domingo, 18 de outubro de 2020

Escrito por em 18.10.20 com 0 comentários

Barriga de Aluguel

Barriga de Aluguel é a novela das seis mais antiga da qual me lembro bem. Assisti outras seis antes dela, das quais só me lembro um detalhe ou outro ou quase nada (Vida Nova existiu mesmo?) mas de Barriga de Aluguel eu me lembro de quase tudo, talvez por ter prestado mais atenção, talvez por já estar um pouquinho mais velho quando a assisti (tinha em torno de 12 anos na época). Quando decidi fazer a série de posts sobre as novelas, sabia que ela seria uma das das seis que eu iria abordar, mas acabei demorando um pouco porque tinha duas outras sobre as quais queria falar mais. Não importa. Antes tarde do que nunca, hoje é dia de Barriga de Aluguel no átomo!

Ana (Cássia Kis) e Zeca (Victor Fasano) são bonitos, ricos e bem sucedidos; teriam uma vida perfeita, se não fosse por um detalhe: o maior sonho de Ana é ser mãe, mas, por mais que tente, ela não consegue engravidar. Ana se submete a vários tratamentos de fertilização na clínica do Dr. Molina (Mário Lago), onde também trabalha Miss Penélope Brown (Beatriz Segall), médica geneticista que pesquisa a fertilização in vitro. Quando a dupla conclui que não há nada de errado com a fertilidade do casal, e que é o útero de Ana que não consegue levar uma gestação a cabo, ela decide tomar uma decisão radical, e oferecer uma pequena fortuna para uma jovem que esteja disposta a receber, em seu útero, um óvulo de Ana fertilizado por Zeca, carregando o bebê durante nove meses em seu corpo para depois entregá-lo à mãe biológica.

Entra em cena Clara, jovem pobre que trabalha como balconista durante o dia e dançarina do Copacabana Café durante a noite, e que vê no dinheiro ofertado por Ana a chance de mudar de vida. De início, tudo corre bem, mas, conforme a gravidez vai se desenvolvendo - e a barriga de Clara crescendo - ela passa a se ver em diversos dilemas morais. O principal ponto de tensão não previsto por Clara - que é bastante ingênua, mas se acha super esperta - é a diferença de personalidade entre ela e Ana: Clara é audaciosa, não tem medo de encarar seus problemas, e se mostra sempre afetuosa com todos, enquanto Ana é insegura, não está acostumada a ser contrariada, e explode quando não consegue lidar com alguma situação - o que prejudica até mesmo seu casamento, já que Zeca, que é um homem sensível, que vive à sombra do sucesso da mulher, acaba se vendo apaixonado por Clara, influenciado pela estranha situação de ela estar gerando seu filho.

Escrita por Glória Perez com colaboração de Leila Miccolis, Barriga de Aluguel foi exibida entre 20 de agosto de 1990 e 1 de junho de 1991. A direção coube a Wolf Maya, Ignácio Coqueiro e Sílvio Francisco, com direção geral de Maia, direção executiva de Ruy Mattos e supervisão de Daniel Filho. Pesquisando sobre inseminação artificial numa época em que isso nem era notícia, Glória apresentou a sinopse da novela à Globo em 1985, mas a história foi considerada fantasiosa, e José Bonifácio de Oliveira, o Boni, diretor do núcleo de teledramaturgia, achou que ninguém iria acreditar que uma mulher receber dinheiro para carregar o filho de outra no útero era possível, o que fez com que a ideia fosse rejeitada - e, dizem, a autora chamada de maluca. Quatro anos depois, as barrigas de aluguel da vida real virariam notícia, e a Globo procuraria Glória, que havia sido contratada pela Rede Manchete para escrever a novela Carmem, de 1987, perguntando se ela ainda tinha interesse em escrever sua novela sobre inseminação artificial.

A ideia original da Globo era que Barriga de Aluguel fosse uma novela das oito, que estrearia em 14 de agosto de 1989, logo após O Salvador da Pátria. Reynaldo Boury foi escolhido para a direção, começou a escalar o elenco e a supervisionar a construção da cidade cenográfica. De repente, Boni, alegando que a história não era apropriada para o horário das oito, determinou que a novela seguinte a O Salvador da Pátria seria uma adaptação do romance Tieta do Agreste, de Jorge Amado, e colocou Boury à frente do projeto. Barriga de Aluguel, então, seria passada para o horário das seis, para a equipe de Maia, e adiada em mais de um ano. Até hoje há quem acredite que a novela combinava mais com a faixa das oito, e que talvez seu sucesso tivesse sido ainda maior se ela tivesse sido exibida naquele horário.

Uma das principais preocupações de Glória foi equilibrar a torcida do público entre Ana e Clara, escrevendo cenas nas quais ambas agiriam de forma a ganhar tanto a simpatia quanto a antipatia de quem estava assistindo, para evitar que os telespectadores rotulassem uma como mocinha e a outra como vilã. Depois do nascimento da criança, a justiça da novela promoveria um verdadeiro troca-troca de mães, primeiro dando a guarda para Clara, depois para Ana, para que ambas pudessem mostrar seu lado bom e seu lado ruim como mães. Apesar de todos os esforços, na época (e ainda hoje) prevalecia entre a maior parte da população a opinião de que a mãe é aquela que carregou a criança no ventre, então, desde o início, a torcida por Clara sempre foi muito maior - não importando quantas ações antipáticas ela realizasse. Ao final de cada capítulo, uma repórter perguntava nas ruas para os transeuntes com qual das duas eles achavam que a criança deveria ficar, e, em alguns capítulos, entrevistava médicos, psicólogos, advogados e até padres.

Parte da grande torcida por Clara viria do fato de que, mais do que a "moça que aluga a barriga", ela é uma personagem interessantíssima. Órfã de mãe, foi criada por um pai super religioso e super conservador, Ezequiel (Leonardo Villar), incapaz de compreender a situação da filha, e que, quando descobre a gravidez, imagina que ela dormiu com um homem qualquer e está em pecado, e por sua irmã mais velha, Raquel (Sura Berditchevsky), que abriu mão da própria vida para cuidar do pai, e também não aceita o que a irmã está fazendo. O namorado de Clara, João (Humberto Martins), é um caminhoneiro doce mas rude, filho da viúva Ambrosina (Sônia Guedes), e que tem como maior sonho comprar um caminhão próprio para poder se casar com a moça. As melhores amigas de Clara são a ex-prostituta Yara (Lady Francisco), que mora em Copacabana e dá importantes conselhos à moça, baseados em sua experiência de vida, e a doce Ritinha (Denise Fraga), moça um tanto perdida na vida, que mora com o pai, o espanhol Garcez (Tácito Rocha), amigo de Ezequiel que gosta de cantar, dançar e beber cerveja, e é apaixonado por Ambrosina.

Já no Copacabana Café, onde dança à noite, Clara é amiga de Lulu (Eri Johnson), que de dia trabalha como enfermeiro no hospital chefiado pelo Dr. Molina, e de noite é coreógrafo dos shows do Café; sonhador e perfeccionista, mora de favor com Edith (Anilza Leoni), cartomante que já foi rica e casada com um Senador, que o acolheu quando ele chegou ao Rio de Janeiro. Além de Clara, as dançarinas do Café são Clô (Daniela Perez), Drica (Mariane Egbert), Leninha (Vanessa Barum) e Rosa Aimée (Regina Restelli), a mais velha do grupo, que se ressente por não ter conseguido decolar na carreira artística, vê Clara como uma rival e implica com ela, e imita o visual de Madonna em suas apresentações.

Ana é jogadora de vôlei, e seu time é treinado por Dudu (Paulo César Grande), o melhor amigo de Zeca. Sua melhor amiga é Ciça (Carla Daniel), a jogadora que a substituirá como estrela do time quando ela se aposentar para se dedicar ao filho, que, apesar disso, não a trata com inveja ou despeito, tendo uma amizade verdadeira. Ana tem uma irmã, Moema (Lúcia Alves), mulher batalhadora e inteligente que foi casada com o irresponsável e mulherengo PC (Wolf Maia), tendo o casamento chegado ao fim quando ela descobriu que ele mantinha vários casos com mulheres mais jovens; mesmo separados, porém, eles vivem brigando. Moema e PC têm três filhos, a adolescente Mariana (Cinthia Maranhão), que vive em conflito com a mãe, o menino Pity (Renato Rabelo), que adora o pai e não se conforma com o fim do casamento, e o pequeno Tatau (Caio Junqueira), que sempre se mete em situações constrangedoras por falar demais. Moema mora com os três filhos e a mãe, Vó Lola (Mary Daniel), tem um namorado que os filhos não aceitam, Fernando (Paulo Leite), e uma divertida empregada chamada Mary Black (Wanda Alves).

O Dr. Molina e Miss Brown são dois lados de uma mesma moeda: ele é conservador, gosta de apostar nos métodos que sabe serem certos, e conduz tanto a clínica quanto a equipe do hospital de forma eficiente e organizada; ela adora experimentar métodos novos, está sempre atenta aos principais avanços da ciência, e vive implicando com a forma como ele conduz sua vida. O principal pupilo de Molina é o jovem médico Tadeu (Jairo Mattos), idealista e radical, disposto a lutar por grandes causas, mas que não tem muita paciência com as pessoas, e que, no início da novela, se apaixona por Clara - essa história não daria muito certo, porém, e logo seria descartada, com inclusive Tadeu passando por uma reformulação completa de personalidade para ficar mais agradável para o público, a ponto de chegar a adotar uma menina de rua, Tininha (Alessandra Aguiar), e ganhando um amigo chamado Duarte (Marcelo Saback), que se tornaria seu confidente. Vale citar também o Dr. Barroso (Emiliano Queiroz), médico que já foi idealista, mas, desiludido com a situação da saúde pública no Brasil, hoje se limita a fazer seu trabalho burocraticamente.

O principal médico da equipe de Molina é o Dr. Álvaro Barone (Adriano Reys), extremamente competente, mas também ambicioso e vaidoso, que fica responsável por acompanhar a gravidez de Clara. Barone é casado com Aída (Renée de Vielmond), mulher bonita e de família rica, mas que leva uma vida entediante, e que sabe que o marido tem um caso com a médica Luísa (Nicole Puzzi), praticamente desde antes de se casar com ela, mas não se importa. Luísa é jovem, romântica, e acredita que Barone vai largar a mulher para ficar só com ela, mesmo ele não tendo a menor intenção de fazer isso. Barone e Aída têm uma filha, Laura (Tereza Seiblitz), que vive disputando com a mãe a atenção do pai, e encontra o afeto que não tem em casa em três amigos, Serginho (Ricardo Câmara), Paulinha (Paula Burlamaqui) e Cacá (Tetê Vasconcellos). Completa esse núcleo a melhor amiga de Aída, Dina (Vânia de Brito), para quem ela conta todos os seus segredos. Depois da mudança de personalidade de Tadeu, ele e Aída passam a ter um caso.

Para terminar, falta falar de Dos Anjos (Vera Holtz), mulher misteriosa que trabalha como secretária, mora de aluguel na parte de cima da casa de Ambrosina, e tem como principal diversão tomar conta da vida alheia - principalmente porque é dona do único telefone da rua, então se acostumou a prestar atenção na conversa dos outros quando eles vão usá-lo. Dos Anjos tem um namorado, Chiquinho (Francisco Milani), que na verdade é um pilantra que namora várias mulheres solitárias ao mesmo tempo, enganando-as para que elas o sustentem, com a ajuda do irmão, Ricky (Duda Ribeiro). Também no subúrbio vivem Jonas (Victor Branco), melhor amigo de João e também caminhoneiro, e Jeremias (Pedro Bellini), primo de Clara, tão religioso quanto seu tio Ezequiel. Completam o elenco principal os pais de Zeca, Ramiro (Carlos Kroeber) e Mimi (Ilka Soares), e o delegado José de Oliveira (Jonas Mello).

Barriga de Aluguel teria pequenas participações de Ivon Cury, Cristina Bittencourt, Nelson Dantas, Norma Geraldy, Luís Carlos Arutin (como um homem que vende um caminhão para João), Khristel Bianco (como uma prostituta vizinha de Yara, chamada Dayse), Neusa Amaral (como a juíza do primeiro julgamento da guarda do filho de Ana), e de Marilu Bueno como Sulamita, mesma personagem que interpretou na primeira novela de Glória Perez, Partido Alto, de 1984. A novela contou ainda com uma participação especial do cantor jamaicano Jimmy Cliff, que cantou no Copacabana Café a música Rebel in Me - que, curiosamente, não fazia parte da trilha sonora de Barriga de Aluguel, e sim da novela das oito que estava no ar na época, Rainha da Sucata.

Com 243 capítulos, a novela é a quarta mais longa da Globo até hoje, empatada com a primeira versão de Selva de Pedra (de 1972), e atrás de O Homem que Deve Morrer (de 1971, 258 capítulos), da primeira versão de Irmãos Coragem (de 1970, 328) e de A Grande Mentira (1968, 341) - e Barriga de Aluguel poderia ser ainda mais comprida, mas dois dos dias previstos para sua exibição não tiveram capítulos, um devido à exibição de um jogo entre Brasil e Suécia válido pelo Campeonato Mundial de Vôlei, outro devido a um amistoso de futebol entre Brasil e o Resto do Mundo em comemoração aos 50 anos de Pelé. Inicialmente, Barriga de Aluguel teria apenas 189 capítulos, mas a produção de sua sucessora, Salomé, atrasou, e, ao invés de encerrá-la e colocar no ar uma reprise, a Globo optaria por esticá-la em 54 capítulos - quase dois meses. Apesar de a novela ganhar uma inevitável barriga (sem trocadilho), mais tempo no ar colaborou para aumentar ainda mais seu sucesso, transformando-a em uma das obras de maior média de audiência da faixa das seis, com 48 pontos.

Para sua primeira reprise, no Vale a Pena Ver de Novo, Barriga de Aluguel seria extremamente compactada, sendo exibida entre 5 de julho e 5 de novembro de 1993, em apenas 90 capítulos - pior que isso, somente sua reprise no quadro Novelão, do Vídeo Show, em 10 capítulos, exibidos entre 22 de agosto e 2 de setembro de 2016. Entre uma e outra, ela seria reprisada na íntegra no Canal Viva, entre 1 de dezembro de 2011 e 6 de novembro de 2012.

A trilha sonora nacional contaria com sucessos como Nuvem de Lágrimas, de Fafá de Belém com Chitãozinho & Xororó, Machuca e Faz Feliz, de Byafra, Sonho Encantado, do Yahoo, Sobre o Tempo, do Nenhum de Nós, e, por favor acreditem, Feira de Acari, do MC Batata, uma das mais tocadas nos bailes funk que começavam a virar moda no Rio de Janeiro; a internacional não tinha tantos destaques, podendo ser citadas Heart Like a Wheel, do Human League, I Don't Know Anybody Else, do Black Box, e Lonely is the Night, do Air Supply. A abertura, mais uma vez a cargo de Hans Donner, trazia a barriga da atriz Patrícia Phebo, então grávida, e um foco de luz, como se fossem um planeta e a estrela em torno da qual ele orbita, ao som de Aguenta Coração, de José Augusto, até hoje um dos maiores sucessos de sua carreira; no final, do ponto de vista da grávida, ela abre as pernas e o foco de luz toma conta da tela, representando o nascer do Sol e o ato de dar à luz.

A cidade cenográfica da novela seria construída num terreno em Guaratiba, no Rio de Janeiro, e, além de recriar com perfeição um bairro do subúrbio da cidade, incluía a fachada completa de um gigantesco hospital. Barriga de Aluguel foi a quinta novela da atriz Cláudia Abreu, a primeira como protagonista, tendo o convite sido feito após seu sucesso em Que Rei Sou Eu?; sua atuação como Clara, por sua vez, lhe rendeu um convite para um papel de intenso espectro dramático em Anos Rebeldes, o qual ela tirou de letra, alçando-a ao primeiro time de atores da Globo. A novela marcaria a estreia na Globo de Victor Fasano, Jairo Mattos, Teresa Seiblitz, e de Daniela Perez, filha de Glória, que, infelizmente, só faria mais duas, O Dono do Mundo e De Corpo e Alma, sendo brutalmente assassinada durante as gravações dessa última pelo ator Guilherme de Pádua.

Considerada inovadora, a novela questionaria os limites éticos da inseminação artificial, com o Dr. Molina e Miss Brown frequentemente discutindo as questões científicas do processo, o que ajudou a tornar comum para o povo brasileiro um assunto que até então era visto como de filme de ficção científica. A abordagem da novela a assuntos tão em pauta e ao mesmo tempo tão aparentemente futuristas chamaria atenção no mundo todo, fazendo com que Barriga de Aluguel fosse matéria de vários jornais e revistas internacionais; esse interesse faria com que a novela acabasse vendida para mais de 30 países, incluindo Alemanha, Bélgica, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, Grécia, Itália, Moçambique, Peru, Rússia, Suíça e Turquia.

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