Um dos filmes que meus pais jamais me deixaram assistir quando criança foi O Enigma de Outro Mundo. Quando ele foi lançado, eu tinha uns quatro anos; todos os meus amigos, inclusive meus primos, assistiram quando tinham uns sete; eu, por outro lado, só fui assisti-lo pela primeira vez quando já tinha 22. Isso mesmo, até os 22 anos, eu jamais tinha assistido O Enigma de Outro Mundo, e não por falta de vontade, já que ele era estrelado por Kurt Russell, que também protagonizava um dos filmes preferidos da minha infância, Aventureiros do Bairro Proibido. Toda vez que eu pedia para assistir, meus pais diziam que era muito violento, que o alienígena era nojento, e que não era filme para crianças - e, se eu dissesse que meus amigos já tinham visto, ouvia aqueles argumentos clássicos do tipo "se seus amigos comerem cocô, você vai comer também?".
Enfim, após muitas reclamações na infância, eu acabei não dando muita bola pra esse filme na adolescência, e somente quando ele foi lançado em DVD foi que eu decidi comprá-lo e a assisti-lo. Confesso que fiquei meio decepcionado, porque o filme é bem menos nojento e escabroso do que meus pais diziam que era, mas, ainda assim, achei um excelente filme, e lamentei não ter visto antes - Hellraiser, por exemplo, eu vi pela primeira vez aos 14, e também não achei tão tenebroso assim.
Essa semana eu me lembrei dessa história porque um grupo de alunos meus, que devem ter entre sete e oito anos, estavam comentando que assistiram Invocação do Mal. Eu ainda não assisti, mas não acho que seja um filme apropriado para a idade deles, o que confirma minha teoria de que a classificação indicativa não serve pra nada. Como vocês sabem, toda vez que eu me lembro de uma história desse tipo, fico com vontade de escrever um post. Por conseguinte, hoje é dia de O Enigma de Outro Mundo no átomo!
Poucos sabem - inclusive, até bem pouco tempo, nem eu sabia - mas O Enigma de Outro Mundo (cujo título original é The Thing, "A Coisa", que, no Brasil, é o título de outro filme que meus pais não deixaram eu assistir quando criança) é a refilmagem de um outro filme, lançado em 1951, e que ganhou, no Brasil, o nome de O Monstro do Ártico, que, por sua vez, é a adaptação de uma história chamada Who Goes There? ("Quem Vem Lá?"), escrita por John W. Campbell Jr., sob o pseudônimo de Don A. Stuart, e publicada na revista Astounding Stories de agosto de 1938.
Na história de Campbell, um grupo de cientistas isolado em uma base da Antártida descobre uma nave alienígena no meio do gelo, resgata seu piloto e o leva de volta à base para estudá-lo. Sem que eles saibam, porém, o piloto está vivo, e tem a habilidade de assumir a forma, memórias e personalidade de qualquer criatura que consuma. Quando eles descobrem, são tomados por uma profunda paranoia, imaginando que qualquer um deles pode ser o alienígena disfarçado, e começam a traçar um plano para identificá-lo e destruí-lo antes que ele consiga partir rumo à civilização.
Em 1950, o diretor de cinema Howard Hawks, que a havia lido Who Goes There? quando de seu lançamento, sugeriria à RKO Radio Pictures (o estúdio responsável pela versão original de King Kong) que a história fosse transformada em filme, lançado no ano seguinte com o nome de O Monstro do Ártico (The Thing from Another World, "A Coisa de Outro Mundo", no original, bizarramente bem mais parecido com o título em português do segundo filme). Oficialmente, Hawks não teria nenhum envolvimento com o filme, com o roteiro tendo sido escrito por Charles Lederer, a produção ficando a cargo de Edward Lasker, e a direção sendo de Christian Nyby, então estreando como diretor; segundo pessoas envolvidas na produção, porém, dentre elas parte do elenco, Hawks é que teria não somente dirigido o filme, tendo Nyby como seu assistente, mas também teria sido o verdadeiro produtor, e teria reescrito parte do roteiro, junto com Ben Hecht, após este ter sido entregue por Lederer. Se isso for verdade, não se sabe por que Hawks teria decidido não ter seu nome associado ao filme, embora haja a especulação de que Nyby teria sido creditado como diretor para poder ser aceito como membro da Director's Guild of America (era necessário pelo menos um crédito como diretor para que alguém fosse aceito como membro) e poder passar a dirigir seus próprios filmes para grandes estúdios como Warner e United Artists, que só contratavam membros da Guild. Nyby sempre negou esse fato, dizendo que gostava de ter Hawks junto a ele no set apenas porque estava começando na profissão e "queria aprender com um dos melhores".
Seja como for, o filme de Nyby é bem diferente da história original, embora parta da mesma premissa: um grupo isolado no meio do gelo trava contato com uma entidade alienígena que ameaça suas vidas. Como o título deixa a perceber, porém, O Monstro do Ártico não é ambientado na Antártida, e sim no Ártico, no caso, no Alasca; além disso, o grupo não é de pesquisadores, e sim de militares da Força Aérea norte-americana, liderado pelo Capitão Patrick Hendry (Kenneth Tobey) e formado pelo Tenente Eddie Dykes (James Young), o Tenente Ken MacPherson (Robert Nichols) e o Cabo Barnes (William Self, que, na década de 1960, seria produtor da série de TV do Batman, e, mais tarde, viria a se tornar presidente da Fox), além do cozinheiro Bob (Dewey Martin), do médico Dr. Arthur Carrington (Robert Cornthwaite) e de Nikki Nicholson (Margaret Sheridan), sua secretária. Ao perceber a queda de uma aeronave não identificada, alguns membros do grupo, junto com o repórter Ned Scott (Douglas Spencer), partem para tentar identificá-la. Ao perceberem que se trata de uma espaçonave alienígena, os militares e o repórter retornam para a base trazendo o corpo de seu piloto, congelado. O alienígena é uma forma de vida humanoide, mas de origem vegetal, e não animal, precisando, porém, consumir sangue animal para poder sobreviver, de forma que, após ser (acidentalmente) descongelado e acordar, começa a matar os membros da base, então isolados por uma tempestade de neve, em busca de sustento. Como se isso não fosse ruim o suficiente, ele ainda está "grávido" de várias sementes que darão origem a um verdadeiro exército de alienígenas, capaz de dizimar a vida na Terra. Os militares e o repórter, então, têm de encontrar uma forma de deter o monstro, antes que ele mate a todos e parta rumo à civilização.
O monstro seria interpretado por James Arness, na época já conhecido por ter participado de vários filmes de faroeste, e que, alguns anos mais tarde, ficaria famoso por interpretar o delegado Matt Dillon na série de TV Gunsmoke; no filme, porém, Arness está irreconhecível, com uma pesada maquiagem que alterava não somente suas feições, mas também o formato de sua cabeça e de suas mãos. Vale citar que, nessa versão, o monstro não é capaz de mudar de forma, embora possua superforça e seja imune a balas.
O Monstro do Ártico seria lançado em 27 de abril de 1951, e se tornaria o filme de ficção científica de maior bilheteria daquele ano, superando O Dia em que a Terra Parou e When Worlds Collide (lançado no Brasil como O Fim do Mundo), ambos hoje considerados dentre os maiores clássicos da ficção científica de todos os tempos. Cinquenta anos após seu lançamento, em 2001, ele seria selecionado para preservação na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, honra concedida apenas aos filmes considerados culturalmente significativos. Hoje, embora seja pouco conhecido aqui no Brasil, ele é considerado um dos melhores filmes de ficção científica dos anos 1950 - aliás, o melhor de todos, segundo a revista Time.
A partir da década de 1970, entretanto, o filme começaria a ser criticado por pessoas ligadas à ficção científica, como Lester del Rey, editor da Del Rey Books, editora voltada à publicação de livros desse gênero. Segundo del Rey e aqueles que concordavam com ele, o fato de o filme ser tão diferente da história original tirava muito de seu valor, reduzindo-o a um filme de monstro comum, sem a tensão ou a profundidade presentes na história. Dentre os que pensavam assim estavam Tobe Hooper e Kim Henkel, criadores do filme O Massacre da Serra Elétrica, que decidiriam escrever um roteiro mais fiel à história original e oferecê-lo aos principais estúdios.
A Universal se interessaria pela história, mas não gostaria do roteiro de Hooper e Henkel, que acabaria reescrito por Bill Lancaster, filho do ator Burt Lancaster. Após ter o roteiro pronto, a Universal convidaria para a direção John Carpenter, que já havia dirigido sete filmes, mas todos para estúdios pequenos, incluindo Fuga de Nova Iorque, da AVCO Embassy Pictures; como essa seria sua chance de estreia em um dos grandes estúdios, ele aceitaria sem sequer ler o roteiro, fazendo a única exigência de que queria Russell, com quem já havia trabalhado em Fuga, no papel principal. As filmagens ocorreriam na cidade de Stewart, no norte do Canadá, fronteira com o Alasca, e estariam totalmente completas em três meses, para alívio do elenco e da equipe de produção, que tiveram de trabalhar sob frio intenso durante todo o período, incluindo uma nevasca nas últimas semanas.
No filme de Carpenter, a ação retorna para a Antártida, onde um grupo composto por pesquisadores e militares se prepara para passar o inverno isolado do restante do planeta. A equipe é liderada por Garry (Donald Moffat), e conta com o piloto de helicóptero R.J. MacReady (Kurt Russell), o médico Dr. Copper (Richard Dysart), o biólogo Dr. Blair (A. Wilford Brimley), seu assistente Fuchs (Joel Polis), o mecânico Childs (Keith David), seu assistente Palmer (David Clennon), o cozinheiro Nauls (T.K. Carter), o geofísico Vance Norris (Charles Hallahan), o meteorologista George Bennings (Peter Maloney), o veterinário Clark (Richard Masur) e o operador de rádio Windows (Thomas G. Waites). O elenco é totalmente masculino; as únicas presenças femininas no filme são algumas mulheres que aparecem na TV em uma cena na qual a equipe está assistindo a uma fita gravada do programa Let's Make a Deal e a voz de um programa de computador que joga xadrez, interpretada pela então esposa de Carpenter, a atriz Adrienne Barbeau - que acabaria sendo a única mulher nos créditos do filme.
Dessa vez, não é a equipe da base norte-americana que encontra o alienígena, e sim a equipe de uma outra base, pertencente à Noruega. No início do filme, dois noruegueses estão em um helicóptero aparentemente tentando matar um cachorro, que é acolhido pelos norte-americanos e adicionado a seu canil - sendo os cachorros usados para puxar trenós de neve, caso alguém esteja imaginando. Devido a um acidente, ambos os noruegueses morrem, e MacReady e Copper são enviados para a base norueguesa para tentar descobrir o que aconteceu. Eles encontram a base destruída e todos mortos, mas vídeos e anotações que levam a equipe a crer que os noruegueses encontraram uma forma de vida alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer outra criatura. ao descobrir que o alienígena está dentre eles na base norte-americana, e que já substituiu um de seus colegas, eles começam a desconfiar uns dos outros, enquanto buscam uma forma de destruí-lo antes que ele consiga escapar rumo à civilização - algo que, segundo o Dr. Blair, pode levar à extinção da raça humana em um intervalo de poucos anos.
O Enigma de Outro Mundo estrearia em 25 de junho de 1982, e seria massacrado pela crítica, que o consideraria decepcionante, depressivo e perturbador, dentre outros termos nada agradáveis; os efeitos especiais das transformações do alienígena, obtidos através de uma mistura de maquiagem, modelos e animatronics, seriam considerados brilhantes, mas excessivamente repulsivos. O enredo foi considerado fraco, as atuações pífias, e o desenrolar da história, forçado. Com orçamento de 15 milhões de dólares e bilheteria nos Estados Unidos de 19, o filme seria considerado também um fracasso de público, embora isso tenha sido atribuído por Carpenter não à sua qualidade, mas ao fato de ele ter estreado apenas duas semanas após E.T. - O Extraterrestre (também da Universal) e no mesmo dia que Blade Runner: O Caçador de Androides (da Warner), que representaram uma grande concorrência em termos de público.
Com o passar do tempo, entretanto, a opinião geral foi mudando. Dez anos após seu lançamento, em 1992, o crítico Peter Nicholls escreveu em seu livro The Encyclopedia of Science Fiction que o filme era memorável, e que ainda seria visto como um clássico. A partir de então, ele ganharia status de cult, sendo redescoberto por vários cinéfilos e passando a ser considerado um dos melhores filmes de ficção científica dos anos 1980. Até mesmo Carpenter, excessivamente criticado na época do lançamento, seria redimido, com críticos escrevendo que esse seria seu melhor filme, mas o mais incompreendido. Hoje, O Enigma de Outro Mundo é considerado um grande clássico tanto da ficção científica quanto do horror.
Essa descoberta tardia levaria a um interesse de vários estúdios por fazer uma refilmagem, uma sequência ou uma "prequência" do filme, embora a própria Universal tenha demorado a se manifestar sobre o assunto. O primeiro passo concreto para isso seria dado em 2003, quando o canal a cabo SyFy entraria em contato com Carpenter para negociar a produção de uma minissérie em quatro episódios de uma hora recontando e expandindo a história do filme; por razões jamais divulgadas, entretanto, esse projeto seria engavetado durante a pré-produção. No ano seguinte, Carpenter anunciaria ter tido uma boa ideia para uma sequência, também estrelada por Kurt Russell, mas que também não sairia do papel. Em 2006, começariam a surgir rumores de que a Universal havia dado luz verde para uma "prequência" - um novo filme ambientado antes dos eventos do filme de Carpenter. Carpenter, porém, não se interessaria por dirigir a "prequência", e cinco anos se passariam antes que ela fosse realmente produzida.
A ideia de filmar a "prequência" partiria de Marc Abraham e Eric Newman, produtores do remake de Madrugada dos Mortos, de 2004, produzido pela Strike Entertainment e distribuído pela Universal. Após sua conclusão, Abraham e Newman começaram a pesquisar de qual outro filme antigo do estúdio poderiam fazer um remake; ao descobrir que O Enigma de Outro Mundo também pertencia à Universal, mas acreditando que o filme era tão bom que não precisava de um remake - segundo Newman, seria como se alguém resolvesse fazer um remake de Tubarão - eles começaram a negociar com o estúdio um filme que contasse o que aconteceu na base norueguesa desde a descoberta da espaçonave alienígena até o início do filme de Carpenter.
Após anos de pré-produção, um roteiro de Ronald D. Moore finalmente foi aprovado, e o holandês Matthijs van Heijningen Jr. praticamente se escolheu para a direção: originalmente, ele tinha contrato com a Strike Entertainment para dirigir uma sequência do remake de Madrugada dos Mortos, que seria descartada durante a pré-produção; ao saber que um novo O Enigma de Outro Mundo estava em produção, sendo fã do primeiro filme, e sempre tendo tido curiosidade para saber como os noruegueses morreram, ele entraria em contato com Newman e o convenceria a escolhê-lo. Após a chegada de van Heijningen Jr., Eric Heisserer seria contratado para reescrever o roteiro de Moore. Diferentemente do filme de 1982, o de 2011 seria filmado quase integralmente em estúdios em Toronto. Durante as filmagens, foram usados maquiagem e animatronics para representar o monstro - além de uma fantasia vestida pelo ator Tom Woodruff - mas, na pós-produção, eles acabariam substituídos por efeitos de computação gráfica, o que irritou Alec Gillis, o responsável pelos efeitos.
No novo filme, a equipe é liderada pelo biólogo dinamarquês Dr. Sander Halvorson (Ulrich Thomsen) e composta por seu assistente norte-americano Adam Finch (Eric Christian Olsen), pela paleontóloga norte-americana Kate Lloyd (Mary Elizabeth Winstead), a geóloga francesa Juliette (Kim Bubbs), o operador de rádio inglês Colin (Jonathan Lloyd Walker), e oito noruegueses: o cuidador do canil Lars (Jørgen Langhelle), o pesquisador de gelo Jonas (Kristofer Hivju, de Game of Thrones), o piloto de helicóptero Matias (Ole Martin Aune Nilsen), o guia Olav (Jan Gunnar Røise), o geólogo Edvard Wolner (Trond Espen Seim) e seus assistentes Peder (Stig Henrik Hoff), Henrik (Jo Adrian Haavind) e Karl (Carsten Bjørnlund). A eles se unem uma equipe de norte-americanos que chega de helicóptero trazendo suprimentos pouco antes da descoberta da nave, e que inclui o piloto Sam Carter (Joel Edgerton), o co-piloto Derek Jameson (Adewale Akinnuoye-Agbaje) e o Chefe Griggs (Paul Braunstein). O filme começa com a descoberta da nave pela equipe de Wolner, e termina com os dois únicos sobreviventes partindo de helicóptero atrás do cachorro; entre uma coisa e outra, a equipe descobre os poderes do alienígena e conclui que ele precisa ser destruído antes de alcançar a civilização - e seus membros vão morrendo um a um nas mãos do monstro. O fato de os norte-americanos não falarem norueguês e os noruegueses falarem mal ou não falarem inglês contribui para a sensação de paranoia, pois torna mais difícil saber quem é realmente humano e quem é a criatura se fazendo passar por humano.
Os produtores optariam por dar ao novo filme o mesmo nome do anterior (e quem traduziu aqui no Brasil decidiu fazer a mesma coisa) como uma espécie de homenagem; assim, o novo O Enigma de Outro Mundo (ou The Thing, em inglês) estrearia em 14 de outubro de 2011. Com orçamento de 38 milhões de dólares, rendeu somente 17 milhões nos Estados Unidos - ou seja, nem a metade - sendo considerado um gigantesco fracasso. A crítica também não foi receptiva, considerando-o inferior ao de 1982, e com pouco a acrescentar à história original.
Mas, como isso já aconteceu uma vez, quem sabe em 2021 alguém resolve falar bem do filme e ele vire cult? Não que mereça.
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