de participar pelos organizadores, que, temendo a derrota da equipe norte-americana, inventaram que somente nadadores sócios de clubes dos EUA podiam participar.
O escândalo da vez, adivinhem, aconteceu na Maratona. O trajeto passava por sete colinas - ou seja, tinha pelo menos sete trechos em subida - e 30 de seus 40 Km eram em uma estrada de terra que os carros e carroças dos jornalistas e fiscais transformaram em uma verdadeira tempestade de areia para os corredores do primeiro pelotão. Fazia 32 graus, e o único ponto onde os corredores poderiam beber água seria em um poço, já na parte final do trajeto. Dos 42 atletas que largaram somente 14 completaram a prova. Merecem menções honrosas o sul-africano Len Tau, que foi atacado por um cachorro raivoso, tendo que se desviar do percurso para fugir, e mesmo assim chegou em nono lugar; e o cubano Félix Carvajal, que, faminto, parou para colher maçãs em um pomar. As maçãs estavam verdes e Carvajal teve cólicas horríveis, mas mesmo assim chegou em quarto.
Após quase três horas e meia de prova, despontou no Estádio Olímpico o desconhecido norte-americano Fred Lorz. Saudado como campeão, Lorz posou para fotos ao lado da filha do Presidente, e já estava recebendo sua medalha de ouro quando foi desmascarado: Na altura do km 15, Lorz viu uma carroça de feno que passava, subiu na garupa e, escondido, foi até o km 32, onde saltou e completou a prova correndo. O dono da carroça, porém, percebeu quando ele saltou, e, ao vê-lo aclamado como vencedor da prova, o denunciou. Pressionado, Lorz confessou o crime, e foi banido do esporte por um ano.
O verdadeiro vencedor, porém, não fez mais bonito. Thomas Hicks, um inglês naturalizado norte-americano, iria desistir da prova na altura do km 25, mas seu treinador, que o acompanhava, o dopou com comprimidos de estricnina e doses de conhaque. Hicks cruzou a linha de chegada completamente bêbado e cinco quilos mais magro, e foi levado direto para o hospital, antes mesmo de receber a medalha, onde quase faleceu, e decidiu que jamais correria uma Maratona novamente. Apesar da falcatrua ter sido vista por várias testemunhas, e de todos os protestos, Hicks não foi desclassificado, e é até hoje tido como o vencedor.
Mas a maior vergonha dos jogos de 1904 veio de uma "americanada" dos organizadores: querendo demonstrar sua benevolência e grandiosidade, pagaram todas as despesas de viagem e hospedagem de índios e negros dos mais remotos cantos do mundo, como a Patagônia e o interior da África, e os reuniu em uma paródia de Olimpíada, a qual chamaram Jogos Antropológicos. Como estes "atletas" mal sabiam o que fazer com uma bola ou dardo, freqüentemente se atrapalhavam diante das platéias, que iam às gargalhadas. Muitos dos presentes à feira preferia humilhar os "selvagens" a ver os norte-americanos ganharem medalhas. Revoltado ao tomar conhecimento de tal escárnio, o Barão de Coubertin escreveu uma carta aos organizadores, condenando seu "sensacionalismo tipicamente norte-americano", e ainda profetizou que "o negro, o vermelho e o amarelo ainda aprenderão a correr, a saltar e a arremessar muito melhor do que o branco".
Os Jogos de 1904, assim como os de 1900, também não tiveram cerimônias de abertura ou encerramento: tão de repente como começaram, acabaram. Mais do que isso, praticamente não foram noticiados nos jornais do mundo, muito mais preocupados com uma sangrenta guerra entre Rússia e Japão.
1906 foi o único ano até hoje - cem anos depois - em que foi realizada uma Olimpíada não-oficial. Em outras palavras, o COI não reconhece este evento como uma Olimpíada, não reconhece seus medalhistas como medalhistas olímpicos, e jamais reconheceu os recordes nele estabelecidos como recordes olímpicos. Além disso, os Jogos de 1906 não entram na "contagem", segundo a qual os de 1904 são o III e os de 1908 são o IV. Para o COI, a terminologia correta para o evento é "Jogos Intercalados", um evento esportivo mundial qualquer sem relação com os Jogos Olímpicos. Mas o mais curioso é que, quando foram planejados, eles seriam oficiais.
Tudo começou lá em 1896, quando a Primeira Olimpíada da Era Moderna acabou, e o Rei Jorge I da Grécia manifestou seu desejo de que os Jogos fossem realizados sempre em seu país, de quatro em quatro anos. Como o Barão de Coubertin queria que a sede se alternasse, para fazer dos Jogos um evento mundial, e desejava que os Jogos seguintes fossem em Paris, pois ele era francês, a idéia foi descartada. Muitos dos membros do COI, porém, gostaram dela. Afinal, as instalações já estavam prontas, e os gregos se mostraram capazes de realizar uma competição de alto nível.
A vontade de dar aos gregos uma segunda Olimpíada o mais rápido possível ficou ainda mais forte depois da confusão que se estabeleceu nos jogos de 1900, muito pior organizados que os de 1896. No congresso seguinte do COI, em 1901, foi proposta uma solução alternativa: ao invés de realizar os Jogos Olímpicos sempre na Grécia, seria criada uma nova categoria de Jogos, que aconteceria sempre nos anos pares em que não houvesse Olimpíada - daí o nome Jogos Intercalados. Desta forma, os Jogos Olímpicos seriam em diferentes sedes ao redor do mundo, os Jogos Intercalados seriam sempre em Atenas, e todo mundo ficaria feliz. Como 1902 já estava muito em cima, os preparativos começaram para que os Primeiros Jogos Intercalados acontecessem em 1906, ano que marcava os dez anos da realização dos Jogos de 1896.
O Barão de Coubertin, porém, era contra estes Jogos, pois eles não respeitariam a tradição de Jogos a cada quatro anos, como era na antiguidade. Mas um novo fracasso dos Jogos em 1904, onde ocorreu aquilo tudo o que você pode ler aí em cima, foi determinante para que o COI passasse por cima da vontade do Barão e desse total apoio aos gregos. Os Jogos Olímpicos já estavam com uma imagem bastante arranhada, para os atletas que não puderam ir St. Louis os jogos de 1908 representariam um cruel intervalo de 8 anos em suas pretensões olímpicas, e, ainda por cima, Roma, que seria sede dos Jogos de 1908, já planejava uma feira mundial simultânea, o que trazia o temor de que as confusões se repetiriam. Neste cenário, era preciso uma edição muito bem organizada e de grande sucesso dos Jogos o mais rápido possível.
Para a felicidade dos fãs de esporte e orgulho dos gregos, foi exatamente o que aconteceu. Os Jogos de 1906 barraram com sobras seus antecessores de 1900 e 1904 em termos de organização e competência, e até mesmo os de 1896 e 1908 em termos de popularidade. Esta foi a primeira edição dos Jogos em que a inscrição dos atletas foi feita pelos Comitês Olímpicos de cada país, e não de forma individual, o que contribuiu para a seriedade e organização das provas. Também foi a primeira edição em que a Cerimônia de Abertura ocorreu em um dia reservado só para ela, com direito a desfile das delegações, com a Grécia em primeiro, cada delegação trazendo à frente sua bandeira. Pela primeira vez, as bandeiras dos três primeiros colocados eram içadas ao som do hino da nação do campeão enquanto as medalhas eram entregues. Estas três inovações só seriam adotadas pelo COI em Olimpíadas oficiais a partir de 1912, junto com muitas outras modificações pequenas demais para entrar para a história, mas que se iniciaram em 1906 e persistem até hoje.
Mais do que tudo isso, os Jogos de 1906 foram curtos, de 22 de abril a 2 de maio, o que manteve o interesse da platéia sempre em alta, e os estádios sempre lotados. Participaram dos Jogos 903 atletas, sendo 20 mulheres, representando um total de 20 nações em 81 provas de 13 esportes: atletismo, cabo de guerra, ciclismo, esgrima, futebol, ginástica artística, levantamento de peso, luta olímpica, natação, remo, saltos ornamentais, tênis e tiro esportivo (clique aqui para ver todas as provas do programa). Como não existem registros oficiais do COI, fica difícil determinar quais teriam sido os maiores destaques, mas entraram para a história a vitória nos 400m e 800m do norte-americano Paul Pilgrim, fato que só seria igualado em Olimpíada em 1976; e uma Maratona finalmente livre de bagunça, vencida pelo canadense Billy Sherring, que foi acompanhado pelo Príncipe Jorge, filho do Rei Jorge I, da entrada do estádio até a linha de chegada.
Apesar de tanto sucesso, a idéia dos Jogos Intercalados não vingou. Problemas com suas fronteiras nos Balcãs impediram que os gregos conseguissem os fundos necessários para realizar os jogos de 1910. Além disso, enquanto os atletas tiveram praticamente 6 anos para se preparam para os jogos de 1906, o intervalo de dois anos entre 1908 e 1910 foi considerado muito curto, e poucos foram os que demonstraram interesse em participar. Devido a estes problemas, o comitê organizador cancelou os Jogos de 1910, e começou a planejar os de 1914, que já não contavam mais com apoio integral do COI, que preferiu concentrar seus esforços nos Jogos oficiais de 1912. Aí veio a Primeira Guerra Mundial, 1906 foi ficando cada vez mais longe, e a idéia dos Jogos Intercalados, de tanta força que perdeu, foi abandonada.
Como os jogos de 1906 acabaram sendo uma exceção, em 1920 o Comitê Executivo do COI optou por não considerá-los como oficiais, preferindo classificá-los como uma comemoração pelo 10o aniversário dos Jogos de 1896. Porém, a inegável importância dos Jogos de 1906 para a própria existência das Olimpíadas - que talvez tivesse acabado depois de 1908 se não fosse esta edição extemporânea - leva muitos entusiastas a considerá-los como verdadeiros Jogos Olímpicos, e existem até algumas organizações desportivas que lutam para que o COI os reconheça como tal. Até hoje, infelizmente, sem sucesso.
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Saint Louis 1904 |
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