Por alguma razão, sempre que eu me lembro dessa época, me lembro do filme Tron. Tron é um clássico da minha infância, uma época na qual o único computador que eu conhecia tinha uma tela minúscula, preta e verde, e era pouco mais que uma máquina de escrever combinada com uma calculadora - e, ainda assim, era um prodígio tecnológico se comparado ao que tinha no trabalho do meu pai, que ocupava uma sala inteira e funcionava movido a válvulas e cartões furados. Tron me mostrou que computadores eram capazes de mais do que letras, números e gráficos em ASCII. Ao ler esses dois últimos parágrafos, uma criança de hoje deve imaginar que foram escritos por alguém que cavalgou dinossauros, mas não importa: mais feliz fui eu que convivi com esses computadores toscos mas brinquei na rua, ao invés de ficar o dia todo em frente a um computador moderno, como já faço agora.
Enfim, deixemos o rancor de lado e vamos ao post de hoje, que, obviamente, fala sobre Tron.
Tron, que no Brasil ganhou o subtítulo Uma Odisseia Eletrônica, foi dirigido por Steven Lisberger, que teve a ideia para o filme em 1976, ao ver o jogo Pong pela primeira vez. Lisberger, na época um animador dono de um pequeno estúdio, se fascinou imediatamente pelo mundo dos videogames, e quis fazer um filme que retratasse esse novo mundo que começava a surgir. Na década de 1970, era comum um tipo de animação chamado backlit animation, na qual luz era projetada através de filtros coloridos posicionados por detrás dos fotogramas, para criar efeitos como luminosidade colorida, neon ou fogo. Lisberger imaginou que a técnica seria perfeita para retratar o interior de um computador, no qual os programas disputariam um esporte similar ao Pong. Ainda segundo ele, a natureza dos computadores, com circuitos complicados e funções que só podiam ser acessadas através do teclado ou mouse, fazia com que o grande público não se sentisse próximo a eles, e retratar seu interior como uma cidade na qual os programas são como pessoas contribuiria para torná-los mais simpáticos.
Lisberger e seu sócio, Donald Kushner, se mudariam para a Califórnia em 1977, e abririam um novo estúdio, especialmente para produzir seu novo filme, ao qual ele havia decidido chamar de Tron - de eleTRONico. A princípio, o filme teria um início e um final com atores, e seu meio seria feito misturando computação gráfica e backlit animation. Lisberger e Kushner prepararam alguns storyboards e tentaram oferecer o filme para que fosse patrocinado por alguma empresa de computadores, mas nenhuma se interessou. Uma delas, entretanto, a Information International, gostou da ideia, mas não tinha orçamento para bancar o filme caso ele fosse totalmente produzido pelo estúdio de Lisberger. Lisberger e Kushner, então, decidiram oferecê-lo a um estúdio grande. A Warner, a MGM e a Columbia declinaram do projeto, mas a Disney, que estava mesmo procurando um roteiro diferente e inovador, aceitou, mas com algumas ressalvas.
O ano era 1980, e a previsão era de que todo o projeto consumisse entre 10 e 12 milhões de dólares, uma fortuna para a época. Evidentemente, a Disney não estava disposta a investir tanto dinheiro em algo que jamais havia sido tentado sem saber se o resultado final valeria a pena, por isso, ela encomendaria a Lisberger um teste, uma pequena sequência que misturava computação gráfica, animação e um ator de carne e osso, no papel de um campeão do esporte que apareceria no filme, no qual discos eram lançados para destruir o oponente. A Disney gostou do resultado e deu a luz verde para o projeto, mas pediu para que o roteiro, considerado inconsistente, fosse reescrito por Lisberger, sob supervisão dos roteiristas da Disney.
Lisberger e Kushner enfrentaram muitas dificuldades para filmar Tron, começando pelo fato de que os animadores da Disney eram um grupo muito fechado, que não gostava de trabalhar para "estrangeiros", muito menos sob ordens deles. No campo técnico, surgia um desafio atrás do outro, já que a computação gráfica ainda era novidade, e ninguém nunca havia tentado fazer um filme misturando-a a atores, quanto mais um longa metragem. A Disney teve de fechar acordo com todas as principais companhias de computação gráfica da época: a MAGI e Digital Effects de Nova Iorque; a Robert Abel and Associates (RA&A), de Los Angeles; e a já citada Information International, de Culver City, Califórnia, lar do único computador Super Foonly F-1 PDP-10 do planeta, o mais veloz da época, além de contar com a consultoria de Bill Kovacs, que em 1984 fundaria a Wavefront Technologies. Devido à distância entre as sedes e à complexidade do trabalho, todas essas empresas trabalhariam em separado, cada uma em um segmento, ao invés de todas em conjunto, o que resultaria em diversos estilos diferentes de computação gráfica no resultado final.
Para criar o visual futurista do filme, a Disney contrataria o artista francês Moebius, o designer industrial Syd Mead (também responsável pelo visual de Blade Runner) e o designer de comerciais Peter Lloyd, famoso por seus cenários high-tech. A princípio, Moebius desenharia os figurinos, Mead os veículos e Lloyd os cenários, mas ao longo da produção um se intrometeria no trabalho do outro, dando dicas e contribuições. Para poder acomodar os inúmeros efeitos especiais, a Disney optou por filmar em 65mm, mas as sequências de computação gráfica não ficaram boas nesse formato, então tiveram de ser filmadas em 35mm e depois espandidas para o formato do resto do filme. Dificuldades técnicas também fariam com que atores também participassem do meio do filme, que, na visão inicial de Lisberger, seria apenas de computação gráfica e animação.
Tron entraria para a história como o primeiro filme a usar computação gráfica, por isso é espantoso saber que menos de 20 minutos do filme usariam a técnica, por causa da dificuldade e do elevado custo. Além disso, como ainda não existia a tecnologia para colocar atores e CG na mesma cena, as cenas de CG tiveram de ser intercaladas com as dos atores, e, nas cenas nas quais os "efeitos de computação" se sobrepõem aos atores, são efeitos, na verdade, de animação. Para conseguir o efeito desejado, a solução foi filmar em preto e branco e depois usar técnicas como a backlit animation e a rotoscopia, na qual detalhes são pintados diretamente sobre o filme. A Kodak produziu fotogramas especificamente para o filme, de tamanho e contraste muito maior que o normal, para facilitar a vida dos animadores e diminuir os custos da produção. Esses fotogramas vinham em caixas sequencialmente numeradas, para que os animadores as usassem na ordem e diminuíssem os problemas de falta de consistência na imagem causados por variações no material; infelizmente, os animadores não perceberam isso, e usaram os fotogramas em qualquer ordem, o que resultou em ruídos e tremulação em algumas cenas. Na época, a solução adotada foi acrescentar alguns efeitos sonoros para parecer que era um "defeito do computador"; quando chegou a hora de lançar o filme em DVD, Lisberger pediu para que essas cenas fossem digitalmente corrigidas, pois o "defeito", além de não estar em sua visão original, não fazia sentido.
Toda a criação sonora ficaria a cargo de Frank Serafine, responsável também pelo som do primeiro filme de Jornada nas Estrelas. Tron é até hoje o único filme a ter cenas filmadas dentro do Lawrence Livermore National Laboratory, um dos mais famosos laboratórios de computação da Califórnia, e seria o primeiro filme a ter mais de 500 pessoas envolvidas em sua produção, incluindo 200 coloristas do estúdio Cuckoo's Nest de Taiwan. Como isso não era comum em uma produção norte-americana da época, seus nomes, nos créditos, foram escritos em chinês.
Agora que já estabelecemos tudo isso, só falta mesmo dizer do que o filme se trata: o protagonista de Tron é o engenheiro Kevin Flynn (Jeff Bridges), ex-funcionário da ENCOM e atual dono de um fliperama. Flynn acusa seu antigo chefe, Ed Dillinger (David Warner), de roubar suas ideias para vários jogos lançados pela ENCOM. Para tentar provar, ele invade a empresa com a ajuda de dois outros engenheiros amigos seus, Alan Bradley (Bruce Boxleitner) e Lora Baines (Cindy Morgan). O que Flynn não sabe é que o novo software de inteligência artificial desenvolvido por Dillinger, o MCP (de Master Control Program, o "programa de controle mestre", dublado por Warner), não somente está controlando todos os computadores da ENCOM, como também planeja controlar todos os computadores do mundo. O MCP vê em Flynn uma ameaça, e, usando um laser experimental, o transporta para dentro do computador.
Dentro do computador, Flynn é confundido com um programa, e enviado para morrer nos Jogos, uma espécie de versão tecnológica dos embates gladiatoriais, que incluem um combate no qual dois oponentes devem destruir um ao outro arremessando discos-bumerangue e uma corrida em motos supervelozes (as light cycles), capazes de fazer curvas em 90 graus, e que se destroem com qualquer impacto. Nos Jogos, Flynn se une aos programas Tron (também Bruce Boxleitner), Yori (também Cindy Morgan) e Ram (Dan Shor) para enfrentar o MCP e seu principal general, Sark (também David Warner), buscando não somente acabar com os planos do software vilão, mas também encontrar uma forma de voltar para casa.
Tron estrearia em 9 de julho de 1982, após consumir 17 milhões de dólares. Já em seu primeiro final de semana, renderia 4 milhões, e, ao todo, nos Estados Unidos, 33 milhões, sendo considerado um sucesso moderado. A crítica se dividiu, com alguns o considerando um marco, outros achando o roteiro fraco e os efeitos especiais exagerados. O filme seria indicado aos Oscars de Melhor Figurino e Melhor Som, mas não a Melhores Efeitos Especiais - acreditem ou não, como o filme usava computação gráfica, foi considerado inelegível pela Academia, como se estivesse trapaceando. Entre o público, o filme rapidamente se tornaria cult, e influenciaria toda uma geração de cineastas, incluindo John Lasseter, da Pixar, que declararia que "sem Tron, não existiria Toy Story".
Por isso, conhecendo a tradição hollywoodiana, é de se estranhar que Tron tenha demorado tantos anos para ganhar uma sequência. Os primeiros boatos de um "Tron 2" começariam a surgir apenas em 1999, e davam conta de que o novo filme seria feito pela Pixar, totalmente em CG. Em 2003, esses boatos foram desmentidos, e foi anunciado que a Disney realmente trabalhava em uma sequência. Mais não foi dito até 2008, quando, de surpresa, sem avisar ninguém, durante a Comic-Con, a Disney exibiu um video chamado Tr2n, no qual um programa amarelo e um azul se enfrentavam em uma corrida de light cycles enquanto Kevin Flynn, evidentemente bem mais velho que no filme original, observava. O final de Tr2n trazia uma surpresa: ao remover o capacete, o programa amarelo revelava ser CLU, o programa que Flynn usava no começo do Tron original, e tinha a mesma aparência jovem que Bridges tinha no filme original.
Somente a partir de então a produção da sequência começaria pra valer. O título Tr2n acabaria trocado para Tron: O Legado (Tron: Legacy no original), segundo Bridges, porque o filme tratava da busca de um filho por seu pai. Assim como o original tinha um início e um final filmados tradicionalmente, com um meio em computação gráfica, a Disney optou por fazer o início e o final de Tron: O Legado em 2D e o meio em 3D, utilizando modernas câmeras Sony F35s. Com mais modernas técnicas de computação gráfica à disposição, realizar o filme seria bem mais fácil, e permitiria avanços como mostrar mais de uma batalha de discos simultaneamente, ou corridas de light cycles com pontes, túneis e curvas mais suaves que os 90 graus do filme original - diz o boato que, antes de começar a filmar Tron: O Legado, a Disney teria mostrado o Tron original para uma plateia de adolescentes, que teria reclamado muito das curvas em 90 graus, dizendo que eram "fisicamente impossíveis". Apesar das evidentes diferenças tecnológicas, a Disney procurou fazer o visual dos veículos, programas e cenários o mais parecido possível com os do filme original, para criar uma sensação de continuidade. A trilha sonora ficaria toda a cargo do grupo francês Daft Punk, cujos membros são fãs declarados do Tron original.
Tron: O Legado seria dirigido pelo estreante Joseph Kosinski, e produzido por Lisberger. Após os eventos do primeiro filme, ao fim do qual Flynn consegue provar que Dillinger roubou suas ideias, Flynn se torna presidente da ENCOM, e transforma a empresa em uma das maiores do ramo de software e games. Mas um dia, em 1989, Flynn desaparece misteriosamente, e deixa seu filho, Sam, para ser criado pelos avós, convivendo com as acusações de que seu pai teria feito algum negócio excuso e fugido. Vinte anos se passam e Sam (Garrett Hedlund), apesar de ser o acionista majoritário da ENCOM, não está muito interessado em seguir os negócios do pai, preferindo pregar peças nos atuais executivos da empresa. Um dia, Alan Bradley (Bruce Boxleitner), ainda funcionário da ENCOM, lhe diz que recebeu uma ligação de um número localizado no fliperama de Flynn, desativado há anos. Sam decide investigar, e acaba atingido por um laser que o leva para dentro do computador instalado no porão do fliperama.
Lá dentro, Sam descobre que a ligação foi um plano de CLU, o antigo programa de Flynn, e que Flynn esteve dentro do computador esses anos todos. O problema é que, se tiver acesso ao disco de Flynn, CLU conseguirá sair do computador para o mundo real, e, como é obcecado por criar a sociedade perfeita, colocará nosso mundo em risco. Diante disso, Flynn não podia tentar arriscar sair do computador e ver seu disco cair nas mãos de CLU, e preferiu viver por lá, na companhia da programa Quorra (Olivia Wilde), que toma como sua aprendiz. Sam, entretanto, acha que vale a pena correr o risco para voltar a viver no mundo real com seu pai, e, com a ajuda de Quorra e de outros programas como Castor (Michael Sheen) e Gem (Beau Garrett), tentará enganar CLU e seus aliados, o inteligente mas covarde Jarvis (James Frain) e o campeão de luta de disco Rinzler (Anis Cheurfa), para levar Flynn até o portal de saída.
Um dos efeitos especiais mais comentados de Tron: O Legado foi o visual de CLU, que tem a aparência de Flynn na época do primeiro filme. Para conseguir o efeito, os técnicos da Digital Domain trabalharam com cenas de vários filmes da década de 1980 estrelados por Bridges para criar um modelo em 3D de sua face quando jovem. Bridges, então, gravou todas as cenas como CLU, e, durante a pós-produção, seu rosto foi substituído pelo modelo. Embora em algumas cenas dê para perceber que se trata de computação gráfica, e não de um ator, o resultado final foi bastante convincente.
Lançado em 17 de dezembro de 2010, Tron: O Legado custou dez vezes mais que seu antecessor, nada menos que 170 milhões de dólares. O filme sofreu as mesmas críticas do anterior, de que seus efeitos especiais seriam exagerados, e o roteiro, fraco, mas isso não parece ter afetado o público, que lhe deu uma bilheteria de 172 milhões nos Estados Unidos e 400 milhões de dólares no mundo todo. Embora o que arrecadou nos Estados Unidos tenha sido pouco mais que o suficiente para se pagar, a Disney o considerou um sucesso.
Até porque, hoje em dia, um filme não obtém seus rendimentos apenas da bilheteria. Se o Tron original deu origem a jogos para Atari, Intellivision e arcade, Tron: O Legado foi lançado junto com uma enxurrada de merchandising, que incluía games, action figures, quadrinhos, e até uma série animada, Tron: Uprising (algo como Tron: A Revolta), que, após alguns adiamentos, está prevista para estrear no canal Disney XD agora em 2012, e terá os atores Bruce Boxleitner, Elijah Wood, Emmanuelle Chriqui, Mandy Moore e Lance Henriksen dublando seus personagens.
Segundo Kosinski, um terceiro Tron também já estaria em produção, mas ainda sem data de estreia. Como levou 28 anos para aparecer a primeira sequência, aparentemente eles não têm pressa.
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