Acontece que, conforme eu expliquei no meu Post 500, essa série estava incompleta. Quando a escrevi, eu planejava, depois de falar sobre o Baralho Suíço (tema do último post da série até agora), prosseguir, falando sobre os baralhos de tarô. Para quem não conhece a história dos baralhos (ou não leu a série), pode parecer estranho eu resolver falar sobre tarô em seguida a baralhos, mas acontece que, originalmente, o tarô era usado apenas para jogos de baralho, tendo sua associação com a cartomancia - pela qual ele é bem mais conhecido hoje, ao ponto de quase todo mundo aqui no Brasil achar que ele só serve para ler o futuro - começado somente mais de três séculos após sua invenção. Esses novos posts acabaram nunca se concretizando porque, na época, ao invés de adicioná-los à série dos baralhos, eu planejava começar uma série sobre tarôs - ou seja, com o primeiro post sendo o Tarô (I) ao invés do Baralho (XII) - e decidi que seria melhor se eu deixasse um espaço grande, tipo de um ou dois meses, entre elas. Como eu encerrei a série dos baralhos próximo ao post de número 250, decidi que só começaria a dos tarôs depois dessa marca. E depois, envolvido com outros assuntos, esqueci, desanimei, e acabei deixando pra lá.
De lá pra cá, por várias vezes eu pensei em tirar a série dos tarôs da gaveta, mas sempre acabei desanimando por um motivo ou outro. Essa semana, porém, sem motivo algum aparente, me deu vontade de reler a série dos baralhos. E, ao fazê-lo, me deu vontade de escrever sobre os tarôs. E, ao pensar um pouco sobre o assunto, concluí que seria melhor - e mais lógico - se os tarôs não fizessem parte de uma série própria, e sim da mesma série que os baralhos. Tomado por esse novo ânimo, digitei as linhas que se seguem, ressuscitando a série dos baralhos após quase uma década. Fãs dos jogos de cartas, regozijem-se: hoje é dia de tarô no átomo!
A origem do tarô está intimamente ligada à origem dos baralhos europeus. Recapitulando rapidamente (uma história mais completa pode ser encontrada nos posts anteriores da série sobre baralhos), o baralho surgiu na Europa através de um jogo árabe chamado na'ib - palavra que significa "delegado", em árabe, e acabaria dando origem a naipe, o nome pelo qual nos referimos coletivamente aos quatro grupos (Espadas, Paus, Copas e Ouros) aos quais as cartas do baralho pertencem. No século XIV, o na'ib chegaria à Espanha, através dos mouros que se instalaram na Península Ibérica, e à Itália, através dos mamelucos, que tinham fortes laços comerciais com cidades italianas. É consenso dentre os estudiosos que o primeiro baralho europeu ao qual o na'ib daria origem seria o espanhol, com o italiano sendo inventado depois - embora não se saiba o quanto depois.
No norte da Itália, entretanto, mais precisamente nas cidades de Ferrara, Bolonha e Piemonte, o baralho sofreria uma espécie de mutação. Nessas cidades, era muito popular um jogo chamado trionfi ("triunfo"), que usava 78 cartas, sendo 22 delas especiais, que não pertenciam a nenhum naipe, traziam, cada uma, uma figura diferente, e ainda possuíam uma espécie de hierarquia, com umas valendo mais do que as outras - e com todas elas valendo mais que as cartas tradicionais do baralho. Com o tempo, o nome do jogo passou a ser utilizado pelos jogadores para se referir a essas cartas, que ficaram conhecidas também como trionfi - palavra que daria origem a trunfo, nome que usamos hoje quando queremos dizer que uma das cartas vale mais do que as outras. Não há registros históricos de que os 22 trunfos eram usados sozinhos, o que leva à suposição de que eles sempre foram usados em conjunto com um baralho comum. Infelizmente, também não há registros históricos de como os trunfos foram inventados - há uma teoria de que eles foram inspirados em um baralho alemão conhecido como Cartas de Caçada, criado no século XV, mas estudiosos italianos a refutam, dizendo não haver nenhum registro de que as Cartas de Caçada fossem conhecidas no norte da Itália. Há registros históricos, entretanto, que comprovam que o baralho de tarô é o mais antigo da Itália, com sua fabricação tendo começado antes mesmo da dos baralhos italianos comuns.
Se você é bom em matemática, já deve ter notado uma curiosidade: se o baralho de trionfi tinha 78 cartas, e 22 delas eram os trunfos, sobram 56 - e não 52, que é o número de cartas presente em um baralho comum. Isso acontece porque, enquanto um baralho comum possui três figuras, o baralho de trionfi - e, por consequência, o baralho de tarô - possui quatro. A figura a mais, no caso do tarô, é a Rainha, que não está presente nos baralhos espanhol e italiano, que contam apenas com Rei, "Valete" e Cavaleiro. "Valete" está entre aspas porque esse foi um termo cunhado apenas quando do surgimento do baralho francês, bem depois; os baralhos espanhóis possuem o sota, uma espécie de escudeiro ou secretário do cavaleiro, enquanto os baralhos italianos possuem o fante, uma espécie de cavalariço. Quando o baralho chegou à França, o "posto" mais semelhante ao sota e ao fante era o valet, uma espécie de secretário do Rei. Também é interessante notar que, quando o baralho chegou à França, eles decidiram trocar o Cavaleiro pela Rainha (conhecida por nós como Dama), o que faz com que muita gente pense que a "figura extra" do tarô é o cavaleiro.
Originalmente, os 22 trunfos não tinham qualquer numeração, devendo os jogadores decorar sua ordem. No início, eles também não tinham um padrão, com cada região ou fabricante determinando quais seriam suas figuras - há registros históricos, por exemplo, de um baralho cujos trunfos representavam deuses da mitologia grega, e de um com figuras de diferentes espécies de pássaros. A padronização só ocorreria quando as fabricantes começassem a usar prensas para criar seus baralhos - no início, cada carta tinha de ser desenhada e pintada à mão, mas, após o advento das prensas, passaria a ser usado um enorme bloco de madeira, no qual as cartas eram entalhadas, então cobertas com tinta, e pressionadas sobre uma grande folha de papel, como um carimbo, sendo cortadas depois. Apesar de ser mais prático e barato, esse método também fez com que as cartas ficassem menos detalhadas, pois era complicado gravar muitos detalhes no bloco de madeira, além do que era usado apenas um bloco para todo o baralho, de forma que, se o entalhador cometesse um erro crasso lá na última carta, todo o bloco acabava sendo inutilizado. Foi esse segundo motivo, aliás, que levou à padronização: era muito mais fácil para os entalhadores copiar de um modelo pronto do que criar todas as figuras a partir do zero.
Na hora de padronizar, ocorreria algo curioso com os trunfos: ao invés de figuras simples, como animais e plantas, ou até, vá lá, os deuses gregos, os trunfos escolhidos representavam figuras, digamos, esotéricas, como "o mago", "a papisa" (que é um papa mulher, algo que, exceto se você acreditar na lenda da Papisa Joana, jamais existiu), "o diabo" e "o julgamento" (divino, aquele que ocorrerá no Dia do Juízo Final). A razão exata pela qual esses trunfos, muitos deles de difícil compreensão para o homem comum da época, foram criados é incerta, mas a teoria mais aceita é a de que eles teriam sido criados inspirados no movimento humanista, que surgiu no século XIV e exaltava a superioridade do homem em relação à natureza, em contraste com a posição de humildade e subserviência pregada durante a Idade Média. Não era incomum que os trunfos fossem temáticos, e o tema desse conjunto, portanto, seria "a jornada do homem", contendo cartas que representavam pessoas comuns (como o mago e o eremita), figuras de poder (como o papa e o imperador), virtudes (como a força e a temperança), medos (como o enforcado e a morte) e corpos celestes (como as estrelas, o Sol e a Lua). É interessante registrar que a ordem de valor dessas cartas pode ter tido, no início, algum sentido que refletisse essa jornada - com a última carta sendo a morte, por exemplo - mas, como não havia numeração nas cartas originalmente, essa ordem pode ter mudado até se chegar na que temos hoje.
A configuração dos trunfos mais comum é, na ordem, o Mago, a Papisa, a Imperatriz, o Imperador, o Papa, os Enamorados, a Carruagem, a Justiça, o Eremita, a Roda da Fortuna, a Força, o Enforcado, a Morte, a Temperança, o Diabo, a Torre, a Estrela, a Lua, o Sol, o Julgamento, o Mundo e o Louco. O Louco não é exatamente parte dos trunfos, e, nos jogos de tarô, costuma ser usado como curinga. Nos tarôs em que os trunfos têm números, ele costuma não ter nenhum ou ser numerado como 0; os demais são numerados em romanos, do I ao XXI - curiosamente, a Morte é justamente o número XIII, e sua carta costuma não ter número, já que o 13 é considerado agourento, e, na carta da Morte, seria duplamente agourento. Vale citar que parte do misticismo associado às cartas em países como Brasil e Estados Unidos advém de problemas de tradução: o Mago, por exemplo, em francês é conhecido como Le Bateleur, que significa "o Prestidigitador", e, embora a prestidigitação seja realmente associada a magos e mágicos, a figura da carta mostra uma espécie de artista de rua, provavelmente daqueles que realizam pequenos truques em troca de dinheiro, como propor adivinhar debaixo de qual copo está a bolinha - em certas regiões da Itália, inclusive, essa carta é conhecida como "o Artista Performático" ou até mesmo "o Malabarista". Da mesma forma, o Enforcado originalmente era "o Pendurado", tanto que ele não está enforcado, e sim pendurado pelo pé. A Torre, por outro lado, no original é "a Casa de Deus", e, segundo a teoria mais aceita, sua ilustração - um raio atingindo uma torre e derrubando pessoas e pedras lá de cima - retrata a destruição da Torre de Babel. Curiosamente, em tarôs mais antigos, essa carta se chamava "o Raio", em alusão às forças da natureza, o que comprova que seu significado teria sido alterado para o do evento bíblico mais tarde.
A razão pela qual justamente esse conjunto foi escolhido pode ser a mais simples possível: era esse o conjunto usado pelo primeiro fabricante que aderiu à padronização, ou o mais popular na região por onde a padronização começou, por exemplo. Independentemente do motivo pelo qual justamente esses foram escolhidos, é consenso que essa seleção de trunfos foi o que levou o tarô a ser tão fortemente associado à cartomancia - afinal, se você tem cartas representando a morte, a roda da fortuna e a ira de Deus, deve haver mais nelas do que os olhos podem ver. Os primeiros registros históricos do uso do tarô para cartomancia datam apenas do século XVIII - mais de 300 anos após o surgimento dos primeiros baralhos de tarô, portanto - mas sua popularização para este fim se daria apenas no começo do século XX.
Em meados do século XIX, um comerciante de vinhos francês chamado Jean-Baptiste Alliette decidiria publicar um livro, sob o pseudônimo Etteilla (Alliette ao contrário), chamado (em tradução livre) Como Entreter a Si Mesmo com um Baralho, no qual, dentre outras coisas "ensinava" como ler o futuro usando as cartas de um baralho comum. O livro não vendeu bem, mas, coincidentemente, pouco após seu lançamento, um filósofo também francês, chamado Court de Gébelin, que se interessava por assuntos esotéricos, inventou uma história, a qual publicou em um dos livros de uma coleção em oito volumes sobre esoterismo que havia lançado, segundo a qual o tarô fora criado no Antigo Egito, através de instruções encontradas em um livro escrito por ninguém menos que Toth, o deus da sabedoria, e que cada uma de suas cartas representava um dos mistérios do universo. Como na época não existia internet para as pessoas pesquisarem e descobrirem que isso era uma grande besteira, um monte de gente acreditou. Não se sabe se Etteilla estava dentre eles ou se simplesmente viu uma oportunidade, mas, de qualquer forma, ele aproveitou e lançou uma nova edição de seu livro, chamada Como Entreter a Si Mesmo com um Baralho de Tarô, na qual "ensinava" como vislumbrar os segredos do universo contidos nas cartas de tarô. Dessa vez o livro seria um grande sucesso, e ajudaria a pavimentar o caminho para o uso do tarô na cartomancia.
Para ilustrar seu livro, Etteilla usaria figuras das cartas do Tarô de Marselha, um dos mais populares na França da época, e hoje um dos mais conhecidos no mundo. Curiosamente, ele não foi inventado em Marselha (que fica na França), mas sim em alguma cidade da Lombardia, na Itália, sendo que não se sabe exatamente em qual. No início do século XVI, a França invadiu e conquistou a Lombardia (que retornou para a Itália antes do final daquele mesmo século), e lá encontrou um dos tais blocos de madeira usados para prensar baralhos, já entalhado. Gostando dos desenhos, um dos oficiais franceses decidiu levá-lo para Marselha, onde ele foi copiado e se tornou um novo padrão, curiosamente conhecido na França como "Tarô Italiano" (para diferenciar do Tarô Francês, sobre o qual falaremos em breve). De lá, o "Tarô Italiano" se espalhou pela França, sendo que, no final do século XIX, praticamente todas as fabricantes francesas já o produziam. Ao longo dos anos, suas ilustrações foram mudando, principalmente para se modernizar, mas sempre mantiveram as mesmas características, tornando-o facilmente identificável quando comparado a outros tarôs.
Em 1930, a fabricante de baralhos francesa Grimaud o lançaria como uma edição especial, pela primeira vez usando o nome "Tarô de Marselha", com arte imitando a do século XVIII. Devido ao já crescente interesse do público pelo tarô para uso em cartomancia, essa edição logo se tornou um sucesso, e, como os desenhos eram de domínio público, o Tarô de Marselha acabaria sendo lançado por diversas outras fabricantes de baralho, material esotérico e até mesmo editoras de livros ao redor do mundo. Hoje, ele é erroneamente referenciado como "o primeiro tarô", e muitos acreditam que ele foi inventado especificamente para a cartomancia.
Pode não ter sido, mas outro muito famoso dentre os cartomantes foi: o tarô de Rider-Waite (hoje conhecido como Rider-Waite-Smith). Criado pelo "místico" A.E. Waite, ilustrado por Pamela Colman Smith, e publicado pela editora Rider Company (daí seu nome), o Rider-Waite trazia figuras bem mais esotéricas que as originais (inclusive substituindo os bastões por varinhas mágicas e as moedas por pentagramas), além de acompanhar um "manual" que ensinava a ler o futuro nas cartas. Inspirado no Tarô de Marselha, ele seria lançado pela primeira vez em 1910 nos Estados Unidos, país que não tem nenhuma tradição nos jogos de tarô, sendo hoje considerado um dos principais responsáveis pela associação global do tarô com a cartomancia - que teria sido "exportada" pelos norte-americanos para os demais países sem tarôs.
Uma das coisas que de Gébelin escreveu em seu livro, e que muita gente hoje acredita ser verdade, foi que o nome "tarô" vem do egípcio antigo, e que significa "estrada real". Como o tarô nada tem a ver com o Egito Antigo, isso, evidentemente, é apenas uma coincidência. A origem do nome, aliás, é bastante curiosa: no início, o baralho usava o mesmo nome do jogo para o qual era usado, sendo conhecido como carte da trionfi. Porém, conforme os baralhos comuns se popularizavam na Itália, mais e mais gente optava por jogar trionfi com um baralho comum e regras adaptadas. Como a mesma palavra era usada para denominar um jogo, um baralho e um conjunto de cartas dentro desse baralho, no século XVI os jogadores da Sicília decidiram começar a chamar o baralho por outro nome: tarocco - que também é o nome do tarô em italiano até hoje.
Tarocco, acreditem ou não, era o nome de uma variedade de laranja encontrada na Sicília. Esse nome acabaria dando origem a um verbo, taroccare, que hoje já não é mais usado, mas significava "cobrir com uma folha de ouro" - o que fazia com que o que fosse coberto ficasse da mesma cor da laranja tarocco, daí o verbo. O método do taroccare era usado principalmente em molduras de quadros e em móveis da nobreza, mas também tinha uma relação com o baralho: muitos dos baralhos árabes que chegaram à Sicília através dos comerciantes eram decorados com folhas de ouro, principalmente as cartas dos Reis. Esse costume seria imitado em vários "tarôs de luxo" produzidos na Itália no século XV, como o Tarô de Visconti, produzido sob encomenda para a família que governava a Lombardia, e cujos desenhos, belíssimos, seriam de certa forma imitados no Tarô de Marselha. Talvez por usar a técnica do taroccare, esses baralhos ficariam conhecidos como tarocchi, plural de tarocco.
Quando o tarô saiu da Itália e começou a se espalhar pela Europa, essa mudança de nome já havia acontecido, de forma que o nome tarocco (bem como trionfi, que ainda era usado para se referir aos trunfos) foi adaptado para diversos idiomas dos países vizinhos: na Alemanha, ele virou tarock; na Hungria, tarokk; e, na França, tarot, que acabou sendo usado também em outros países que não criaram seus próprios tarôs, como Espanha, Reino Unido e Portugal - nesse último, como se pode perceber, com a grafia sendo aportuguesada para tarô.
Falando em França, aliás, conforme se popularizava por lá o baralho francês - aquele que é o mais conhecido no Brasil, que tem os naipes de Espadas e Paus na cor preta e os de Copas e Ouros na cor vermelha - mais e mais jogadores passavam a ter resistência em jogar com as cartas do tarô, que consideravam complicadas e difíceis de se identificar com facilidade quando estivessem na mão. Para contornar esse problema, alguns fabricantes, no século XIX, decidiram adaptar o tarô para o baralho francês; para isso, eles pegaram um baralho comum, adicionaram um cavaleiro de cada naipe; uma carta sem naipe com a figura de um menestrel, que teria a mesma função do Louco; e 21 trunfos. Para não usar os trunfos "esotéricos" presentes no Tarô de Marselha, os fabricantes optaram por simplesmente decorar as cartas com cenas da vida cotidiana, e colocar grandes números nos cantos, para que ficasse fácil para o jogador identificar quais trunfos tinha em sua mão. Esse novo tipo de tarô logo ficaria conhecido como Tarô Francês, se se tornaria um grande sucesso não só na França, mas também na Alemanha e Hungria.
Como também aconteceu com o baralho, o tarô, seja italiano ou francês, teria diversos padrões regionais - desenhos-padrão para as cartas, adotados por todos os fabricantes de uma mesma região. Infelizmente, como os jogos de tarô nunca se tornaram tão populares quanto os jogos de baralho, a grande maioria deles sumiu - e os que resistem estão quase todos ameaçados de sumir também. A grande maioria dos padrões regionais seguia a mesma estrutura do tarô tradicional, com 56 cartas e 22 trunfos, e quase todos eles usavam os trunfos tradicionais, mas, evidentemente, havia exceções. Uma das mais notáveis era um padrão conhecido como Minchiate, usado para jogar um jogo de mesmo nome. Criado na cidade de Florença no século XVI, o Minchiate, cujo nome significa algo como "passatempo" no dialeto florentino, tinha nada menos que 97 cartas, sendo nada menos que 41 trunfos. Dos 22 tradicionais, 20 estão presentes, sendo as exceções o Papa e a Papisa, talvez removidos para evitar problemas com a Igreja; os 21 trunfos extras são o Grão-Duque, a Esperança, a Prudência, a Fé, a Caridade, os quatro elementos (Fogo, Água, Terra e Ar, nessa ordem) e os doze signos do zodíaco (Libra, Virgem, Escorpião, Áries, Capricórnio, Sagitário, Câncer, Peixes, Aquário, Leão, Touro e Gêmeos, nessa ordem). Em relação à ordem tradicional dos trunfos, o Grão-Duque substitui a Papisa, e os demais 20 extras ficam entre a Torre e a Estrela (com algumas outras mudanças na numeração dos 15 primeiros). É interessante notar que nem o Louco, nem os cinco últimos (a Estrela, a Lua, o Sol, o Mundo e o Julgamento) possuem números em suas cartas, e que nenhum dos trunfos nem nenhuma das figuras têm nomes escritos nas cartas. Outras características curiosas do Minchiate são que os valetes de Ouros e Copas são mulheres, enquanto os de Espadas e Paus são homens; e que os quatro cavaleiros na verdade não são cavaleiros, e sim centauros, tendo a metade superior do corpo de um homem e a inferior do corpo de um animal (Espadas e Paus de cavalos, Ouros de um leão, e Copas de um grifo).
O Minchiate chegou a ter dois padrões regionais distintos, Minchiate Etruria, que tinha desenhos mais elaborados e cores mais sóbrias, e o Minchiate al Leone, de desenhos mais simples e cores mais fortes e vivas. "Etruria" e "Leone" são nomes encontrados, respectivamente, no Trunfo XXX do Etruria (que tem uma espécie de selo onde se lê Carte di Etruria) e no 4 de Ouros do Leone (que tem uma placa que diz Carte Fine al Leone), e aparentemente seriam os nomes dos fabricantes que inventaram cada um desses padrões; curiosamente, apesar do Leone ter os desenhos mais simples - e, portanto, mais fáceis de gravar nos blocos de madeira - o Etruria, por ser mais famoso, é que se tornou o mais copiado pelos demais fabricantes. Ambos os padrões deixariam de ser fabricados no início do século XX, e o Minchiate desapareceria por completo entre as décadas de 1930 e 1940; hoje, ele sobrevive através de exemplares preservados e de edições especiais para colecionadores lançadas de tempos em tempos pelas fabricantes italianas, que imitam a arte do Etruria.
A remoção ou mudança de nome do Papa e da Papisa em padrões regionais para evitar problemas com a Igreja era comum - até mesmo no Raider-Waite eles se chamam, respectivamente, o Hierofante a a Alta-Sacerdotisa, nomes que também vêm sendo adotados em algumas versões modernas do Tarô de Marselha. Uma das substituições mais interessantes ocorreu em outro padrão regional já extinto, o Tarô Belga, que surgiu na parte francófona da Bélgica no século XVIII. Nele, o Papa foi substituído por Baco, o deus romano do vinho e das festas, e o interessante é que essa substituição pode ter sido motivada pela popularidade do baralho alemão no país, já que a ilustração usada na carta de Baco é quase idêntica às encontradas nas cartas do daus de Castanhas de alguns padrões regionais alemães, e que retrata Baco como uma criança sentada em um tonel de vinho. De forma mais curiosa ainda, a Papisa foi substituída por um personagem chamado Capitão Fracasso, originário da Commedia dell'Arte, uma peça de teatro cômica criada na Itália no século XVI, e que no século XVIII já era bastante popular em outros países europeus - mesmo assim, por ser um personagem tão específico, alguns fabricantes decidiriam nomeá-lo como "o Espanhol", devido às suas vestimentas. Outra característica curiosa do Tarô Belga é que a carta do Enforcado está, como pode ser comprovado pela forma como estão escritos seu número e nome, "de cabeça para baixo", ou seja, com a cabeça do homem na parte superior da carta e o pé na inferior, como se ele estivesse não pendurado pelo pé, e sim parado sobre um pé só sobre o tronco. O Tarô Belga também é um daqueles nos quais a carta da Torre se chama "o Raio", sendo que ela sequer tem a figura de uma torre, e sim de um pastor buscando abrigo para si e três ovelhas debaixo de uma árvore atingida por um raio, e, nele, o Louco é numerado como XXII. O Tarô Belga desapareceu por completo no início do século XIX, e hoje só sobrevive através de exemplares preservados e de uma edição especial lançada pela fabricante belga Carta Mundi em 1980 e já esgotada no mercado.
Para finalizar, vale citar que o tarô conta com um gigantesco número de variações enfeitadas. Infelizmente, todas elas foram criadas tendo em vista a cartomancia, e não os jogos de baralho. A esmagadora maioria dessas variações, portanto, foi inspirada ou no Tarô de Marselha ou no Rider-Waite, trazendo os mesmos trunfos, apenas com figuras diferentes; algumas poucas trazem seus próprios trunfos, mas sempre em número de 22. Também existem, mas em número bem menor, as variações enfeitadas do Tarô Francês, normalmente com temas "místicos" como Egito Antigo ou ciganos decorando os trunfos. Nada impede que essas variações sejam usadas para jogar, mas, como o tarô é um jogo cada vez mais de nicho, jogado por cada vez menos pessoas, é mais provável que elas prefiram o padrão regional com o qual aprenderam a jogar e já estão acostumadas.
Em breve, veremos os sete padrões regionais que ainda resistem nos dias de hoje! Até lá!
Série Baralhos |
||
---|---|---|
Tarô |
Nenhum comentário:
Postar um comentário