domingo, 13 de março de 2022

Escrito por em 13.3.22 com 0 comentários

O Chamado

Hoje teremos mais um post da série que vai republicar, um por mês, 12 contos que eu publiquei no Crônicas de Categoria. O de hoje eu não escrevi especificamente para o Crônicas; o escrevi ainda na época do BLOGuil, e o publiquei originalmente no Omby's Weblog, o blog que eu fiz para os textos atribuídos ao Ombudsman, minha segunda persona no BLOGuil. Anos mais tarde, quando o Omby's Weblog saiu do ar (se me lembro corretamente, o servidor onde ele estava hospedado deixou de oferecer o serviço de blogs e ele foi apagado), o publiquei no próprio BLOGuil, o que significa que essa é a quarta vez que eu vou publicá-lo - o que provavelmente significa que eu gosto muito dele.

Um detalhe sobre esse conto é que ele é bem extenso; por causa disso, quando o publiquei das outras três vezes, o dividi em quatro partes. Como dessa vez escolhi 12, e não queria gastar um mês inteiro com ele, decidi publicá-lo, pela primeira vez, na íntegra. O átomo já tem posts enormes mesmo, creio que mais um, menos um, não vá fazer tanta diferença assim.





O Chamado

- Acho que é um urso.

- Ah, é? Só que não existem ursos no Brasil – retruquei.

- Vai ver fugiu de um circo, sei lá…

Aquela pegada intrigava a nós quatro. O que era para ser apenas mais um passeio tranquilo na Floresta da Tijuca acabou se tornando quase uma aventura, com um misto de excitação e mistério pela descoberta de uma impressão no solo que, aparentemente, não havia sido feita por nenhum animal conhecido.

- Você sabe que eu sou zoólogo – continuei – e, definitivamente, isto não é uma pegada de urso!

- Um gorila, talvez?

- Também é pouco provável. Aliás, acho que nunca vi uma pegada assim em toda a minha vida. Fiquem aqui tomando conta para ninguém desfazê-la, vou até em casa buscar um molde de gesso.

- Nosso passeio, então, foi para as cucuias – reclamava minha namorada.

Realmente, o passeio foi para as cucuias. Eu não podia perder a oportunidade de recolher aquela pegada única. Talvez eu até mesmo descobrisse uma nova espécie, um parente latino-americano do pé-grande ou coisa parecida.

- Sabia que não deveríamos ter nos embrenhado pelo meio do mato – prosseguiu em sua reclamação. Que ideia de jerico…

- E se foi só um engraçadinho que imprimiu isso aqui no chão para pegar trouxas como nós?

- Então ele fez um excelente trabalho – respondi. A disposição das bordas, o meio mais fundo, isto indica que houve distribuição do peso quando a criatura pisou. E, pela profundidade, ela deve pesar uns 500 quilos no mínimo…

- Você está começando a me assustar… E se o bicho voltar enquanto estivermos aqui esperando?

- E se ele voltar enquanto estivermos passeando? – repliquei.

Alguns minutos depois, voltei com o molde de gesso. Também aproveitei e tirei várias fotos. De posse desse material, ao voltar para casa, comecei a estudar a estranha pegada.

O primeiro passo era me certificar de que realmente não pertencia a nenhum animal conhecido. Comparei-a com todas as pegadas presentes nos livros que possuía. Passei várias noites em claro. A excitação da possível descoberta de um espécime novo tirava meu sono. Em seguida, decidi compará-la com pegadas de animais já extintos. Talvez se tratasse de um raríssimo fóssil vivo.

Nenhuma das pegadas de meus livros bateu com meu molde. Já estava preparado para levar minha descoberta à sociedade científica, quando finalmente minha excitação foi substituída pela racionalidade.

E se, realmente, fosse uma pegada plantada? E se fosse apenas um animal deformado, um defeito de nascença? Ao invés de aclamado por uma nova descoberta científica, eu seria ridicularizado por tanta ingenuidade. Talvez fosse melhor voltar ao local da pegada e ver se existiam mais delas, ou alguma outra evidência da existência do animal, como fezes ou frutas roídas.

No dia seguinte, enquanto ia para o trabalho, passei em frente a um sebo. Sabem aquelas coincidências que a gente logo imagina “isso foi feito para este momento”? Pois então, logo na porta, estava exposto um livro, “Pé-grande no Brasil, mito ou realidade?”. Espantado com o fato, decidi entrar e comprar o livro. Talvez existisse alguma foto de pegadas, ou relatos de pessoas que o avistaram na Floresta da Tijuca.

O livro, porém, estava em péssimo estado. Várias folhas faltando, outras por demais amareladas. O livreiro disse que o conseguiu de um cliente cuja casa houvera sofrido uma enchente, ou coisa parecida. Após o episódio, tal cliente doou todos os seus livros para o sebo, e saiu do país. Deste, somente a capa estava boa, e, por ser uma capa bonita, foi para a vitrine, para enfeitar.

- Mas nós temos outro que trata deste assunto… Não é o mesmo, mas também fala do pé-grande brasileiro. Vejam só, que coisa… O senhor acredita que possa existir um “abominável homem das neves” aqui no Brasil, que nem neve tem?

- Bom, na verdade o pé-grande e o abominável homem das neves são criaturas diferentes, mas deixa pra lá… Pode me conseguir o outro livro, por favor?

- Pegue o senhor mesmo. Está ali, na estante amarela.

Me dirigi à tal estante. Estava uma bagunça. Procurando livro por livro, não encontrei o tal do pé-grande, mas outro exemplar me chamou a atenção: um livro de capa de couro, muito antigo, bem amarelado, cujo nome na lombada dizia “Monstros e sua espécie”. Por alguma razão, senti um impulso de comprá-lo. Talvez nele houvesse alguma referência à criatura que pesquisava. Esqueci o pé-grande brasileiro e levei-o ao livreiro.

Após uma breve negociação, pois o tal livro não tinha preço na capa, levei-o para casa antes de ir ao trabalho. O livro não possuía figuras, talvez não servisse para que eu identificasse a pegada, mas poderia trazer valiosas informações sobre qual criatura eu poderia encontrar quando voltasse ao local da pegada para mais pesquisa. Ou pelo menos foi isto o que me passou pela mente durante todo o meu dia de trabalho. Mal conseguia me concentrar, ansioso por chegar em casa e começar a ler o livro.

Mal sabia eu que este simples e inocente ato mudaria minha vida para sempre.

***

O livro era realmente muito interessante. Falava de várias criaturas que já habitaram a Terra, sem o conhecimento dos humanos. Quanto mais eu lia, mais sentia vontade de ler mais um capítulo, mais algumas páginas. Embora a racionalidade me dissesse que aquilo tudo era ficcional, algo no íntimo de meu ser alertava que poderia ser tudo verdade, e que uma daquelas criaturas era a responsável pela estranha pegada que eu encontrara.

Um dia, comecei a ter um sonho recorrente. Da janela de meu apartamento, podia ver um morro. Em meu sonho, tal morro pulsava e brilhava, como se estivesse vivo e quisesse andar. Este sonho me perturbava. Sempre que acordava, ia para a janela, ver se o morro “ainda estava lá”.

Minha produtividade no trabalho caiu. Não conseguia me concentrar, pensando na estranha pegada, no livro, e no morro pulsante do sonho. Por alguma razão, não associava as três coisas. Minha namorada terminou tudo, alegava que eu não dava mais importância a ela. Se ela não entendia a magnitude de minha descoberta, era melhor mesmo que se afastasse. Ou pelo menos assim comecei a pensar.

Um dia, o sonho mudou. O morro pulsou e brilhou mais do que nunca, até que se partiu. Uma estranha criatura, com a cabeça feito um polvo, munida de vários tentáculos e com asas de morcego, saiu do morro partido, como se este fora um ovo. Tão colossal era o monstro que arrancava prédios do chão para saciar sua fome. Eu olhava pela janela, imóvel, vendo a criatura se aproximar de meu prédio para degluti-lo e por cabo de minha vida.

Aquele fora o sonho mais real que já tivera. Acordei banhado de suor. Mal conseguia olhar pela janela, com medo do morro pulsante.

Após vários dias atormentado pela imagem da Criatura, decidi que era hora de encontrar meu destino. Precisava retornar ao local onde encontrara a pegada. Infelizmente, chovia muito, e não foi fácil chegar ao exato ponto onde tudo aquilo começou. Quando finalmente encontrei o local, a pegada não estava mais lá, talvez desfeita pela própria chuva. Desolado, voltei para casa.

Já não dormia mais, com receio de encontrar a Criatura em meus sonhos. A cortina da janela que dava para o morro pulsante agora estava permanentemente fechada, o que dava um ar lúgubre ao meu quarto. Já não me importava mais com arrumação, toda a minha casa estava uma bagunça, livros espalhados, o molde de gesso sobre a mesa. Só comia porque sentia fome, pois nada mais importava. Eu precisava encontrar o responsável pela pegada que arruinara minha vida.

Após alguns dias, o tempo firmou. Com o Sol brilhando no céu, retornei à floresta, ao ponto da pegada. Havia alguns galhos partidos, o que denunciava que alguém tinha passado por ali, mas nem sinal de pegadas monstruosas. Decidi me embrenhar ainda mais no mato atrás de pistas. Após meia hora de caminhada, me vi de volta à estrada. Estranho. Decidi me embrenhar na mata mais uma vez.

Mais uma hora de caminhada e estava de volta ao mesmo lugar. Realmente eu devia estar muito distraído, para fazer voltas e desvios que me levassem sempre ao ponto de partida. Decidi então andar diretamente para a frente, sem virar para a direita ou para a esquerda. E me perdi.

Me embrenhei tão profundamente na floresta que já não sabia onde estava. Não conseguia mais ver a estrada, nem ouvir o som dos carros. A razão começou a voltar, e fiquei temeroso de encontrar cobras… ou a criatura da pegada. Mesmo sem perceber, a proximidade da estrada me dava uma segurança, que agora havia partido.

Mas não devia ser tão difícil voltar: se andara em linha reta até ali, bastava voltar em linha reta até meu eventual ponto de partida. Mas isso não foi tão fácil quanto meu pensamento me dizia que seria. Comecei a passar por locais que não reconhecia. O mato foi ficando cada vez mais fechado. Até que, ao abrir algumas plantas para passar, me deparei com aquilo. O horror.

Uma estátua de pedra, de mais ou menos um metro e oitenta de altura.

Da Criatura que assombrava meus sonhos.

***

Assustado com a visão de tal horror, corri na direção contrária, sem me lembrar de que assim me embrenharia cada vez mais na floresta. As imagens de meus sonhos voltavam à minha mente, me atemorizando. O morro pulsante. A luz. O morro “chocando”. A Criatura. Por qual razão insana haveria uma estátua desta mesma Criatura naquele ponto? Que força sobrenatural havia me levado até lá?

Correndo aterrorizado, caí num buraco.

Ao chegar ao fundo, me dei conta de que não era um buraco, mas sim um barranco. Melhor que fosse um buraco, pois talvez assim não tivesse visto o que vi. Uma espécie de templo, como aqueles dos incas ou aztecas. Algumas “pessoas” andavam ao redor do templo. Senti uma picada no braço, talvez uma cobra, ou um inseto. Tudo escureceu novamente.

Acordei algum tempo depois, embora desejando que isto jamais acontecesse. Melhor dormir eternamente a presenciar o que vi.

A sala onde estava me lembrava um daqueles salões de sacrifício de filme B. Mas poderia ser também uma sala médica, ou coisa parecida. À minha volta estavam várias criaturas, horrendas misturas de primata e lagarto. Meu corpo estava paralisado, o que impedia que eu olhasse para baixo, mas tinha certeza de que, se pudesse olhar seus pés, descobriria que um deles era o responsável pela pegada que me levara a tudo isso.

Como estava paralisado, não conseguia falar. Mas podia ouvir. E uma das horrendas criaturas se dirigiu a mim, com uma voz que não lembrava nenhum outro som do planeta. Ainda assim, era inteligível, e pude compreender o que dizia:

Seja bem-vindo, humano, embora não fosse de nosso desejo que estivesse aqui. Nossa sociedade é muito antiga, mais antiga do que pode imaginar. Sua civilização foi construída sobre as ruínas da nossa, devastada por uma grande guerra, embora alguns de nós tenham conseguido resistir até os dias de hoje, sempre escondidos, longe dos olhos de sua gente. Por quê? Porque somos “monstros” para sua raça, não nos compreenderiam, tratariam-nos como animais, ou desejariam nos exterminar, pois é típico de sua espécie destruir aquilo que não compreendem.

Durante cem séculos vivemos escondidos, com apenas um ou dois acidentes, um ou dois humanos intrometidos que descobriram uma de nossas cidades. Raramente nos aventuramos fora de nosso território, pois, além de não haver motivos para isso, não queremos denunciar nossa presença.

Sim, a pegada. Está pensando em por que a deixamos. Foi involuntário. Um dos humanos intrometidos que tiveram contato com nossa civilização, há muitos anos, foi mantido prisioneiro. Um erro. Ele conseguiu fugir de seu cárcere, e acabou por escrever um livro que pode por em perigo nossa civilização. Ele foi recapturado e morto, mas o livro jamais havia sido encontrado. Há alguns meses, um de nossos “agentes” infiltrados em sua sociedade descobriu que nosso ex-prisioneiro havia, antes de morrer, passado o livro para outro humano, e este no momento se encontrava em uma antiga casa. Tentamos fazer com que parecesse um acidente, para que o portador do livro fosse morto, e o livro, destruído.

Mas o humano fugiu, e, novamente, passou o livro para outro humano. Assim o perdemos de vista. Até esta semana. Um de nossos agentes encontrou o livro, mas ele havia sido repassado para outro humano. Você. Por coincidência, o mesmo humano que viu a pegada que um de nossos agentes, distraídos, deixou ao esquecer de assumir “a outra forma” antes de sair de nossa cidade.

Sim, humano. Alguns de nós, através de engenharia genética, podem assumir a forma de sua espécie. É interessante para nós mantermos agentes, para resolver problemas que poderiam levar ao descobrimento de nossa raça. Alguns de seus amigos mais próximos podem ser de nossa raça sem que sequer desconfie. Aterrorizado? Pois saiba que existem muito mais coisas em seu mundo do que julga conhecer.

O livro, por exemplo. Aquele livro não é para sua compreensão. Sua simples leitura altera o cérebro de vocês, frágeis humanos, revelando coisas que não deveriam saber.

Esta é a razão de sua presença aqui. Precisamos saber onde pôs o livro, para que o recuperemos, bem como a qualquer evidência de nossa existência que tenha coletado. E não se preocupe de não querer falar conosco. Não somos os selvagens que imagina. Nossa tecnologia é capaz de extrair a informação de que precisamos sem que sequer abra a boca.


Então, ele se calou. E algo em meu íntimo não gostou nada nada do que tinha acabado de ouvir.

***

Foram as horas mais terríveis de minha vida. Os monstros colocaram um aparato em minha cabeça, como um capacete, que, segundo eles, extrairia a informação de que necessitavam. Se tivessem perguntado, eu responderia com prazer.

O tal capacete arranhava os ossos de meu crânio, como um sismógrafo bizarro inventado por uma mente doentia. Paralisado, não podia sequer gritar. Imaginei que, por fim, a agulha do engenho do mal alcançaria meu cérebro, e meu sofrimento estaria terminado. Mas isto não aconteceu. Em determinado momento, o capacete foi retirado, e algumas das criaturas conversaram em uma língua que nem no Inferno eu desejaria ouvir. Alguns deles, diante de meus olhos, injetaram em si mesmos uma espécie de droga, e assumiram formas humanas. Um careca baixinho. Um adolescente. Uma loira atraente. Horror e mais horror.

Pelo que pude deduzir, eles iriam ao meu apartamento, atrás do livro. Deviam ter pegado as chaves e outros pertences em meus bolsos. Não imagino por que simplesmente não assumiram a minha forma, o que faria com que fosse muito mais fácil enganar o porteiro. Talvez não pudessem escolher.

Uma das criaturas, suponho que a mesma que falara comigo horas antes, entrou na sala. Fitando-me, esboçou um sorriso grotesco, e, para meu terror, pôs-se a falar novamente.

Aproveite, humano, os últimos dias de seu patético domínio deste planeta. Impérios caem, esta é a verdade. Está chegando o dia em que o império dos humanos cairá por vontade dos Grandes Antigos. Nosso mestre, o Grande Cthulhu, apenas espera nosso sinal para erguer-se e acabar com seu sofrimento. Seremos uma raça grande novamente. O Grande Cthulhu voltará a reinar, como era antes dos humanos, e como nunca deveria deixar de ter sido.

Você tem muita sorte, humano. Normalmente, em uma ocasião como esta, o mataríamos, para que nunca volte a ocorrer o acontecido com o escritor do livro. Mais um, menos um dos desprezíveis enxeridos não fará falta a um planeta que possui sete bilhões de parasitas. Mas o Grande Cthulhu está generoso. Ele determina que você viva, para ver o início de seu majestoso reinado. De posição privilegiada, ele pede para ressaltar.

Portanto, assim que recuperarmos o livro, e qualquer outra evidência de nossa existência, estará livre para partir, sob uma única condição: viva até o fim de seus dias sem revelar uma única palavra do que viu ou ouviu, pois lembre-se de que nossos agentes se encontram onde menos imagina, e os momentos que passou com nosso Coletor de Informações parecerão um agradável piquenique comparados à morte que espera quem trai ao Grande Cthulhu.


E assim foi. Alguns tenebrosos momentos depois, senti nova picada, e adormeci. Acordei na estrada, de onde havia saído para encontrar a fatídica pegada. Era noite. Meu carro estava intacto, embora eu não soubesse quanto tempo tenha ficado na cidade dos monstros. Voltei para casa.

O porteiro me cumprimentou, mas não disse palavra sobre os eventuais estranhos que tivessem entrado em meu apartamento. Também não quis perguntar.

Meu apartamento estava ainda mais bagunçado do que o deixei. Parecia que eu tinha sido assaltado. Roupas, livros, tudo revirado pelo chão. O livro que adquiri no sebo, bem como as fotos e o molde de gesso da pegada, logicamente, haviam desaparecido. As cortinas da janela que mostravam o agora ainda mais macabro morro haviam sido arrancadas, o que me obrigava a olhar para aquele terror. Exausto, comi um sanduíche e adormeci.

Durante o sono, novamente a Criatura, o tal de Grande Cthulhu, saía de seu descanso para comer meu prédio. Embora agitado como sempre, este sonho fora bem menos desgastante. Talvez já estivesse me acostumando com toda essa insanidade. Ao acordar, olhei para o morro, mas a sensação era diferente. Não mais pavor, mas um misto de deslumbre e ansiedade.

Abri a porta apenas o suficiente para que o porteiro me entregasse o jornal. Ainda estava tudo revirado, e eu não queria ter de responder a perguntas. Ao olhar a primeira página, o pavor retornou a meu ser. Um horrível acidente automobilístico. Um caminhão-cegonha, daqueles que levam carros para as concessionárias, acertara em cheio um carro popular. Os quatro ocupantes morreram na hora. Eram minha ex-namorada, seu atual namorado, e o casal de amigos que nos acompanhava naquele passeio no qual acabamos por encontrar a pegada. Poderia ser apenas cisma, mas, olhando, na foto do jornal, para o rosto do motorista do caminhão, que nada sofrera, poderia jurar que ele tinha os mesmos olhos das criaturas que me mantiveram cativo.

Decidi ir à janela e olhar a rua. Aos poucos me dava conta de que jamais conseguiria olhar para outra pessoa sem imaginar que pudesse ser um deles. Um pensamento me assaltou: talvez meu porteiro também fosse um deles, o que explicaria ele não ter denunciado três pessoas estranhas vindo ao meu apartamento e saindo com fotos, um livro e um molde de gesso.

Levantando o olhar, imaginava como viver em um mundo no qual se teme a todas as outras pessoas. Como viver sabendo que os dias estão contados, e que, de repente, aquele morro “chocará”, e dele sairá o Grande Cthulhu, para trazer minha morte? Foi quando fitei o morro.

E, ao fitá-lo, compreendi o que sentia. Não era pavor. Não era ansiedade. Não era deslumbre. Era um chamado. O morro me chamava. O Grande Cthulhu me chamava.

Atendendo a seu chamado, saltei para alcançá-lo.

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