domingo, 30 de agosto de 2020

Escrito por em 30.8.20 com 0 comentários

Lutas de Cinturão

Existe um grupo de mais de cem lutas regionais, quase todas elas da Ásia Central, conhecidas coletivamente como lutas de cinturão, porque os lutadores seguram seus oponentes por um cinturão (na verdade uma faixa, mas a palavra em inglês para ambos é a mesma, belt, e foi seu nome na língua inglesa, belt wrestling, que acabou traduzido para outros idiomas, ocorrendo alguma confusão quando o nome foi traduzido para o português). Quando eu estava pesquisando sobre quais lutas ainda não havia falado, acabei descobrindo esse grupo, que conta com algumas lutas muito interessantes. Decidi falar sobre elas hoje, de forma que hoje é dia de lutas de cinturão no átomo!

Atualmente, a luta de cinturão mais famosa do mundo é o kurash, que é uma das lutas mais antigas das quais se tem registro: o filósofo grego Heródoto, por volta do ano 450 a.C., escreveu um texto no qual descrevia a prática do kurash na Ásia Central, na região onde hoje se localiza o Uzbequistão; o médico e cientista Abu Ali Ibn Sina, no século X, prescrevia o kurash como método para manter a boa forma física; e o conquistador mongol Tamerlão tornou a prática do kurash obrigatória dentre membros de seu exército no século XIV. O kurash é considerado a principal tradição do Uzbequistão, sendo ensinado nas escolas e motivo de grande orgulho para o povo local. Além de ser o esporte nacional do Uzbequistão, o kurash é um dos esportes mais populares nas ex-repúblicas soviéticas do Cazaquistão, Turcomenistão, Armênia e Azerbaijão, na Turquia, Mongólia e Irã, e na região da Sibéria.

Apesar de toda essa popularidade, o kurash demoraria muitíssimo para ser regulado como esporte, passando a maior parte de sua história como algo estritamente tradicional, com as regras passando de pai para filho, e sendo disputado principalmente em festivais. Somente em 1990, Komil Yusupov, mestre de kurash, judô e sambô, nascido no Uzbequistão, decidiria fazer uma extensa pesquisa para codificar as regras usadas no país e transformá-lo em um verdadeiro esporte. No ano seguinte, 1991, com o fim da União Soviética, o Uzbequistão conquistaria sua independência, e seu primeiro presidente, Islam Karimov, decidiria se reunir com Yusupov para traçar um plano de promoção internacional do kurash não somente como um novo esporte, mas também como porta-voz da história, tradições e filosofia do povo uzbeque para o mundo.

Com o apoio do governo, Yusupov organizaria vários torneios de kurash no Uzbequistão, todos com excelente presença de público - alguns tiveram de ser marcados para estádios de futebol, tamanha era a procura por ingressos, que, mesmo assim, se esgotavam. Depois dessa primeira fase nacional, Yusupov partiria para exibir o kurash na Coreia do Sul, Japão, Índia, Canadá, Estados Unidos e Mônaco, culminando com um grande torneio realizado em Moscou em 1997. Em setembro de 1998, Yusupov organizaria o primeiro Campeonato Mundial de Kurash, que contaria com a presença de lutadores de 30 países da Europa, Ásia e das Américas, em Tashkent, capital do Uzbequistão. Durante esse campeonato, os representantes de 28 desses 30 países se reuniram e fundaram a Associação Internacional de Kurash (IKA), hoje considerada a principal federação internacional a regular o kurash. A IKA é considerada a federação esportiva que ganhou mais membros no menor espaço de tempo, pois, atualmente, já conta com 117 países afiliados, incluindo o Brasil. Seu principal campeonato é o Campeonato Mundial de Kurash, organizado anualmente de 1999 a 2002, então a cada dois anos desde 2005 - a edição durante a qual a IKA foi fundada, em 1998, por algum motivo não conta.

O uniforme do kurash se chama yakhtak, e é composto por quatro peças. Duas delas são uma camisa de mangas curtas, de algodão, de vestir pela cabeça, e uma calça, mole e larga, que conta na cintura com um elástico e um cordão que deve ser amarrado; tanto a camisa quanto a calça são obrigatoriamente de cor branca. Em torneios oficiais da IKA, a camisa é obrigatória apenas para as mulheres, que também podem usar um top esportivo por baixo dela, mas é opcional para os homens. Por cima da camisa é usada uma "jaqueta", na verdade uma camisa de tecido grosso, de mangas compridas e aberta na frente, semelhante à camisa usada no judô; a jaqueta pode ser de qualquer cor, mas, em competições oficiais da IKA, um dos lutadores sempre deve usar jaqueta de cor azul, e o outro, de cor verde. A jaqueta não possui botões ou fechos, e fica fechada graças a uma faixa vermelha amarrada na cintura do lutador, que deve ter entre 4 e 5 cm de largura, e comprimento tal que, após duas voltas na cintura, ainda sobrem duas pontas de pelo menos 20 cm penduradas. Diferentemente do que ocorre em outras artes marciais, a cor da faixa não tem a ver com o ranqueamento do lutador, devendo ela ser sempre de cor vermelha - curiosidade: azul, verde, branco e vermelho são as cores da bandeira do Uzbequistão.

A faixa serve, porém, para determinar a área válida para os golpes. Assim como no judô, o objetivo no kurash é derrubar o oponente no chão, sendo que, para isso, o lutador deve segurá-lo, obrigatoriamente, da faixa para cima - incluindo poder agarrar o oponente pela faixa. A única exceção a essa regra são as rasteiras, que consistem no lutador usar seus pés para tirar os pés do oponente do chão e derrubá-lo. Também com exceção das rasteiras, somente os golpes de arremesso são permitidos, ou seja, agarrar o oponente e projetá-lo em direção ao chão, sendo proibidos golpes como chutes, socos, joelhadas, chaves de braço e outros de impacto. Também é proibida a luta no solo; toda vez que um dos lutadores cai, havendo pontuação ou não, a luta é interrompida, e recomeça com ambos os lutadores de pé. Vale dizer que, como veremos em breve, dar rasteiras e poder pegar em outras partes do lutador que não na faixa não são típicos das lutas de cinturão; esses elementos foram introduzidos por Yusupov para deixar o kurash mais parecido com o judô, o que ele imaginava que poderia contribuir para sua popularidade.

A área de luta do kurash se chama gilam, e é um quadrado que deve ter entre 14 e 16 m de lado. Dentre desse quadrado é demarcado, com uma linha vermelha de 1 m de largura, um outro quadrado, que, para um gilam de 14 m de lado, deve ter 8 m de lado (incluindo a linha), e, para o de 16 m de lado, deve ter 10 m de lado. Oficialmente, dentro desse quadrado o gilam é de cor verde claro, e, fora, ele é metade azul escuro e metade verde escuro, de acordo com o lado em que os lutadores com as respectivas cores se posicionarão a cada início e reinício da luta, mas, em competições nas quais o kurash será disputado no mesmo local que outras lutas, o gilam pode ser de outra cor, normalmente amarelo. Dentro do quadrado vermelho, tocando a linha, também há duas marcações de cor branca, de 2 m de comprimento por 1 m de largura, sobre as quais os lutadores se posicionarão a cada início e reinício. A área dentro do quadrado vermelho é conhecida como "área segura", enquanto a de fora é a "área perigosa", sendo a linha vermelha conhecida como "linha de perigo". O gilam deve ser feito de superfície macia, não-abrasiva e antiderrapante. Assim como em outras lutas desportivas, no kurash os lutadores são divididos em categorias de peso, para maior justiça; pelas regras da IKA, existem oito categorias de peso para o masculino (até 55 kg, até 60 kg, até 66 kg, até 73 kg, até 81 kg, até 90 kg, até 100 kg e acima de 100 kg) e oito para o feminino (até 48 kg, até 52 kg, até 57 kg, até 63 kg, até 70 kg, até 78 kg, até 87 kg e acima de 87 kg). 

Uma luta de kurash dura 3 minutos, ao fim dos quais aquele que tiver mais pontos é declarado vencedor. Existem três formas de pontuação. Um chala vale 3 pontos, e é conquistado quando o oponente cai sentado ou de bruços em decorrência de um golpe válido, ou se ele cair de lado ou de costas, mas de forma lenta e com o golpe tendo pouca precisão. Já um yonbosh vale 5 pontos, e é conquistado quando, em decorrência de um golpe válido, preciso, fluido e veloz, o oponente cai de lado. Finalmente, temos o khalol, conquistado quando, em decorrência de um golpe válido, preciso, fluido e veloz, o oponente cai de costas no gilam; um khalol vale 10 pontos e resulta em vitória automática, independentemente de quanto tempo falta ou de quantos pontos tenha um oponente.

Durante a luta, os lutadores podem receber punições, que também são três. A mais leve é a chamada tanbekh, vale 3 pontos para o oponente, e é aplicada por falta de combatividade (quando o lutador foge da luta ou fica só se defendendo e esperando o oponente atacar), quando um lutador empurra o oponente propositalmente para fora da área de luta, quando um lutador desarruma seu yakhtak de propósito para ganhar tempo, quando um lutador agarra as pernas do oponente, ou quando um lutador, após agarrar o oponente de modo válido, não realiza um ataque dentro de 15 segundos. A punição intermediária é chamada dakki, vale 5 pontos para o oponente, e é aplicada por conduta antidesportiva (xingar o juiz ou o oponente, não obedecer os comandos do juiz, colocar a vida ou a integridade física do oponente em risco etc.) ou quando o lutador repetidas vezes se joga no chão de propósito para evitar a luta. A punição mais severa se chama girrom, vale 10 pontos para o oponente e resulta em desclassificação automática, sendo aplicada a critério do juiz, normalmente por conduta antidesportiva grave - dar um soco no rosto do oponente, por exemplo.

A pontuação final de cada luta utiliza uma curiosa (e complicada) fórmula para garantir que uma luta nunca termine empatada. Basicamente, se ambos tiverem uma pontuação igual, e um deles tiver uma maior, a pontuação maior anula as menores (se o lutador A fez um chala, e o lutador B fez um chala e um dakki, o placar é 5x0, pois o dakki anula os chala); se ambos fizerem a mesma pontuação, quem pontuou por último faz um ponto (se o lutador A fez um chala primeiro, e o B fez um chala depois, a pontuação é 0x1); uma pontuação e uma punição de mesmo valor se anulam (se o lutador A fez um chala, e o lutador B fez um yonbosh e um dakki, a pontuação é 3x0); e, se um lutador fizer uma pontuação mas receber uma punição de mesmo valor, e o outro não pontuar, o que pontou ganha por 1 ponto (se o lutador A fez um yonbosh e um dakki, mas o lutador B não fez nada, o placar é 1x0). Se ambos os lutadores só tiverem chala, quem teve mais ganha por 3x0, o mesmo ocorrendo se ambos só cometerem tanbekh (com o que cometeu menos ganhando por 3x0). Também é importante notar que, exceto por pontos vindos de chala e de tanbekh, somar dez pontos sempre resulta em vitória automática - ou seja, a vitória automática pode vir com um khalol, um girrom do oponente, dois yonbosh, dois dakki do oponente, ou até mesmo um yonbosh seu e um dakki do oponente, já que cada um deles vale cinco pontos.

Assim como o Uzbequistão, seu vizinho Quirguistão também tinha um esporte tradicional e cultural, de regras bastante parecidas, chamado alysh. Assim como o kurash, o alysh é um esporte antiquíssimo, mas passou a maior parte de sua história apenas sendo passado de pai para filho e disputado em festivais; foi somente na década de 1990, após o estabelecimento do kurash como esporte, que dois professores de educação física do Quirguistão, Rif Gaynanov e Bayaman Erkinbayev, vendo que talvez fosse possível fazer o mesmo com o alysh, decidiriam fazer um amplo estudo de suas regras tradicionais e codificar aquelas que pudessem transformá-lo em um esporte competitivo. Os dois acabariam discutindo, pois Erkinbayev era da opinião de que talvez fosse melhor criar um grupo internacional para discutir o assunto, enquanto Gaynanov preferiria ouvir apenas quem fosse do Quirguistão, e se separaram, com cada um levando seus estudos em uma direção.

Erkinbayev se uniria ao lituano Gintautas Vileyta, e, em 2000, já teria um conjunto completo de regras, que submeteria à apreciação da UWW, a federação internacional que regula a luta greco-romana e a luta livre olímpica. Com a ajuda da UWW, ele reuniria um grupo que contaria também com um representante do Uzbequistão, um do Cazaquistão, um do Irã e uma da Bielorrúsia, que coordenariam esforços para que o alysh se espalhasse o mais rapidamente possível pela Europa e Ásia. Esses esforços culminariam com a realização, em 2002, do primeiro Campeonato Mundial de Alysh, disputado na cidade de Osh, no Quirguistão, com a participação de lutadores de 21 países.

Aí, então, aconteceria uma coisa compreensível, mas curiosa: representantes desses 21 países, durante esse Mundial, decidiriam fundar a Federação Internacional de Luta de Cinturão Alysh (IFWBA), que, hoje, é a principal federação internacional regulando o esporte. Como, antes disso tudo, Erkinbayev levou suas ideias à UWW, ela também regula o alysh, que é considerado um de seus dez esportes oficiais. A IFWBA não é reconhecida pelo COI, mas, como a UWW é, existe uma chance (hoje extremamente remota) de o alysh entrar nas Olimpíadas com as regras da UWW, que são ligeiramente diferentes das da IFWBA. Hoje, a IFWBA, tem 46 membros, sendo que os únicos que não são da Europa ou da Ásia são Estados Unidos, Austrália e Togo. Seu mais importante campeonato é o Mundial, disputado anualmente desde 2002; o Mundial da UWW é realizado a cada quatro anos, desde 2004.

O uniforme do alysh é composto por uma calça branca de elástico na cintura, uma camisa de mangas curtas de vestir pela cabeça com gola em V, e uma faixa, que deve ter entre 1,50 e 2 m de comprimento e entre 4 e 7 cm de largura. Mulheres devem usar uma camiseta branca por baixo da camisa, e podem usar um top esportivo por baixo da camiseta. Pelas regras da IFWBA, a calça deve obrigatoriamente ser de cor branca, a faixa deve obrigatoriamente ser amarela, e um dos lutadores deve usar camisa azul, enquanto o outro usa camisa verde. Também pelas regras da IFWBA, o alysh tem sete categorias de peso no masculino (até 55 kg, até 60 kg, até 70 kg, até 80 kg, até 90 kg, até 100 kg e acima de 100 kg) e sete no feminino (até 50 kg, até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg e acima de 75 kg). A área de luta do alysh, mesmo nas regras da IFWBA, é o mesmo mat usado na luta olímpica - o que foi decidido para facilitar a popularização do esporte, já que clubes, academias e escolas poderiam aproveitar os mats que já tinham.

Uma luta de alysh também dura 3 minutos, ao fim dos quais quem tiver mais pontos será o vencedor. Se, a qualquer momento, um lutador alcançar 6 pontos, ele vencerá a luta, não importa quanto tempo esteja restando. Se, ao final dos 3 minutos, a luta estiver empatada, é disputado mais um minuto no esquema de golden score, ou seja, quem pontuar primeiro vence. Se o empate persistir, vence quem teve a maior pontuação única (um golpe de 3 pontos ganha de três golpes de um, por exemplo), persistindo, o que teve menos penalidades, e, persistindo, o que pontuou por último.

Assim com no kurash, no alysh o objetivo é derrubar o oponente no chão. No alysh, entretanto, os lutadores devem passar toda a luta segurando a faixa do oponente, com uma pegada própria - eles passam as mãos pela faixa do oponente, pelos lados da cintura, até os punhos, aí viram as mãos para dentro e a seguram com firmeza. Todos os golpes, portanto, envolvem erguer ou puxar o oponente pela cintura e fazê-lo perder o equilíbrio, sem poder ser usadas rasteiras - por causa disso, o alysh é considerado uma luta de cinturão "pura", enquanto o kurash não é. Derrubar o oponente de forma que seus joelhos toquem o chão vale 1 ponto, derrubá-lo de forma que a lateral de seu corpo toque o chão vale 2 pontos, e derrubá-lo de forma que suas costas toquem o chão vale 5 pontos. Derrubar um oponente de costas também encerra a luta instantaneamente, com vitória para quem derrubou. Caso um lutador demonstre falta de combatividade, tente usar suas pernas para derrubar o adversário, use golpes inválidos, saia da área de luta de propósito, ou solte a faixa do oponente de propósito, ele recebe uma penalidade; três penalidades na mesma luta resultam em desclassificação, com vitória automática para o oponente.

Além do alysh, o Quirguistão tem outra luta de cinturão tradicional, chamada kurosh. Nela, os lutadores usam apenas calças compridas de algodão de cor branca, faixas amarradas na cintura e sapatilhas de luta, como as usadas na luta olímpica e no sambô, sendo que um lutador usa sempre faixa e sapatilhas azuis e o outro usa faixa e sapatilhas vermelhas. Disputado no mat, o kurosh é exclusivamente masculino, e o objetivo é, segurando o oponente apenas pela faixa, fazer com que ele toque com os dois ombros no chão simultaneamente dentro da área válida de luta, o que encerra a luta imediatamente com vitória por queda. Se isso ocorrer fora da área válida de luta, ou se o oponente cair de lado dentro da área válida, o lutador ganha 2 pontos; se o oponente cair de lado fora da área válida, ou cair sentado ou de bruços dentro da área válida, o lutador ganha 1 ponto. Se, a qualquer momento, um lutador tiver 8 pontos a mais que o outro, a luta também termina imediatamente, com vitória por superioridade técnica. Os lutadores podem receber penalidades por tentar evitar que o oponente segure em sua faixa, por soltar as duas mãos da faixa do oponente, por sair da área válida de luta propositalmente, por tentar ganhar tempo (desamarrando a amarrando a faixa, por exemplo) ou por conduta antidesportiva; um lutador com três penalidades na mesma luta é desclassificado. A luta dura cinco minutos, e, se terminar empatada, ganha o que teve menos penalidades, persistindo, o que pontuou por último, e, persistindo, o mais leve. As categorias de peso são oito: até 55 kg, até 60 kg, até 66 kg, até 74 kg, até 84 kg, até 96 kg, acima de 96 kg e absolutos (na qual podem competir lutadores de qualquer peso). O kurosh é regulado pela Federação Internacional de Kurosh Quirguiz (IFKK), fundada em 2008, que conta com 37 membros; seu principal campeonato é os Jogos Mundiais Nômades, realizados a cada dois anos desde 2014.

Mas esperem! Outro país vizinho do Uzbequistão e do Quirguistão, o Turcomenistão, também tinha uma luta semelhante, chamada goresh. Mais uma vez, o goresh era um esporte antiquíssimo, que passou a maior parte de sua história sendo passado de pai para filho e disputado em festivais, até que, no início dos anos 2000, o governo do Turcomenistão, vendo o sucesso do kurash e do alysh, montou uma comissão para transformá-lo em um esporte competitivo, cujo trabalho culminou na criação da Federação Mundial de Goresh (WGF), em 2010, que hoje conta com 36 membros, e tem como principal campeonato o Mundial, disputado anualmente desde 2014. O uniforme do goresh é idêntico ao do alysh, mas um dos lutadores sempre usa camisa verde e o outro sempre usa camisa vermelha, e a faixa é sempre de cor azul (assim como no kurash, por causa das cores da bandeira do Turcomenistão). O mat e as categorias de peso, no masculino e no feminino, são as mesmas do alysh. Como de costume, o objetivo é derrubar o oponente segurando-o apenas pela faixa. Fazer com que o oponente caia de costas no chão garante vitória automática, mas fazer com que ele toque no mat com qualquer parte do corpo que não seja a sola dos pés vale 1 ponto. Um lutador que alcance 6 pontos vence a luta automaticamente, e um que receba 3 punições é desclassificado. Uma luta dura 3 minutos, com mais um minuto caso termine empatada, durante o qual o primeiro que pontuar vence.

Para completar o quarteto da Ásia Central, o Tajiquistão também tem sua luta tradicional, que atende pelo comprido nome de gushtini milli kamarbandi (que, em tajique, significa "luta de cinturão nacional"), e que surgiu como treinamento de cavaleiros, que tentavam, no solo, reproduzir técnicas de cair da sela com segurança. O gushtini milli kamarbandi não tem federação internacional, sendo regulado pela Federação Tajique de Luta Olímpica, e é quase idêntico ao alysh, inclusive no uniforme, que usa as mesmas cores. Apesar de também ser praticado em países como Cazaquistão, Mongólia, Azerbaijão e Rússia, o gushtini milli kamarbandi possui poucas competições internacionais, e ainda não tem um Mundial; seu torneio de maior destaque até hoje foi como parte do programa dos Jogos Mundiais Nômades de 2018.

Nem todas as lutas de cinturão surgiram na Ásia Central, sendo um bom exemplo o koresh. O koresh é o esporte nacional do Tataristão, uma das repúblicas autônomas que compõem a Federação Russa (uma república autônoma é como se fosse um estado, sendo subordinada ao Governo Federal da Rússia, mas, como o nome sugere, tendo mais autonomia, dentre outras coisas tendo direito a um idioma oficial além do russo, que, no caso do Tataristão, é o tártaro), e, como de costume, por lá era um elemento tradicional e cultural fortíssimo, sendo passado de pai para filho e disputado em festivais. Além de no Tataristão, o koresh é extremamente popular nas repúblicas autônomas do Bascortostão, Mordóvia e Chuváchia, e nas regiões da Rússia em torno do Tataristão, como Kirov e Ulyanovsk.

O koresh se tornou esporte muito mais cedo que seus semelhantes, já na década de 1920, sendo regulado pelo Ministério do Esporte soviético. O primeiro campeonato esportivo de koresh, contando com lutadores de toda a União Soviética, seria realizado em Kazan, capital do Tataristão, em 1928, e um "campeonato nacional", só com lutadores do Tataristão, é disputado anualmente desde 1949. Em dezembro de 1958, seria fundada a Federação Nacional de Luta de Cinturão Tatar Koresh, que, no ano seguinte, realizaria seu primeiro Campeonato Nacional com lutadores de toda a União Soviética, que seria realizado anualmente até 1990. Em 2009, pelas federações da Rússia, Uzbequistão, Cazaquistão, Mongólia e Índia, seria fundada a Federação Internacional de Luta de Cinturão Koresh (IBWKF), que hoje conta com 24 membros, todos da Europa e Ásia, e já organizou cinco Campeonatos Mundiais de Koresh, entre 2009 e 2018.

O uniforme do koresh é parecido com o do alysh, sendo composto por uma calça branca ou preta de elástico na cintura, uma camisa de mangas curtas de vestir pela cabeça com gola em V, sapatilhas de luta e uma faixa; mulheres, como de costume, devem usar uma camiseta branca por baixo da camisa, com um top esportivo sendo opcional. A faixa se chama kushak, tem entre 40 e 70 cm (isso mesmo) de largura, e, no comprimento, no masculino, deve ter entre 1,80 e 2,20 m, e no feminino, entre 1,50 e 1,80 m. Pelas regras da IBWKF, um dos lutadores sempre usa camisa e kushak verdes, enquanto o outro sempre usa camisa e kushak vermelhos - como vocês devem ter adivinhado, verde e vermelho são as cores da bandeira do Tataristão.

A principal característica do koresh é que o kushak não fica amarrado na cintura do oponente. Cada lutador entra na área de luta com seu próprio kushak amarrado em sua própria cintura, mas, antes de a luta começar, o desamarra, o segura com uma pegada própria, que garante o máximo de firmeza, e o passa por trás da cintura do oponente - ou seja, cada lutador tenta derrubar o oponente usando seu próprio kushak, e, como ele não está amarrado na cintura do oponente, apenas preso às mãos do lutador, isso é muito mais difícil do que parece, já que o único ponto de contato entre o kushak e o oponente são suas costas.

O koresh é disputado no mesmo mat da luta olímpica (e do alysh, do kurosh, do goresh e do gushtini milli kamarbandi). As categorias de peso da IBWKF são dez para o masculino (até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 85 kg, até 90 kg, até 100 kg, até 130 kg e acima de 130 kg) e nove no feminino (até 55 kg, até 60 kg, até 65 kg, até 70 kg, até 75 kg, até 80 kg, até 85 kg, até 90 kg e acima de 90 kg). Uma luta de koresh dura 4 minutos, sendo que, nos 30 segundos finais, o relógio para sempre que a luta é interrompida. Ao final dos 4 minutos, o lutador com mais pontos ganha; se houver empate, ganha o que fez mais pontuações de dois pontos, persistindo, o que teve menos penalidades, e, persistindo, o que pontuou por último.

A pontuação é bem simples: se o lutador conseguir derrubar o oponente de forma que suas costas toquem o chão, ele ganha a luta automaticamente, independentemente de quanto tempo falte. Se o lutador conseguir derrubar o oponente de forma que a lateral de seu corpo, incluindo um dos ombros, toque o chão, ele ganha 2 pontos. Se o lutador conseguir fazer com que qualquer parte do corpo do oponente que não seja a sola dos pés (exceto a lateral e as costas) toque o chão (se o oponente cair de joelhos, sentado, de quatro, de bruços etc.), ele ganha 1 ponto. Um lutador que, a qualquer momento da luta, tenha 5 pontos a mais que o oponente (por exemplo, 6 x 1) também ganha a luta automaticamente, por superioridade técnica. Um lutador que tenha 3 penalidades na mesma luta é desclassificado, com o oponente ganhando a luta automaticamente. Um lutador pode receber penalidades por segurar no oponente ao invés de no kushak, por tentar impedir que o oponente pressione seu kushak contra seu corpo, soltar o kushak de propósito, e pelos tradicionais falta de combatividade, usar golpes proibidos, e sair da área de luta de propósito.

Outra luta de cinturão que teve origem bem longe da Ásia Central, mais precisamente na Coreia, é o ssireum. Assim como as demais lutas vistas hoje, o ssireum é muito antigo, com seus primeiros registros datando do século V. Originalmente, ele era usado como treinamento por militares, mas, no século VIII, se tornou um popular passatempo dentre nobres e plebeus, com inclusive alguns reis coreanos tendo sido hábeis praticantes de ssireum. O ssireum era a atividade mais popular no festival de Dano, realizado no quinto dia do quinto mês, e o vencedor desse torneio ganhava um boi, para simbolizar sua força. No início do século XX, o ssireum se tornaria tão popular na Coreia quanto o sumô no Japão, com os principais lutadores se tornando grandes ídolos. O primeiro campeonato nacional de ssireum seria realizado em 1912, e a Federação Coreana de Ssireum seria fundada em 1927. Infelizmente, depois da Segunda Guerra Mundial, o ssireum sofreria um grande declínio, mas, recentemente, devido à popularidade de outras lutas de cinturão, tem voltado a ser bastante praticado, inclusive fora da Coreia.

O ssireum é disputado em uma plataforma elevada, feita de madeira, com entre 30 e 70 cm de altura. Essa plataforma pode ser um quadrado, de 14 m de lado, ou um círculo, de 9,5 m de diâmetro. No centro da plataforma há um outro círculo, de 8 m de diâmetro, que na verdade é um buraco, de 10 a 20 cm de profundidade, e cheio de areia. É sobre essa areia que os lutadores vão lutar. O uniforme consiste apenas de shorts de lycra e uma grossa faixa amarrada na cintura, sendo que as mulheres devem usar também uma camiseta sem mangas, parecida com um top. Os shorts e as camisetas podem ser de qualquer cor, mas a faixa, chamada satba, deve ser vermelha para um dos lutadores e azul para o outro. O satba tem 114 cm de comprimento e 16 cm de largura, e é amarrado na cintura após várias voltas, com um nó próprio, e de forma que fique um pouco frouxa; originalmente, existiam duas formas de amarrar o satba, uma com o nó à esquerda, outra com o nó à direita, mas, em 1994, a Federação Sul-Coreana decidiu que todos os competidores devem usar o nó à esquerda, para evitar vantagens indevidas. Originalmente, os lutadores usavam calças de tecido grosso, cuja cintura era enrolada para que o oponente pudesse fazer a pegada, tendo o satba sido introduzido na década de 1960; atualmente, alguns lutadores preferem lutar ao "estilo antigo", e defendem o fim do satba e uma volta às origens, mas encontram grande resistência da maioria, que já considera o satba um elemento tradicional do ssireum.

Os lutadores começam a luta ajoelhados, um segurando firmemente o satba do outro, e, a um comando do árbitro, se colocam de pé e a luta começa. O objetivo é fazer com que o oponente toque o solo com qualquer parte de seu corpo acima dos joelhos, segurando-o apenas pelo satba, sem poder dar rasteiras. Uma luta de ssireum dura dois rounds de 2 minutos cada, com um intervalo de 1 minuto entre eles. Não há pontuação: um lutador que derrube o oponente vence aquele round, que termina instantaneamente, sendo vencedor da luta quem vencer mais rounds - um round no qual ninguém derruba ninguém termina sem vencedor. Se cada lutador vencer um round, ou se ambos os rounds terminarem sem vencedor, a luta terminar empatada, vencendo o lutador que teve menos penalidades; se o empate persistir, é disputado um terceiro round, que dura até um lutador derrubar o outro ou receber uma penalidade. Recebe uma penalidade o lutador que atinja o oponente com golpes, interfira com sua respiração ou sua visão de qualquer forma, ou solte repetidamente o satba do oponente; um lutador que receba três penalidades em uma mesma luta é desclassificado. A critério do árbitro, um lutador que coloque a vida ou integridade do oponente em risco, ou tenha conduta anti-desportiva, pode ser desclassificado automaticamente, mesmo se não tiver nenhuma penalidade.

As categorias de peso do ssireum são cinco no masculino (até 75 kg, até 85 kg, até 95 kg, até 105 kg e acima de 105 kg) e quatro no feminino (até 55 kg, até 65 kg, até 75 kg e acima de 75 kg). O esporte é regulado internacionalmente pela Federação Mundial de Ssireum (WSF), fundada em 2008, e que hoje já conta com 44 membros, incluindo o Brasil - mas, curiosamente, não a Coreia do Norte, onde é muito popular. O principal campeonato da WSF é o Campeonato Mundial de Ssireum, realizado em intervalos irregulares, que teve seis edições entre 2009 e 2017, e tem a próxima marcada para 2021.

Para terminar, é preciso dizer que, desde a década de 1960, a UWW reconhece várias lutas regionais, agrupando a todas elas sob o nome de "lutas tradicionais"; ela não regula (ou seja, não publica regras oficiais) nem organiza campeonatos dessas lutas, apenas admite que elas existem, e de vez em quando as inclui como esportes de demonstração em seus campeonatos. O kurash, o kurosh, o koresh, o goresh e o gushtini milli kamarbandi fazem parte dessas lutas tradicionais da UWW.

Em 2005, Rif Ganaynov, que vocês se lembram que começou o estudo do alysh junto com Erkinbayev, decidiria fundar, no Cazaquistão, a Associação Internacional de Luta de Cinturão (IBWA), para tentar dar mais visibilidade às lutas de cinturão, já que, na sua opinião, a UWW não estava dando a elas o destaque merecido. Ao invés de promover as lutas de cinturão separadamente, porém, Ganaynov decidiu criar um novo esporte, o qual chamou de luta de cinturão internacional, reunindo características de várias lutas diferentes - mas tendo como base as regras do alysh. A luta de cinturão internacional tem dois estilos, o clássico e o livre, sendo que no estilo livre, como no kurash, é permitido usar rasteiras, enquanto no estilo clássico só é permitido usar arremessos - em ambos, é preciso manter as mãos na faixa do oponente todo o tempo. O uniforme é o mesmo do alysh, mas um dos lutadores sempre usa camisa azul e o outro sempre usa camisa vermelha, e a faixa é sempre de cor amarela. As regras são quase idênticas às do alysh, exceto por alguns golpes que no alysh são permitidos e na luta de cinturão internacional não e vice-versa (como as rasteiras, permitidas no estilo livre). Uma diferença importante é que, na luta de cinturão internacional, é conferido 1 ponto ao lutador que faça seu oponente cair em qualquer posição que não seja de lado ou de costas (sentado, por exemplo), e não só de joelhos.

A luta de cinturão internacional fez bastante sucesso, e hoje a IBWA já conta com 59 membros, tendo organizado dez Copas do Mundo da modalidade (a primeira em 2007, então anualmente desde 2010, exceto em 2013). Aí o que a UWW fez? Em 2016, decidiu que ela também iria regular a luta de cinturão internacional, incluindo-a como um de seus estilos oficiais. O Campeonato Mundial de Luta de Cinturão Internacional da UWW foi realizado apenas uma vez, junto com o Mundial de Alysh de 2016.

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