segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Escrito por em 20.9.10 com 1 comentário

O Horror em Red Hook

E hoje teremos mais um post dedicado aos contos de Lovecraft. Se você não viu o anterior, minha técnica para falar dos contos é falar dos seis livros lançados no Brasil pela Editora Iluminuras, que reúnem a maioria deles. Hoje eu vou falar sobre os nove contos presentes em O Horror em Red Hook, que não traz uma seleção tão boa quanto a de A Cor que Caiu do Céu, mas tem duas das mais famosas histórias de Lovecraft, o que é um bom motivo para que ele venha em segundo. Sem mais delongas, vamos lá!

A Gravura na Casa (The Picture in the House) - Assim como o anterior, esse livro abre com um dos primeiros contos de Lovecraft, escrito enquanto ele ainda era amador e membro da NAPA, a associação nacional de jornalistas amadores. Nesta história, entretanto, Lovecraft já começaria a estabelecer seu estilo, ambientando-a na Nova Inglaterra e citando pela primeira vez lugares como a cidade de Arkham e o vale do Miskatonic, onde fica localizada a Miskatonic University, que seria citada pela primeira vez no conto que veremos a seguir. O prefácio da história também estabelece um dos pilares da literatura lovecraftiana: o de que horrores inimagináveis estão escondidos entre nós, mais próximos do que pensamos, ocultos por nossa própria ignorância.

A história é narrada em primeira pessoa pelo tradicional narrador sem nome, um homem que viaja de bicicleta pelo interior da Nova Inglaterra quando é surpreendido por uma tempestade. Em busca de abrigo, ele recorre a uma estranha casa no meio da mata, abandonada há tempos como tantas outras da região. Ao entrar, porém, ele percebe que a casa está estranhamente bem cuidada, como se ainda fosse habitada. Explorando o andar de baixo, o narrador encontra um raríssimo livro, que detalha as práticas da população do Congo, trazendo, inclusive, uma perturbadora gravura de um canibal prestes a consumir partes de um corpo humano. Enquanto observa o livro, o narrador é surpreendido pelo morador da casa, um homem de cabelos e barba brancos, mas estranhamente sem nenhuma ruga, falando um dialeto da região que todos julgavam estar extinto. O homem faz amizade com ele e começa a discursar sobre o livro, seu maior tesouro. Aos poucos, o narrador se dá conta de que acabou foi entrando em uma tremenda furada.

Embora o próprio Lovecraft jamais tenha dito especificamente quais foram suas inspirações, críticos literários encontram paralelos entre sua história e diversas outras obras: o próprio ato de ambientar a história nas florestas da Nova Inglaterra parece ecoar a obra de Nathaniel Hawthorne, na qual Lovecraft se mostrava muito interessado na época; o dialeto usado pelo morador da casa ecoa um encontrado na obra Biglow Papers, de James Russell Lowell; e até o final deus ex machina, extremamente incomum na obra de Lovecraft, parece ter sido inspirado no de A Queda da Casa Usher, de Edgar Allan Poe. O livro que o narrador encontra na casa existe realmente, se chama Regnum Congo, e foi escrito por Antonio Pigafetta. Lovecraft, porém, jamais viu o livro pessoalmente, tendo tomado conhecimento dele através de outra obra, Man's Place in Nature and Other Anthropological Essays, de Thomas Henry Huxley; por causa disso, apesar de o livro ser real, a descrição de seu conteúdo é inventada.

A Gravura na Casa foi escrita de uma vez em um único dia, 12 de dezembro de 1920, e publicada na edição de julho de 1919 de The National Amateur, o jornal oficial da NAPA. Não, eu não errei a data, nem Lovecraft voltou no tempo. Graças a sucessivos atrasos por motivos de ordem financeira, a edição de julho de 1919 do jornal só foi impressa em julho de 1921, dando tempo de o conto de Lovecraft ser acrescentado de última hora.

Herbert West - Reanimador (Herbert West - Reanimator) - Quando eu era criança, Re-Animator era o filme de terror mais pavoroso que existia. Tão pavoroso que nós só poderíamos assisti-lo escondidos, na casa de um amigo e quando passasse na televisão - nenhum pai em sã consciência permitiria que seu filho o assistisse, e nenhuma locadora que se prezasse o alugaria para uma criança. Muitos amigos meus conseguiram assisti-lo usando desse artifício: quando sabiam que o filme seria exibido na TV Bandeirantes - canal habitual de filmes de horror, eróticos e de artes marciais nas madrugadas - combinavam de "ir dormir" na casa de um amigo que tivesse televisão no quarto, e, enquanto os pais dormiam tranquilos, assistiam Re-Animator, compatilhando as cenas macabras do filme conosco no dia seguinte na escola. Alguns até assistiram mais de uma vez. E sempre contavam as cenas macabras no dia seguinte como se fossem novidade.

Eu, por outro lado, só fui assistir Re-Animator depois de velho. Eu nunca tive o hábito de passar a noite na casa de amigos, e também não tinha muitos amigos com TV no quarto - curiosamente, eu mesmo tinha uma, mas jamais arrisquei ver o filme em minha própria casa, dentre outros motivos porque dividia o quarto com a minha irmã. Só depois de adolescente, quando eu mesmo podia ficar acordado de madrugada vendo os filmes que bem entendesse, é que finalmente pude conferir se Re-Animator era assim tão pavoroso mesmo. Curiosamente, pouquíssimo tempo depois do dia em que assisti Re-Animator pela primeira vez - pouquíssimo mesmo, coisa de dias - tive a oportunidade de ler Herbert West - Reanimador. Confesso que não esperava descobrir que o filme mais pavoroso da minha infância não advinha de um roteiro original, mas de uma adaptação de um conto de um escritor que até então eu imaginava só escrever sobre monstros cósmicos e horrores ancestrais. Até hoje eu acho extremamente curioso que Lovecraft tenha tido alguma coisa a ver com Re-Animator - seria como, sei lá, descobrir que Hellraiser foi baseado em um conto de Stephen King - mas acho ainda mais curioso que isso não seja divulgado: nos Estados Unidos, a embalagem do DVD anuncia o filme como H. P. Lovecraft's Re-Animator, enquanto aqui no Brasil parece que as pessoas pensam "baseado em um conto de quem? Ah, ninguém sabe quem é mesmo, vamos omitir essa informação para poupar tinta".

Herbert West, o personagem que dá nome ao conto, é um estudante de medicina obcecado por vencer a morte. Em sua opinião, o corpo humano funciona através de uma série de processos químicos, sendo coisas como "alma" e "consciência" conceitos abstratos sem nenhum papel no que costumamos chamar de "vida". Com esse pensamento como guia, West cria uma espécie de soro, com elementos químicos capazes de devolver à vida uma pessoa morta. Segundo ele, com aplicações regulares desse soro, seria possível viver indefinidamente, acabando de uma vez por todas com aquilo que chamamos de "morte", que nada mais é que a interrupção dos processos químicos do corpo. O único problema com o soro de West é que ele não funciona em criaturas vivas, ou seja, não há como prolongar a vida de uma pessoa sem que ela antes tenha morrido.

O conto é narrado por um narrador sem nome, colega de West na faculdade de medicina da Miskatonic University, que se aproxima de West maravilhado com suas teorias, e acaba se tornando seu assistente. O narrador descreve o trabalho dos dois desde a universidade, quando, após testar seu soro em diferentes criaturas, como ratos, porquinhos-da-índia e macacos, West chega à conclusão de que espécies diferentes requerem soros diferentes. Com a recusa da universidade em fornecer cadáveres para seus experimentos, West e o narrador decidem improvisar um laboratório próximo a um cemitério, onde conseguiriam corpos para testar o soro. Após mais alguns experimentos, porém, West chega a mais uma conclusão: o defunto deve estar o mais fresco possível, pois até a mais leve deterioração das células cerebrais pode evitar que a pessoa volte à vida com a mesma racionalidade que possuía antes de morrer.

Após um teste malsucedido em um corpo do cemitério, West tem uma nova chance durante uma epidemia de tifo, que vitima vários moradores de sua cidade. Infelizmente, os resultado de seus experimentos não são muito melhores. Depois de formado, obcecado com sua teoria, ele decide se mudar para a periferia da cidade de Bolton, com o único propósito de poder continuar seus experimentos. Com o início da Primeira Guerra Mundial, West se alista, não por altruísmo ou belicismo, mas porque terá diversos cadáveres para testar seu soro. Mais que isso, conforme vai conseguindo níveis variados de sucesso, West passa a desenvolver metas cada vez mais bizarras, como testar seu soro em membros decepados ou corpos decapitados, para saber como diferentes partes do sistema nervoso funcionam quando animados sem um cérebro para controlá-las. O narrador acompanha West durante toda a história, primeiro por admiração, depois por medo do que poderia acontecer a ele se decidisse abandonar seu amigo. No fim, West acaba aprendendo da pior maneira que não deveria brincar de Deus. O narrador, após presenciar os eventos macabros da história, termina seus dias profundamente perturbado, tido como louco já que ninguém acredita nas histórias que conta.

Herbert West - Reanimador foi a primeira história que Lovecraft escreveu como profissional: a convite de seu amigo George Julius Houtein, que estava lançando uma nova revista no mercado, a Home Brew (algo como "feito em casa"), dedicada a contos de autores amadores, Lovecraft escreveria a história em seis partes, recebendo cinco dólares por cada parte. Lovecraft demorou uma eternidade para concluir a história, escrevendo-a de outubro de 1921 a junho de 1922. Originalmente, ela foi publicada nas edições de fevereiro a julho de 1922 da Home Brew; sua primeira publicação "inteira", ou seja, com as seis partes e uma vez só, só ocorreria após a morte de Lovecraft, na edição de março de 1942 da Weird Tales - que, curiosamente, anunciou a história como "inédita".

Lovecraft não gostou de escrever Herbert West, e, a amigos, confessou que só o estava fazendo porque precisava do dinheiro. Seus dois principais motivos de insatisfação foram as exigências de Houtein de que cada parte começasse com um resumo do que já havia ocorrido até então e terminasse com um "gancho" para a parte seguinte, procedimentos que Lovecraft achava chatos e desnecessários. A amigos ele também teria confessado que escreveu a história como uma paródia de Frankenstein, de Mary Shelley, inclusive imitando o estilo da autora em certos trechos, e que teria feito a história propositalmente violenta, macabra e cheia de clichês. Herbert West também não é exatamente um querido dos críticos, com muitos inclusive considerando-a a mais fraca de todas as histórias escritas por Lovecraft.

Ainda assim, por causa do filme, lançado em 1985, Herbert West acabou se tornando uma das mais famosas histórias de Lovecraft. Como de costume, o filme não é lá muito fiel ao conto, se baseando apenas nas duas primeiras partes da história. Seu sucesso rendeu duas continuações, A Noiva do Re-Animator, de 1991, baseada nas duas últimas partes da história; e Além do Re-Animator, de 2003, que já não tem nada a ver com a história de Lovecraft.

Herbert West - Reanimador tem, ainda, um mérito que poucos parecem se dar conta: nela, Lovecraft, de certa forma, inventou os zumbis. Tudo bem que histórias de mortos-vivos existem desde a Idade Média, mas as características dos cadáveres reanimados por West - lentidão de movimentos, ausência de raciocínio lógico, grunhidos ao invés de fala, comportamento violento e desejo de comer carne humana - seriam usadas, algumas décadas mais tarde, por um sujeito chamado George A. Romero em seus filmes de terror. E imitados por quase todo mundo que resolveu colocar um zumbi em uma criação artística desde então.

O Sabujo (The Hound) - Mesmo para um escritor voltado para o macabro, essa história talvez seja um tanto macabra demais. Para começar, ela é um bilhete de suicídio, escrito por um homem que tem um passatempo peculiar: profanar sepulturas, roubando pertences e pedaços de cadáveres, que guarda no porão de sua casa na Inglaterra, em uma espécie de museu mórbido. E o pior: ele não faz isso sozinho, mas em companhia de um amigo, ao qual se refere apenas como St. John.

Nosso adorável narrador e seu amigo St. John, um dia, obtêm informação sobre um cemitério, localizando no pátio de uma igreja holandesa, no qual estaria enterrado um lendário ladrão de túmulos, que, há vários séculos, durante um de seus roubos, teria encontrado um artefato de imenso poder. Encantados com a possibilidade de violar o sono eterno de um colega, os amigos decidem viajar até a Holanda. Ao cavar o túmulo, eles encontram um caixão finamente adornado, dentro do qual um esqueleto incrivelmente bem conservado para a idade repousa com uma espécie de medalhão no pescoço. Decidir adicionar o medalhão à sua coleção será o último erro que eles cometerão em suas vidas, pois, desde então, coisas estranhas começarão a acontecer à dupla, sempre prenunciadas pelo latido de um enorme sabujo, que eles jamais conseguem ver ou identificar a direção.

A inspiração de Lovecraft para escrever essa história veio de uma visita que ele fez em companhia de um amigo, Rheinhart St. John Kleiner, a uma igreja do Brooklyn, Nova Iorque, em setembro de 1922. Lovecraft escreveu a história logo após voltar para Providence, dando o nome de seu amigo a um de seus personagens, e localizando a igreja na Holanda por ser a igreja que visitaram no Brooklyn parte da Igreja Reformada Holandesa, denominação protestante que existiu naquele país de 1570 a 2004, quando se fundiu com outras três igrejas holandesas para formar a Igreja Protestante na Holanda. Também é plausível que o conto seja uma homenagem a À Rebours, um dos livros preferidos de Lovecraft, escrito por Joris-Karl Huysmans, cujo protagonista sofre de um tédio mortal que o leva a buscar prazer em atividades condenáveis pela sociedade; e a Edgar Allan Poe, autor preferido de Lovecraft, já que este usa várias espressões usualmente encontradas nos contos daquele ao longo de O Sabujo.

O Sabujo estava na pasta com cinco histórias que Lovecraft encaminhou à Weird Tales da primeira vez em que pleiteou um lugar para seus contos na revista. A história seria uma das selecionadas, sendo publicada na edição de fevereiro de 1924, mas depois Lovecraft se arrependeria, declarando que O Sabujo era "um monte de lixo". Alguns críticos parecem concordar com ele, enquanto outros elogiam o tom barroco e quase de paródia do conto.

Vale registrar também que O Sabujo foi a primeira história de Lovecraft a citar o nome do Necronomicon, talvez o livro fictício mais famoso do mundo.

O Horror em Red Hook (The Horror at Red Hook) - Em 1924, Lovecraft se casou com Sonia Haft Greene e se mudou para Nova Iorque, onde ela tinha uma loja de chapéus. Dessa decisão, ele se arrependeria amargamente: primeiro porque detestou a cidade; segundo porque, pouco depois do casamento, a loja faliria e Sonia teria sérios problemas de saúde, que fariam com que Lovecraft tivesse de desistir de um bom emprego em Chicago; e terceiro porque o casamento não daria certo, o que fez com que, quando em 1925 Sonia conseguisse um emprego em Cleveland, Lovecraft optasse por não ir com ela, alugando um apartamento de solteiro em um bairro conhecido como Red Hook.

Essa seria outra decisão da qual Lovecraft se arrependeria amargamente: Red Hook era um bairro de imigrantes, contando com russos, noruegueses, orientais, árabes e muitos negros dentre seus moradores. Lovecraft, tendo crescido praticamente em reclusão em uma pequena cidade tradicional do interior da Nova Inglaterra, não se sentia à vontade em meio a imigrantes, chegando a ser xenofóbico em algumas ações e comentários. Segundo seus amigos, quando estava em locais com imigrantes em grande número, Lovecraft parecia se enfurecer, quase ficando fora de si. Muitos críticos, inclusive, vêem as declarações de Lovecraft nessa época como racistas - em uma carta ao também escritor Clark Ashton Smith, por exemplo, ele declara que O Horror em Red Hook faz uso das "gangues de jovens vagabundos e hordas de estrangeiros de aparência maligna que vemos todos os dias em Nova Iorque".

Evidentemente, essa xenofobia se refletiria nas histórias que Lovecraft escrevesse nessa época, em especial em O Horror em Red Hook, conto escolhido sabe-se lá por quê para batizar esse livro (se eu fosse o responsável, preferiria tê-lo batizado como O Chamado de Cthulhu). Escrito em meados de 1925, foi publicado na edição de janeiro de 1927 da Weird Tales. O próprio Lovecraft parece não ter gostado muito do resultado final, declarando à própria Weird Tales que a história era "um tanto longa e enrolada, e eu não acho que seja muito boa". Muitos críticos concordaram com ele, com "terrivelmente ruim" sendo um dos melhores termos usados para descrevê-la.

O Horror em Red Hook é narrado em terceira pessoa - algo incomum nos contos de Lovecraft - e seu protagonista é o detetive Thomas F. Malone, policial descendente de irlandeses que, após presenciar alguma coisa durante uma ação policial no bairro de Red Hook, enlouqueceu, e teve de ser transferido para uma cidade menor. O conto já começa com Malone louco, e, a partir de então, reconstrói os acontecimentos que levaram à terrível revelação que o enlouqueceu. O principal responsável pelos acontecimentos parece ser Robert Suydam, um descendente de holandeses que vive recluso, alegadamente estudando o folclore dos diversos imigrantes de Red Hook, mas que a polícia suspeita ser o chefe de uma quadrilha por trás do contrabando de imigrantes ilegais e do sequestro de crianças da região. A verdade, bem ao estilo de Lovecraft, é que Suydam lidera um culto profano, e as crianças são usadas para sacrifícios. Com qual objetivo, não ficamos sabendo.

Além da narrativa em terceira pessoa, O Horror em Red Hook é incomum ao se utilizar de mitos e superstições da vida real para a parte mística da história, ao invés da mitologia lovecraftiana própria, como seria o esperado. Lovecraft se utilizou da Encyclopaedia Britannica como principal fonte de consulta, especialmente os verbetes sobre "magia" e "demonologia", e teve no livro O Estranho do Curdistão, de E. Hoffmann Price, sua principal influência literária. Como justificativa, ele disse apenas, na já citada carta a Smith que "a ideia de que a magia negra existe em segredo hoje, e que antigos rituais demoníacos ainda são praticados na obscuridade, é uma que eu já usei e com certeza usarei novamente". Enfim, o conto pode não ser lá essas coisas, mas é interessante por essas peculiaridades.

Ar Frio (Cool Air) - Escrita em março de 1926 e publicada na revista Tales of Magic and Mystery de março de 1928, Ar Frio foi mais uma das histórias que Lovecraft escreveu durante o tempo que morou em Nova Iorque, junto com O Horror em Red Hook e Ele. Sua inspiração teria vindo quando ele percebeu o contraste entre seu próprio apartamento, cheio de lembranças da Nova Inglaterra, e os demais da vizinhança de Red Hook. Lovecraft teria usado vários dados autobiográficos no conto, como sua própria aversão a correntes de ar frio, ambientando-o em uma pensão que existia na vida real e na qual um de seus amigos novaiorquinos já havia morado, e até mesmo dando ao protagonista um ataque cardíaco leve de sintomas semelhantes a um experimentado por outro de seus amigos novaiorquinos. Alguns críticos indicam que a influência literária para o conto seria a obra A Verdade sobre o Caso do Sr. Valdemar, de Edgar Allan Poe - nada coincidentemente, Lovecraft teria acabado de escrever o capítulo dedicado a Poe de O Horror Sobrenatural em Literatura quando começou a escrever Ar Frio. O próprio Lovecraft, porém, declararia que a maior influência sobre seu conto seria a história Os Três Impostores, de Arthur Machen.

Ar Frio acompanha um narrador mais uma vez sem nome, que vai morar em Nova Iorque por causa de um emprego, mas não gosta da cidade. Com pouco dinheiro, ele se muda de pensão para pensão, até se instalar em uma que não o desagradava tanto quanto as demais. Um dia, começa a pingar amônia do teto, e ele descobre que o quarto acima do seu é ocupado por um médico, Dr. Muñoz, um imigrante espanhol que usa seu quarto para diversos experimentos científicos, o que exige que ele esteja sempre frio, o que é obtido através de um sistema de refrigeração baseado em amônia.

O narrador não liga muito para seu vizinho, até que um dia passa por um ataque cardíaco. Se lembrando de que Muñoz é médico, ele sobe até o quarto do doutor, que o salva com uma habilidosa combinação de drogas. A partir de então, ambos se tornam amigos, e o narrador passa a frequentar o quarto de Muñoz, auxiliá-lo com seus experimentos e se entreter com suas histórias fantásticas, sempre estranhando a temperatura do quarto.

Uma noite, o sistema de refrigeração dá defeito, e não pode ser consertado até a manhã seguinte, quando um novo pistão deverá ser comprado. O desespero do doutor com o aumento da temperatura é o indicativo de que, mais uma vez, um segredo terrível será revelado.

Ar Frio é considerada a melhor das histórias novaiorquinas de Lovecraft, e uma das melhores no geral. Curiosamente, Farnsworth Wright, editor da Weird Tales, a rejeitou, o que deixou Lovecraft perplexo, já que ele acreditava ser justamente o tipo de história que a revista gostava de publicar. A amigos, Wright teria confessado ter achado o final da história tão grotesco que temeu que a revista pudesse ser alvo de algum tipo de censura.



O Chamado de Cthulhu (The Call of Cthulhu) - O mais famoso conto de Lovecraft já ganhou um post só pra ele, e, portanto, não será discutido aqui novamente.

O Modelo de Pickman (Pickman's Model) - Lovecraft usa uma técnica narrativa bastante interessante nessa história: ela é um monólogo, recitado por um homem conhecido simplesmente como Thurber, para seu amigo Eliot. Em algumas passagens, Thurber reproduz as falas do personagem-título Pickman, que novamente são apresentadas na forma de monólogo, recitado por Pickman para Thurber. Ambos os monólogos utilizam linguagem coloquial, casual e emotiva, o que é incomum em se tratando de Lovecraft.

Richard Upton Pickman, descendente de uma mulher enforcada como bruxa em Salem, é um renomado pintor bostoniano, cujos quadros, sempre com temática de horror, são tão realísticos e tão perturbadores que acabam fazendo com que ele seja expulso da universidade que frequenta e relegado ao oblívio pelos demais pintores e críticos de arte da cidade. Ele continua pintando, porém, e, acaba fazendo amizade com Thurber, que o procura por estar escrevendo uma monografia sobre arte excêntrica. Conforme a amizade entre ambos se desenvolve, e a admiração de Thurber pelo talento de Pickman aumenta, o pintor passa a mostrar a ele obras cada vez mais perturbadoras, até que, um dia, o convida para ir a seu estúdio na periferia da cidade, em um bairro conhecido como North End. Se embrenhando por becos e ruelas, Thurber e Pickman chegam a um antigo casarão, onde estão expostas obras cada vez mais sinistras pintadas por Pickman, sempre retratando criaturas de feições caninas aterrorizando humanos em cenas do cotidiano. Ao chegar no porão, onde Pickman pinta suas telas, Thurber vê a mais terrível de todas, e, após um incidente com ratos, decide voltar para casa. Pouco tempo depois, Pickman desaparece sem deixar vestígios, e Thurber chama Eliot para uma conversa, onde conta sobre essa visita e lhe revela um segredo terrível.

North End é um bairro real de Boston, e todas as ruas citadas no conto realmente existem por lá, razão pela qual o conto é propositalmente vago ao dar a localização exata do estúdio de Pickman. Lovecraft teria se inspirado a escrever a história após visitar North End na companhia de seu amigo Donald Wandrei. Outra fonte de inspiração teria sido seu próprio livro O Horror Sobrenatural em Literatura, que Lovecraft estava escrevendo na mesma época em que escreveu O Modelo de Pickman - a descrição de Thurber das qualidades que faziam de Pickman um mestre das pinturas de horror parece ter sido tirada diretamente do livro, se parecendo, inclusive, com uma crítica que Lovecraft fez da obra de Edgar Allan Poe.

O Modelo de Pickman foi escrito em setembro de 1926 e publicada mais de um ano depois, na edição de outubro de 1927 da Weird Tales. É uma história muito elogiada pelos críticos por seu estilo narrativo e tensão crescente, mas, curiosamente, seu final é motivo de alguma controvérsia, com alguns considerando-o brilhante, outros considerando-o fraco.

A Coisa na Soleira da Porta (The Thing on the Doorstep) - Escrita em agosto de 1933 e publicada na edição de janeiro de 1937 da Weird Tales, A Coisa na Soleira da Porta foi a última história de Lovecraft publicada enquanto ele era vivo. Pouco após a publicação, sua saúde começaria a piorar, e, dois meses depois, ele estaria morto. Isso por si só foi o suficiente para que a história conseguisse uma certa fama, embora seja quase ponto pacífico entre os críticos e estudiosos que ela não seja uma boa história, figurando dentre as piores de suas últimas criações.

A Coisa na Soleira da Porta é a história que traz mais referências a outras histórias de Lovecraft: além das referências de sempre, a locais como Arkham e a Miskatonic University, a livros como o Necronomicon e a entidades como Shub-Niggurath e os shoggoths, os nomes dos dois protagonistas masculinos, Edward Pickman Derby e Daniel Upton, parecem ter sido reciclados do nome do personagem central de O Modelo de Pickman, e a protaginista feminina, Asenath Waite, nasceu em Innsmouth, cenário de A Sombra sobre Innsmouth. Falando nisso, Asenath é considerada por muitos como a única protagonista feminina em toda a obra de Lovecraft - embora os que contestem também só consigam citar uma única outra, Keziah Mason de Os Sonhos na Casa Assombrada, e ainda se pode argumentar que ela nem é tão "protagonista" assim.

A Coisa na Soleira da Porta é narrada por Daniel Upton, arquiteto que reside em Boston, e começa a história confessando que matou seu melhor amigo, Edward Derby, um poeta bem mais jovem que ele, muito inteligente e muito tímido, o qual Upton tinha como uma espécie de pupilo. A partir de então, Upton passa a recontar os fatos que o levaram a cometer tal crime, começando por como conheceu e se tornou amigo de Derby, como Derby conheceu e se casou com a estranha Asenath Waite - filha de mãe desconhecida com Ephraim Waite, que morreu insano, conhecido estudante de ocultismo da misteriosa cidade de Innsmouth - e como então sua vida começou a mudar. Para todos, Derby se tornou mais confiante, agindo de forma mais segura em público e saindo com frequência para longas viagens de carro - antes do casamento ele detestava dirigir. Para Upton, Derby apresentava repentinas mudanças de personalidade, e parecia sufocado pela esposa. Mesmo assim, quando Derby lhe conta uma história fantástica, Upton não acredita, e teme pela sanidade do amigo. Um bizarro acontecimento, entretanto, fará com que ele mude de opinião, e decida cometer o crime que abre a história.

Edward Derby é um personagem estranhamente multibiográfico: ao dizer que ele era uma criança prodígio e, aos dezoito anos, publicou seu primeiro livro de poesia, Lovecraft homenageia o amigo Clark Ashton Smith, que publicou seu primeiro livro aos dezenove anos; ao citar que "só com muito esforço se podiam notar suas tentativas de cultivar um bigode", Lovecraft retrata seu pupilo Frank Belknap Long, que era frequentemente zoado por outros escritores do grupo justamente pela mesma razão; citando a correspondência de Derby com o poeta Justin Geoffrey, Lovecraft referencia a história A Pedra Negra, de seu grande amigo Robert E. Howard; e todos parecem concordar que a descrição da infância de Derby é uma descrição da infância do próprio Lovecraft. Além disso, é interessante notar que os atos de Derby põem a história em movimento de uma forma incomum para um conto de Lovecraft, onde é mais normal que forças ocultas ou alienígenas façam o que querem enquanto os humanos, impotentes, são levados pela correnteza. Ephraim Waite também foi baseado em um personagem real, o ocultista Arthur Edward Waite, famoso na época como criador do Tarô de Rider-Waite.

O Assombro das Trevas (The Haunter of the Dark) - Olha, eu não sei se o tradutor foi o mesmo, mas, se foi, ele merece um prêmio: primeiro, A Cor que Caiu do Céu, agora, O Assombro das Trevas! Falem sério, esses títulos são ou não são melhores que os originais em inglês? Na verdade, esse nome é tão legal que eu acabei até de mudar de opinião: se eu fosse o responsável, o livro inteiro se chamaria O Assombro das Trevas, e não O Horror em Red Hook.



O Assombro das Trevas é parte de um trilogia, mas, curiosamente, não de uma escrita por Lovecraft. Ele é a continuação do conto The Shambler from the Stars, escrito por Robert Bloch, que, depois, escreveu The Shadow from the Steeple para segui-lo, fechando, assim, a trilogia. Eu só descobri isso agora, e aparentemente os contos de Bloch não são de domínio público, então eu não tive a oportunidade de lê-los antes de escrever esse post, e vou ficar devendo qualquer opinião pessoal sobre eles.

A motivação para Lovecraft escrever uma sequência para a história de seu colega também é bastante curiosa: The Shambler from the Stars tem um personagem inspirado em Lovecraft, que Bloch mata no decorrer do conto. Lovecraft, então, escreveu O Assombro das Trevas como resposta, matando o personagem inspirado em Bloch. Quem disse que a vingança nunca traz nada de bom?

O Assombro das Trevas acompanha outro narrador sem nome, que reconstrói a história do escritor Robert Harrison Blake através das anotações deixadas em seu diário. Blake, um escritor de horror ao estilo lovecraftiano, também protagonista de The Shambler from the Stars, e fortemente inspirado em Robert Bloch, decide se mudar para Providence, e fica intrigado com uma igreja de pedra negra que vê no alto de uma colina através de sua janela. Um dia, vencido pela curiosidade, ele decide ir até a igreja, mas, por alguma razão, os moradores do vilarejo no alto da colina, descendentes de italianos, têm grande pavor dela, se recusando a dar-lhe as direções e recomendando fortemente que não se aproxime de lá. Como todo personagem de Lovecraft, Blake faz justamente o contrário, e, ao encontrar a igreja, a invade para explorá-la.

Dentro de uma das torres da igreja, Blake encontra um estranho artefato conhecido como Trapezoedro Brilhante, uma pedra cuja forma parece não seguir as regras conhecidas da geometria. Lá ele também encontra o esqueleto de um repórter, e, através de suas anotações, descobre que a igreja era sede de um culto maligno, capaz de evocar uma criatura das trevas olhando dentro do Trapezoedro. Evidentemente, Blake olhou dentro do Trapezoedro antes de descobrir isso, e, consequentemente, passa a ser assombrado pela ideia da criatura o perseguindo. Mas Blake, aparentemente, estará salvo ao sair da igreja: a criatura não consegue atravessar a luz, e, portanto, não conseguirá segui-lo até sua casa, pois teria de passar pelas luzes da cidade. A menos que, por exemplo, em uma noite escura, uma tempestade causasse um blecaute. Mas quais são as chances disso acontecer, não é mesmo?

O Assombro das Trevas foi escrito em novembro de 1935, mas publicado somente um ano depois, na edição de dezembro de 1936 da Weird Tales. É uma história bastante conhecida e elogiada, e traz referências a diversas outras obras de Lovecraft - na biblioteca da igreja, por exemplo, Blake encontra uma cópia do Necronomicon, e o Trapezoedro é descrito como tendo sido criado em Yuggoth, planeta citado em Um Sussurro nas Trevas, tendo estado em certo momento em posse das criaturas crinóides da Antártica, o que é uma referência a Nas Montanhas da Loucura, e tendo ficado guardado em um templo construído para ele pelo faraó Nephren-Ka, cujas catacumbas são mencionadas em O Intruso. Além de a suas próprias obras, Lovecraft, assim como em A Sombra Fora do Tempo, também faz referências às obras de seu amigo Robert E. Howard, colocando um exemplar do Unaussprechlichen Kulten ao lado do Necronomicon na biblioteca da igreja, e mencionando que o Trapezoedro certa vez esteve na posse dos homens-serpente de Valusia, personagens das histórias do bárbaro Kull, também criação de Howard.

Série Lovecraft

O Horror em Red Hook

Um comentário:

  1. Muito bom. É engraçado mesmo como alguns contos tem nomes mais assustadores em português!

    ResponderExcluir