Omoide Poro Poro
1991
Enquanto Hayao Miyazaki estava produzindo Meu Amigo Totoro, ele seria procurado pelo produtor Shigeharu Shiba, que, como diretor de som, havia trabalhado com ele em várias produções da década de 1970, mas agora era presidente da Omnibus Promotion, que lhe sugeriu adaptar para um filme do Studio Ghibli o mangá Omoide Poro Poro (algo como "memórias vêm rolando"), escrito por Hotaru Okamoto e publicado na revista Shukan Myojo entre março e setembro de 1982. Ambientado em 1966, o mangá acompanha a vida da menina Taeko, de 10 anos, que mora com o pai, a mãe e duas irmãs mais velhas, e está na fase de descobertas na escola, incluindo seu primeiro amor, sua primeira decepção e sua primeira menstruação.
Miyazaki leria o mangá e adoraria a ideia, mas se sentiria incapaz de escrever um roteiro que fizesse justiça à história, por considerá-la muito complexa para ser resumida em um filme. Ele conversaria com o produtor Toshio Suzuki sobre o assunto, e os dois decidiriam convidar Isao Takahata, que na época estava fazendo Túmulo dos Vagalumes, para escrever e dirigir a adaptação. Takahata também ficaria relutante, até Suzuki dizer "é uma história sobre memórias, e sobre alguém que se lembra delas". Takahata, então, decidiria usar um artifício semelhante ao que havia usado em Túmulo dos Vagalumes, com a história sendo contada inteiramente do ponto de vista de sua protagonista; além disso, os eventos do mangá seriam mostrados como flashbacks, com uma Taeko adulta se lembrando deles em uma época futura.
Assim, o filme é ambientado em 1982, quando Taeko tem 27 anos, trabalha em um escritório em Tóquio, mas tem o sonho de morar no interior, motivado pelo fato de que, quando ela era criança, todas as suas colegas de escola tinham parentes no interior com quem passavam as férias, mas ela não, permanecendo em Tóquio com suas amigas. No ano anterior, ela teve a oportunidade de passar as férias em uma fazenda que pertence a parentes do marido de uma de suas irmãs, e esse ano pretende fazer o mesmo; durante a viagem, ela se recorda de vários eventos que ocorreram quando ela tinha 10 anos, que correspondem às histórias contadas no mangá. E, ao chegar à fazenda dessa segunda vez, ela conhece Toshio, primo do dono da fazenda; convivendo com ele, ela ficará ainda mais certa de a vida ideal para ela está no campo, e não na cidade.
Durante a produção, Miyazaki e Takahata se desentenderiam várias vezes; Miyazaki consideraria o filme um projeto pessoal, e se irritaria com Takahata dizendo que ele não estava cumprindo os prazos estabelecidos pelo estúdio. Takahata, por outro lado, veria o filme quase como uma obrigação profissional, como as que tinha quando trabalhava para outros estúdios, e não como um projeto pessoal, já que não tinha sido ele a ter a ideia de fazer a adaptação; ele contrataria Yoshifumi Kondo, que havia trazido da Nippon Animation para ser animador de Túmulo dos Vagalumes, para o cargo de diretor de animação, e delegaria a ele várias das tarefas que deveria cumprir como diretor. Takahata também discordaria de várias mudanças no estúdio propostas por Miyazaki, que a princípio pareceriam suicídio profissional, mas que mudariam não somente a forma do Studio Ghibli trabalhar, mas também a indústria de animação japonesa como um todo.
Na época, era comum que os profissionais da indústria da animação recebessem por desenho ou pintura, o que fazia com que sua remuneração fosse muito baixa, e muitos tivessem de trabalhar para mais de um estúdio ao mesmo tempo, ou ter um segundo emprego que não fosse relacionado à animação. Por sugestão de Miyazaki, a partir de novembro de 1990, com Memórias de Ontem em plena produção, todos os animadores que trabalhassem nas produções do Studio Ghibli seriam contratados do estúdio, recebendo salários mensais fixos que não dependiam de quanto trabalho haviam produzido. Além disso, ele iniciaria programas de treinamento de jovens animadores, e programas regulares de recrutamento de jovens talentos de outros estúdios. Tudo isso dobraria os custos de produção dos filmes do Studio Ghibli em relação aos de outros estúdios, o que levaria Takahata a temer que eles tivessem de fechar as portas - o orçamento ficaria tão apertado que Miyazaki começaria a trabalhar no filme seguinte, Porco Rosso, antes mesmo da conclusão de Memórias de Ontem, para que o retorno financeiro viesse mais rápido, e os profissionais não ficassem recebendo sem trabalhar.
No fim, a ideia de Miyazaki se mostraria a correta, já que todos os principais talentos da animação quiseram trocar seus estúdios pelo Studio Ghibli, o que levaria os demais estúdios a também implementar uma política de salários fixos, recrutamento e treinamento de jovens talentos; isso elevaria o nível da indústria como um todo, com os anos 1990 vendo um crescimento considerável na qualidade não só dos desenhos e pinturas, mas também dos roteiros, e os filmes e séries de animação japoneses ganhando o mundo com uma competitividade que não tinham anteriormente.
Obviamente isso não ocorreria somente pela decisão de Miyazaki, mas a animação de Memórias de Ontem seria diferenciada e chamaria atenção pela qualidade, extremamente superior a qualquer coisa que tenha sido feita no Japão na mesma época. A paleta de cores, por exemplo, tinha 450 tons diferentes, e a equipe de produção levaria quase um ano para encontrar um tom de vermelho idêntico ao que as flores presentes na fazenda que Taeko visita possuem na vida real. A fazenda, na história, fica no distrito de Takase, na cidade de Yamagata, região que havia mudado muito pouco em dez anos, e foi visitada pela equipe de produção para que os cenários fossem os mais realísticos possível. Diferentemente do que ocorre tradicionalmente na animação japonesa, os personagens possuem expressões faciais realísticas, com os animadores estudando os movimentos da musculatura do rosto para tentar reproduzi-lo em seus desenhos. O comprometimento da equipe seria tão grande nesse sentido que a Taeko adulta seria desenhada à imagem e semelhança de sua dubladora, a atriz Miki Imai.
O tradicional na animação japonesa é fazer os desenhos primeiros e gravar os diálogos depois, mas, a pedido de Takahata, para as cenas ambientadas em 1982 os diálogos seriam gravados primeiro, com os animadores tendo acesso às gravações e desenhando os rostos da forma que achassem que combinaria mais com o que eles estavam ouvindo. Também de forma diferente do que era feito tradicionalmente no Japão, os atores gravariam suas falas juntos, como se estivessem contracenando, o que daria mais naturalidade aos diálogos. As cenas ambientadas em 1966 seriam feitas ao modo tradicional, com os diálogos sendo gravados posteriormente, cada ator gravando suas falas sozinhos, e os personagens tendo poucas expressões faciais, o que ajudaria a aumentar o contraste entre as duas épocas.
As cenas mais difíceis de produzir seriam aquelas na qual a Taeko criança assiste na TV seu programa de televisão favorito; no mangá, esse programa é Hyokkori Hyotan Jima (a "ilha flutuante da abobrinha"), um programa de fantoches exibido pelo canal NHK entre 1964 e 1969. Takahata não quis mudar o programa, mas ninguém, nem mesmo a NHK, possuía as fitas originais, que foram reaproveitadas durante a década de 1970, com outros programas gravados por cima. O diretor já estava se conformando de ter de inventar episódios fictícios para o programa quando, por acaso, encontrou um espectador que tinha alguns episódios gravados diretamente da televisão, que cedeu as fitas para que algumas cenas fossem recriadas na animação. Para ajudar ainda mais na ambientação, Takahata incluiria, quando os personagens estivessem assistindo televisão, cenas do programa Ohanahan, o mais assistido do Japão em 1966.
Durante a produção, Takahata teria a ideia de pedir ao compositor Katsu Hoshi, responsável pela trilha sonora do filme, que preparasse um álbum de trilha sonora ao estilo dos que eram lançados para filmes norte-americanos (ou novelas brasileiras), somente com músicas que já existiam, mas que pudessem ser integradas ao filme de alguma forma. Lançado em dezembro de 1990, sete meses antes da estreia do filme nos cinemas, o álbum, creditado a Katz, trazia músicas de bandas japonesas populares de época, músicas clássicas de compositores como Schubert e Brahms, e músicas do leste europeu, especificamente Hungria, Bulgária e Romênia, que traduzissem o clima da vida no campo; todas elas são tocadas durante o filme em algum momento, a maioria de forma diegética - ou seja, com os personagens ouvindo as músicas, ao invés de ela ser tocada como música de fundo apenas para quem está assistindo. A única criada especificamente para a trilha sonora seria Ai wa Hana, Kimi wa sono Tane ("o amor é uma flor, você é a semente"), versão criada pelo próprio Takahata da canção The Rose, da cantora norte-americana Amanda McBroom.
Memórias de Ontem estrearia nos cinemas japoneses em 20 de julho de 1991, distribuído pela Toho. Seria um sucesso inesperado, que surpreenderia até mesmo Miyazaki e Takahata, se tornando o filme mais assistido em todo o Japão no ano de 1991 e rendendo 3,18 bilhões de ienes na bilheteria - seu orçamento jamais seria divulgado, inaugurando uma prática do Studio Ghibli de manter em segredo quanto cada filme custou, mas boatos davam conta de que teria ficado na casa dos 700 milhões de ienes. A crítica aclamaria o filme, considerando-o um dos mais lindos da história da animação japonesa. Apesar de todo esse sucesso, ele ficaria de fora das principais premiações, recebendo apenas um prêmio especial da Academia de Cinema Japonesa.
Também inexplicavelmente, exceto pelo Brasil, onde estrearia em 10 de julho de 1993, Memórias de Ontem levaria mais de uma década para ser exibido nos cinemas fora do Japão, com sua estreia na Europa ocorrendo apenas em 2003. Nos Estados Unidos, ele demoraria ainda mais: alegando que a forma como as crianças discutem a menstruação nas cenas envolvendo a Taeko criança era "inadequada" para as plateias norte-americanas, a Disney decidiria não dublá-lo e distribuí-lo, o que faria com que somente em 2015 a GKids conseguisse um acordo com a Disney e a Universal Pictures para fazê-lo. O filme acabaria estreando nos EUA apenas em fevereiro de 2016, em uma versão dublada que contava com Daisy Ridley como Taeko e Dev Patel como Toshio.
Em 2010, a companhia de teatro Takarazuka anunciaria uma adaptação do filme para um musical de teatro, que ficaria em cartaz no Galaxy Theatre de Tóquio durante seis meses em 2011. Um filme com atores de carne e osso também seria produzido, pela NHK, estreando no canal em 9 de janeiro de 2021, dirigido por Kazutaka Watanabe com roteiro de Koichi Yajima; curiosamente, esse filme é ambientado em 2020, e traz Taeko já como avó, morando com a filha e a neta em Tóquio e se lembrando da época em que tinha 10 anos, adaptando várias situações do mangá, mas não a história do anime.
Kurenai no Buta
1992
Desde Meu Amigo Totoro, um dos principais parceiros do Studio Ghibli seria a companhia aérea Japan Airlines, que investia dinheiro em suas produções em troca de poder exibi-las em seus voos comerciais pouco após seu lançamento nos cinemas e bem antes de seu lançamento em home video, inclusive contratando empresas para fazer a dublagem em inglês. Para estreitar ainda mais essa pareceria, em 1990 Miyazaki decidiria que ele iria dirigir e escrever um média-metragem para exibição exclusiva nos voos da Japan Airlines, baseado em um mangá de sua própria autoria, Hikotei Jidai ("a era dos navios voadores"), publicado entre março e maio de 1989 na revista Model Graphix, uma publicação especializada em modelos de montar, tipo aqueles que ficaram famosos no Brasil lançados pela fabricante Revell. Durante a produção, porém, Miyazaki se empolgaria e decidiria adaptar a história completa do mangá, transformando-o em um longa metragem que decidiria chamar de Porco Rosso - italiano para "porco vermelho", que é também o que significa o título do filme em japonês, Kurenai no Buta.
Porco Rosso é ambientado em 1929, na parte da Europa banhada pelo Mar Adriático, mas em uma realidade alternativa, na qual, após a Primeira Guerra Mundial, os aviões se popularizaram rapidamente, o que levaria a um surto de piratas aéreos, que assaltam não somente outros aviões, mas também navios de cruzeiro e de passageiros. Como o governo não dá conta de combater os piratas, são empregados extra-oficialmente caçadores de recompensas, que, com seus próprios aviões, impedem que os piratas cometam seus crimes e, mediante prova, recolhem pagamento. Dentre os caçadores de recompensas do Adriático, o mais famoso é o italiano Marco Pagot, cujo apelido é Porco Rosso, por dois motivos: primeiro, porque ele pilota um avião vermelho. Segundo, porque, anos antes de o filme começar, por uma razão que jamais é revelada, ele foi amaldiçoado por uma bruxa, se transformando em um porco antropomórfico. Isso não parece ter afetado suas relações sociais, entretanto, com todos tratando Porco como se ele fosse humano.
O mangá é dividido em três partes, cada uma publicada em uma edição da Model Graphix: na primeira, a gangue de piratas Mamma Aiuto ("socorro, mamãe" em italiano) ataca um navio de passageiros e sequestra uma garota, com Porco partindo para salvá-la; na segunda, Porco é abatido por um rival norte-americano, Donald Chuck, e tem de levar seu avião até Milão para reparos; e a terceira é o acerto de contas entre Porco e Chuck. A intenção inicial de Miyazaki era adaptar apenas a primeira parte, mas, depois, ele decidiria adaptar a história completa, ligando as três através de uma subtrama na qual os piratas do Adriático, cansados de serem derrotados por Porco, decidem contratar o norte-americano (que, no filme, foi renomeado para Donald Curtis) para derrotá-lo; mudando alguns detalhes (a Mamma Aiuto sequestra um grupo de escoteiras ao invés de só uma garota, Porco tem um mandato de prisão contra ele na Itália, se colocando em risco ao ir até Milão); e explorando o passado de Porco, inclusive com a adição de uma nova personagem, Gina, uma paixão do caçador de recompensas cobiçada pelo norte-americano. Fio Piccolo, a garota de 17 anos que conserta o avião de Porco e vira o motivo do duelo entre ele e Curtis, também está no mangá, mas com uma participação bem menor.
A produção do filme seria conturbada, principalmente devido às mudanças na estrutura do Stuido Ghibli implementadas pelo próprio Miyazaki no final de 1990, que fariam com que ele tivesse de começar a fazer o desenho sozinho para conseguir entregá-lo a tempo e sem levar o estúdio à falência. Quando decidisse transformar o filme em um longa-metragem, Miyazaki teria de recorrer a uma parceria com outro estúdio, o Telecom Animation (que estava à beira da falência e em 1995 seria comprado pela Sega), para conseguir cumprir os prazos. E parte da história teria de ser mudada durante a produção por um motivo inusitado: originalmente, o filme, assim como o mangá, seria ambientado na Dalmácia, região que hoje faz parte da Croácia, e que, no início dos anos 1990, pertencia à Iugoslávia, cujo fim seria decretado por uma guerra que começaria durante a produção de Porco Rosso, o que deixaria os investidores temerosos de que o filme pudesse ser visto como desrespeitoso ou político, e motivaria a mudança de ambientação para "o Adriático", que na verdade é um mar que banha Itália, Albânia e as antigas repúblicas iugoslavas da Croácia, Eslovênia e Montenegro, e não uma região.
Ao saber da intenção de Miyazaki de fazer um média-metragem para exibição exclusiva nos voos da Japan Airlines, Suzuki entraria em contato com a companhia aérea, e negociaria um contrato segundo o qual ela seria seu principal financiador. Quando Miyazaki alterou o projeto para um longa com estreia nos cinemas, Suzuki precisou ter uma nova conversa com a empresa, que concordou em continuar cumprindo o contrato, mas com a condição de que pudesse exibir o filme em seus voos durante seis meses antes de sua estreia nos cinemas. Por essa razão, o texto introdutório do filme aparece na tela em dez idiomas: japonês, italiano, coreano, inglês, chinês, espanhol, árabe, russo, francês e alemão - na época, não existiam telas individuais para os passageiros assistirem os filmes, que eram exibidos em telas posicionadas no corredor, com todos vendo a mesma imagem mas ouvindo o som através de fones de ouvido, podendo escolher o idioma da dublagem, mas sendo impossível alterar legendas ou texto escrito na tela.
A Japan Airlines também contrataria Ward Sexton, norte-americano que morava no Japão e fazia vários trabalhos de narração e dublagem, inclusive de games, para traduzir o filme e fazer uma versão dublada, usando apenas dubladores residentes no Japão, como a também norte-americana Lynn Eve Harris e o norueguês Barry Gjerde, o que ele considerou "loucura" e "um projeto grande demais para uma equipe tão pequena", mas cumpriu com louvor, com a dublagem da Japan Airlines sendo bastante elogiada. Quando foi lançar o filme nos Estados Unidos, entretanto, a Disney não quis aproveitar a dublagem de Sexton e fez uma nova, com Michael Keaton no papel de Porco, Cary Elwes como Curtis, Kimberly Williams-Paisley como Fio e David Ogden Stiers como seu avô, o Sr. Piccolo. Essa versão possui uma característica bizarra: talvez tentando colocar mais detalhes na história, a dublagem tem muito mais diálogos do que a versão original japonesa, com os novos ocorrendo quando os personagens não estão em cena, sendo possível apenas ouvir suas vozes; isso leva a um efeito colateral de que, ao assistir o filme em japonês com legendas em inglês, frequentemente aparecem legendas na tela quando ninguém está falando nada. A versão Disney também muda o nome verdadeiro de Porco para Marco Rossolini, e de seu amigo Ferrarin para Ferrari.
Miyazaki é um apaixonado por aviação, e aproveitou para encher o filme de referências da vida real: os modelos da Piccolo SpA são inspirados nos de duas fabricantes italianas verdadeiras, a Caproni e a Piaggio. Modelos como o Caproni C-22J, Savoia-Marchetti S.55, Fiat C.R.20 e Macchi M.39 aparecem ao longo do filme, com o avião de Porco sendo um Macchi M.33 - mas referenciado no filme como um Savoia S.21. O amigo italiano de Porco, Ferrarin, seria inspirado no piloto da vida real Arturo Ferrarin, que voou de Roma a Tóquio em 1920 pilotando um Ansaldo SVA.9, bem parecido com o que Ferrarin pilota no filme. Outro amigo de Porco, Bellini, é uma homenagem a Stanislao Bellini, piloto que morreu tentando quebrar um recorde de velocidade pilotando um Macchi M.C.72. O nome de Porco, Marco Pagot, é uma referência aos irmãos Nino e Toni Pagot, que não eram aviadores, e sim os pioneiros da animação italiana, criadores do primeiro desenho animado da Itália, I Frateli Dinamite; já Donald Curtis é uma referência a Glenn Hammond Curtiss, que, junto com os irmãos Wright, pioneiros da aviação norte-americana, fundou a empresa Curtiss-Wright Corporation, fabricante do modelo Curtiss R3C, que Curtis pilota no filme.
Porco Rosso estrearia nos cinemas japoneses em 18 de julho de 1992, distribuído pela Toho, se tornando o filme mais assistido no Japão naquele ano e rendendo nada menos que 5,4 bilhões de ienes nas bilheterias. Ele também estrearia no Brasil, em 24 de junho de 1994, e em vários países da Europa, sendo extremamente bem-sucedido na França, onde estrearia ainda em 1992, com Porco sendo dublado pelo famoso ator Jean Reno. Também na França, o filme ganharia o Cristal du Long Métrage, principal prêmio do Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy; no Japão, ele ganharia o prêmio de Melhor Filme de Animação no festival de cinema da Mainichi Shimbun, e seria aclamado pela crítica, que traçaria paralelos entre ele e as grandes produções da Era de Ouro de Hollywood. Uma das frases do filme, "melhor ser porco do que ser fascista", ficaria extremamente popular, e seria usada por artistas espanhóis para pedir que as pessoas não votassem na extrema direita em 2023.
Em 2011, Miyazaki revelaria que, depois de produzir Ponyo, começaria a trabalhar em uma sequência chamada Porco Rosso: The Last Sortie, que seria ambientada durante a Guerra Civil Espanhola, que ocorreu entre 1936 e 1939, mas não conseguiu financiamento; desde então, não há planos para que essa sequência saia do papel.
Umi ga Kikoeru
1993
Desde sua fundação oficial, em 1985, o Studio Ghibli já havia produzido seis filmes, quatro com direção e roteiro de Miyazaki, dois com direção e roteiro de Takahata. Só que o estúdio tinha outros profissionais que queriam dirigir e escrever, e Miyazaki e Takahata tinham consciência de que não eram eternos, então era de seu interesse treinar novos talentos para assumir a direção e os roteiros caso eles decidissem se aposentar ou viessem a faltar. A oportunidade perfeita surgiria em 1993, quando o canal de televisão Nippon TV completaria 40 anos, e entraria em contato com o Studio Ghibli para conversar sobre a possibilidade de eles produzirem um filme em anime para ser exibido durante as comemorações. Como um filme para a TV sairia bem mais barato que um para o cinema, Suzuki aproveitaria para reunir uma equipe jovem, com profissionais entre 30 e 40 anos, que tocaria todo o projeto, sem nenhum envolvimento de Miyazaki ou Takahata, mas ainda com ele como produtor.
Para esse projeto, o Studio Ghibli negociou os direitos de Umi ga Kikoeru, romance de autoria de Saeko Himuro publicado na revista Animage em capítulos, entre fevereiro de 1990 e janeiro de 1992, que mais tarde foram reunidos, com alguns sendo omitidos, em um livro lançado em fevereiro de 1993. Katsuya Kondo, que ilustrou os capítulos publicados na Animage, serviria como designer de personagens e diretor de animação, com a direção sendo confiada a Tomomi Mochizuki, de 34 anos, conhecido pelas duas adaptações do mangá Kimagure Orange Road, e o roteiro ficando a cargo de Keiko Niwa, então com apenas 21 anos, que o assinaria sob o pseudônimo Kaoru Nakamura. A intenção do Studio Ghibli era fazer um filme de forma "rápida e barata", e, para isso, ele terceirizaria a animação, contratando os estúdios J.C.Staff, Madhouse Studios e Oh! Production para produzi-la, com o Studio Ghibli apenas coordenando e reunindo tudo no final.
A ideia de um projeto rápido e barato, entretanto, logo subiria no telhado. Para começar, embora todos os programas de televisão da época ainda fossem transmitidos no formato standard, com aspecto 4:3, o produtor Nozomu Takahashi, preocupado com o fato de que todo o equipamento do estúdio era próprio para a produção de filmes para o cinema, decidiria filmar Eu Posso Ouvir o Oceano no formato widescreen, com aspecto 16:9 - dizem, na esperança de que, após ele ser exibido na TV, também pudesse ter algumas sessões nos cinemas, para recuperar parte de seu investimento. Isso não somente encareceria o projeto como também faria com que ele levasse mais tempo, já que, durante a pós-produção, todas as cenas teriam de ser enquadradas corretamente no formato 4:3, para que nenhum elemento importante ficasse de fora.
Outra dificuldade do Studio Ghibli foi decidir qual parte da história adaptar - o romance tem duas partes, a primeira ambientada quando os personagens estão no Ensino Médio, com flashbacks de quando eles estavam no segundo segmento do Ensino Fundamental, a segunda quando eles já estão na Universidade. Como adaptar a história inteira seria impossível, já que resultaria em um filme comprido demais, a equipe optaria por começar o filme com os personagens na Universidade e mostrar sua época no Ensino Médio e no Ensino Fundamental através de suas memórias. No resultado final, cerca de 80% do filme é ambientado enquanto os personagens estão no Ensino Médio, com o Ensino Fundamental sendo mostrado apenas em um flashback de poucos minutos, e a parte da Universidade nem é mostrada, apenas os personagens mais velhos em uma reunião da turma do Ensino Médio.
O filme é ambientado na pequena cidade litorânea de Kochi, e o enredo envolve um triângulo amoroso entre dois meninos, Taku e Yutaka, que se conheceram no Ensino Fundamental e se tornaram melhores amigos e uma menina, Rikako, que vem transferida de Tóquio para cursar o Ensino Médio, sendo o choque da diferença do estilo de vida nas duas cidades um fator fundamental. Himuro decidiria ambientar a história em Kochi por ter amigos que moravam lá e ter visitado a cidade várias vezes, mas isso representaria mais um problema para a equipe de produção do filme: o dialeto da região de Kochi é muito diferente do japonês padrão, considerado até incompreensível por japoneses que não estão acostumados com ele. Isso não faz diferença em um romance escrito, mas o filme não ficaria verossímil se todo mundo em Kochi falasse o japonês de Tóquio, então o Studio Ghibli teve que contratar dois instrutores de dialeto nascidos em Kochi para criar uma versão que lembrasse o dialeto de Kochi, mas pudesse ser facilmente compreendido por quem não o conhecia, e ensinar a todos os dubladores dos personagens de Kochi como falá-lo.
A produção estouraria tanto o orçamento - cujo valor final não seria divulgado - quanto o cronograma - com a pós-produção tendo de ser feita às pressas para que o filme estreasse na data pretendida pela Nippon TV. Isso faria com que, próximo ao fim da produção, Mochizuki desenvolvesse uma úlcera duodenal por estresse, e desmaiasse em decorrência de uma anemia causada por um sangramento dessa úlcera enquanto supervisionava a pós-produção. Ele chegaria a ser internado, permanecendo no hospital até o filme ser concluído.
Eu Posso Ouvir o Oceano estrearia na Nippon TV em 5 de maio de 1993, Dia das Crianças no Japão. Com 72 minutos de duração, é não somente o primeiro filme do Studio Ghibli a ser produzido diretamente para a televisão, mas também o mais curto; e ele deveria ter sido mais curto ainda, já que foi exibido dentro de um programa especial chamado Susume! Seishun Shonen (algo como "avante, juventude!"), que teve apenas 90 minutos de duração contando os intervalos comerciais - ou seja, Eu Posso Ouvir o Oceano acabaria sendo a única atração do programa, que originalmente deveria ter duas de 45 minutos cada, mas a equipe do Studio Ghibli alegou ser impossível condensar a história em um tempo tão curto. O filme ganharia o Prêmio de Encorajamento no Galaxy Awards, conferido pela Associação de Críticos de Televisão do Japão para programas que ajudassem a elevar a qualidade do entretenimento televisivo do país.
Para mitigar partes do custo, o Studio Ghibli conseguiria uma bolsa do Fundo de Promoção das Artes e Cultura, oferecida pelo governo japonês; ainda assim, Suzuki diria que, apenas com o dinheiro pago pela Nippon TV, seria impossível pagar os custos de produção, e que esse provavelmente seria o primeiro e último filme do Studio Ghibli para a televisão. A Nippon TV não se oporia ao lançamento do filme nos cinemas após sua exibição, mas, como a crítica não foi favorável - considerando-o o "mais sem graça" do estúdio até então - o Studio Ghibli não conseguiu um distribuidor, e acabou optando por lançá-lo diretamente em home video. A Disney não o incluiria em seu contrato, já que se tratava de um filme para a TV, de forma que, nos Estados Unidos, Eu Posso Ouvir o Oceano seria lançado pela GKids, em alguns cinemas e em DVD e Blu-ray, mas apenas em 2016 e somente com o áudio original em japonês e legendas, o que faz com que esse seja o único longa-metragem do Studio Ghibli a não ter uma dublagem em inglês.
Após a estreia do filme na Nippon TV, Himuro decidiria escrever uma continuação, chamada Umi ga Kikoeru II: Ai ga Aru Kara ("porque eu tenho amor"), lançada em volume único em 1995. No mesmo ano, seria gravado um filme para a televisão com atores de carne e osso, estrelado por Shinji Takeda e Hitomi Sato, que estrearia na TV Asahi, rival da Nippon TV, em 25 de dezembro de 1995. Esse filme tem uma história bem diferente do anime, com Taku e Rikako tendo sido namorados no Ensino Médio em Kochi, se desencontrado, e se encontrado novamente por acaso enquanto cursavam a mesma universidade em Tóquio.
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