Admito que esse seja um assunto que muitos dos leitores desse blog desconhecem, então cabe explicar: os Karas são cinco adolescentes protagonistas de uma série de livros escritos entre 1984 e 2014 por Pedro Bandeira. Meu primeiro contato com eles foi na oitava série, lá no hoje longínquo ano de 1992, quando a professora de história, que na época nos ensinava sobre o nazismo, recomendou que lêssemos Anjo da Morte. A turma gostou tanto do livro que ela acabou fazendo uma atividade extra, na qual nos dividimos em grupos, e cada grupo deveria fazer sua própria interpretação do livro. Meu grupo fez uma maquete de um campo de concentração, usando isopor, cartolina e Playmobil.
Na verdade, a turma gostou tanto do livro que passamos a encher o saco da professora de literatura, para que ela nos passasse livros do Pedro Bandeira ao invés dos clássicos que costumava pedir. Não sei se contrariada, ela acabou cedendo, mas com uma pequena diferença em relação ao que fazia sempre: ao invés de passar o mesmo livro para a turma toda, dividiu-a em dois grupos; metade da turma deveria ler A Droga da Obediência, enquanto a outra metade leria Pântano de Sangue. A prova, evidentemente, seria de acordo com o livro que a gente leu. Eu caí no grupo do Pântano de Sangue, mas acabei pegando A Droga da Obediência com uma amiga do outro grupo e li também.
Na época, esses eram os três únicos livros da série que existiam. Alguns anos depois, já no CEFET, vi uma amiga minha lendo um que eu não conhecia, A Droga do Amor, que havia acabado de ser lançado. Pedi emprestado e li também. E, mais alguns anos depois, já na faculdade, ao ver que mais um, Droga de Americana!, tinha sido adicionado à série, resolvi comprar as três "Drogas" que eu não tinha e completar minha coleção. Ou não, já que, há pouco, descobri que, recentemente, foi lançado mais um, A Droga da Amizade. O que foi um dos motivos que me motivaram a tentar mais uma vez escrever sobre os Karas, e a incluí-los nesse Mês do Brasil.
Como eu disse na introdução, os Karas são uma criação de Pedro Bandeira. Nascido Pedro Bandeira de Luna Filho, em 9 de março de 1942, na cidade de Santos, São Paulo, Bandeira é o autor de literatura juvenil mais vendido do Brasil, com mais de 25 milhões de exemplares vendidos de seus mais de 80 títulos publicados. Ele também já ganhou os dois mais importantes prêmios da literatura infanto-juvenil brasileira, o Prêmio Jabuti (conferido pela Câmara Brasileira do Livro) e o Troféu APCA (conferido pela Associação Paulista de Críticos de Arte), ambos em 1986. Dois de seus livros são gigantescos sucessos, e leitura obrigatória em várias escolas de todo o país: A Marca de uma Lágrima, de 1985 (o qual nossa professora de literatura depois nos passou também), e O Fantástico Mistério de Feiurinha, de 1986.
Mas o primeiro livro dos Karas - que também costuma ser leitura obrigatória em escolas de Ensino Médio - é anterior a esses dois: A Droga da Obediência, publicado pela Editora Moderna em 1984. O título do livro é uma alusão a um remédio criado pelo Doutor Q.I., vilão do livro; tal remédio deixa as pessoas dóceis, porém avoadas, e, segundo o Doutor Q.I., seria usado para acabar com as dores do mundo - embora seu verdadeiro objetivo seja controlar a humanidade e, por consequência, o planeta - já que o remédio também as deixa suscetíveis a sugestões e ordens, por isso a alcunha de Droga da Obediência.
O Doutor Q.I. decide testar as drogas em estudantes antes de distribuí-la em larga escala, e é aí que entram os heróis da história. Quando somos apresentados a eles, os Karas eram quatro estudantes do Colégio Elite, um dos mais conceituados de São Paulo. O grupo foi formado, e atualmente é liderado, por Miguel, o presidente do Grêmio Estudantil do colégio, que tem grande espírito de aventura, e sempre sonhou em fazer parte de uma equipe que solucionasse mistérios, para isso recrutando três dos mais competentes alunos do colégio: Calu, ator e especialista em disfarces, graças à sua familiaridade com as maquiagens usadas em seu grupo de teatro; Magrí, da equipe de ginástica olímpica do colégio; e Crânio, que não tem esse apelido à toa, já que é um dos mais brilhantes alunos do Elite. Em sua primeira aventura, o grupo ganha um quinto integrante, Chumbinho, menino mais novo que eles e apaixonado por videogames e computadores, que prova ser digno de fazer parte do grupo ao investigá-los e descobrir todos os seus segredos - inclusive seu local secreto de reuniões, uma espécie de porão cujo acesso é feito através de um alçapão dentro de um armário de limpeza do colégio.
Os segredos, aliás, eram uma das melhores partes dos livros dos Karas. Para serem um digno grupo de adolescentes resolvedores de mistérios, eles criariam três códigos secretos: o mais simples, o Emergência Máxima, consistia de um K escrito na palma da mão esquerda, e, quando mostrado por um dos integrantes do grupo aos demais, simbolizava que todos precisavam se reunir imediatamente na sala secreta, pois algum evento necessitava da atenção do grupo. Já quando eles precisavam se comunicar em segredo, usavam o Código Vermelho, que consistia em trocar as vogais de uma palavra por códigos: A por "ais", E por "enter", I por "inis", O por "omber" e U por "ufter". Assim, átomo, por exemplo, virava "aistombermomber".
Mas o mais legal era o Código TENIS-POLAR. Tão legal que eu e meus amigos frequentemente trocávamos mensagens escritas em TENIS-POLAR, e até mesmo quando eu queria escrever alguma coisa que não queria que meus pais soubessem o que era, usava esse código. Usado quando um dos Karas desejava escrever uma mensagem que somente os Karas iriam compreender, o TENIS-POLAR consiste em trocar as letras presentes na palavra TENIS por suas correspondentes na mesma posição na palavra POLAR - todo T vira P, todo E vira O, e assim por diante. Escrito em TENIS-POLAR, "átomo" seria "ípeme".
Enfim, A Droga da Obediência foi o primeiro grande mistério solucionado pelos Karas, e o primeiro caso no qual Chumbinho fez parte do grupo, passando a ser integrante fixo desde então. O envolvimento do grupo começou quando Bronca, um dos alunos mais rebeldes do Colégio Elite, desaparece por um tempo e retorna com comportamento completamente diferente, muito mais dócil. Miguel reúne os Karas, que, revendo os fatos dos estranhos desaparecimentos, concluem que, até então, 27 estudantes já haviam sido sequestrados, sendo três de cada um dos principais colégios de São Paulo - como Bronca foi o de número 28, e o primeiro do Elite, isso significava que mais dois estavam por desaparecer. O grupo, então, decide investigar mais a fundo, e acaba chegando ao Doutor Q.I.
A investigação oficial é conduzida pelo Detetive Andrade, da Polícia de São Paulo, que, inicialmente, não gosta do envolvimento dos adolescentes - chegando a interrogar Chumbinho, o último a ver Bronca antes do desaparecimento - mas que, nos livros seguintes, acaba se tornando um valioso aliado para o grupo. Cabe dizer também que cada um dos Karas tem por volta de 15 anos - exceto Chumbinho, que tem por volta de 13 - e que nenhum dos livros conta com figuras que retratam sua aparência, nem com descrições delas (exceto por pequenos detalhes, como "Calu é o aluno mais bonito do colégio" ou "Magrí tem esse apelido por ser muito magra"). Isso seria uma estratégia de Bandeira, para que todos os adolescentes pudessem se identificar com os Karas, já que ninguém saberia com certeza como eles eram - confesso que eu mesmo imaginava a mim e a meus amigos como sendo os Karas, o que pode ser um atestado de que tal estratégia funcionou.
A segunda aventura dos Karas, Pântano de Sangue, seria lançada em 1987. Ela começa quando o professor de matemática de Crânio é encontrado morto no último dia de aula. Os Karas decidem investigar, e descobrem que o professor havia visitado o Pantanal. Como Crânio tem uma tia que mora no Mato Grosso, ele decide ir visitá-la como pretexto para investigar o caso, enquanto Miguel, Calu, Magrí e Chumbinho, com a ajuda do Detetive Andrade, tentam encontrar mais pistas em São Paulo. Pântano de Sangue tem suspense do começo ao fim, uma forte mensagem ecológica, e chama a atenção dos leitores para problemas como a matança dos jacarés, a exploração clandestina de ouro e a violência contra os povos indígenas - além de ter uma espécie de plot twist genial, envolvendo o suspeito Mike Serrabrava.
Ser professor dos Karas não devia ser a profissão mais segura do mundo, pois no terceiro livro, Anjo da Morte, de 1988, é o professor de teatro de Calu quem morre misteriosamente, com os Karas mais uma vez tentando descobrir quem foi o assassino. Seguindo a pista de um folheto neonazista deixado no local do crime - devido ao fato de que o professor era judeu - os Karas chegam até o ex-oficial alemão Kurt Kraut, que pode ser o Anjo da Morte, oficial nazista responsável pela morte de milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Através de flashbacks, o leitor é levado até a Alemanha nazista da Segunda Guerra, e acompanha o sofrimento dos judeus em um campo de concentração.
O Doutor Q.I. voltaria a dar as caras (sem trocadilho) no quarto livro dos Karas, A Droga do Amor, de 1994. Desta vez o título é em alusão a um remédio que promete curar "o mal do século", "a doença que transforma o amor em morte", termos que são usados como eufemismos para a AIDS. Um dos cientistas que trabalham para a farmacêutica que está desenvolvendo esse remédio desaparece, e o principal suspeito é o Doutor Q.I., que acabou de fugir da prisão. Os adolescentes se envolvem quando a professora de ginástica de Magrí, que vinha dos Estados Unidos no mesmo voo de um representante da farmacêutica, é atacada por homens misteriosos no aeroporto (eu disse que ser professor dos Karas não era seguro). Os Karas estão um pouco mais velhos nesse livro, e enfrentam um problema inusitado: Miguel, Calu e Crânio estão, os três, apaixonados por Magrí, algo que leva, até mesmo, a uma dissolução temporária do grupo.
No quinto livro dos Karas, Droga de Americana!, de 1999, Peggy, a filha adolescente do Presidente dos Estados Unidos, vem ao Brasil participar de um campeonato de ginástica olímpica, e se torna alvo de sequestradores. Acontece que esses sequestradores confundem Magrí com Peggy, e levam a única menina dos Karas como refém, ameaçando matá-la se o Presidente não cumprir suas exigências dentro de seis horas. Os Karas decidem aproveitar esse espaço de tempo para agir e salvar sua amiga, com a ajuda de Peggy, que, por sua valentia e grande ajuda na solução do mistério, acaba se tornando membro honorário dos Karas antes de retornar aos Estados Unidos.
Embora haja um espaço de quinze anos entre o lançamento do primeiro e o do quinto livro, evidentemente essa passagem de tempo não foi respeitada na cronologia das histórias, com no máximo três anos tendo se passado entre os eventos de A Droga da Obediência e os de Droga de Americana!. De 1999 para cá, porém, o mundo começou a mudar muito rápido - telefones celulares, por exemplo, têm novas funções a cada lançamento - e, mesmo querendo atender ao pedido dos fãs de um novo livro dos Karas, Bandeira se viu diante de um desafio: nas histórias do grupo não existem vários elementos que hoje são comuns, que até seriam uma mão na roda na hora de solucionar os mistérios, mas que, entre 1984 e 1999, ou não existiam ou não eram de fácil acesso à maioria dos adolescentes, como, por exemplo, a internet. Mostrar os Karas usando orelhão de fichas e consultando o Guia Quatro Rodas seria anacrônico e poderia afastar os novos leitores; mostrá-los consultando o Google Maps e filmando os vilões com seus celulares, por outro lado, seria difícil de encaixar na cronologia das histórias. Por esse motivo, se passariam mais quinze anos antes que um sexto livro dos Karas se tornasse realidade.
Lançado em 2014, A Droga da Amizade é, segundo o próprio Bandeira, o último livro dos Karas - e a solução encontrada por ele foi até bastante interessante: no início da história, Miguel está com 40 anos, e encontra uma foto de sua adolescência, na qual todos os Karas estão reunidos. Ele começa, então, a se lembrar de várias aventuras do passado, que não foram retratadas nos livros anteriores. A Droga da Amizade conta como os Karas se reuniram pela primeira vez, como Chumbinho entrou definitivamente para a equipe, mostra uma nova aventura da equipe contando com Peggy como um de seus membros, explica por que Andrade tinha tanta confiança nos adolescentes, e, principalmente, mostra o que cada um dos Karas se tornou depois de adulto. É um livro para leitores de todas as idades, tanto para aqueles que cresceram lendo os Karas, como eu, quanto para os que os descobriram agora; para aqueles que se tornaram fãs na adolescência e para os que se encantaram com a equipe já depois de adultos.
De certa forma, é uma pena que os Karas não vão viver mais aventuras, mas, como diz o ditado, tudo, até mesmo as coisas boas, precisa chegar ao fim. O que importa é que as aventuras de Miguel, Calu, Crânio, Magrí e Chumbinho sempre terão um lugar na minha estante e no meu coração, assim como nos de milhões de brasileiros que provavelmente se apaixonaram pela leitura ao serem apresentados a um senhor chamado Pedro Bandeira.
0 Comentários:
Postar um comentário