Seja qual for o nome que você pretende dar, os baralhos regionais da Espanha e da Itália têm todos uma característica em comum: figuras dos naipes grandes, detalhadas e coloridas, descendentes diretas dos baralhos árabes que lhes deram origem. Alguns deles são tão decorados que chega a ser difícil para nós, habituados ao simples padrão anglo-americano, imaginar que sejam usados para jogar baralho.
A origem do baralho tem muitos pontos nebulosos, mas em um deles a maioria dos pesquisadores parece concordar: os primeiros baralhos europeus do mundo surgiram na Espanha, durante o século XIV, influenciados pelas cartas que os invasores mouros traziam. Assim como os baralhos árabes, os primeiros baralhos espanhóis eram totalmente produzidos à mão, com suas cartas desenhadas uma a uma; suas ilustrações, porém, sofreriam certas modificações e adaptações. Para começar, os quatro naipes do baralho árabe (espadas, bastões, taças e moedas) foram mantidos, mas tiveram de ser adaptados para que representassem objetos mais facilmente identificáveis pela população espanhola. As espadas árabes, por exemplo, eram cimitarras, de longas lâminas curvadas e embainhadas; no baralho espanhol, se transformaram em espadas de lâmina reta e azul-clara, muitas vezes curta e pontuda como uma faca. Os bastões árabes eram do tipo utilizado para jogar pólo, um jogo muito popular na Arábia da época, mas praticamente desconhecido na Espanha; não se sabe se pelo seu formato ou por seu nome, acabaram adaptados para clavas rústicas de madeira, algumas inclusive ainda contendo nós, folhas e fragmentos de pequenos galhos, como se tivessem acabado de ser arrancadas das árvores. As taças árabes, de formas retas, foram substituídas por cálices arredondados, semelhantes aos encontrados nas igrejas; apenas as moedas, facilmente identificáveis por serem redondas e douradas, foram mantidas inalteradas. Em espanhol, estes quatro naipes ganharam os nomes de Espadas, Bastos, Copas e Oros.
As figuras do baralho também sofreram uma adaptação importante: como o islamismo proíbe reproduções artísticas de seres humanos, as cartas do baralho árabe que representavam o Rei, o Vizir, o Delegado do Rei e o Ministro Religioso não traziam suas efígies, mas ricas ilustrações do naipe da carta em questão, acompanhada de um retângulo azul sobre o qual o nome da figura era escrito em letras douradas. Este tipo de carta deve ter parecido estranho aos olhos das fabricantes espanholas, que decidiram, pura e simplesmente, desenhar na carta uma ilustração da figura representada, já que na Espanha não havia qualquer restrição neste sentido. O Rei, figura mais importante da corte e do baralho, foi mantido, mas, como na Espanha não haviam vizires, foi escolhida a figura do Cavaleiro, um dos membros mais importantes da corte, para decorar a segunda carta mais importante do baralho. Para terceira figura, foi escolhido o Sota, uma espécie de escudeiro ou secretário do cavaleiro, estabelecendo-se, assim, uma relação de hierarquia entre as três cartas. Nenhuma figura espanhola tinha nome, mas todas eram facilmente identificáveis: o Rei trazia uma coroa na cabeça, o Cavaleiro estava montado a cavalo, e o Sota era o outro cara. Não se sabe bem por que o Ministro Religioso ficou de fora do baralho espanhol, mas, embora existam boatos de que as fabricantes não queriam criar problemas com a Igreja, a teoria mais provável é a de que o baralho usado como "molde" para os espanhóis tenha sido o Mulûk wa-Nuwwâb, que originalmente também já não trazia o Ministro Religioso. Outra carta, porém, sumiu de modo inexplicável: todos os baralhos árabes, incluindo o Mulûk wa-Nuwwâb, tinham dez cartas numéricas e três figuras; mas no baralho espanhol as numéricas só vão do 1 ao 9. Talvez fosse difícil desenhar dez naipes dentro de uma mesma carta.
Os primeiros baralhos espanhóis, sendo desenhados à mão, não tinham ainda um padrão definido, ou seja, cada fabricante os desenhava da forma como bem entendia. Somente no final do século XV, com o advento da impressão através de blocos talhados de madeira, é que começaram a surgir os primeiros desenhos padronizados, sempre visando facilitar o entalhe. Detalhes como cavalos relativamente pequenos em relação aos cavaleiros ou um Ás de Ouros que ocupava toda a carta começaram a surgir em baralhos de diferentes fabricantes, já que, afinal, copiar era mais fácil do que entalhar do zero. Ainda assim, os baralhos espanhóis eram bem mais trabalhados - e coloridos - do que os baralhos franceses de naipes simples, que começariam a surgir no início do século XVI.
O primeiro baralho espanhol a estabelecer um padrão foi criado no início do século XVII pelo fabricante Pere Rotxoxo, da cidade de Barcelona. De figuras simples, para facilitar o entalhe, mas ainda assim bem trabalhadas, para chamar a atenção dos jogadores, o baralho criado por Rotxoxo passou a ser copiado não somente pelas demais fabricantes de Barcelona, mas também das principais cidades espanholas, e ainda de algumas francesas próximas à fronteira. Além de modificar as figuras, Rotxoxo ainda teve uma bela idéia para facilitar a vida dos jogadores: uma borda que até hoje está presente em todos os baralhos espanhóis, independente de seu padrão regional. Esta borda, uma espécie de índice rudimentar, possui "quebras" de acordo com o naipe da carta: se a borda for toda contínua, a carta é de Ouros; com uma quebra (um buraco), a carta é de Copas; cartas de Espadas possuem duas quebras; e as de paus, três. Quando, no século XVIII, pequenos números foram adicionados às bordas superior esquerda e inferior direita (sendo este de cabeça para baixo), foi criada uma forma dos jogadores saberem quais cartas tinham na mão sem precisar olhar para a carta inteira. Todas as carats do baralho espanhol são marcadas por números; as numéricas vão do 1 ao 9, o Sota é o 10, o Cavaleiro 11, e o Rei 12. Talvez por este recurso ter surgido antes das figuras "de duas cabeças", nenhum padrão regional espanhol jamais teve suas figuras impressas em ambos os sentidos da carta, diferentemente do que ocorreu com os padrões franceses. A única exceção foi um baralho chamado Gemela ("gêmeo"), que não chegou a fazer muito sucesso, e hoje é visto como uma variação enfeitada.
Falando nelas, o baralho espanhol também possui variações enfeitadas, que não são consideradas parte de nenhum padrão regional, quase como se fossem um "padrão à parte". Estas variações começaram a surgir no século XIX, quando técnicas mais modernas de impressão possibilitaram que as fabricantes inovassem nos desenhos das cartas, fazendo com que algumas delas se tornassem verdadeiras obras de arte. A maioria destas variações traz personagens de histórias e lendas da Espanha, como o baralho El Quijote, com personagens do clássico Dom Quixote, de Cervantes, ou a Baraja Goyesca, inspirado nas obras de Francisco Goya. Mas existem também os que constituem "padrões regionais não-oficiais", fabricados exclusivamente em uma região, e utilizando traços da cultura ou folclore daquela região, como o brasão local dentro das moedas, ou governantes importantes do passado no lugar dos Reis; dentre estes destacam-se o baralho aragonês (da região de Aragão), o galego (da Galícia) e o curioso baralho canário (das Ilhas Canárias), que traz cuias no lugar das taças, toras ao invés de clavas, facas ao invés de espadas, mulheres rústicas como Sotas, Reis primitivos, e, o mais curioso, grandes cachorros no lugar dos Cavaleiros. Isto porque as Ilhas Canárias, quando descobertas, não possuíam cavalos nativos, mas uma grande quantidade de cães, de onde veio seu nome - este "canárias" vem de canis, cachorro em latim.
Junto com os colonizadores, o baralho espanhol singrou os mares e veio aportar na América, onde acabou não somente reproduzido pelas fabricantes locais, mas também ganhando variações locais, como o curioso baralho mexicano, onde os quatro Sotas são mulheres, e os Cavaleiros usam chapéus emplumados. Outros países onde o baralho espanhol é muito popular são El Salvador, Uruguai e Argentina, onde surgiu o Baralho Gaúcho, que traz os naipes de facas, chicotes, cuias de chimarrão e moedas, e figuras vestidas com trajes típicos. Apesar de todos estes detalhes, os baralhos latino-americanos também são considerados variações enfeitadas, e não padrões regionais.
Assim como chegou à América, o baralho espanhol também chegou e fincou raízes na Itália, no final do século XVIII, quando o sul da Itália foi dominado pela Espanha. A popularidade dos baralhos espanhóis levou as fabricantes da região a copiá-los, criando diversos padrões regionais que os imitavam. Ainda hoje sobrevivem cinco destes padrões, conhecidos por muitos como "baralhos italianos com naipes espanhóis", já que utilizam figuras diferentes dos demais baralhos italianos. Assim como os baralhos espanhóis, os do centro-sul da Itália usam espadas de lâmina reta, clavas rústicas, cálices e moedas redondas e douradas como figuras para seus naipes, mais um Rei, um Cavaleiro e um Fante, o equivalente italiano do Sota, como figuras.
Apesar de todas estas semelhanças, os baralhos do centro-sul da Itália ainda são bastante diferentes de seus antepassados espanhóis. Para começar, nenhum deles tem as bordas com quebras, que só surgiram na Espanha depois que o processo de criação dos padrões italianos já havia começado. Em segundo lugar, nenhum baralho so centro-sul da Itália possui números nas bordas, provavelmente pelo mesmo motivo, devendo as cartas serem identificadas puramente pelo número de símbolos que possuem. Em terceiro, enquanto os Ases de Ouros espanhóis trazem figuras grandes e ricamente decoradas, os italianos trazem uma águia, com um espaço redondo no meio, onde deveria ser colocado um selo (na verdade, um carimbo) que confirmava que a fabricante do baralho havia pago ao governo um imposto local existente na época. A única exceção a estas três regras é o padrão regional da Sardenha, o último a surgir, e mais influenciado pelos espanhóis. Nele, as cartas possuem bordas (embora todas tenham uma borda contínua), números, e o Ás de Ouros é uma grande moeda.
Além destas diferenças, baralhos do centro-sul da Itália têm apenas 40 cartas (do 1 ao 7 e mais as três figuras de cada naipe), ao invés das 48 espanholas (que incluem o 8 e o 9 de cada naipe). A razão mais provável para isso é que, já no século XVIII, quando os baralhos espanhóis chegaram à Itália, os jogos mais populares usavam apenas 40 cartas, então as fabricantes não viram muita razão para produzir cartas que raramente seriam usadas.
Mas nem todos os baralhos surgidos na Itália foram copiados dos espanhóis: mais ou menos na mesma época em que os baralhos árabes chegaram à Espanha, eles também chegaram ao norte da Itália, que mantinha fortes laços comerciais com os árabes. Com o tempo, nesta região também começou a surgir um baralho próprio, bastante diferente do espanhol, mas ainda bem parecido com o árabe. Isto ocorreu por volta do século XIV, e, embora ninguém saiba precisar quando, aparentemente todos concordam que o baralho italiano surgiu depois do espanhol.
Assim como ocorreu na Espanha, na Itália os naipes árabes foram adaptados à realidade local; na Itália, porém, as figuras resultantes eram bem mais parecidas com as originais: as espadas eram curvas e dentro de bainhas; os bastões de pólo se tornaram bastões cerimoniais, coloridos e com as pontas decoradas; as taças se mantiveram sextavadas, semelhantes às usadas pelos reis e rainhas; e as moedas traziam decorações abstratas em seu interior. Além disso, assim como no baralho original árabe, as espadas e os bastões não estavam arrumados lado-a-lado, mas se cruzavam no meio das cartas. Estes naipes receberam, em italiano, os nomes de Spade, Bastoni, Coppe e Danari, nomes estes que depois acabaram transpostos para os baralhos do centro-sul, de influência espanhola. Não se sabe se por coincidência ou influência do baralho espanhol, as figuras acabaram sendo as mesmas daquele, o Fante, o Cavaleiro e o Rei.
Também como ocorreu na Espanha, no início os baralhos italianos eram feitos à mão, passando depois para a técnica de impressão através de madeira entalhada. Na Itália, porém, nenhum padrão chegou a prevalescer sobre os demais; diversos padrões evoluíram em separado, até que cada um deles se tornou firmemente relacionado à cidade ou região onde era fabricado. Isto fez com que a Itália fosse palco de dois eventos curiosos: em primeiro lugar, foi lá que nasceu o conceito de padrão regional, que mais tarde se espalharia para os demais países que fabricavam baralho. Em segundo lugar, ironicamente, isto fez com que a Itália seja o único país que tem padrões regionais mas não tem um padrão oficial do país.
Hoje em dia ainda sobrevivem seis padrões regionais do norte da Itália. Alguns deles trazem números no estilo de índices, outros trazem números grandes no centro da carta, que servem apenas para o jogador identificar mais facilmente as cartas de Espadas e Paus, sem ter de contar as figuras entrelaçadas; alguns deles trazem figuras impressas nos dois sentidos da carta, mas apenas dos Fantes, Cavaleiros e Reis, sendo outras cartas, inclusive os Ases, impressas em um sentido único. Alguns, assim como os baralhos árabes originais, têm 52 cartas (do 1 ao 10 mais as três figuras de cada naipe), outros, como os demais baralhos da Itália, têm apenas 40. E alguns até mesmo trazem o "buraco" destinado ao selo do recolhimento de impostos no Ás de Ouros.
Todas estas diferenças e variações decorrem do fato de que, durante sua evolução, os padrões acabaram influenciados uns pelos outros, pelos seus vizinhos do centro-sul, da Espanha, e até da França. Os padrões que ainda existem hoje permanecem inalterados desde o início do século XIX, e muitos consideram um milagre que tantos deles tenham sobrevivido como padrões regionais (e não sumido ou passado a ser considerados variações enfeitadas), embora isso tenha uma explicação até razoável: na Itália, mais do que em qualquer outro lugar, as regiões são fortemente ligadas a seus padrões, sendo difícil encontrar um número expressivo de jogadores em um lugar que use o padrão de outro. Padrões regionais italianos são fabricados e vendidos em todo o país (muitos deles em todo o planeta), mas, na hora de jogar, um italiano prefere o padrão do local onde aprendeu a jogar, por uma questão de identificação e de facilidade em reconhecer as cartas.
Talvez por isso, variações enfeitadas de baralhos italianos são raíssimas, e quando existem não são relacionadas com nenhum padrão, assim como ocorre com os espanhóis. Dois dos mais famosos são o Charta, produzido pelo artista Giorgio Ruffolo para a Dal Negro, onde os Reis, Cavaleiros e Fantes vestem armaduras medievais, e o Quintana, produzido pela Edicolandia em homenagem a uma feira medieval de mesmo nome, que acontece uma vez ao ano na cidade de Ascoli Piceno, onde a fábrica está localizada. Variações enfeitadas não costumam fazer muito sucesso, porém, e tentativas de criar novos padrões regionais normalmente resultam em retumbantes fracassos, dos quais o mais famoso exemplo é o padrão romano, criado na década de 70 pela Capitol, para que a capital italiana tivesse um padrão regional próprio. Com figuras vestidas com togas e armaduras de centurião, e Rômulo e Remo no Ás de Espadas, o padrão não despertou o interesse dos jogadores, já acostumados ao padrão placentino, e foi descontinuado menos de dez anos depois.
Por fim, eu não poderia falar de baralho latino sem mencionar o curioso, e infelizmente extinto, baralho português. Criado no século XVI, e inspirado nos baralhos espanhóis que chegavam a Portugal, o baralho português acabou evoluindo de uma forma totalmente diferente de seus antecessores, ao ponto de não ser considerado nem mesmo um padrão regional, mas um baralho totalmente novo. Seus naipes eram os mesmo do espanhol (espadas, clavas, moedas e taças) e suas cartas também eram 48, mas, curiosamente, seus ases traziam dragões portugueses - que tinham cabeça de dragão, corpo de serpente e duas pequenas asas ao invés de braços - segurando com a boca o objeto que representava o naipe. Além disso, ao invés de Sotas, o baralho português trazia quatro figuras femininas, que, em escala de valor, se posicionavam entre o Rei e o Cavaleiro, como as Rainhas do baralho francês, mas não traziam qualquer indicação de que pudessem ser Rainhas, como uma coroa, por exemplo - e, curiosamente, as de Espadas e Paus estavam sendo atacadas por um pequeno dragão e por um lobo, respectivamente, e usando o objeto que representava o naipe para se defender. As cartas numéricas do baralho português também eram ricamente decoradas, com um garoto de pernas cruzadas no 2 de Paus, pontas de lança nas cartas de Ouros, e escudos com carrancas na maioria das cartas de Espadas e Paus, onde as figuras se cruzavam atrás do escudo, mais ou menos como nas cartas italianas, com a diferença de que, nas portuguesas, as espadas eram retas como as espanholas. Além disso tudo, as figuras das cartas de Copas e Ouros eram arrumadas em disposições diferentes tanto das espanholas quanto das italianas.
Junto com os navegadores potugueses, o baralho português se espalhou pelo mundo. Na Sicília, ele influenciou o Tarô Siciliano, onde os quatro Valetes são mulheres; no Japão ele deu origem a um jogo totalmente novo, o Tensho Karuta ("karuta" é o modo japonês de se escrever "carta"), o que pode ser comprovado pelos quatro dragões presentes nas cartas mais valiosas e pela disposição das moedas em algumas das cartas; e até na Indonésia ele acabou sendo adaptado para um jogo chamado Omi, infelizmente também extinto.
Apesar de tudo isso, o baralho português sumiu no final do século XVII. Os jogadores portugueses aos poucos foram preferindo jogar com os baralhos franceses, e as fabricantes portuguesas foram deixando de produzi-lo. Como Portugal era relativamente isolado do restante da Europa, ele não chegou a ser fabricado fora do país. Aos poucos, os exemplares existentes foram se perdendo, ao ponto de que hoje tudo o que sabemos vem de uns poucos exemplares incompletos, conservados em museus. Mesmo que alguma fabricante resolvesse relançá-lo como uma variação enfeitada, teria de inventar algumas das cartas.
Em breve, veremos os padrões regionais espanhóis e italianos. Até lá!
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