domingo, 4 de setembro de 2022

Escrito por em 4.9.22 com 0 comentários

No Templo do Rinocerontomem

Hoje é dia de mais um conto que eu escrevi pro Crônicas de Categoria. Assim como O Chamado, esse é bem longo, tanto que, originalmente, o publiquei em três partes, mas hoje ele será apresentado na íntegra. Diferentemente de O Chamado, esse eu escrevi especificamente para o Crônicas - o Rinocerontomem, porém, eu criei quando era adolescente e jogava RPG, e foi tema de um post do Omby's Weblog que acabou gerando uma certa controvérsia (antes de chegar ao final do texto, quando eu deixava claro que era um personagem de RPG, uma pessoa achou que ele existia mesmo).

Também vale citar a curiosidade de que essa foto do rinoceronte fui eu mesmo quem tirou, quando viajei pra África do Sul em 2016, no Krueger Park. Pena que ele piscou.  





No Templo do Rinocerontomem

Mal podia acreditar. Após anos de buscas infrutíferas, lá estava eu, no meio da savana africana, de frente para o que poderia ser a maior descoberta da minha vida: a entrada para o Templo do Rinocerontomem.

Foi durante a Grande Guerra que eu ouvi a lenda pela primeira vez. Colegas que haviam morado nas Colônias as escutaram dos nativos, e as transmitiram em meio às trincheiras. Um templo secreto, repleto de tesouros inimagináveis, guardado por uma criatura mística. Vindo de uma família de exploradores, claro que as lendas atiçaram minha vontade, e fiz um juramento de que, assim que a Guerra terminasse, encontrar tal templo seria minha prioridade.

Meus colegas riam, diziam que eram histórias inventadas por selvagens para pôr medo nas crianças e enganar os forasteiros, mas minha intuição de explorador me dava a certeza de que o templo existia, e minha determinação a de que seria eu a encontrá-lo e clamar seus tesouros. Quem está rindo agora?

Por muitos anos, porém, confesso que duvidei de que seria possível. Para começar, foi extremamente difícil encontrar nativos dispostos a me acompanhar em minha empreitada. Lenda ou não, todos pareciam aterrorizados à simples menção do templo, e, além de tentarem me convencer a esquecer o assunto, ainda praguejavam contra aqueles que teriam revelado sua existência. Somente a muito custo consegui reunir um pequeno grupo, que parecia não saber muito bem para onde ia – ou queria me afastar propositalmente de meu objetivo.

Levei mais de dez anos, mas hoje, no primeiro dia do ano de 1930, me encontro em frente às enigmáticas portas daquilo que tenho certeza de se tratar de tal templo. E um dos motivos foi que os poucos nativos que me acompanhavam fugiram aterrorizados, gritando palavras incompreensíveis, diante de sua simples visão. Provavelmente não acreditavam que a lenda pudesse ser verdadeira, e, selvagens incultos que são, deixaram suas emoções primitivas dominá-los.

Mas eu, um homem civilizado, de boa família, sei que, mesmo o templo não sendo uma lenda, a parte da criatura mística é. Criatura mística, oras, somente mesmo os selvagens para acreditar num troço desses. Armadilhas, perfeito, serpentes e outros bichos peçonhentos, acredito, mas criatura mística é um pouco demais. Explorador que sou, me sinto perfeitamente capaz de adentrar esse templo, pegar algo de seu tesouro, e retornar mais tarde com uma equipe completa.

Sim, porque, agora que estou tão perto, não vou arriscar retornar ao acampamento e ver outro clamar minha descoberta. Mesmo sozinho, prefiro forçar as portas, ver o que encontro, e somente aí retornar. Até porque vai que esse não é o Templo do Rinocerontomem, mas um outro templo qualquer de menor valor, aí não precisarei de uma equipe completa testemunhando meu equívoco.

Pegando um pé de cabra de meu equipamento, me pus a forçar a porta. Com um rangido que atestava não ser aberta talvez há séculos, ela cedeu um pouco, deixando entrar o sol do meio-dia. Paredes que há tempos não viam luz se iluminaram. Adentrei o templo, observando as fabulosas gravuras que enfeitavam seu hall de entrada. O Rinocerontomem, a quem ele era dedicado, era onipresente nas ilustrações: uma criatura que, como seu nome atesta, era uma mistura de humano e rinoceronte, caminhando sobre duas pernas, pés ungulados, mãos com cinco dedos e polegares opostos, cabeça como a do animal, incluindo o característico chifre no nariz.

Na história protagonizada por ele, atuava como uma espécie de protetor de uma tribo, que parecia viver em prosperidade ao lado de um caudaloso rio. Mais para o fim da história, ordenava a construção de um templo, provavelmente este mesmo cujo interior agora vasculho, quando então… talvez jamais saberei, pois as últimas gravuras estavam muito danificadas, como se… não, loucura. Estava prestes a dizer como se despedaçadas por um chifre enorme.

Afastando tal pensamento absurdo de minha mente, segui em frente.

***

Deixando o painel com a história de lado, me pus a percorrer os corredores do templo. É importante dizer que parecia ser um templo subterrâneo: as portas eram como as de um porão, presentes em uma pequena elevação na savana, cobertas por vegetação rasteira, difíceis de serem identificadas de longe. Conforme eu avançava, sentia que ia descendo cada vez mais. A luz do dia já não alcançava os corredores além do hall de entrada, e foi necessário que eu acendesse meu lampião. Mas procurava usá-lo no mínimo alumiar possível, pois não queria ficar sem luz justamente nas partes mais escuras do interior do templo.

A princípio, o caminho parecia bastante direto, e eu tinha certeza de que em breve chegaria à sala do tesouro. Após alguns metros de caminhada, entretanto, cheguei a um beco sem saída, e só então descobri que, enganado pela pouca iluminação, e já bastante embriagado com minha própria descoberta, não percebi que o caminho era uma espécie de labirinto, e que eu havia passado direto por vários corredores laterais. Retornei um pouco e entrei no primeiro deles; pegando um bloco em minha mochila, comecei a traçar um mapa rude, para evitar que me perdesse.

Enquanto explorava o labirinto, minha mente racional começava a perceber de onde havia surgido a lenda da criatura mística: pelo formato dos corredores, com a porta do templo aberta, o vento fazia estranhos sons, ora como se fosse uma respiração, ora como um animal bufando. De início achei que fosse realmente um animal, que talvez as portas do templo não estivessem fechadas há tanto tempo assim, mas, prestando mais atenção, concluí que deveria ser um dispositivo engenhoso criado pelos construtores do templo para que o vento simulasse esses sons.

Até que comecei a ouvir passos. Lentos e pesados, mas se aproximando cada vez mais de mim. Por melhores que tenham sido esses construtores, era impossível que eles conseguissem simular esses sons. Comecei a pensar, então, que o templo poderia ter outra entrada, e que um animal talvez realmente estivesse ali dentro. Mas não poderia ser um animal leve como um leopardo ou hiena. Pelo som dos passos, era pesado, como um hipopótamo, búfalo, ou… um rinoceronte.

Estava em meio a esses pensamentos quando os passos se tornaram um trote. Assustado, me virei para olhar na direção da qual havia vindo, e, pelo canto do olho, vi algo passando. Definitivamente, não era um animal. Era muito alto, cerca de dois metros de altura. Eu sabia que não podia ser o Rinocerontomem, mas… será?

Prestando extrema atenção aos sons dos passos, prossegui. Em alguns corredores, eles pareciam mais próximos, em outros, mais distantes. Por vezes, no canto do olho, via passar a suposta criatura, sempre de relance. Se era mesmo uma criatura mística protetora do templo, não estava fazendo um bom trabalho, pois parecia nunca entrar no mesmo corredor que eu, sempre passando em velocidade pelos caminhos perpendiculares.

Por outro lado, eu jamais parecia chegar na sala do tesouro. Meu mapa já estava enorme, ocupando várias páginas do bloco, e eu já havia perdido a conta da quantidade de vezes em que me deparei com um beco sem saída ou retornei sem querer a um caminho que já havia percorrido – ou pelo menos achava que o tinha feito.

Atormentado pelos sons, pelos vislumbres da criatura, e já irritado por parecer não conseguir chegar a lugar algum, já estava cogitando retornar ao acampamento e voltar ao templo com uma equipe e material mais adequado, quando aconteceu.

Ao virar uma esquina, o vi, no final do corredor. Era o Rinocerontomem, tal qual as gravuras do hall de entrada o representavam.

Ele estava de frente comigo. E, de repente, começou a arrastar seus pés no chão.

***

Não tenho como descrever o que senti quando o vi. Um medo primal, um frenesi primitivo, como se meu cérebro negasse o que está diante de meus olhos. Por um breve instante, me senti paralisado, mas, não sendo minha primeira vez na África, sabia muito bem o significado de um rinoceronte arrastando seus pés no chão. Virei-me e corri o mais que pude, virando uma esquina um átimo antes de sentir o arrasto do vento criado pela criatura enquanto passava em velocidade por mim. Felizmente, em sua carga, ele não conseguia fazer curvas.

Meu primeiro instinto foi o de seguir pelo corredor por de onde o Rinocerontomem veio, pois, já que ele era a criatura mística que protege o tesouro, o mais lógico seria que a câmara principal estivesse naquela direção. Decidi olhar antes, contudo, na direção para onde ele foi, para não arriscar me posicionar em frente a uma de suas cargas sem ter para onde fugir. Lá estava ele, avançando na minha direção, passos lentos, como se pesasse uma tonelada. O horror que me causava era indescritível, sendo impossível olhar diretamente para ele por mais que meros instantes. Mas eu sabia que, se não saísse dali, fatalmente ele acabaria me alcançando.

Decidi tentar a sorte e seguir por aquele corredor de onde ele havia vindo, correndo o mais que pude. Mal havia entrado no corredor e senti o tremor de seus passos já em uma nova carreira. Mais uma vez, encontrei um corredor lateral no qual me enfiei, a momentos de ver a criatura passando por mim desabalada, cabeça baixa. Aquele chifre poderia me perfurar como um espeto perfura um coelho para que seja assado na fogueira.

Agora, eu definitivamente tinha um problema: o Rinocerontomem estava à minha frente, no caminho que eu desejava tomar. Além disso, cansado, com fome, e com meu lampião começando a falhar, não sabia quantas vezes mais conseguiria me desviar de suas investidas. Ouvi seus passos lentos novamente em minha direção, e comecei a me desesperar. De forma impensada, segui pelo corredor em que estava, até me deparar com outra parede. Era mais um corredor sem saída, e representava meu fim.

Diante da certeza da morte, porém, decidi que tentaria um plano ousado. Já havia percebido que, uma vez em carreira, o Rinocerontomem não conseguia parar facilmente, somente interrompendo seu movimento metros após já ter ultrapassado os corredores nos quais me abrigava. Além disso, os corredores do templo não eram estreitos, cabendo facilmente dois homens caminhando ombro a ombro. Sim, poderia dar certo.

Reunindo toda a minha coragem, voltei até quase o início do corredor, e vi o monstro mais uma vez arrastando seus pés no chão. Imediatamente me voltei para a direção da qual havia vindo, e corri o mais que pude, o mais próximo possível da parede do meu lado direito. Quando estava próximo ao fim do corredor, já sentindo o bafo da criatura me alcançando, me joguei para o lado esquerdo em um salto torto, atingindo a parede com violência. Acho que quebrei o braço, e meu lampião foi irremediavelmente destruído, deixando um rastro de fogo no chão. A criatura, entretanto, teve menos sorte que eu: passando direto por mim, deu de cabeça no muro do final do corredor, em um estrondo capaz de abalar as estruturas do próprio templo, caindo inerte após o choque. Não tive coragem de ir verificar se estava morta, mas, sendo uma criatura mística, imaginava que não.

Desejando encontrar o tesouro antes que o ser grotesco recuperasse seus sentidos, improvisei uma tocha com alguns materiais que ainda tinha na mochila, a acendi no fogo que restou do lampião, e, ignorando a dor em meu braço, segui pelo corredor onde pela primeira vez me vi de frente com o Rinocerontomem. Eu estava certo: a chegar a seu final, não havia mais passagens ou corredores, e sim um amplo salão oval, o centro do labirinto, a sala do tesouro.

De certa forma, entretanto, eu estava decepcionado. Não havia incontáveis tesouros, como na lenda, mas apenas um: um rinoceronte, aparentemente feito de ouro, encrustado de pedras preciosas, no alto de um pedestal. Após verificar rapidamente se não havia armadilhas, o removi de seu local de descanso, guardando-o em minha mochila. Essa seria a prova de que o templo é real, e eu poderia retornar depois com uma equipe e procurar por mais tesouros. Talvez até trazer armas para matar o Rinocerontomem.

Quando me virei para retornar ao labirinto, ouvi um riso. De pé, diante da entrada do salão, estava um homem. Ao me aproximar, vi que era um nativo. Chorando e rindo ao mesmo tempo, ele dizia apenas uma palavra, que reconheci como sendo o termo nativo para agradecer a alguém por alguma coisa. Perguntei a ele, na língua dos nativos, se ele era um prisioneiro do Rinocerontomem, e se eu o havia libertado. Ele deu uma gargalhada e me respondeu. Não consegui entender tudo, mas tive a impressão de que me agradecia por tê-lo libertado. Curiosamente, também dizia que, agora, o problema era meu.

Conforme ele se afastava da câmara, comecei a compreender suas palavras. Meu corpo parecia pesado, minha cabeça latejava.

A última coisa da qual me lembro é de recolocar o ídolo em seu pedestal, enquanto tinha a nítida sensação de que um chifre crescia em meu nariz.

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