Heisei Tanuki Gassen Ponpoko
1994
Antes de mais nada, é preciso explicar que, apesar do que diz o subtítulo e do que aparece nas legendas da versão em português (e talvez na dublagem, mas não tenho certeza, porque jamais assisti dublado), os animais desse filme não são guaxinins, e sim tanukis, canídeos nativos do Japão que lembram guaxinins por ambos terem uma pelagem preta em torno dos olhos parecida com uma máscara, mas que não são parentes deles. No folclore japonês, tanukis (e raposas) são criaturas com poderes místicos, capazes de se assumir outras formas, inclusive de seres humanos, principalmente para causar confusão; para se transformar, os tanukis colocam uma folha verde na cabeça, e sua transformação preferida é em estátua de Ojizo-sama, divindade que costuma ser encontrada em templos budistas. O nome do filme, Pom Poko, é uma referência ao barulho que os tanukis fazem batendo em suas próprias barrigas em um popular poema infantil escrito por Ujo Noguchi em 1919, que se tornou uma cantiga de roda em 1925.
Hayao Miyazaki e Toshio Suzuki teriam a ideia de fazer um filme sobre tanukis em 1992, mas, envolvido com a produção de Porco Rosso, Miyazaki decidiria convidar Isao Takahata para escrever e dirigir o projeto. A princípio, Takahata pensaria em adaptar a história de Heike Monogatari, livro que relata a luta entre os clãs Taira e Minamoto pelo controle do Japão no final do século XII, mas substituindo os humanos por tanukis; como isso estava dando muito trabalho e não estava ficando do jeito que ele queria, ele decidiria perguntar a Miyazaki e Suzuki se, quando eles o convidaram, já tinham algo em mente, ou se queriam simplesmente uma história envolvendo tanukis. Suzuki diria ter pensado em ambientar a história na região de Tama New Town, nos arredores de Tóquio, que, antigamente, contava com uma grande população de tanukis, expulsos de lá após um boom imobiliário, e Miyazaki diria que sua ideia era que os tanukis usassem seus poderes de transformação para tentar frear a invasão dos humanos.
Assim, o filme começa nos anos 1960, quando os tanukis viviam livres nas florestas e com bastante espaço, até começar a construção de Tama New Town, quando eles foram sendo empurrados para espaços cada vez menores. Após um salto no tempo para os anos 1990, quando o filme é efetivamente ambientado, os tanukis de dois clãs rivais, que vivem brigando, percebem que, se não se unirem, Tama New Town ocupará todo o seu espaço, e eles ficarão sem ter onde morar. Sua melhor chance é usar seus poderes de transformação para sabotar as obras, mas eles estão há tanto tempo sem usá-los que os mais jovens sequer sabem como fazê-lo. Os anciões, então, desenvolvem um plano em duas partes: enquanto os jovens são treinados pelos mais velhos para dominar suas transformações e usá-las para atrapalhar o serviço dos humanos e afugentá-los, emissários serão enviados em busca dos grandes mestres da transformação, que vivem em regiões mais afastadas da civilização, e possuem poderes capazes de impedir a expansão dos humanos de uma vez por todas.
Pom Poko seria o primeiro filme com roteiro original de Takahata, e o primeiro do Studio Ghibli com um roteiro original que não fosse de Miyazaki. Os roteiristas de mangá Shigeru Sugiura, Hisashi Inoue e Shigeru Mizuki seriam creditados como "equipe adicional", segundo Takahata, por ele ter se baseado em várias obras deles para criar sua história; embora não tenha adaptado uma história específica, Takahata se inspiraria tanto no trabalho de Mizuki que decidiria incluir no filme um personagem (humano) feito à sua imagem e semelhança.
Ao todo, três equipes de animação seriam usadas no filme, cada uma responsável por um nível de realismo dos tanukis: quando eles não estão "ocultos dos olhos humanos", são extremamente realísticos, como se o filme fosse um documentário; na maior parte do tempo, porém, eles se parecem com animais antropomórficos fofinhos característicos de desenhos animados; exceto quando estão muito felizes ou empolgados, quando seus traços ficam ainda mais simples, ao estilo dos desenhos produzidos para crianças bem pequenas. Pom Poko seria o primeiro filme do Studio Ghibli a usar computação gráfica, embora apenas em algumas cenas e somente o recurso da tinta digital, que facilitava o trabalho dos coloristas e proporcionava maior uniformidade ao filme; e o segundo a fazer referência a filmes anteriores através de personagens: na cena em que os grandes mestres da transformação criam um desfile de youkai ("espíritos"), em meio às criaturas, cruzando a tela rapidamente, podem ser vistos Totoro, montado num pião e segurando um guarda-chuva; Kiki, voando em sua vassoura; a versão de 10 anos de Taeko, nadando como se estivesse em uma piscina; e Porco Rosso, voando em seu avião. Caso alguém esteja se perguntando, o primeiro seria O Castelo no Céu, no qual, em Laputa, são encontrados vários animais idênticos ao que Lorde Yupa deu de presente para Nausicaä em Nausicaä do Vale do Vento.
Pom Poko também seria o primeiro filme do Studio Ghibli a contar com um narrador, com esse papel cabendo ao famoso contador de histórias Kokontei Shincho, e o primeiro no qual um dos personagens "quebra a quarta parede" e fala diretamente com a audiência, numa cena em que o tanuki Ponkichi pede para que as pessoas evitem destruir o habitat natural dos animais nativos de suas regiões. Finalmente, ele é o único do Studio Ghibli até hoje a contar com uma cena gravada com atores de carne e osso: há um momento em que os tanukis estão assistindo televisão e, na tela, aparece um programa no qual um cozinheiro está preparando tempura. Originalmente, esse programa seria feito com animação, como o resto do filme, mas Takahata acharia que o tempura "não parecia delicioso o suficiente", e pediria para que uma cena com atores fosse usada. Ao invés de catar uma de algum outro filme ou comercial, a equipe de produção decidiria filmar uma especialmente para a ocasião, usando a cozinha e um dos cozinheiros do restaurante Kappo Sushi Funawa, no qual eles costumavam almoçar.
Pom Poko estrearia nos cinemas japoneses em 16 de julho de 1994, distribuído pela Toho, e seria um gigantesco sucesso, rendendo 4,47 bilhões de ienes nas bilheterias, se tornando o filme nacional mais assistido no Japão e o segundo filme de animação mais assistido no país naquele ano, atrás apenas de O Rei Leão. A crítica ficaria encantada, elogiando principalmente a qualidade da animação e a mensagem ecológica do filme. Pom Poko ganharia o o prêmio de Melhor Filme de Animação no festival de cinema da Mainichi Shimbun, e seria incrito para concorrer ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, mas não ficaria dentre os finalistas.
Internacionalmente, aliás, o filme sofreria com problemas de distribuição por causa de uma questão inusitada: os tanukis machos têm bolsa escrotal ("saquinho") e, inclusive, conseguem transformá-los em outros objetos usando seu poder de transformação - em uma determinada cena, um dos grandes mestres transforma seu saquinho em um navio e sai navegando com ele por um rio. Essa particularidade faria com que fosse difícil encontrar um distribuidor na Europa, e com que a primeira vez em que Pom Poko estivesse disponível fora do Japão fosse em 2005, quando a Disney o lançaria em DVD nos Estados Unidos, em um combo com Meus Vizinhos, os Yamadas; no ano seguinte, ele seria lançado também em DVD no Reino Unido. A versão Disney conta com vozes, dentre outros, de J.K. Simmons, Olivia d'Abo, Clancy Brown, Tess MacNeille, Brian Posehn, Kevin Michael Richardson e John DiMaggio.
Mimi wo Sumaseba
1995
Shizuku Tsukishima é uma estudante de 14 anos que mora no subúrbio de Tóquio com seus pais e sua irmã universitária, sendo que seu pai trabalha na biblioteca pública. Introvertida mas muito criativa, Shizuku gosta de escrever poemas, contos e letras de música, mas seu principal hobby é ler, principalmente livros de aventura que pega na biblioteca da escola. Um dia, acidentalmente, ela descobre que todos os livros que ela pega já foram lidos anteriormente pela mesma pessoa, um menino chamado Seiji Amasawa, e começa a imaginar como seria ser amiga de um menino que tem o mesmo gosto literário que ela.
A vida de Shizuku muda num dia em que, levando o almoço para seu pai, ela se distrai com um gato (que mais tarde ela descobre se chamar Moon) e acaba indo parar em um bairro no qual nunca esteve antes, onde descobre uma loja de antiguidades, ficando encantada por conhecer "um lugar onde as histórias começam". Ela faz amizade com o idoso dono da loja, que tem como objeto preferido uma estatueta de um gato, de pé como se fosse uma pessoa e vestindo roupas, que ele chama de Barão. Ao voltar para casa, ela descobre que o neto do dono da loja é um menino com quem ela não se dava bem na escola, e, convivendo com ele, descobre que ele é mais sensível e profundo do que ela imaginava, inclusive sabendo fabricar violinos e tendo o sonho de se tornar um lutier. Da amizade com o senhor e seu neto, Shizuku tira a inspiração para escrever um livro, protagonizado pelo Barão.
Essa é a história de Sussuros do Coração, adaptação do mangá Mimi wo Sumaseba (algo como "ouça com cuidado"), escrito pela autora Aoi Hiiragi e publicado na revista Ribon entre agosto e novembro de 1989, ganhando uma continuação, Mimi wo Sumaseba: Siawase na Jikan ("tempos felizes"), publicada na Ribon Original em agosto de 1995, pouco após o lançamento do filme. Segundo as más línguas, Miyazaki, após a produção de Eu Posso Ouvir o Oceano, ficaria com a ideia fixa de escrever e dirigir ele mesmo uma história de romance adolescente, sem elementos fantásticos, para ser lançada nos cinemas, com o intuito de que Eu Posso Ouvir o Oceano, que estreou diretamente na televisão, não entrasse para a história como o único filme de romance adolescente do Studio Ghibli. Línguas mais maldosas ainda diriam que ele se ressentia por ter planejado escrever e dirigir Eu Posso Ouvir o Oceano, mas sido impedido por Suzuki, que queria que uma equipe jovem assumisse o projeto.
Seja como for, Miyazaki leria o mangá e negociaria com Hiiragi a adaptação, escrevendo ele mesmo o roteiro e planejando dirigi-lo, mas decidindo abrir mão da direção para que essa coubesse a Yoshifumi Kondo, animador que Takahata trouxe da Nippon Animation para trabalhar em Túmulo dos Vagalumes. Considerado extremamente talentoso tanto por Miyazaki quanto por Takahata, Kondo seria treinado pelos dois para se tornar o terceiro diretor principal do Studio Ghibli, e, um dia, sucedê-los; Sussurros do Coração, porém, acabaria sendo seu primeiro e último filme, já que Kondo faleceria prematuramente, aos 47 anos, de um aneurisma na aorta, em 1998.
Como de costume, Miyazaki mudaria algumas coisas na história, para que o filme ficasse mais com a cara do Studio Ghibli; a principal delas seria a introdução na trilha sonora, criada pelo compositor Yuji Nomi, em sua estreia no Studio Ghibli, da canção Take Me Home, Country Roads, de John Denver. Na história, Shizuku faz uma paródia da música, chamada "estradas de concreto", com letra em japonês, que fala sobre o lugar onde ela mora, Tama New Town, e essa paródia tem papel importantíssimo na história, sendo tanto o motivo pelo qual ela desgosta do neto do dono da loja quanto o pelo qual ela se aproxima dele. A letra da paródia seria criada pela filha do produtor Toshio Suzuki, Mamiko, sendo revisada e ajustada na métrica por Miyazaki. A música original em inglês, no filme, é cantada por Olivia Newton-John, e a paródia por Yoko Honna, a dubladora de Shizuku.
Sussuros do Coração seria extremamente elogiado pela beleza dos seus cenários, que mostravam uma Tóquio um pouco diferente da real - no Japão, é considerado desrespeitoso retratar em obras de animação cidades japonesas de forma idêntica a como elas são na realidade - mas ainda assim reconhecível. As antiguidades da loja também seriam bastante inspiradas, algumas copiadas do mangá, outras criadas especialmente para o filme, como uma xilogravura - aquela placa de madeira com uma figura, que depois será coberta de tinta e usada para impressão, bastante usada no Japão, na China e no Brasil, na literatura de cordel - de um violinista, criada pelo filho de Miyazaki, Keisuke, que, na vida real, é xilógrafo.
O filme também chamaria atenção por suas sequências de sonho, aquelas nas quais Shizuku imagina estar dentro da história que está escrevendo, protagonizada por Barão. Essas sequências seriam animadas por uma equipe diferente da que fez o restante do filme, e teria lindíssimos planos de fundo pintados por Naohisa Inoue, autor do conto Hoshi o Katta Hi ("o dia em que eu comprei uma estrela"), que Miyazaki adaptaria para um curta, em exibição exclusiva no Museu Ghibli desde 2006. O sucesso de Hoshi o Katta Hi chamaria antenção para o trabalho de Inoue, que seria convidado para escrever e dirigir Iblard Jikan, filme lançado diretamente em DVD e Blu-ray em 2007, composto por várias cenas do mundo imaginário de Iblard, criado por Inoue, animadas pelos profissionais do Studio Ghibli e com trilha sonora de Kiyonori Matsuo, sem enredo ou diálogos.
Sussuros do Coração seria o primeiro filme na história do cinema japonês a usar o formato de som Dolby Digital; para aproveitar a ocasião, a banda japonesa Chage and Aska faria uma parceria com o Studio Ghibli, que criaria em animação um videoclipe para a música On Your Mark, exibido antes de cada sessão do filme, que estrearia nos cinemas japoneses em 15 de julho de 1995, distribuído pela Toho. Mais uma vez, o filme seria o nacional mais assistido no Japão naquele ano, rendendo cerca de 3,15 bilhões de ienes de bilheteria. A crítica também ficaria encantada, considerando-o "uma bela e provocativa história adolescente sobre anseios e aspirações".
No exterior, o filme só começaria a ser lançado a partir de 2003, acreditem ou não, por problemas de licenciamento de Take Me Home, Country Roads, que Miyazaki não aceitava remover ou substituir. Na Europa e Ásia o filme teria um lançamento limitado nos cinemas - e, mesmo assim, somando todas as sessões fora do Japão, renderia mais 34,9 milhões de dólares - mas, nos Estados Unidos, seria lançado diretamente em home video pela Disney em 2006, com a dublagem trazendo Brittany Snow como Shizuku. Embora o filme japonês tenha o mesmo título do mangá, as versões internacionais têm como título versões nos idiomas locais de Sussuros do Coração (por exemplo, em inglês o título é Whisper of the Heart, e em italiano é I Sospiri del mio Cuore); esse título também seria criado pelo Studio Ghibli, que considerou que o original seria de difícil tradução, e não queria que o filme tivesse um título diferente em cada lugar.
Em 2022, Sussuros do Coração ganharia uma versão com atores de carne e osso, produzida pela Sony e estrelada por Nana Seino (a Sunmi de Tokyo Tribe) e Tori Matsuzaka (o Shinken Red de Samurai Sentai Shinkenger). Com direção de Yuichiro Hirakawa, o filme é ambientado dez anos após os eventos do anime, e traz uma Shizuku de 24 anos trabalhando como editora de livros infantis e tentando fazer funcionar um relacionamento à distância. A produção começaria em janeiro de 2020, mas teria de ser interrompida por causa da pandemia, o que atrasaria a estreia em dois anos em relação à data originalmente prevista. Talvez para evitar problemas, a música principal do filme não é Take Me Home, Country Roads, e sim Tsubasa o Kudasai, cantada por Anne Watanabe. O filme seria um sucesso de público, sendo o quarto mais assistido no Japão em 2022, mas um fracasso de crítica, que o consideraria extremamente nostálgico e com roteiro fraco e previsível.
Para terminar, vale registrar que Sussuros do Coração é o único longa-metragem do Studio Ghibli que ganharia uma "sequência" (na verdade, um spin-off, mas o próprio Studio Ghibli chama de sequência ou continuação) na forma também de um longa metragem: O Reino dos Gatos, de 2002, que nós veremos no próximo post dessa série.
Mononoke Hime
1997
Em 1980, logo após finalizar Lupin III: O Castelo de Cagliostro, Miyazaki começaria a trabalhar em uma versão da fábula A Bela e a Fera ambientada no Japão Feudal, na qual a "fera" seria um mononoke, espírito animal vingativo que normalmente protege uma floresta, lago ou outra região natural, e a "bela" seria uma filha de um nobre que, após ele desrespeitar o espírito, se veria forçada a se casar com ele para evitar sua vingança. Miyazaki apresentaria o projeto a várias produtoras, mas nenhuma se interessaria, e ele acabaria usando o que já tinha criado no mangá Shuna no Tabi, lançado em 1983, em volume único, pela Tokuma Shoten.
Após a fundação do Studio Ghibli, Miyazaki decidiria revisitar o conceito, mas, sem querer fazer uma adaptação de Shuna no Tabi, ele decidiria se inspirar em Hojoki, obra escrita em 1212 por Kamo no Chomei, que, diante do turbilhão político e de diversos desastres natuais que ocorreram na época, escreveu sobre a efemeridade da vida e a vulnerabilidade da cultura japonesa. Em determinado momento, Miyazaki acharia que o projeto estava se distanciando demais do originalmente pretendido e que não faria sucesso comercialmente e o abandonaria completamente, mantendo, entretanto, sua vontade de fazer um filme ambientado no Japão Feudal.
Em agosto de 1994, depois de concluir o mangá de Nausicaä do Vale do Vento, Miyazaki decidiria retomar os trabalhos em seu filme de A Bela e a Fera, mas adicionando a ele ideias com as quais havia já trabalhado em Meu Amigo Totoro e Porco Rosso. Em dezembro, ele abandonaria tudo novamente, dizendo estar com bloqueio de escritor, e decidiria se dedicar à direção do videoclipe On Your Mark, para arejar as ideias. Em abril de 1995, ele finalmente decidiria retomar a pré-produção, levando toda a equipe de direção de arte para visitar a ilha de Yakushima, relativamente intocada pelo homem, para obter inspiração para os cenários do filme; o diretor de arte Kazuo Oga também decidiria visitar outro local, as montanhas de Shirakami-Sanchi.
Após essa viagem, a história finalmente começaria a se desenrolar na mente de Miyazaki, que começaria a preparar os storyboards - ainda assim, o filme teria a produção mais longa dentre todos do Studio Ghibli, pois frequentemente Miyazaki decidia mudar alguma coisa com a qual não estava plenamente satisfeito. A produção da animação começaria em julho de 1995, sem um roteiro pronto: usando uma técnica comum no mangá, Miyazaki iria inventando a história conforme desenhava os storyboards, o que fez com que toda a história só estivesse completa em janeiro de 1997, e com que as filmagens só fossem concluídas em junho, menos de um mês antes da data prevista para a estreia nos cinemas, que Miyazaki se recusou a adiar.
Essa produção tão longa faria com que Princesa Mononoke se tornasse o filme japonês de animação mais caro de todos os tempos, com custo final de 2,35 bilhões de ienes. Em uma entrevista dada quando o orçamento passou de 2 bilhões, Miyazaki declararia não se importar se o Studio Ghibli fosse à falência, desde que ele conseguisse fazer o filme do jeito que queria. Parte do custo exagerado do filme veio da ideia de Miyazaki de contratar nada menos que cinco diretores de arte, algo sem precedentes na indústria da animação mundial, cada um responsável por uma área em específico - um cuidaria apenas das cenas na floresta, outro apenas das cenas na fortaleza, outro somente das cenas ambientadas durante a noite. O nível de detalhe dos planos de fundo e dos personagens coadjuvantes também seria algo sem precedentes, consumindo mais de 144 mil células de acetato, 80 mil delas retocadas pessoalmente por Miyazaki, que queria que elas ficassem mais detalhadas ainda.
Além de todo esse esforço na animação tradicional, Princesa Mononoke também seria o segundo filme do Studio Ghibli a usar computação gráfica, utilizando principalmente a técnica da tinta digital, usada dali por diante em todos os filmes subsequentes do Studio Ghibli. Seria o colorista veterano Michiyo Yasuda quem convenceria Miyazaki a investir em um departamento de computação gráfica para o Studio Ghibli, inaugurado em 1996; tendo usado a técnica da tinta digital em Pom Poko, Yasuda acreditava que as técnicas de pintura usadas pelo Studio Ghibli já estavam ultrapassadas, e que insistir nelas poderia levar os filmes a ficarem com visual datado e afastar o público. Após a inauguração do departamento de computação gráfica, os animadores aproveitariam para testar outras técnicas variadas de animação por computação; estima-se que cerca de 5 minutos (não contínuos) de Princesa Mononoke, incluindo o primeiro demônio que aparece no filme, tenham sido totalmente produzidos por computação gráfica, sem nenhum traço de animação tradicional.
Miyazaki era conhecido por detestar e renegar o uso da computação gráfica na animação, então foi uma grande surpresa para todos do meio quando foi anunciado seu uso em Princesa Mononoke. Para que a animação por computação gráfica não destoasse da animação tradicional, seria usado um programa que combinaria as duas, desenvolvido pela Microsoft especificamente a pedido do Studio Ghibli. A falta de know how dos animadores do Studio Ghibli também faria com que a produção das cenas em computação gráfica fossem supervisionadas por animadores de outro estúdio mais acostumado com o processo, o Toyo Links. O resultado final ficaria tão harmonioso que os deuses alternam entre versões digitais e tradicionais sem que ninguém consiga identificar com clareza quando é feita a transição.
A produção do filme seria tão desgastante que muitos dos animadores pediriam demissão após sua conclusão; o próprio Miyazaki chegaria a anunciar sua aposentadoria, alegando que jamais iria conseguir trabalhar em outro filme, mas mudaria de ideia em 1998, após a morte de Yoshifumi Kondo, que ele considerava seu sucessor. Apesar de tudo isso, Princesa Mononoke seria considerado um divisor de águas para a carreira de Miyazaki, com seus filmes posteriores sendo considerados muito mais maduros e artísticos; há quem considere, por outro lado, que o filme restringiria sua carreira, já que o diretor se retiraria da vida pública após seu lançamento, e jamais voltaria a fazer os filmes de aventura ao estilo de Porco Rosso que fazia antes, como se achasse que isso seria um retrocesso.
O protagonista de Princesa Mononoke é Ashitaka, príncipe do povo Emishi, que, um dia, é atacado por um demônio. Ao deter o ataque, Ashitaka descobre que o demônio na verdade era Nago, um espírito protetor da floresta, que foi corrompido. Essa corrupção se infiltra no braço de Ashitaka, que passa a ter vontade própria, e acabará se alastrando pelo resto de seu corpo e transformando-o também em demônio. Ashitaka então decide rumar em uma jornada para descobrir a fonte da corrupção de Nago, imaginando que, conhecendo sua causa, poderá reverter o processo.
Durante a jornada, Ashitaka conhece o monge Jigo, que finge ser seu amigo, e vai parar numa fortaleza controlada por Lady Eboshi, que dá abrigo a prostitutas, leprosos e outros párias, em troca de eles trabalharem em sua fábrica de armas de fogo - que ela pretende usar para destruir todos os espíritos protetores da floresta, tendo sido ela a responsável pela corrupção de Nago. Enquanto está na fortaleza, Ashitaka conhece San, humana criada como filha por outro espírito protetor, Moro, que planeja expulsar Lady Eboshi de lá e destruir sua fábrica. San leva Ashitaka até o Espírito da Floresta, que salva sua vida, mas, ao fazê-lo, inadvertidamente coloca sua própria existência em risco, já que o Imperador incumbiu Jigo e Lady Eboshi de cortar a cabeça do Espírito da Floresta e levá-la até ele, acreditando que ela confere a seu portador a imortalidade.
Princesa Mononoke seria mais um dos filmes do Studio Ghibli que coloca a civilização e a natureza em conflito, com forte mensagem ecológica e a favor do ambientalismo, mas com a distinção de não mostrar civilização e natureza como opostos, nem progresso e tecnologia como malignos - o vilão, mais uma vez, é a ganância, não a modernidade. Ashitaka transita entre os dois mundos sem condenar nenhum, e serve de mediador entre os interesses de Lady Eboshi e de San, até descobrir que a primeira tem um propósito egoísta. Essa dicotomia incomum faria com que o filme fosse objeto de vários estudos cinematográficos, literários e até mesmo sociológicos, com artigos científicos que usam o filme como exemplo ou ponto de partida sendo publicados no mundo inteiro. Miyazaki diria que pretendia fazer uma crítica à forma como os problemas ambientais são abordados no Japão, que praticamente exclui os seres humanos da equação, dando a entender que a única forma de a natureza ser preservada é acabando com a civilização.
O filme também ficaria famoso por tocar em pontos espinhosos para a cultura japonesa, como o minzoku, a teoria de que a cultura do Japão é única e derivada de uma só etnia, o povo Yamato; pertencendo ao povo Emishi, antepassado dos Ainu, povo indígena que vive no norte do Japão e é considerado de segunda classe por muitos dos japoneses, Ashitaka é tratado com desdém ou desconfiança pela maior parte dos demais personagens, inclusive os que moram na fortaleza de Lady Eboshi, que dá abrigo a todo tipo de pária - algo que coloca em xeque até mesmo o papel de Eboshi como vilã. Apesar de ser um "filme de época", Princesa Mononoke é essencialmente um filme de fantasia, já que muitos de seus elementos não possuem correspondentes históricos - a fábrica de Lady Eboshi seria inspirada em instalações semelhantes encontradas na China, mas jamais presentes no Japão, e as armas de fogo são as armas preferenciais dos personagens, algo que não ocorria no Japão Feudal.
Muitos críticos também veriam um paralelo entre Princesa Mononoke e o Épico de Gilgamesh, no qual a destruição de um deus leva à ruína da humanidade. Em 1988, o autor japonês Takeshi Umehara escreveria uma peça teatral chamada Gilgamesh, e a ofereceria para que Miyazaki adaptasse; Miyazaki leria o roteiro e não se interessaria, mas diria em entrevistas ter sido possível que ele tivesse inconscientemente incluído temas presentes em Gilgamesh no enredo de Princesa Mononoke durante a produção. Finalmente, Princesa Mononoke chama atenção por ser muito mais tenso e sombrio do que os demais trabalhos de Miyazaki - e por não ter nenhuma sequência na qual os personagens voam, algo que era uma marca registrada do diretor.
A campanha de marketing de Princesa Mononoke seria capitaneada por Suzuki, que planejava valorizar a marca do Studio Ghibli - até então, no Japão, os filmes eram anunciados como "um filme de Hayao Miyazaki", ou "um filme de Isao Takahata", com Princesa Mononoke sendo o primeiro a ser anunciado como "um filme do Studio Ghibli". Suzuki também mudaria o nome do filme, durante a pós-produção; até ele mudar, o título oficial era A Lenda de Ashitaka, que o produtor considerava muito básico e pouco interessante - Miyazaki seria contra a mudança, alegando que não há nenhuma princesa chamada Mononoke no filme, e achando que as plateias não entenderiam que é uma referência ao fato de Sen ter sido criada por um espírito. Considerando fundamental que o filme fosse um gigantesco sucesso, já que foi caríssimo, Suzuki conseguiria patrocínios para que a campanha de marketing fosse mais cara até do que a produção, consumindo 2,6 bilhões de ienes, algo também sem precedentes no cinema japonês. Ele também conseguiria nada menos que 70 sessões para plateias de testes, não para que eles sugerissem mudanças, mas para que fizessem propaganda boca a boca do filme - a título de comparação, o recordista prévio em sessões para plateias de teste no Japão era Porco Rosso, com 23.
Princesa Mononoke estrearia no Japão em 12 de julho de 1997, distribuído pela Toho, em 260 das 1800 salas de cinema disponíveis, e, somente no primeiro final de semana, renderia 1,5 bilhão de ienes. No total, o filme ficaria em cartaz por um ano e arrecadaria 11,3 bilhões de ienes, sendo até hoje o filme de maior bilheteria da história do cinema japonês - estima-se que um décimo da população do Japão foi ver esse filme nos cinemas. A crítica receberia muito bem o filme, elogiando principalmente sua identidade visual; bizarramente, uma das principais críticas negativas seria a de que as personagens femininas "não tinham sex appeal". Princesa Mononoke seria eleito o terceiro melhor filme de animação de todos os tempos pela revista britânica Empire, e ganharia os prêmios de Melhor Filme e de Melhor Filme de Animação no festival de cinema da Mainichi Shimbun e de Filme do Ano pela Academia Japonesa de Cinema.
Através de um acordo entre a Tokuma e a Disney, o filme seria passado para a Miramax, para dublagem e distribuição nos Estados Unidos. Princesa Mononoke seria o primeiro filme a ter de se valer da política estabelecida por Miyazaki de que os filmes do Studio Ghibli não podem sofrer edição ou cortes para serem exibidos internacionalmente: quando Harvey Weinstein, da Miramax, perguntou se poderia editá-lo, para diminuir sua duração (que é de 2 horas e 14 minutos) e remover cenas que os pais norte-americanos poderiam considerar violentas, recebeu de presente de Suzuki uma katana cenográfica com uma inscrição na lâmina que dizia "sem cortes". Weinstein escolheria o escritor Neil Gaiman para adaptar o roteiro após sua tradução, encontrando equivalentes que os norte-americanos compreendessem para termos do folclore japonês, como os próprios mononoke, que viraram "deuses". Em entrevistas posteriores, Gaiman diria que, inicialmente, Weinstein chamaria o diretor Quentin Tarantino, que recusaria e o indicaria, e que ele mesmo não estaria interessado até assistir a uma cena do filme na qual está chovendo e uma pedra está se molhando, tão bela que ele jamais havia visto algo parecido num filme de animação. Assim como ocorreu com Porco Rosso, a versão em inglês de Princesa Mononoke tem falas que não estão presentes no original japonês, proferidas quando os personagens não estão na tela, que, aqui, servem para explicar conceitos da cultura japonesa às plateias norte-americanas.
A adaptação de Gaiman seria acusada de tentar anular as características culturais do filme, transformando-o em um filme de fantasia genérico ao invés de uma história japonesa - toda vez que os personagens falam "saquê", por exemplo, na versão norte-americana eles falam "vinho". Weinstein faria toda a campanha de marketing norte-americana como se o filme fosse um "filme de arte", e não um anime, atrasando a data de estreia para que ele fosse exibido antes, com a dublagem da Miramax, no Festival Internacional de Cinema de Berlim de 1998, e só estreasse nos cinemas dos Estados Unidos em 26 de setembro de 1998, sendo lá um sucesso de crítica, mas um gigantesco fracasso de bilheteria. A dublagem em inglês conta com Billy Crudup como Ashitaka, Claire Danes como San, Minnie Driver como Lady Eboshi, Billy Bob Thornton como Jigo, e Gillian Anderson como Moro. Na Europa, o filme seria lançado pela Disney, mas exclusivamente em home video.
Em abril de 2013, o Studio Ghibli faria uma parceria com a companhia de teatro Whole Hig Theatre para montar uma adaptação do filme para os palcos, que ficaria em cartaz em Londres no primeiro semestre, e em Tóquio no segundo. James Cameron citaria o filme como uma de suas influências para fazer Avatar, e o videogame The Legend of Zelda: Breath of the Wild também é considerado como tendo sido grandemente influenciado. O filme também é considerado, junto com Neon Genesis Evangelion, como um dos responsáveis por uma onda de artigos científicos que passaram a discutir temas presentes nos anime e sua relação com a sociedade.
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