domingo, 11 de junho de 2023

Escrito por em 11.6.23 com 1 comentário

O Homem de Palha

Eu sou fã de filmes de terror, mas só dos antigos - esses novos, nos quais todo mundo morre de formas nojentas e a gente leva susto a toda hora, não me interessam. Os que eu gosto têm a sensação de terror, aquele sentimento de que a gente sabe que alguma coisa está errada e algo macabro vai acontecer, mas não consegue saber como. Nesse quesito, um filme que eu acho imbatível, mesmo que, pelos padrões atuais, muita gente possa discordar que é de terror, é O Homem de Palha.

Aliás, esse título é uma espécie de erro de tradução: o homem não é feito de palha, e sim de gravetos, sendo o título original do filme The Wicker Man, "o homem de vime", aquele material usado para fazer cestas. O tal Homem de Palha do título, inclusive, sequer é uma criatura sobrenatural - uma amiga minha achava que O Homem de Palha era sobre um espantalho assassino - e sim um elemento da cultura druida, um boneco feito de gravetos que era queimado durante rituais, descrito pela primeira vez pelo Imperador romano Júlio César, em seu texto Comentários sobre a Guerra da Gália. O Homem de Palha, o filme, foi o responsável por introduzir o wicker man na cultura pop - o famoso festival de música Burning Man, realizado anualmente nos Estados Unidos desde 1986, tem como símbolo um wicker man, que originalmente ficava queimando durante todos os dias do evento, mas recentemente foi substituído por versões mais modernas, feitas de neon ou de drones.


A história da produção do filme começa com o famoso ator Christopher Lee, que, no início da década de 1970, estava cansado de interpretar sempre os mesmos papéis; ele era um dos atores regulares dos Estúdios Hammer, e era muito bem pago por isso, mas todos os filmes da Hammer na época eram de horror gótico, muitos deles adaptações de obras clássicas como Drácula e Frankenstein. Lee queria se livrar desse estereótipo e atuar em um filme de horror diferente, preferencialmente um que envolvesse paganismo e rituais de religiões antigas, tema que ainda era pouco explorado no cinema. Em 1971, Lee se encontraria com o roteirista Anthony Shaffer para discutir sua ideia, mas o único estúdio disposto a bancar seu projeto era o pequenino British Lion, de orçamento extremamente limitado, de propriedade do produtor Peter Snell, que havia nascido no Canadá e imigrado para a Inglaterra. Snell colocaria Schaffer em contato com o diretor Robin Hardy, que ficaria empolgadíssimo com o projeto, ainda mais quando Shaffer revelaria estar interessado em adaptar o romance Ritual, de David Pinner.

Pinner havia começado sua carreira como ator de teatro, e, em 1962, aos 22 anos, conseguiria seu primeiro papel na TV, na série Emergency Ward 10. Apesar de se tornar um ator regular nas produções da televisão britânica, ele jamais deixaria o teatro e, em 1966, decidiria se tornar também dramaturgo, escrevendo a peça Fanghorn, uma comédia cujo personagem principal era um vampiro. Ao mesmo tempo em que atuava em Fanghorn, Pinner interpretava o Sargento Trotter em outra peça de teatro, A Ratoeira, escrita por Agatha Christie. Isso daria a ele a ideia de escrever uma peça que fosse um misto de detetive e horror, que tivesse um policial tentando desvendar um mistério que envolvesse o sobrenatural. Enquanto escrevia, ele decidiria que a história ficaria melhor se não tivesse elementos fantásticos, e substituiria os acontecimentos sobrenaturais por rituais pagãos e práticas de religiões antigas.

O diretor de cinema Michael Winner seria um dos primeiros a ler o rascunho da peça de Pinner, e consideraria que ela tinha potencial para se tornar um filme para o cinema, fazendo um acordo com o autor para que ele a cedesse para adaptação quando pronta, e chegando a negociar com o ator John Hurt para interpretar o papel principal. Winner começaria a se meter na história, porém, dizendo que algumas cenas eram "muito perturbadoras", e querendo guiar Pinner quanto à melhor forma de escrever a história. Pinner não ficaria satisfeito com essa situação, e confidenciaria a seu agente, Jonathan Clowes, ter se arrependido de ter feito o acordo com Winner. Clowes concluiria que, a menos que Pinner seguisse o que Winner pedisse, o projeto jamais sairia do papel, e orientou Pinner a expandir o texto e transformar a história em um romance, prometendo que conseguiria publicá-lo e que, assim, Winner perderia quaisquer direitos de adaptação que tivesse sobre a peça, pois se trataria de uma obra diferente.

Pinner escreveria o romance em sete semanas, usando todo o seu tempo livre; ele escreveria à mão, no metrô e em seu camarim, enquanto se apresentava em A Ratoeira. Quando o manuscrito estava completamente pronto, na pressa de entregá-lo a Clowes o mais rápido possível, o esqueceu no teto de seu carro. O manuscrito poderia ter voado e se perdido para sempre, já que não havia cópias, mas outro motorista alertou Pinner quando ele ainda estava saindo do estacionamento. O romance seria publicado em 1967, pela editora Hutchinson, com o nome de Ritual, e seria um grande sucesso, com os críticos elogiando principalmente os diálogos longos e a descrição precisa da zona rural da Inglaterra; curiosamente, apesar de ser uma história de mistério e horror, o livro também seria elogiado por suas passagens de humor.

Ritual conta a história de um policial de Londres, chamado David Hanlin, que é extremamente religioso e puritano, se recusando a fazer sexo antes do casamento e seguindo à risca todos os rituais da Igreja Anglicana. Quando a história começa, Hanlin é enviado para investigar o que parece ter sido o assassinato ritualístico de uma menina, em uma comunidade isolada na zona rural da Cornualha. Enquanto tenta encontrar evidências de que o assassinato tenha ocorrido, Hanlin é torturado psicologicamente pelos moradores do vilarejo, que não acreditam em Cristo e seguem as antigas religiões pagãs do interior da Inglaterra; ele também acaba se deparando com vários rituais religiosos e sacrifícios em homenagem a deuses pagãos, que testarão sua fé e aumentarão sua vontade de encontrar o corpo da menina e levar os assassinos à justiça.

Quando Lee falou com Shaffer sobre sua vontade de produzir um filme de horror envolvendo paganismo e antigas religiões, o roteirista logo se lembrou de Ritual, que havia lido recentemente. Lee e Shaffer pagariam a Pinner a quantia de 15 mil libras, na época uma pequena fortuna, pelos direitos de adaptação, mas, enquanto escrevia o roteiro, Shaffer chegaria à conclusão de que uma adaptação fiel não funcionaria bem como um filme, e acabaria criando uma história totalmente diferente da do livro, apenas usando a mesma premissa, a de que um policial religioso vai investigar um suposto crime em uma comunidade isolada e se depara com rituais pagãos e práticas de antigas religiões.

Shaffer faria questão de que o filme não tivesse sustos, violência extrema ou mortes nojentas, também se ressentindo com o fato de que os filmes de terror da época já começavam a depender mais de "sustos e vísceras" para assustar do que do roteiro. Também seria ideia de Shaffer introduzir o Homem de Palha na história; ele havia lido sobre a prática druídica e concluído que o Homem de Palha era "a coisa mais assustadora que ele já tinha visto", e, após incluí-lo no enredo, decidiria usá-lo também para dar nome ao filme.

Shaffer ficaria extremamente intrigado com o conceito de introduzir um cristão contemporâneo em uma sociedade pagã, e faria uma extensa pesquisa sobre paganismo e práticas ritualísticas. Ele e Hardy fariam longas reuniões para que os elementos pagãos fossem apresentados de forma objetiva, realística e crível, sem elementos fantásticos e de forma que a plateia pudesse acreditar que uma comunidade naqueles moldes realmente existisse na Inglaterra da época; curiosamente, isso levaria Schaffer a mudar a ambientação da Cornualha para uma ilha na costa da Escócia, não somente para que a comunidade ficasse ainda mais isolada, mas porque uma de suas principais referências foi o livro The Golden Bough, do antropólogo escocês James Frazer.

No filme, o Sargento de Polícia Neil Howie (Edward Woodward) vai de hidroavião até a fictícia Ilha de Summerisle, nas Hébridas, costa oeste da Escócia, investigar o desaparecimento da adolescente Rowan Morrison (Geraldine Cowper), do qual ficou sabendo através de uma carta anônima. Entretanto, não somente toda a população local parece querer despistá-lo, dando respostas evasivas sobre o que teria acontecido com a menina, como também, para horror do policial, toda a comunidade venera deuses pagãos, se envolvendo em rituais sexuais à vista de todos e fazendo troça de sua crença em Jesus Cristo. Os principais personagens que se envolvem na investigação de Howie são o contramestre do porto (Russell Waters); a bibliotecária (Ingrid Pitt); o coveiro (Aubrey Morris); a suposta mãe de Rowan, May Morrison (Irene Sunter); e o dono da estalagem O Homem Verde, Alder McGregor (Lindsay Kemp), cuja filha, a lindíssima Willow (Britt Ekland), tenta seduzir o policial. Mas os mais perigosos são Miss Rose (Diane Cilento), a professora da escola local, que tenta deliberadamente guiar Howie na direção errada, e o governante da ilha, Lorde Summerisle (Christopher Lee), que aparentemente é solícito e contribui com tudo o que o policial pede, mas na verdade esconde um grande segredo.

Desde o início, Lee não quis o papel do policial, acreditando que o filme agradaria mais às plateias caso o protagonista não fosse um ator tão intimamente ligado aos filmes de terror; Shaffer escreveria o personagem de Lorde Summerisle, então, na medida para ele. Após as recusas de Michael York e David Hemmings, o papel de Howie ficaria com Woodward, até então um ator de televisão, mas que conseguiria fazer carreira no cinema e ganharia reconhecimento internacional graças ao filme. Shaffer decidiria convidar a australiana Cilento, ex-mulher de Sean Connery, para o papel de Miss Rose após vê-la em uma peça de teatro; ela já havia decidido se aposentar do cinema e atuar somente no teatro, mas acabaria convencida a mudar seus planos após ler o roteiro. Shaffer e Cilento acabariam namorando, iriam morar juntos na Austrália em 1975, se casariam em 1985, e ficariam casados até a morte do roteirista. Já Pitt era uma veterana do cinema de horror britânico, convidada para um pequeno papel por Lee.

Além de Lee, Woodward, Cilento e Pitt, o único nome no elenco principal do filme era o da sueca Britt Ekland, 30 anos de idade, 10 de carreira, e um dos maiores símbolos sexuais da década de 1970, ex-mulher de Peter Sellers, namorada de Rod Stewart e bond girl em 007 contra o Homem da Pistola de Ouro (no qual voltou a contracenar com Lee, um ano após O Homem de Palha). Ekland seria uma escolha pessoal de Hardy, que considerava que ela era perfeita para o papel da voluptuosa Willow. O filme contaria com uma cena icônica e antológica na qual Willow canta e dança completamente nua para seduzir Howie, que ajudaria a elevar ainda mais o status de Ekland no imaginário masculino.

Curiosamente, Ekland dividiria o papel de Willow com outras quatro mulheres, sem que isso fosse divulgado na época: na cena da dança, quando Willow aparece de costas, o corpo não é de Ekland, e sim da dançarina Lorraine Peters, que tinha um tipo físico bastante semelhante; a versão oficial da produção foi que, duas semanas antes de começar as filmagens, Ekland descobriria estar grávida de três meses do produtor norte-americano Lou Adler, o que impossibilitou que ela fosse filmada nua, de pé, mostrando a barriga - a versão extra-oficial e mais maldosa, porém, dizia que isso não fazia sentido, já que, de frente, era claramente Ekland, com Peters só sendo usada de costas, e que o verdadeiro motivo teria sido a, digamos, falta de um derrière respeitável por parte de Ekland. Peters não seria a única dublê de corpo usada por Ekland, com Jane Jackson, que até era bem parecida com ela, sendo usada como stand in durante os ensaios; Hardy garante, porém, que Jackson não apareceu em nenhuma cena filmada. As outras duas dublês eram de voz: devido ao sotaque sueco carregado de Ekland, que não conseguiu fazer um sotaque escocês satisfatório, todas as suas falas seriam dubladas por Annie Ross, e também não foi ela quem cantou a música da cena em que dança sem roupa, e sim a cantora Rachel Verney.

Falando em música, O Homem de Palha é praticamente um musical: não se passam dez minutos sem que uma canção seja executada, cantada pelos personagens ou como parte da trilha de fundo. A trilha sonora do filme é considerada uma parte importantíssima da narrativa, e se tornaria bastante famosa dentre os fãs de cinema - a tal música que Willow canta pelada, chamada simplesmente Willow's Song, seria regravada duas dezenas de vezes nos anos seguintes, por nomes como Kelli Dayton, Emma Anderson e Faith and the Muse. Criada e arranjada por Paul Giovanni, tocada pela banda Magnet (creditada como Lodestone em algumas versões internacionais do filme) e cantada por vários atores do filme, a trilha é composta por 13 canções, incluindo canções originais compostas por Giovanni (Willow's Song; Corn Riggs), canções folclóricas do Reino Unido (The Highland Widow's Lament; Summer is Icuming In), e até mesmo cantigas infantis (Baa, Baa, Black Sheep).

Giovanni trabalharia junto a Hardy e Shaffer, que indicariam em quais cenas deveria haver músicas de fundo e em quais os personagens deveriam cantá-las. O diretor e o roteirista fariam uma extensa pesquisa sobre canções folclóricas da Inglaterra e Escócia, tomando como base a coleção de Cecil Sharp, considerado o maior especialista em tradição oral britânica no século XX. Diz a lenda que o elenco, incluindo Lee, não sabia que o filme teria tantas canções, detalhe que foi mantido em segredo por Hardy e Shaffer até o primeiro dia de filmagens, quando o diretor teria virado para os atores e "revelado" que eles estavam gravando um musical. Com exceção de Ekland, todos os atores gravaram as músicas que seus personagens cantam; uma das performances mais impressionantes foi a de Lesley Mackie, na época com 20 anos, que interpretava a adolescente Daisy, amiga de Rowan, que no filme não canta, mas emprestou sua voz para The Highland Widow's Lament, canção tradicional escocesa considerada extremamente difícil.

Devido a um detalhe que veremos em breve, a trilha sonora não seria lançada em LP e cassete na época do lançamento do filme. Somente em 1998 a Trunk Records a lançaria em LP, CD e cassete, mas em uma versão monoaural, com as músicas retiradas diretamente do master do filme, ao invés de processadas separadamente como era o normal. Essa versão venderia bastante, mas também daria origem a várias reclamações, de forma que a Silva Screen Records lançaria uma nova versão, remasterizada, em estéreo e tirada diretamente das fitas gravadas antes da inserção, que se encontravam com Gary Carpenter, diretor de música do filme. Apesar de ter uma faixa a mais (Gently Johnny, que seria cortada da versão final do filme, o que faria com que a Trunk não tivesse acesso a ela), a trilha lançada pela Silva Screen tem 3 miunutos a menos, já que não conta com várias músicas instrumentais incidentais, que não estavam nas fitas de Carpenter.

Durante a pré-produção, a British Lion sofreria com graves problemas financeiros, e correria o risco de ir à falência. Para evitar que seus credores saqueassem os bens do estúdio, John Bentley, milionário que compraria o British Lion de Snell, ordenaria que as filmagens começassem o mais rápido possível, o que levou a uma situação curiosa: o filme é ambientado entre 29 de abril e 1 de maio de 1973 (quando, no hemisfério norte, é primavera), mas as filmagens começariam em outubro de 1972 (no outono). Isso faria com que vários vasos de plantas tivessem de ser comprados em floriculturas para decorar a cidade, e até mesmo com que flores artificiais tivessem de ser coladas nas árvores ou presas a elas com arames. O orçamento do filme, que já era extremamente limitado, ficaria ainda mais apertado com esses custos extras de produção, o que levaria Lee, empolgadíssimo com o projeto e querendo que o filme se tornasse realidade de qualquer jeito, a se oferecer para atuar de graça, e ainda convencer amigos seus a atuar na produção e pós-produção sem receber salários.

As filmagens ocorreriam em pequenas cidades do litoral da Escócia, com nomes curiosos como Stranraer, Kirkcudbright, Anwoth, Creetown e Plockton; a única cena filmada na Inglaterra seria a do pomar de Lorde Summerisle, filmada em Kent. As cenas no centro da cidade seriam filmadas na Ilha de Whithorn, com moradores locais atuando como figurantes, e as cenas nas cavernas seriam filmadas em Somerset. A sequência de abertura mostraria o avião de Howie sobrevoando a Ilha de Skye; o avião era real (não cenográfico), e de propriedade de Christopher Murphy, que atuou como piloto, cinegrafista e dublê de Woodward nas cenas aéreas. O castelo de Lorde Summerisle é o Castelo de Culzean, em Ayrshire, que teve várias cenas filmadas em seu interior e em seus jardins. O clímax do filme foi filmado em Wigtownshire, onde foi montado o Homem de Palha; apesar de o filme mostrar sacrifícios animais, Hardy garantiu que nenhum animal foi ferido durante as filmagens, o que não era ainda uma obrigação legal na época, mas o diretor fez questão de que fosse uma obrigação legal da produção.

A British Lion reservaria um orçamento de 500 mil libras (quase nada, mesmo para a época), das quais a produção só gastaria 471.600. Durante a pós-produção, Bentley venderia o estúdio para a EMI, com o filme ficando a cargo de Michael Deeley, que exigiria um final feliz, o que Hardy e Shaffer combateriam com todas as forças, já que se tratava de um filme de terror. Durante a edição, Deeley acharia que o filme era muito longo, e exigiria que Hardy cortasse pelo menos vinte minutos de cenas, que incluíam as investigações iniciais de Howie (quando ele recebe a carta anônima e a missão de seus superiores, ainda na ilha principal da Gra-Bretanha, chamada erroneamente na versão nacional de "continente", em falas como "eu vim do continente para investigar uma denúncia"), e, para tristeza de Lee, a maior parte do encontro inicial do policial com Lorde Summerisle.

Após os cortes exigidos por Deeley, o filme ficaria com 99 minutos. Uma cópia seria enviada para o diretor norte-americano Richard Corman, que disse ter interesse em distribuir o filme nos Estados Unidos. Corman acabaria não o fazendo - a distribuição nos EUA ficaria a cargo da Warner Bros. - mas sugeriria que mais 13 minutos fossem cortados, segundo ele, para resolver problemas de ritmo. Deeley aceitaria a sugestão de Corman e cortaria mais cenas sem avisar a Hardy; com isso, a versão final do filme, que estrearia nos cinemas, teria 87 minutos. Após assistir à pré-estreia, Lee se diria desapontado pelos cortes, achando que a narrativa foi prejudicada, e que eles afetaram a continuidade do filme.

Oficialmente, O Homem de Palha estrearia em 3 de dezembro de 1973, embora nessa data só tenham sido feitas sessões fechadas para donos de cinemas. As primeira sessões com público, em salas selecionadas, ocorreriam em 6 de dezembro, e a estreia em larga escala, em todo o Reino Unido, em 10 de janeiro de 1974. O filme seria um fracasso de público, rendendo apenas cerca de 75 mil libras, mas um grande sucesso de crítica, com o roteiro de Shaffer, a ambientação, e as atuações de Woodward e Lee sendo bastante elogiadas. O Homem de Palha ganharia o prêmio Unicórnio de Ouro de Melhor Filme no Festival Internacional de Fantasia e Ficção Científica de Paris, e seria tema de uma edição especial da revista Cinefantastique, que declararia que ele era "o Cidadão Kane dos filmes de horror". Ao longo dos anos, apesar de seu infortúnio nos cinemas, o filme ganharia status de cult, entrando para diversas listas de Melhores Filmes de Todos os Tempos, como o da revista Empire e a do jornal The Guardian. Lee declararia em várias entrevistas que esse era o filme preferido de sua carreira, e Woodward diria que Howie foi o personagem que ele mais gostou de interpretar. O final do filme também costuma ser citado como um dos melhores finais de filmes de horror da história.

No final da década de 1970, Hardy e Shaffer decidiriam escrever um romance baseado no filme, lançado em 1978 e também chamado O Homem de Palha. Com as boas vendas do livro, Hardy começaria a pesquisar sobre a possibilidade de fazer uma nova edição do filme e relançá-lo nos cinemas em uma versão mais fiel à sua visão original. Ele, Lee e Shaffer procurariam incansavelmente pelos negativos originais ou pelo rolo de filme pré-edição, mas não conseguiriam encontrar nem um, nem outro. Hardy, então, se lembraria da cópia de 99 minutos que foi enviada a Corman, e, através de alguma pesquisa, descobriu que ela estava em poder de uma pequena empresa chamada Abraxas, de propriedade do fanático por cinema Stirling Smith e do crítico John Alan Simon, que a comprou da Warner. Hardy negociaria com a Abraxas um relançamento do filme nos Estados Unidos, e, trabalhando com a cópia de 99 minutos, conseguiria chegar a uma Versão Restaurada, de 96 minutos, que estrearia nos cinemas dos Estados Unidos em janeiro de 1979, dessa vez se tornando um grande sucesso de público e crítica.

Curiosamente, na hora de lançar o filme em home video, na década de 1980, a Abraxas negociaria com a Media Home Entertainment o lançamento da versão não-editada de 99 minutos, e não o da Versão Restaurada. Essa versão seria lançada exclusivamente nos Estados Unidos, com o restante do mundo tendo o lançamento da Versão de Cinema da EMI - que só chegaria ao mercado norte-americano em 2001, em versão remasterizada, pela Anchor Bay Entertainment, que por sua vez obteria uma licença com a Canal+, que compraria os direitos de distribuição do filme da EMI na década de 1990.

O lançamento em DVD em 2001 levou a uma nova onda de interesse pelo filme, o que motivou a Canal+ a tentar lançar a versão mais completa possível. Durante o processo, ela descobriria que a cópia de Corman havia se perdido, mas que, no acervo da Warner, havia uma transferência completa dos 99 minutos para videotape. Trabalhando com essa cópia e com novas cópias dos negativos que conseguiu quando comprou os direitos da EMI, a Canal+ chegaria a uma nova versão de 99 minutos, diferente da de Corman, que ela decidiria chamar, mesmo sem o envolvimento de Hardy na edição, de Versão do Diretor. A Versão do Diretor é hoje considerada a mais próxima da versão original idealizada por Hardy, mas, infelizmente, suas cenas adicionais, por terem sido tiradas de uma cópia em videotape, não possuem a mesma qualidade do restante do filme.

Em 2002, seria lançada uma edição especial em DVD com três discos: a Versão de Cinema, a Versão do Diretor e um documentário, chamado The Wicker Man Enigma, sobre o processo de restauração do filme e a busca pelos negativos perdidos - em uma das entrevistas para o documentário, Lee diria acreditar que os negativos ainda estão por aí, somente não foram encontrados, e que algum dia será possível lançar o filme da forma como Hardy e Shaffer haviam originalmente planejado. Três anos depois, em 2005, o autor Allan Brown lançaria o livro Inside the Wicker Man, no qual contava detalhes sobre a produção do filme e sobre a busca pelos negativos perdidos. Nesse livro, Brown revelaria pela primeira vez ter comprado fotos das filmagens que mostravam cenas que não estavam presentes em nenhuma versão do filme. Nenhum dos envolvidos nas filmagens jamais confirmou se as fotos mostram cenas filmadas e posteriormente cortadas, ou se mostram ensaios para cenas que não acabariam sequer filmadas.

Em 2013, os distribuidores StudioCanal, parte do grupo Canal+, começariam uma campanha para tentar encontrar material do filme que permanecesse inédito, de preferência os negativos originais. Hardy declararia em uma de suas últimas entrevistas (ele faleceria em 2016) que, ao contrário de Lee, acreditava que os negativos originais jamais seriam encontrados, estando perdidos para sempre, e que, em sua visão, a Versão Restaurada de 1979 era a mais próxima possível de sua visão original. A campanha da StudioCanal, porém, descobriria mais um negativo inédito, uma cópia de 92 minutos no Arquivo da Universidade de Harvard, que continha algumas das cenas da Versão do Diretor, mas em melhor qualidade, já que estavam em película, e não em videotape. Mais uma vez sem o envolvimento de Hardy, a StudioCanal usaria essa cópia para criar uma nova versão do filme, que ficaria conhecida como Versão Definitiva, lançada nos cinemas em 27 de setembro de 2013 e em DVD e Blu-ray em 13 de outubro de 2013. A Versão Definitiva tem 91 minutos, não contando nem com todas as cenas da Versão de Cinema, nem com todas da Versão do Diretor.

Todo o sucesso de O Homem de Palha levaria a várias tentativas de se fazer uma sequência, o que era considerado impossível por Hardy. A primeira tentativa séria ocorreria em 1989, quando Shaffer seria contratado pelo produtor Lance Reynolds para escrever um roteiro que chamaria de The Loathsome Lambton Worm (algo como "o monstro repugnante de Lambton"). O filme seria uma continuação direta de O Homem de Palha, começando exatamente do ponto onde o primeiro filme parou, mas teria muito mais elementos fantásticos e efeitos especiais, incluindo intervenções diretas dos deuses pagãos. Hardy não seria convidado para dirigir, e, em uma entrevista em 2010, diria que sequer leu o roteiro, e que achava que quem leu não gostou, ou o filme teria sido produzido. Ele também diria não acreditar ser possível fazer uma continuação direta, já que todos os atores já estavam mais de 15 anos mais velhos.

O próprio Hardy, entretanto, decidiria fazer uma sequência - ou, em suas palavras, um "sucessor espiritual" - chamada A Árvore de Palha (The Wicker Tree), lançada em 2011. A pré-produção começaria em 2000, mas seria interrompida porque Shaffer, que Hardy queria que escrevesse o roteiro, faleceria em 2001; após muitos percalços, Hardy decidiria ele mesmo escrever o filme, cujas filmagens só começariam em 2009. Em A Árvore de Palha, dois jovens evangelistas norte-americanos estão viajando pela Escócia e vão parar em uma pequena comunidade que cultua deuses pagãos, colocando sua fé à prova. Lee seria convidado para o papel de Sir Lachlan Morris, o governante do vilarejo, mas tropeçaria e machucaria as costas durante as filmagens de outro filme, A Inquilina, e teria que recusar, com o papel ficando com Graham McTavish (da série Outlander). Em homenagem a Lee, Hardy criaria um novo personagem, que aparece apenas em algumas cenas, é creditado como "o velho cavalheiro", e daria origem a uma grande polêmica, já que muita gente acha que se trata de Lorde Summerisle. Inicialmente, Hardy diria que havia uma "ambiguidade intencional" sobre a identidade do personagem, mas depois confirmaria que se trata de Summerisle; Lee, por outro lado, não somente sempre negou que era o mesmo personagem como também negava que A Árvore de Palha fosse uma sequência de O Homem de Palha - para colocar mais lenha na fogueira, Lesley Mackie está no filme, também interpretando uma personagem chamada Daisy.

A Árvore de Palha seria um grande fracasso de crítica e público, mas ainda seria considerado melhor que a refilmagem norte-americana de O Homem de Palha, dirigida por Neil LaBute, estrelada por Nicolas Cage e Elen Burstyn, e lançada em 2006. Esse remake transfere a ação para uma ilha na costa do Estado de Washington, no oeste dos Estados Unidos, adiciona bruxas e bruxaria à mistura, e faz com que Rowan seja filha da ex-noiva do policial que a procura, para que o negócio agora seja pessoal - aliás, o policial se chama Edward Malus e sua ex-noiva se chama Willow Woodward. Esse filme é ruim demais, e foi considerado pela crítica como "acidentalmente engraçado". Se alguém quiser perder 102 minutos de sua vida que jamais vão voltar, ele foi lançado no Brasil com o nome de O Sacrifício.

Um comentário:

  1. Lembro vagamente de ter assistido "O Sacrifício" do Sr. Cage no passado. Não sabia que era para ser um remake do filme clássico dos anos 70, até porquê, o material foi praticamente destroçado nessa refilmagem. E só agora estou sabendo desse filme da "Árvore de Palha". Acho que vou passar longe.
    Bom artigo.

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