No fim do ano passado, porém, resolvi assistir na BBC HD aos episódios da série Sherlock, que conta as histórias do mais famoso detetive do mundo como se elas ocorressem na época atual. Gostei muito, e acabei ficando curioso para ler as originais, até para saber o quanto havia sido modificado na transição. Como eu tinha O Cão dos Baskervilles, decidi começar por aí. E, como O Cão dos Baskervilles não é uma história tradicional de Sherlock Holmes, quando a terminei resolvi comprar um volume duplo que trazia Um Estudo em Vermelho e O Signo dos Quatro. Já quase desejo que eu tivesse começado a ler Sherlock Holmes bem antes.
Holmes foi uma criação do médico britânico Sir Arthur Conan Doyle, que não escrevia apenas histórias de detetives, mas também de ficção científica e fantasia, além de romances históricos e poesias. Nascido em 1859 em Edimburgo, Escócia, Doyle teve uma juventude curiosa, tendo estudado em um colégio jesuíta e começado sua carreira médica a bordo de um navio baleeiro da Groenlândia, morando, em seguida, cinco anos na costa da África. Ao retornar para a Grã-Bretanha, após tentar sem sucesso gerenciar um consultório médico com um colega na cidade de Plymouth, Inglaterra, ele abriria um sozinho em Portsmouth, mas não teria maior sorte. Com o consultório vazio na maior parte do dia, enquanto aguardava os pacientes Doyle aproveitava para escrever contos, que enviaria para publicação em várias revistas, igualmente sem sucesso.
Doyle criaria Holmes em 1885, para uma história chamada Um Estudo em Vermelho (A Study in Scarlet, no original), narrada não pelo detetive, mas por um médico, Dr. John Watson, que, nas histórias seguintes, se tornaria parceiro e biógrafo de Holmes. Segundo Doyle, ele se inspiraria em duas pessoas reais para criar o personagem: o Dr. Joseph Bell, com quem ele tinha trabalhado em Edimburgo, e que também costumava tirar longas e precisas deduções de fatos que outras pessoas consideravam sem importância; e o professor de medicina forense Henry Littlejohn, que auxiliava a polícia na resolução de casos difíceis.
Um Estudo em Vermelho acabaria sendo a primeira história de Doyle aceita para publicação, quando a editora Ward Lock decidiu pagar 25 Libras por ela em dezembro de 1886. A história ficaria engavetada durante mais de um ano, porém, só sendo publicada pela primeira vez na revista Beethon's Christmas Annual de dezembro de 1887. A história foi bastante elogiada pelos dois principais jornais da Escócia, o The Scotsman e o Glasgow Herald, e chegou até as mãos do também escritor Robert Louis Stevenson (de A Ilha do Tesouro), que, na época, morava em Samoa. Stevenson, que também conhecia Joseph Bell, escreveu uma carta a Doyle parabenizando-o pela história, e lhe perguntando se Holmes havia sido inspirado em Bell.
A história também seria um sucesso de público, o que levaria a Ward Lock a encomendar uma segunda história do personagem. Doyle escreveria O Signo dos Quatro (The Sign of the Four) em 1888, mas a editora jamais a publicaria. Somente em 1890, quando outra editora, a J.B. Lippincott, tomasse conhecimento da história e a comprasse da Ward Lock é que a história seria finalmente publicada, na edição de fevereiro da revista Lippincott's Magazine. Após esse episódio, Doyle, se sentindo explorado e desprestigiado pela Ward Lock, jamais quis voltar a negociar com a editora. Para sua sorte, contudo, o sucesso das duas histórias de Holmes chamaria a atenção de uma outro editor, George Newnes, que estava lançando uma nova revista dedicada a contos, a The Strand Magazine. Newnes procuraria Doyle visando comprar um conto de Sherelock Holmes para a edição de lançamento da revista, em janeiro de 1891.
Alguns atrasos acabariam fazendo com que o primeiro conto de Holmes publicado na revista, Um Escândalo na Boêmia (A Scandal in Bohemia), só saísse na sétima edição, de julho de 1891. No início, a revista lutaria contra vendas baixas e pouco interesse do público, mas, após a publicação das histórias de Holmes, não só as vendas subiriam assustadoramente como também a revista chamaria a atenção de autores famosos, publicando, ao longo de seus 60 anos de vida, histórias de Graham Greene, Agatha Christie, Rudyard Kipling e Leon Tolstoy, dentre outros.
Grande parte do sucesso das histórias de Sherlock Holmes se dava à química entre os dois protagonistas. Holmes era um homem maduro, na casa dos 40 anos, extremamente racional. Não ocupava sua mente com nada que não fosse estritamente necessário a seu viver - não sabia, por exemplo, que a Terra girava em torno do Sol - por acreditar que o cérebro humano só consegue reter uma quantidade limitada de conhecimento, e que, quanto mais conhecimento inútil temos, mais difícil é ter acesso ao conhecimento útil quando precisamos. De hábitos singulares, muitas vezes interpretados pelos outros como excentricidades, sua principal característica é a de obter deduções lógicas através da pura e simples observação - vendo o estado de uma porta, por exemplo, Holmes consegue deduzir há quanto tempo e quão frequentemente ela foi aberta, se foi forçada, se foi batida e outros detalhes.
Já o Dr. Watson, narrador de todas exceto três histórias de Holmes, é mais passional, frequentemente agindo por impulso e muitas vezes não acreditando que a lógica de Holmes será capaz de solucionar o mistério - embora tenha toda a confiança no amigo e em sua capacidade. Holmes e Watson se tornam parceiros por acaso, quando o jovem médico, após servir ao exército e atuar na Índia, retorna à Inglaterra e precisa de alguém para dividir um apartamento com ele, já que não tem como arcar com o custo total de um aluguel. Apresentados por um amigo em comum, Holmes e Watson alugam um apartamento no hoje famoso 221B da Baker Street, no centro de Londres, o qual passam a usar como base de operações: por sua capacidade de dedução, Holmes costuma trabalhar em conjunto com a polícia, auxiliando o Inspetor Lestrade a solucionar casos misteriosos e complicados. Watson é visto por muitos como um "conduíte" para a genialidade de Holmes, que, sem a visão mais mundana do amigo, não teria tanto sucesso em suas investigações.
A primeira leva de Holmes na Strand teve 12 histórias, publicadas entre julho de 1891 e junho de 1892, uma por mês. Com ilustrações de Sidney Paget, que, como costuma acontecer em casos como esse, se tornaria eternamente associado à imagem do personagem, elas fariam um grande sucesso, e seriam reunidas, em outubro de 1892, em um livro, chamado As Aventuras de Sherlock Holmes (The Adventures of Sherlock Holmes), também publicado por Newnes.
Com o livro também sendo um sucesso, Newnes convenceria Doyle a continuar escrevendo para a revista, algo que Doyle gostava muito de fazer, mas não queria que se tornasse sua única atividade, querendo se dedicar também a outros tipos de narrativa. Enquanto escrevia os contos de Holmes, aliás, Doyle sempre encontraria tempo para escrever outras histórias, como Jane Annie, que escreveu em 1893 em parceria com J.M. Barrie, criador de Peter Pan.
A segunda leva de Holmes na Strand teria mais 12 histórias, publicadas entre dezembro de 1892 e dezembro de 1893. Mais uma vez, elas seriam reunidas em um livro, As Memórias de Sherlock Holmes (The Memoirs of Sherlock Holmes), lançado em julho de 1894. Curiosamente, a primeira edição do livro não incluía a história A Caixa de Papelão (The Adventure of the Cardboard Box), publicada na Strand em janeiro de 1893; diz a lenda que o próprio Doyle teria pedido a Newnes para não incluí-la por conter uma cena de adultério, inadequada para os jovens leitores que pudessem vir a comprar o livro. Edições subsequentes do livro na Grã-Bretanha passariam a incluir a história, mas não as edições norte-americanas, que, até hoje, vêm com apenas 11 contos ao invés de 12.
A última história dessa segunda leva, O Problema Final (The Final Problem), acabaria se tornando uma das mais famosas. Ela introduziria o Professor James Moriarty, criminoso de intelecto comparável ao de Holmes, e que jura destruir o detetive se ele continuar a impedir seus crimes. A repercussão da história foi tamanha que Moriarty, apesar de só aparecer em duas das histórias de Holmes, seria logo alçado ao posto de seu arqui-inimigo, e é hoje um dos personagens mais famosos criados por Doyle.
A repercussão da história, porém, não se deveu só à estreia de Moriarty. Na época, Doyle já estava cansado de escrever histórias de Sherlock Holmes. Por mais que ele gostasse, ter de criar uma nova história para cada edição mensal da Strand fazia com que ele não conseguisse se dedicar a outros projetos, especialmente aos romances históricos, seus favoritos, e os que mais necessitavam de longos períodos de tempo dedicados à pesquisa. Sabendo que Newnes sempre tentaria lhe convencer a escrever mais Holmes, Doyle decidiu tomar uma decisão drástica, e inventou Moriarty, um inimigo invencível, para que Holmes morresse para conseguir derrotá-lo.
O Problema Final, portanto, termina com a morte de Holmes, única forma que o detetive encontrou para impedir seu arqui-inimigo de prosseguir com seus crimes. Muitos tentaram dissuadir Doyle de publicar a história - até mesmo sua mãe - mas ele se mostrou irredutível. Newnes acabaria publicando-a sabendo que as vendas da revista seriam alavancadas, mas não se conformou de perder o personagem que considerava o maior chamariz da publicação. Nem ele, nem o público, que inundou a caixa de correio da revista durante anos, pedindo para que Doyle "ressucitasse" Holmes e escrevesse novas histórias. Durante oito anos, porém, Doyle não daria ouvidos a tais pedidos.
Com o início da Segunda Guerra dos Bôeres, na África do Sul, em 1899, Doyle se voluntariou para servir como oficial médico, vivendo naquele país durante um ano. Nesse período, ele escreveria dois livros, The War in South Africa: Its Cause and Conduct e The Great Boer War, nos quais explicava a Guerra do ponto de vista de um britânico, tentando justificar a participação da Grã-Bretanha e afastar a saraivada de críticas internacionais que o país recebia.
Ao retornar para a Inglaterra, Doyle conheceria um repórter do Daily Express que lhe contaria sobre uma lenda do condado de Devon, segundo a qual, após a morte de um morador local detestado pelos vizinhos, que suspeitavam que ele tinha vendido sua alma ao demônio, uma matilha de cães fantasmagóricos foi vista correndo pelo local, sendo novamente avistada a cada ano, sempre no aniversário da morte do sujeito. Doyle começaria a escrever uma história baseada nessa lenda, e, em certo momento, decidiria que não faria mal nenhum atender à vontade dos leitores e fazer dela uma história de Sherlock Holmes.
A história se chamaria O Cão dos Baskervilles (The Hound of the Baskervilles), e acabaria sendo a mais longa história de Holmes escrita até então, tanto que seria publicada em nove partes, nas edições de agosto de 1901 a abril de 1902 da Strand, sendo relançada em formato de livro em dezembro de 1902. O Cão dos Baskervilles não é uma história típica de Sherlock Holmes, já que, na maior parte do tempo, Watson age sozinho, com Holmes só aparecendo no início e no final; ainda assim, foi o suficiente para aplacar a fome dos fãs, tanto que as nove edições nas quais ela apareceu foram as mais vendidas da história da Strand. Propositalmente, Doyle não se preocupou em dar uma explicação para o retorno de Holmes, simplesmente ambientando a história antes de sua morte.
O sucesso da nova história e mais cartas do público convenceram Doyle a voltar a escrever Sherlock Holmes. O retorno oficial do detetive se daria na edição de outubro de 1903 da Strand, com a história A Casa Vazia (The Adventure of the Empty House), ambientada após os eventos de O Problema Final, na qual Holmes revela a Watson que está vivo e explica que teve de fingir sua morte para que seus inimigos o deixassem em paz. Passados três anos - nem todas as histórias de Holmes eram ambientadas no mesmo ano de sua publicação; O Problema Final, por exemplo, foi publicada em 1893, mas era ambientada em 1891 - ele sentiu que já poderia voltar sem maiores consequências - e retorna em boa hora, bem a tempo de solucionar mais um mistério.
A Casa Vazia inauguraria uma terceira leva de histórias de Holmes, que teria mais 13 histórias, publicadas pela Strand entre outubro de 1903 e dezembro de 1904. Essas histórias, como de costume, seriam reunidas em um livro, lançado em fevereiro de 1905 com o nome de O Retorno de Sherlock Holmes (The Return of Sherlock Holmes).
Doyle faria uma nova pausa após essa terceira leva, retornando apenas em setembro de 1908 com uma história em duas partes, A Aventura da Casa das Glicínias (The Adventure of Wisteria Lodge). Diferentemente do que ocorreu das três vezes anteriores, nessa quarta leva Doyle não enviaria uma história por mês, preferindo se dedicar também a outros projetos enquanto se dedicava a Holmes: entre setembro de 1908 e dezembro de 1913, a Strand só traria seis histórias do detetive (em sete edições, já que a primeira teve duas partes).
Depois dessa quarta leva, Doyle se dedicaria a mais uma história longa, O Vale do Terror (The Valley of Fear), publicada em nove partes entre setembro de 1914 e maio de 1915. Curiosamente, essa história seria lançada na versão livro nos Estados Unidos antes mesmo de as nove partes se encerrarem, em fevereiro de 1915, pela editora George H. Doran. Na Grã-Bretanha, o livro seria lançado em junho de 1915 pela editora John Murray, graças a um acordo entre a Murray e a Doran, que faria com que esse livro se tornasse o primeiro a conter histórias da Strand a não ser publicado por Newnes.
Em 1917, Doyle decidiu encerrar mais uma vez a carreira de Holmes, dessa vez não com a morte, mas com a aposentadoria, em uma história chamada O Último Adeus de Sherlock Holmes (His Last Bow), publicada na Strand de setembro daquele ano. Nessa história - a primeira do detetive narrada em terceira pessoa ao invés de por Watson - aos 60 anos, em 1914, Holmes decide se aposentar e ir criar abelhas em uma fazenda no condado de Sussex. A polícia ainda o procuraria uma última vez, precisando de sua ajuda durante a Primeira Guerra Mundial. Em dezembro de 1917, a Murray reuniria essa histórias às seis da quarta leva e lançaria um livro, também chamado O Último Adeus de Sherlock Holmes. A versão norte-americana traria, além dessas sete histórias, A Caixa de Papelão, que ficou de fora de Memórias de Sherlock Holmes.
Mas esse "último adeus", mais uma vez, não seria o fim das aventuras de Sherlock Holmes. Depois dele, Doyle ainda escreveria mais 12 histórias, 11 ambientadas antes da aposentadoria e uma depois (mas antes de O Último Adeus), sendo mais uma delas narrada em terceira pessoa e outras duas narradas por Holmes, sem contar com a participação de Watson - as únicas duas nas quais o detetive atua sozinho. Essas histórias seriam publicadas de forma esparsa pela Strand entre outubro de 1921 e abril de 1927, e reunidas no livro O Arquivo Secreto de Sherlock Holmes (The Case-Book of Sherlock Holmes), lançado pela Murray em junho de 1927.
Doyle faleceria em 7 de julho de 1930, aos 71 anos, de ataque cardíaco. Se planejava escrever mais histórias de Holmes, não sabemos. O que sabemos é que seu personagem resistiu ao tempo, se tornando um dos mais icônicos, mais adaptados e mais parodiados de todos os tempos - até o Livro dos Recordes o lista como o personagem mais representado da história, com mais de 200 filmes e seriados diferentes tendo feito uso de sua figura; pra vocês terem uma ideia do tamanho da superexposição, o segundo mais representado é o Conde Drácula, que até em desenhos para crianças de três anos dá as caras.
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