Eu adoro RPG. Embora já não jogue há um bom tempo, ainda o considero como a diversão mais estimulante simultaneamente ao cérebro, à criatividade, e às interações sociais. Também adoro o Mundo das Trevas. O primeiro RPG que joguei a sério foi Mage: The Ascension, e, se tivesse de escolher meu RPG preferido de todos os tempos, seria Werewolf: The Apocalypse. Por uma série de razões, porém, eu não gosto de Vampire. Para começar, ao contrário de um monte de gente por aí, eu não me sinto particularmente atraído por vampiros. Não vejo nada de mais neles, não sinto vontade de me tornar uma criatura das trevas, e até acho meio ridículo filmes e livros que mostram vampiros adolescentes apaixonados que bebem sangue artificial para não renegar sua humanidade ou coisa do gênero. Além disso, Vampire é, essencialmente, um jogo de política, e eu nunca entendi como alguém pode se divertir tramando maquinações políticas. Não vou dizer que nunca me diverti jogando Vampire, porque uma das sessões foi antológica para dizer o mínimo, mas, sinceramente, dos que eu joguei, era o RPG da White Wolf que eu menos gostava, e o que eu menos aceitava quando era convidado para jogar. Ainda assim, quando me perguntei quais outros assuntos poderia colocar nessa série, me lembrei de Vampire, principalmente porque eu faço menos posts sobre RPG do que gostaria.
Lançado em 1991, vampire: the Masquerade (conhecido aqui no Brasil como Vampiro: A Máscara) foi não somente o primeiro título do Mundo das Trevas, mas também o primeiro RPG da editora White Wolf. Criado por Mark Rein-Hagen, que se inspirou principalmente nos livros de Anne Rice, o jogo colocava os jogadores não no papel de heróis poderosos, mas de vampiros amaldiçoados, vivendo em um mundo à beira da extinção, tendo de esconder sua condição dos humanos, e sobreviver em meio às maquinações políticas de sua raça. Como o próprio Rein-Hagen definia, era um jogo de "horror pessoal", e não de aventuras heróicas. Por isso, ele privilegiava a interpretação, utilizando um sistema de jogo batizado de Storyteller (o "contador de histórias"), com o qual era muito mais fácil, por exemplo, enganar um oponente do que sair na porrada com ele - aliás, o Storyteller costumava ser criticado justamente porque suas regras de combate eram complicadíssimas, e seu foco na interpretação não evitava que os personagens tivessem de entrar em combate quase que uma vez por sessão de jogo.
Vampire também introduziu a marca registrada de todos os RPGs do Mundo das Trevas: os vampiros eram divididos em sete clãs, cada um com seus poderes e peculiaridades. Para criar os sete clãs, Rein-Hagen se inspirou em vários filmes, livros e lendas sobre vampiros. Assim, por exemplo, tínhamos o clá Nosferatu, inspirado no filme de mesmo nome, cujos integrantes eram deformados, mais parecidos com monstros que seres humanos; os Gangrel eram animalescos, com a capacidade de se transformar em lobos e morcegos, conforme ditavam algumas lendas da Europa Oriental; e os Ventrue eram sofisticados, transitando entre as altas esferas da sociedade, como os vampiros das histórias mais modernas. Um jogador sempre pertencia ao mesmo clã que o vampiro que o "mordeu", ou seja, as características e poderes do clã eram transmitidos por seu sangue - assim como nos livros de Anne Rice, não bastava ser mordido para "virar vampiro", era necessário ter contato com o sangue vampírico após a mordida. Os poderes de cada clã, chamados no jogo de Disciplinas, também refletiam os poderes vampíricos citados em várias fontes, como a velocidade ou força sobre-humana, a capacidade de se transformar em fumaça ou em animais, a dominação mental, entre outras. As fraquezas dos vampiros também eram as tradicionais: viravam pó ao serem expostos à luz do Sol, ficavam paralizados com uma estaca de madeira fincada no coração, e sofriam dano ao vislumbrar símbolos religiosos empunhados por pessoas de grande fé, por exemplo. Não poder cruzar água corrente, ter medo de alho e ter de ser convidado para entrar na casa de alguém ficaram de fora, sendo classificadas como "crendices".
Segundo a mitologia do jogo, todos os vampiros descendem de Caim, amaldiçoado após matar seu irmão Abel. Ao transmitir seu sangue, Caim transmitiu seus poderes e fraquezas, mas tambpem o diluiu. Em termos de jogo, isso significa que, cada vez que um vampiro transforma um mortal em vampiro, ele está essencialmente criando um vampiro mais fraco que ele mesmo. Nas regras, essa "força do sangue" é determinada por uma característica chamada Geração. Os personagens jogadores normalmente pertencem à 13a geração, e, para muitos dos vampiros mais velhos, o surgimento de vampiros de sangue tão fraco é um dos sinais do fim do mundo, que, inevitavelmente, se aproxima.
Mas os jogadores tinham mais com o que se preocupar sem ser com o fim do mundo. Ao se tornarem vampiros, muitas vezes eles tinham de deixar suas vidas humanas para trás, representando riscos para sua família e amigos se não o fizessem. Além de lidar com o preconceito ao ingressar na sociedade vampírica, os jogadores ainda tinham de cuidar para não perder sua Humanidade - não somente a qualidade que os fazia humanos, mas também uma característica representada por pontos em sua ficha, que diminuía cada vez que o jogador tomava atitudes moralmente condenáveis. Um vampiro sem Humanidade era pouco mais que um animal, sendo caçado por seus próprios pares por representar um risco à sua sociedade. Em Vampire, vampiros não podiam levar uma vida glamourosa vivendo na alta sociedade, se apaixonando por adolescentes e se alimentando de sangue sintético, eles tinham de andar na linha, se escondendo e se controlando o tempo todo - o simples fato de se "alimentar" poderia gerar perda de Humanidade, já que o vampiro podia se inebriar com o sangue e sair em uma matança desenfreada em busca de mais.
E, além disso tudo, os vampiros de Vampire não eram exatamente o topo da cadeia alimentar. Outros seres sobrenaturais, como lobisomens, estavam sempre à espreita, esperando um descuido para atacá-los e exterminá-los. Humanos que tomassem ciência de que existiam vampiros podiam se tornar caçadores, determinados a erradicar essa ameaça do mundo. E ainda haviam os outros vampiros, que podiam envolvê-los em seus jogos de poder, usando-os como peões para alcançar seus objetivos, ou decidindo matá-los porque discordavam deles sob algum aspecto. Isso era especialmente verdade no caso dos vampiros do Sabbat, um secto introduzido nos suplementos lançados depois do livro básico, de vampiros que não faziam questão nenhuma de preservar sua humanidade - de fato, em suas fichas, eles nem tinham Humanidade, mas uma espécie de código de honra qualquer, que, em termos de jogo, funcionava da mesma forma, mas, em termos de interpretação, fazia com que eles fossem menos moralmente limitados do que os vampiros do livro básico.
Ao longo do tempo, em parte graças à popularidade do Sabbat, Vampire foi ganhando novos clãs e disciplinas, que ampliavam as possibilidades dos jogadores. Para não virar bagunça, em um determinado ponto a White Wolf decidiu fazer uma separação entre clãs e "linhagens", que essencialmente eram a mesma coisa que um clã, um grupo de vampiros com poderes e características únicas, mas com a diferença de que essas características surgiram por alguma explicação estranha, ao invés de terem sido transmitidas desde o início dos tempos - nessa época, ficou acertado que cada um dos treze clãs principais teria um Antediluviano, um vampiro "mordido" antes do Dilúvio, e que transmitiu a todos os seus descendentes as características do clã em questão. Segundo a mitologia do jogo, os Antediluvianos estavam em torpor, uma espécie de sono profundo causado por ausência de sangue, e, quando acordassem, trariam com eles o fim do mundo.
Sim, o fim do mundo era uma característica essencial dos jogos da White Wolf. E o mais incrível foi que ele chegou. Em 2004, ao decidir encerrar o Mundo das Trevas e começar tudo de novo, a editora lançou uma série de livros que permitia aos jogadores jogar durante o próprio apocalipse, com Antediluvianos, vampiros de 16a geração, e tudo o mais ao que tinham direito. Depois disso, o jogo foi tirado de catálogo, e a produção de suplementos interrompida.
Antes de encontrar o armagedom, porém, vampire foi um jogo extremamente bem sucedido. Sua primeira edição ganhou o Origins Award, o Oscar do RPG, como Melhor Sistema de Regras. A ela se seguiram outras duas, a Segunda Edição, de 1992, e a Edição Revisada, de 1998, cada uma atualizando o jogo com o que havia sido lançado nos suplementos até então, e avançando um pouco mais a história em direção ao fim do mundo. Vampire foi considerado por muitos como o responsável pela chacoalhada no mercado que levou ao boom do RPG nos Estados Unidos na década de 1990, e durante muitos anos foi o RPG mais jogado do Brasil. E, assim como foi influenciado pelas obras de vampiros anteriores a ele, acabou influenciando algumas das posteriores, com alguns de seus elementos podendo ser identificados pelos fãs em filmes e livros lançados recentemente - a Sony, inclusive, chegou a ser processada por plágio pela White Wolf, que viu em seu Underworld (traduzido para Anjos da Noite) semelhanças demais com Vampire para que fosse uma simples "inspiração".
Dessa forma, nada mais natural que Vampire fosse o carro-chefe da White Wolf, e que, sempre que a editora decidisse experimentar alguma coisa, começasse por ele. Foi assim que surgiu Vampire: The Dark Ages (Vampiro: A Idade das Trevas no Brasil), um novo livro básico lançado em 1996, que colocava a ação não às portas do fim do mundo, mas em plena Idade Média, a ambientação mais popular entre os jogos de RPG. Mas esqueça a Idade Média fantástica e heróica de cavaleiros e dragões, essa era a Idade Média mesmo, de inquisição e peste negra, onde as pessoas não escovavam os dentes e morriam aos 30 anos de idade. Originalmente concebido para ser o primeiro de uma série onde cada RPG da White Wolf seria ambientado em uma época diferente (Werewolf no velho oeste, Mage na renascença e Wraith na Primeira Guerra Mundial), Dark Ages fez tanto sucesso que acabou se tornando uma série em separado, com títulos também para Werewolf, Mage e Changeling. Para substituí-lo a White Wolf preparou outro título "histórico", Victorian Age: Vampire, lançado em 2001 e ambientado na Inglaterra da Era Vitoriana.
Algo semelhante aconteceu e 1998, quando a White Wolf decidiu criar ambientações orientais para seus jogos. O primeiro lançado, evidentemente, foi Kindred of the East, que tratava dos vampiros da Ásia, chamados no jogo de kuei-jin. Inspirados em várias lendas de vampiros do Japão, China e Índia, os kuei-jin tinham muito pouco a ver com os vampiros ocidentais, sendo almas de pessoas que morreram com pendências e conseguiram retornar a seus corpos, tendo de roubar o chi de pessoas ainda vivas para poder permanecer em nosso mundo. Apesar da forma mais comum de se roubar chi seja bebendo o sangue das vítimas, kuei-jin não podem criar outros kuei-jin, e eles possuem preocupações filosóficas mais complexas que manter sua humanidade e os jogos de política de sua sociedade. Por tudo isso, os kuei-jin acabaram sendo considerados não como vampiros, mas como criaturas sobrenaturais totalmente diferentes, e Kindred of the East, de um suplemento, passou a ser o primeiro de uma série totalmente nova, centrada neles.
Além da ambientação tradicional, da medieval, da vitoriana e da oriental, os vampiros ganharam uma ambientação africana em 2003, com Kindred of the Ebony Kingdom - em tempo, "kindred", que significa algo como "aparentado", mas acabou traduzido como "membro", é como a maioria dos vampiros do jogo se refere aos próprios vampiros, embora alguns, principalmente os do Sabbat, prefiram o termo "cainitas". Conhecidos como laibon, os vampiros da África também eram diferentes dos vampiros "normais" do cenário, possuindo não um valor de Humanidade, mas uma medida de sua relação com o mundo dos mortais, chamada Aye, e uma de sua relação com o mundo espiritual, chamada Orun. O desafio para os laibon era manter o equilíbrio entre ambos, já que um laibon com um alto nível de Aye se tornava parecido com um mortal, enquanto um com alto nível de Orun se tornava degenerado e demoníaco - embora um com alto nível em ambos se tonasse uma criatura transcedental. Apesar dessa diferença, os laibon possuíam a mesma origem, fraquezas e poderes dos demais vampiros do ocidente - sendo, inclusive, divididos em clãs, chamados "legados", cada um correspondente a um dos clãs tradicionais de Vampire - embora, por terem vivido em isolamento durante um longo tempo, não acreditavam mais serem descendentes de Caim, e atribuíam sua própria existência a uma grande variedade de lendas e mitos africanos. Kindred of the Ebony Kingdom foi programado para ser o primeiro de uma série de suplementos ambientados na África, mas, devido à decisão da White Wolf de trazer o apocalipse em 2004, acabou sendo o único - os metamorfos africanos, para Werewolf, acabaram sendo citados em alguns suplementos, mas jamais ganharam um livro próprio.
Vampire também deu origem ao único card game bem sucedido da White Wolf, Vampire: The Eternal Struggle. Lançado em 1994 pela Wizards of the Coast com o nome de Jyhad - que teve de ser mudado por causa da alusão ao islamismo - V:tES foi inventado por ninguém menos que Richard Garfield, o criador de Magic: The Gathering. Garfield, inclusive, aproveitou para introduzir no jogo mecânicas que ele achava que tornariam Magic mais atraente, mas que não eram mais possíveis de se introduzir sem alterar a essência do jogo. Em 1996, a Wizards passou a produção do jogo para a White Wolf, que continua lançando novas expansões - mesmo depois do apocalipse - o que faz com que V:tES seja um dos card games mais antigos ainda em produção: até hoje, já foram lançadas 21 expansões além do set básico, e mais uma já está programada para o mês que vem.
V:tES também possui uma peculiaridade que o diferencia de praticamente todos os demais card games: ele foi originalmente concebido para ser jogado em grupo, normalmente de quatro ou cinco jogadores, e não no esquema um contra um tradicional dos card games. Em V:tES, cada jogador interpreta um vampiro antigo e de grande poder, intensamente envolvido nos jogos políticos da sociedade vampírica. Seu intuito é enfraquecer e derrotar seus oponentes, representados pelos outros jogadores, e para isso ele se utilizará de peões, que são os vampiros representados nas cartas do jogo - que, teoricamente, nem sabem que estão sendo manipulados. Em teoria, cada jogador deve se concentrar em derrotar o jogador sentado à sua esquerda, mas as interações sociais são muito fortes em V:tES, não sendo incomum que dois jogadores mais fracos decidam unir forças para derrotar um mais forte, que um jogador finja estar agindo em conjunto com outro quando na verdade está esperando o momento propício para derrotá-lo, ou que os jogadores blefem, para que os demais não saibam o que eles realmente podem fazer com as cartas que têm na mão e na mesa. De certa forma, uma partida de V:tES se parece um pouco com uma partida de pôquer, com a inteigência e a negociação tendo um papel tão importante quanto um baralho forte.
Depois do apocalipse, Vampire: The Masquerade foi "substituído" por um outro jogo, Vampire: The Requiem, lançado pela White Wolf em 2004 e ambientado em uma nova versão do Mundo das Trevas, ainda sinistro e sombrio, mas sem a iminência do fim do mundo. Como eu nunca joguei, não posso falar muito sobre ele, mas, como saudosista, às vezes tenho a impressão de que não deve ser muito bom.
0 Comentários:
Postar um comentário