domingo, 12 de janeiro de 2020

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Que Rei Sou Eu?

Faz mais de dez anos que eu não assisto novelas. A última que eu assisti - e, mesmo assim, parei no meio - foi Duas Caras - não, eu não assisti Avenida Brasil, e parece que isso é um pecado mortal. Enfim, antes que eu comece a digressionar, faz mais de dez anos que eu não assisto novelas, mas não porque as odeie, ache que são entretenimento de má qualidade ou coisa assim; simplesmente aconteceu de eu, por preferir fazer outras coisas no horário, não assistir mais. Porque, antes de eu parar de assistir, eu assistia muito. Quando eu era adolescente, acho que assistia a todas as quatro da Globo: a das seis, a das sete, a das oito e Malhação - que eu parei de assistir em 2007. Conforme fui ficando mais velho, fui abrindo mão da das seis, da das sete, de Malhação, até que finalmente parei. Mas o foco desse post não é sobre como eu parei de assistir novelas, e sim sobre como eu comecei a assisti-las. Porque eu comecei bem criança, assistindo Jogo da Vida - que foi exibida quando eu tinha uns três anos de idade.

Quando criança, eu só assistia novelas das sete. Minha mãe não deixava eu e minha irmã, mais nova que eu três anos, assistirmos novela das oito, que era "de adulto", e na hora da novela das seis eu provavelmente estava fazendo alguma coisa muito importante, como brincando, por exemplo. Eu me lembro que a primeira novela das oito que eu assisti foi Rainha da Sucata, quando eu já tinha 12 anos, e, mesmo assim, porque eu enchi muito o saco da minha mãe argumentando que todos os meus amigos assistiam Tieta, a imediatamente anterior. Ela acabou prometendo que, assim que Tieta acabasse, eu poderia acompanhar a seguinte. Das anteriores a Rainha da Sucata, só assisti Vale Tudo e Roque Santeiro, ambas no Vale a Pena Ver de Novo - aliás, quando eu tinha sete anos, na escola, estreou Roque Santeiro, e uma menina da minha turma perguntou no dia seguinte ao da estreia quem tinha assistido ao primeiro capítulo, um monte de gente levantou a mão e eu levantei também, com vergonha. Vale citar que Tieta também acabaria reprisada, mas, curiosamente, eu nunca me animei a assistir.

Mas enfim, digressiono muito, e é melhor voltar aos trilhos antes que esse post jamais comece de fato. O que faremos logo após eu dizer que a primeira novela das seis que eu assisti foi Bambolê, porque me interessei pelas chamadas, e, no Vale a Pena Ver de Novo, assisti também a A Gata Comeu e Sinhá Moça. A última das seis que eu assisti toda foi Alma Gêmea; a seguinte era a refilmagem de Sinhá Moça, eu não me interessei. Na faixa das sete, parei até antes, no final de A Lua Me Disse, porque me recusei a assistir Bang Bang - eu não gosto do Carlos Lombardi, Uga Uga eu só assisti o começo, Vira Lata e Kubanacan eu pulei. Na das oito, a última completa foi Paraíso Tropical, mas ainda comecei Duas Caras, que parei no meio. Conforme eu ia colocando alguma outra coisa no lugar, não me interessava em retornar àquela faixa, só tendo assistido a uns episódios esporádicos desde então.

Agora chega de digressão, vamos voltar ao que interessa: quando criança, eu só assistia novelas das sete, e o motivo era que minha mãe tinha horários muito rígidos para que nós acordássemos, fizéssemos nossas refeições e fôssemos para a cama. A hora de acordar e do almoço dependiam do colégio, mas o jantar era às sete, e às nove já tínhamos de estar deitados na cama. Como o horário do jantar coincidia com o horário da novela das sete, e a televisão normalmente estava ligada enquanto comíamos, era isso que assistíamos. Acabei me interessando, e continuei assistindo mesmo sem obrigação. Podem dizer que eu era noveleiro, não me envergonho disso, até porque, nunca fiz a conta, mas, se somar tudo, eu devo ter assistido a mais de cem novelas completas. E, se alguém perguntar de qual delas eu gostei mais, respondo sem pensar durante um único segundo: Que Rei Sou Eu?. Que, após essa introdução um tanto comprida e talvez meio confusa, é o tema do post de hoje.

Que Rei Sou Eu? foi originalmente exibida entre 13 de fevereiro e 15 de setembro de 1989, na faixa das sete, com um total de 185 capítulos. Na época, eu tinha uns 11 anos (os completei em março), de forma que acho que foi a primeira novela que eu "aproveitei" - eu gostei muitíssimo de algumas que assisti antes, como Um Sonho a Mais, Cambalacho e a já citada Bambolê, mas, possivelmente por ser muito criança, tenho a impressão de que talvez não tenha compreendido essas obras em sua plenitude. Que Rei Sou Eu? eu também não devo ter compreendido em sua plenitude, mas eu me lembro de que tive com ela uma relação diferente das que tive com as que vieram antes, talvez também por seu estilo de filme de capa e espada, que me cativou. Creio que todos vocês que estão lendo sabem do que eu estou falando, aquele sentimento quando a gente assiste um filme na infância e finalmente tem a impressão de estar "entendendo tudo", mesmo que esteja deixando passar alguma coisa.

Devido ao seu enorme sucesso, a novela seria reprisada quase que imediatamente após seu fim, entre 23 de outubro e 29 de dezembro de 1989, não no Vale a Pena Ver de Novo, mas na Sessão Aventura, condensada em 50 capítulos, que eu assisti também - o que provavelmente contribuiu para que ela ficasse tão firmemente gravada em minha memória, e para que eu gostasse ainda mais. Entre 7 de maio de 2012 e 18 de janeiro de 2013, ela foi reprisada mais uma vez, então na íntegra, no canal por assinatura Viva; dessa vez, porém, eu infelizmente não pude assistir. Mas no final de 2018 eu comprei o box em DVD - que, infelizmente, não traz a versão na íntegra, e sim a condensada da Sessão Aventura - e, ao longo de 2019, o assisti. Foi isso, aliás, que me animou a escrever esse post. Vale citar que eu fiquei espantado como me lembrava de quase tudo, o que é uma prova de que eu realmente aproveitei bem quando assisti da primeira vez.

Que Rei Sou Eu? era ambientada no fictício país de Avilan, no ano de 1786. Localizado no centro da Europa - em um dos episódios, é dito que faz fronteira com a Suíça e com a Itália - Avilan é um país riquíssimo em recursos naturais, mas onde o povo vive na miséria, enquanto seus governantes, graças a contratos lucrativos principalmente com o exterior, têm uma vida de luxo e riqueza. A corrupção dos governantes faz com que a moeda da Avilan, o Duca, seja uma das mais desvalorizadas do mundo, o que leva a altos impostos e mirabolantes planos econômicos para tentar equilibrar a economia do país - o que nunca acontece por causa das imensas comissões garantidas aos membros do governo em cada transação econômica. Qualquer semelhança com o Brasil de 1989 (e talvez, até, com o atual) não era mera coincidência: naquele ano, o país, afundado em corrupção, inflação e dívida externa, se preparava para a primeira eleição para Presidente da República em quase 30 anos; a novela, portanto, era não somente uma sátira ao que acontecia em nosso país, mas também um alerta - que, infelizmente, não foi ouvido.

Avilan é uma monarquia, governada pelo Rei Petrus II (Gianfrancesco Guarnieri), que, com sua legítima esposa, a histriônica Rainha Valentine (Tereza Rachel), só teve uma filha, a Princesa Juliette (Cláudia Abreu). Em seu leito de morte, porém, Petrus II revela a seu principal conselheiro, o bruxo Ravengar (Antônio Abujamra), que teve um filho bastardo com uma camponesa chamada Maria Fromet, e, em seu testamento, de acordo com as leis de Avilan, decreta que esse filho é o legítimo herdeiro da Coroa. Valentine, evidentemente, se desespera, pois o novo rei pode acabar com a mamata que corre solta no governo; Ravengar, então, bola um plano diabólico: com a ajuda de sua assistente Fanny (Vera Holtz), ele seleciona um mendigo, chamado Pichot (Tato Gabus Mendes), e o convence de que ele, na verdade, é Lucien Élan, o filho bastardo de Petrus II. O plano de Ravengar é apresentar "Lucien" à corte como o filho citado por Petrus II em seu testamento e fazer com que ele assuma o trono como Petrus III, o que permitiria que, na realidade, Ravengar e Valentine governassem, usando Pichot como um mero fantoche.

Mas o filho bastardo de Petrus II está vivo, e se chama Jean Pierre (Edson Celulari). Criado pela cigana Loulou Lyon (Ítala Nandi), Jean Pierre lidera um grupo de rebeldes que luta para derrubar o governo corrupto e instaurar um governo do povo. Quando fica sabendo da morte de Petrus II, Loulou revela a Jean Pierre que ele é o verdadeiro herdeiro do trono, e que ela possui um par de anéis, confiados a ela pela própria Maria Fromet, que podem prová-lo; ela pede que ele aja com cautela, porém, mantendo sua condição em segredo, pois sabe que Ravengar estaria disposto a até mesmo matá-lo para não abrir mão do poder.

O elenco da novela contava com vários personagens memoráveis. No núcleo da corte se destacava o Conselho do Rei, responsável por criar as leis e pela corrupção que afligia o país, em uma clara alegoria para o Congresso Nacional da época - em um dos episódios, um dos Conselheiros propõe acabar com os pedágios nas estradas de Avilan e criar um selo que deveria ser colado na testa dos cavalos, exatamente como os selos de pedágio que foram criados para serem colados nos para-brisas dos carros brasileiros na época. Originalmente, os Conselheiros eram Gaston Marny (Oswaldo Loureiro), Conselheiro das Armas; Bidet Lambert (John Herbert), Conselheiro dos Mares (de um país que não tinha nenhuma saída para mar algum); Bergeron Bouchet (Daniel Filho), Conselheiro da Moeda; Gerard Laugier (Laerte Morrone), Conselheiro da Alimentação; Crespy Aubriet (Carlos Augusto Strazzer), Conselheiro do Trabalho (que nunca trabalhou um dia na vida); e Vanoli Berval (Jorge Dória), Conselheiro dos Transportes. No meio da novela, Strazzer teve de se afastar para fazer um tratamento contra AIDS, e Crespy foi substituído no Conselho por Roland Barral (Guilherme Leme), sobrinho de Vanoli (que sempre se referia a ele como "titio", termo que Vanoli odiava). Apesar de ser o Conselheiro do Rei, Ravengar não era um membro formal do Conselho, não participando de suas reuniões nem de suas tramoias.

Bergeron era o único Conselheiro honesto e preocupado com o povo; criou um plano econômico que foi sabotado pelos grandes produtores e acabou deposto, condenado à guilhotina. Segundo as leis de Avilan, se a guilhotina falhasse, o prisioneiro deveria ser libertado. Comprada da Alemanha a peso de ouro, a guilhotina sempre falhava, exceto nos testes, o que fazia com que, na prática, ninguém jamais tivesse sido guilhotinado. No caso de Bergeron, não foi diferente, mas, temendo que ele pudesse unir o povo contra eles, os demais Conselheiros decidiram ordenar que ele fosse levado até a fronteira com o reino vizinho de Salsaparrilha e espancado até a morte. Bergeron, entretanto, sobreviveu, sendo salvo pelos irmãos Michel (Marcelo Picchi) e Charlotte (Cristina Prochaska), que estavam saindo de Salsaparrilha para tentar a sorte em Avilan. Ele perderia, porém, a memória, passando a se chamar André. Mais pro final da novela, Bergeron recuperaria a memória e se tornaria um dos maiores aliados de Jean Pierre na luta para derrubar Petrus III.

Bergeron era casado com Madeleine (Marieta Severo), que escrevia textos feministas (algo inédito em uma novela, na época) e lutava pelos direitos das mulheres. Valentine odiava Madeleine, já que era apaixonada por Bergeron e queria fazer dele seu amante; já Ravengar era apaixonado por Madeleine, e estava disposto a usar de bruxaria para que ela correspondesse a seus desejos. Ravengar, aliás, era astrólogo, hipnotizador, e, de início, possuía apenas poderes que poderiam ser vistos como truques, como fazer objetos se moverem à distância e velas acenderem e apagarem; no decorrer da novela, porém, ele foi ficando cada vez mais poderoso, sendo capaz de transformar um objeto em outro, levitar a si mesmo e a outras pessoas, e até mesmo fazer com que objetos entrassem em combustão. Após a metade da novela, Ravengar também ganharia uma palavra mágica (muslabu), com a qual usava seus poderes.

Gerard e Vanoli também eram casados. Gerard com a belíssima Lucie (Ísis de Oliveira), que o traía com praticamente todos os jovens bonitões que encontrava pela frente, principalmente porque, apesar de extremamente apaixonado por ela, Gerard era impotente, tentando vários tratamentos com afrodisíacos (dentre eles o "pó de corno") para conseguir consumar seu casamento. Já Vanoli se casou com Suzanne (Natália do Vale), filha do queijeiro Roger Webert (Fábio Sabag). Diferentemente de Lucie, que não se importava de ser casada com um homem mais velho e mau-caráter para usufruir dos prazeres da corte, Suzanne odiava Vanoli com todas as suas forças, principalmente por ter sido obrigada a se casar com ele por seu pai ter perdido uma aposta. Suzanne era apaixonada por Jean Pierre, e, para não fazer sexo com Vanoli, contrataria uma prostituta chamada Monah (Totia Meirelles), convencendo o Conselheiro de que só conseguia transar de máscara.

No núcleo do povo, o principal personagem era Corcoran (Stênio Garcia), melhor amigo de Jean Pierre, que conseguiu um emprego como bobo da corte para servir de espião dentro do palácio; até então, Stênio, de 57 anos, era conhecido apenas como parceiro de Antônio Fagundes em Carga Pesada, com sua excelente atuação em Que Rei Sou Eu? alçando-o ao primeiro time de atores da Rede Globo. Assim como Corcoran, Aline (Giulia Gam) também fazia parte do grupo dos rebeldes e agia como espiã no palácio, trabalhando na cozinha. Aline era a namorada de Jean Pierre, fazendo um triângulo amoroso com ele e Suzanne, e foi uma das primeiras mulheres empoderadas das novelas, sabendo lutar com espada com maestria e não ficando nada a dever em coragem e ousadia em relação aos homens do grupo. Além de Corcoran e Aline, os principais rebeldes eram Bertrand (Paulo César Grande), Pimpim (Marcos Breda) e Godard (Ivan Setta).

Loulou Lyon era dona de uma taverna, e as moças que lá trabalhavam tinham quase todas alguma relação com a corte ou com os rebeldes: Denise (Desireé Vignoli) era o interesse romântico de Bertrand, e seria aia de Roland; Cozette (Carla Daniel) era apaixonada por Pichot, mas, depois que ele se tornou rei, essa história foi abandonada, e ela passou a ser aia de Bidet; e Lili (Cinira Camargo) era apaixonada por Crespy, e agia como sua espiã em meio aos rebeldes. Também faz parte do núcleo da taverna Vady (Cacá Barrete), que fica atrás do balcão servindo as bebidas. A taverna conta com a "noite dos nobres", onde somente os nobres podem desfrutar de suas instalações, e, após Bergeron e Madeleine se unirem aos rebeldes, passa a ser palco de um teatrinho satírico que critica o governo - de Avilan e do Brasil. Ao saber do teatrinho, Gerard decide censurá-lo, usando um enorme lápis vermelho para editar seus roteiros.

No meio da novela, chegariam a Avilan François Gaillard (Edney Giovenazzi) e sua esposa Lenore (Aracy Balabanian), que, na verdade, era Maria Fromet, que fugiu de Avilan e decidiu mudar de nome ao se casar. O casal vem a Avilan porque François tem negócios com Vanoli, mas Lenore quer aproveitar para descobrir se Pichot é realmente seu filho; ao notar que ele não tem o anel, ela fica desconfiada, e passa a auxiliar os rebeldes, por fim descobrindo que seu filho é Jean Pierre.


Outros personagens de destaque na novela são Zmirà (Mila Moreira), aia pessoal da Rainha Valentine; Balesteros (José Carlos Sanches), o chefe da guarda do palácio; Madame Gaby (Zilka Sallaberry), a chefe da cozinha do palácio; Anette (Soraya Ravenle), colega de Aline na cozinha; Arnúbio (Luiz Magnelli), o arauto do palácio; e a Princesa Ingrid Merryl (Betty Gofman), que vem da Áustria para se casar com Petrus III em um casamento arranjado pelos dois governos. Também valem ser citadas Hilda Rebello (mãe do diretor Jorge Fernando) e Maria Cardoso como as aias da Rainha, sempre presentes em suas cenas, mas que nunca falam e não têm nomes.

O sucesso da novela levaria a um grande número de participações especiais de atores e atrizes de destaque. Os principais foram a Baronesa Lenilda Eknézia (Dercy Gonçalves), mãe de Valentine e avó de Juliette; o Barão Von Lounchas (Antônio Pedro), tio de Ingrid; o espanhol Dom Curro de la Grana (Carlos Kroeber), inspetor do FFF (Fundo Financeiro do Futuro, uma paródia do FMI, Fundo Monetário Internacional, para quem o Brasil devia dinheiro na época); o também espanhol Marquês de Castilha (Ítalo Rossi), ancião com quem Valentine quer casar Juliette por dinheiro; a Marquesa d"Anjou (Eva Wilma), contratada para escrever a biografia de Valentine; e o velho La Roche (Emiliano Queiroz), procurado por Ravengar porque conheceu Maria Fromet na época em que ela tinha o caso com Petrus II. Participações de apenas um capítulo incluem Tuca Andrada com um ferreiro contratado por Ravengar para fazer uma máscara de ferro para prender Jean Pierre; Carlos Kurt como o ferreiro Dupont, que tenta remover essa máscara; Francisco Dantas e Catalina Bonaky como o Barão e a Baronesa Rochelle; Ilka Soares como a Marquesa de Lorredan; Milton Gonçalves como o alemão Herr Whisky; Luis Gustavo como Charles Muller (que, na vida real, trouxe o futebol para o Brasil), e o ex-jogador Roberto Dinamite como Bobby Dynamite, que Muller leva à corte para apresentar o futebol para Avilan; o comediante Cazarré como um Marquês sem nome; e Henriquieta Brieba e Lícia Magna como duas nobres assaltadas numa estrada a caminho do castelo. Tonico Pereira, Paulo César Pereio e Jorge Fernando também participam como guardas do palácio. Fausto Silva, o Faustão, participa indiretamente, quando um quadro com seu rosto é apresentado como um "retrato falado" do Conselheiro Crespy.

Alguns personagens eram citados em vários capítulos, mas nunca apareceram, como o Visconde de Avec Vous e o empresário Taji Nahal. Esse último deveria ter sido interpretado por Chico Anysio, que chegou a gravar sua cena. Com nome claramente inspirado no do famoso mausoléu indiano, Taji Nahal seria um empresário picareta que aplicaria um golpe na Bolsa de Valores de Avilan e fugiria com o dinheiro. O personagem seria inspirado em Naji Nahas, investidor que, na época, estava sob suspeita de ter aplicado um golpe na Bolsa de Valores de São Paulo, e, ao saber do personagem, seu advogado entrou em contato com a Globo, ameaçando processar a emissora caso ela decidisse "condenar um cidadão inocente antes da justiça". Para evitar complicações, a Globo decidiria jamais exibir a cena, mas as referências a Taji Nahal nos episódios anteriores a ela, já que não o "condenavam" - e já que muitas já haviam ido ao ar - acabariam mantidas.

Que Rei Sou Eu? seria escrita por Cassiano Gabus Mendes com colaboração de Luís Carlos Fusco, e dirigida por Fabio Sabag, Mário Márcio Bandarra e Lucas Bueno, com direção geral de Jorge Fernando, direção executiva de Roberto Talma e supervisão de Daniel Filho. Cassiano apresentaria a ideia da novela à Globo pela primeira vez em 1977, mas, achando que a censura jamais a aprovaria, a direção do canal decidiu não produzi-la; o autor faria modificações e a reapresentaria em 1983, quando a Globo achou que a conjuntura política da época ainda não permitia uma sátira daquele porte. Foi somente com o fim da censura federal que a emissora decidiu procurar Cassiano e perguntar se ele ainda estava disposto a transformar sua ideia em uma novela.

A escolha de um país europeu no qual (aparentemente, pelo nome dos personagens) se fala francês para cenário da novela não se daria por acaso, já que no ano de sua estreia, 1989, seriam completados duzentos anos da Revolução Francesa - que ocorreria três anos depois da data na qual a história da novela começa. Para ambientar a novela nesse ano e cenário, seria feita uma extensa pesquisa pela equipe de produção da Globo, com a criação de mais de 400 figurinos pelo figurinista Marco Aurélio, que se inspiraria no musical da Broadway Os Miseráveis. Vários dos membros do elenco tiveram de aprender esgrima e ter aulas de como se portar de acordo com os maneirismos do século XVIII. Um dos pontos mais comentados do figurino era a maquiagem que Corcoran usava como bobo da corte, criada por Eric Rzepecki, e que levava de duas a três horas para ser finalizada.

Exceto pelos interiores, gravados em estúdio, e por algumas cenas gravadas na Floresta da Tijuca, as gravações seriam realizadas em um terreno da Globo em Jacarepaguá, de 2200 m2, onde seriam construídos a vila onde moravam os personagens pobres, com 14 casas e direito à praça da guilhotina, e o palácio, com 30 m de frente e uma torre de 26 m de altura. Gravar as externas era extremamente desgastante para os atores, já que a maior parte dos figurinos era de roupas com mangas e calças compridas para os homens, anáguas e espartilhos para as mulheres, perucas e apliques de cabelo para todos (exceto Corcoran), e as gravações ocorriam sob um calor infernal. Apesar de tudo, todos os atores se divertiram muito durante as gravações, dando tudo de si em retribuição. Mesmo isso sendo extremamente incomum, já que os maiores orçamentos eram os das novelas das oito, não das sete, Que Rei Sou Eu? seria a novela mais cara produzida pela Globo até então, com orçamento estimado em 45 milhões de cruzados novos, o equivalente na época a cerca de 12 milhões de dólares.

Assim como as demais novelas da Globo na época, Que Rei Sou Eu? teve uma trilha sonora nacional (ou seja, composta somente de músicas nacionais) e uma internacional (ou seja, composta somente por músicas internacionais, e que só estreava após a metade da novela), ambas lançadas em LP e cassete. A trilha nacional incluía, por exemplo, Nossa Luz, de Fagner; Chama, do Roupa Nova; Espanhola, de Kleyton e Kledir; Bye Bye Tristeza, de Sandra de Sá; As Muralhas do Teu Quarto, de Wando; e Raça de Heróis, de Guilherme Arantes. Quase todas as músicas da trilha nacional seriam compostas especialmente para a novela, e seus intérpretes eram uma mostra do melhor que o final dos anos 1980 tinham a oferecer em nosso país. Já a trilha internacional contava, dentre outras, com Eternal Flame, dos Bangles; Bamboleo, dos Gipsy Kings; Orinoco Flow, de Enya; Patience, do Guns n' Roses; e, por incrível que pareça, How Can I Go On?, de Freddy Mercury e Montserrat Caballé, escolhida para ser o tema da Rainha Valentine.

A música de abertura, chamada Rap do Rei, trazia um sampler de La Marseillaise, o hino nacional da França, e foi composta por ninguém menos que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, homem forte do entretenimento da Globo, sendo interpretada pelo cantor Luni, com Marisa Orth, que ainda não era atriz nem conhecida do grande público, como backing vocal. A abertura fazia referência a grandes conflitos da história da humanidade, começando na Idade de Pedra, passando pelos romanos, vikings, Idade Média, Era Napoleônica, pela Primeira e Segunda Guerra Mundiais e chegando até o futuro, onde homens com lasers desembarcam de uma nave espacial. A abertura seria criada por Hans Donner, mas, diferentemente das obras cheias de efeitos de computação pelas quais ele ficaria conhecido, só usaria truques de câmera e efeitos tradicionais: todas as oito cenas da abertura foram gravadas no mesmo cenário, que contava com fumaça de gelo seco, iluminação especial e com uma espécie de catapulta que jogava terra pra cima para simular uma explosão. Somente a guilhotina e a coroa do final da abertura, antes do título, eram feitos de computação gráfica.

Mas o mais impressionante sobre Que Rei Sou Eu? é que, passados mais de 30 anos desde sua estreia, ela continua atual - é impossível não identificar situações ainda corriqueiras no Brasil de 2020 nas falas dos Conselheiros, nas reclamações do povo ou no discurso dos rebeldes. Talvez essa seja apenas mais uma prova de que, assim como o povo de Avilan, nós ainda temos muito pelo que passar antes de finalmente podermos bater no peito e professar nosso orgulho enquanto cidadãos.

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