quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Escrito por em 9.12.09 com 1 comentário

Wraith: The Oblivion

Em setembro, quando eu fiz o Mês das Coisas que eu Não Gosto Tanto Assim, escrevi um post sobre o RPG Vampire: The Masquerade, que até acabou rendendo um comentário interessante devido a uma frase que soou um tanto estranha. Apesar disso, ele me deixou com vontade de escrever mais um, pelos motivos que agora passo a expor.

Como eu disse naquele post, Vampire faz parte de um cenário conhecido em português como Mundo das Trevas. Mais que isso, ele inaugurou este cenário. Talvez vendo que fazer um RPG sobre vampiros tinha dado certo, ou talvez já tendo planejado isso desde o início, a editora White Wolf, que publicou Vampire, lançou outros quatro títulos, um por ano, todos tendo criaturas sobrenaturais como tema. Depois de um certo hiato eles lançaram mais alguns, mas, para mim, que joguei os "originais" na época em que foram lançados, estes cinco formavam o verdadeiro núcleo do Mundo das Trevas. Títulos como Hunter: The Reckoning e Mummy: The Resurrection, lançados depois do hiato, por mais interessantes que fossem, jamais conseguiram entrar na minha cabeça como "principais", no máximo eu os considerava "acessórios".

Pois bem, dos cinco títulos do Mundo das Trevas original, eu já falei de quatro: Mage: The Ascension, Werewolf: The Apocalypse, Changeling: The Dreaming, e o já citado Vampire: The Masquerade. Como eu disse semana passada, com o final do ano se aproximando, eu costumo começar a pensar nos temas sobre os quais eu gostaria de falar antes de um novo ano chegar. E, ao pensar, cheguei à conclusão de que seria interessante completar o quinteto. Hoje, portanto, é dia de falar sobre Wraith: The Oblivion.

Um dos motivos pelos quais eu nunca escrevi sobre Wraith é que ele não é exatamente um dos meus RPGs preferidos - embora ele também não esteja na lista dos RPGs que eu não goste. Na verdade, eu só joguei uma única vez, em uma sessão que nem chegou ao final, e só tenho um único livro, o livro básico da primeira edição. Wraith possui, porém, uma ambientação interessante - lembra um pouco as histórias de Clive Barker - e faz algumas modificações curiosas nas regras do storyteller, o sistema de jogo usado pelo Mundo das Trevas. Como tanto a ambientação quanto as regras me agradam bastante, às vezes acho que eu só não gosto mais dele porque não o conheço mais.

um Barqueiro"Wraith" é uma palavra de origem escocesa que costuma ser traduzida como "aparição", mas que originalmente significava "fantasma". Em Wraith, portanto, os jogadores serão fantasmas, almas desencarnadas de pessoas que morreram recentemente. Mas, ao invés de ficarem vagando por aí arrastando correntes e assombrando casarões, os fantasmas de Wraith vivem em sua própria sociedade, com seus próprios interesses e propósitos, embora ainda sejam, de várias formas, ligados ao mundo mortal.

No cenário de Wraith, apenas uma minúscula parcela dos que morrem alcança a Transcendência, indo para o "céu" e se tornando seres de luz. Outra pequena parcela é devorada pelo Oblívio, desaparecendo completamente da realidade para não mais voltar. A esmagadora maioria acaba em um local conhecido como Shadowlands, uma espécie de dimensão paralela à nossa. As Shadowlands são uma espécie de espelho do mundo mortal, o que significa que o que existe aqui existe lá também, embora nem sempre com a mesma aparência - já que os habitantes das Shadowlands, como nós, estão sempre modificando o local onde vivem. Além das Shadowlands, há uma tempestade gigantesca, dentro da qual conceitos como tempo e distância como os conhecemos não se aplicam. Conhecida como Tempest, esta tempestade abriga reinos e impérios habitados exclusivamente por fantasmas, que em nada se parecem com o nosso mundo, bem como as Praias Distantes (Far Shores), locais que seriam equivalentes aos céus e infernos de diferentes mitologias e religiões.

O livro básico de Wraith, lançado pela White Wolf em 1994, coloca os jogadores, recém-falecidos, no Império de Stygia, fundado por ninguém menos que o lendário Caronte, e que equivale às Shadowlands do mundo ocidental. O Império é governado com mão de ferro pela Hierarquia, um grupo autoritário que busca manter seu poder através dos séculos, evitando que os habitantes do Império transcendam ou sejam devorados pelo Oblívio - nas palavras do Império, aliás, a Transcendência ou não existe ou é tão perigosa quanto o Oblívio, e ambos devem ser evitados a qualquer custo. Nem todos os habitantes do Império se submetem a esse governo autoritário, porém: alguns corajosos decidem se afiliar aos Renegados, que buscam derrubar a Hierarquia e transformar o Império em um Estado Anárquico, ou aos Hereges, que buscam abertamente a Transcendência. Outros habitantes do Império incluem os Barqueiros (Ferrymen), entidades misteriosas que atuam como guias através da Tempestade, e os Espectros (Spectres), pobres fantasmas que foram corrompidos pelo Oblívio.

O motivo pelo qual os personagens jogadores - bem como quase todos os demais habitantes do Império - não conseguem atingir a transcendência é simples: para usar um clichê do cinema, eles possuem assuntos inacabados. Alguma coisa, quando eles morreram, ficou incompleta, e será impossível que eles encontrem o merecido descanso eterno enquanto este pormenor não for resolvido. Em termos de jogo, isso é representado por duas características, as Paixões (Passions) e os Grilhões (Fetters). Paixões são os eventos que impediram que o pobre defunto caminhasse em direção à luz, como por exemplo "impedir que meu sócio corrupto se case com a minha esposa", enquanto Grilhões são os objetos que o lembram daquele evento, como uma aliança de casamento, ou a caderneta onde o corrupto anotava seu caixa 2. Um mesmo personagem pode ter quantas Paixões e quantos Grilhões ele quiser, sendo eles ranqueados em ordem de importância, mas, quanto mais importantes ou em maior número eles forem, mais ancorado às Shadowlands ele estará, impedido de ascender para uma nova existência. Alguns personagens nem se lembram mais por que eles possuem esses Grilhões, mas se lembram que eles devem ser importantes de alguma forma, e continuam impedidos de transcender. Um personagem que resolva todas as suas paixões, ou destrua todos os seus grilhões, vê a luz, e pode finalmente descansar - embora este seja um evento raríssimo, é também um objetivo válido para qualquer jogador de Wraith.

Mas a Hierarquia e seus laços com o mundo mortal não são as únicas coisas com as quais um personagem de Wraith deve se preocupar: há também, e principalmente, o Oblívio, uma força destrutiva que tudo consome, e, quando devora um personagem, o apaga da existência para sempre - ou o transforma em um Espectro, o que é ainda pior. Originários de uma região da Tempestade conhecida como Labirinto, os Espectros são os agentes do Oblívio, fantasmas que foram maculados por ele mas não morreram, se transformando em agentes de sua vontade, capazes de espalhar seu poder destrutivo. Alguns Espectros um dia foram fantasmas comuns, que em determinado momento de suas existências entraram em contato com o Oblívio, mas alguns já se tornaram Espectros no momento de suas mortes, em especial aqueles que morreram de fome, genocídio ou outras atrocidades. A maioria dos Espectros acabam eles mesmos sendo consumidos pelo Oblívio e apagados da existência após algum tempo, mas alguns conseguem transcender para algo pior, os Malfeans. Líderes dos Espectros e mestres do Labirinto, os Malfeans se dividem em duas castas: aqueles que um dia foram vivos, e após sua morte foram corrompidos até este estágio, e aqueles que sempre foram Malfeans, desde o início do mundo, e, segundo as lendas, cavaram o Labirinto com seus próprios dentes na aurora da criação.

Um Espectro é um inimigo terrível, mas ainda assim não é a principal preocupação dos jogadores em relação ao Oblívio. Isso porque há uma razão para que cada personagem jogador seja especialmente suscetível à corrupção do Oblívio: ele já traz, desde sua morte, uma parcela desta corrupção dentro de si. Conhecida como Sombra (Shadow), esta parcela é praticamente uma segunda personalidade, que pode até dominar as ações e pensamentos do personagem durante algum tempo, em um episódio conhecido como Catarse. Somente com muita força de vontade um personagem consegue reassumir o controle e retornar de uma Catarse, embora nunca retorne idêntico a quando foi. Um personagen que não consiga escapar de uma Catarse acaba dominado pela sua Sombra, e se transforma em um Espectro.

As Sombras eram uma das coisas mais originais de Wraith, mas também uma das mais complicadas, e, segundo muitos, um dos motivos pelo qual o jogo não fez muito sucesso. Afinal, era preciso que cada jogador interpretasse não um, mas dois personagens totalmente opostos. Uma interessante regra alternativa dizia que, ao invés disso, cada jogador, além de seu personagem, podia ser responsável pela Sombra de outro jogador do grupo, o que podia dar o mesmo trabalho, mas devia ser mais divertido.

Em matéria de objetivos, nem todos os personagens de Wraith buscavam resolver seus assuntos inacabados ou se contentava em escapar do Oblívio pelo resto de sua existência; alguns se conformavam com sua nova situação, e buscavam obter prestígio, ou até mesmo poder, dentro da sociedade do Império - o que também não era nada fácil, já que, assim como os vampiros, os fantasmas mais antigos nutriam um certo preconceito pelos mais recentes, que sempre trazem novidades que acabarão por destruir a forma como eles "vivem" há séculos. Ainda assim, campanhas inteiras podiam ser jogadas dentro das próprias Shadowlands - ou até mesmo da Tempestade - o que transformava Wraith em um dos cenários com maiores possibilidades de exploração e objetivos diferentes para os jogadores.

Seguindo o esquema padrão da White Wolf, assim como os vampiros de Vampire são divididos em clãs, os lobisomens de Werewolf em tribos, e os magos de Mage em tradições, os fantasmas de Wraith são divididos em guildas. As guildas, porém, são bem menos rígidas, já que qualquer fantasma pode escolher a qual guilda irá pertencer, diferentemente do que acontece coms os vampiros, que sempre pertencem ao mesmo clã de quem os criou, ou os lobisomens, que já nascem pertencendo a uma tribo. Instituições ancestrais das Shadowlands, proibidas pelo Império, mas que continuam existindo mesmo assim, as guildas têm como principal função ensinar aos fantasmas o uso dos Arcanoi (singular Arcanos), os poderes que eles passam a ter depois da morte. Cada guilda é especializada em um Arcanos, e como o uso constante dos Arcanoi faz com que o fantasma em questão adquira algumas características bizarras, os membros de uma mesma guilda acabam ficando todos com características comuns, assim como os vampiros de um mesmo clã ou os magos de uma mesma tradição. A maioria dos Arcanoi é inspirada em poderes de fantasmas vistos em livros ou filmes, como a capacidade de movimentar objetos do mundo físico, de manipular os sonhos dos mortais, ou de possuir o corpo de alguns mortais durante um breve período de tempo. Outros são relacionados diretamente com a sociedade das Shadowlands, como a capacidade de influenciar as Sombras de outros fantasmas, ou de manipular o uso do Pathos, a energia emocional que serve de combustível não só para os próprios Arcanoi, mas também para a existência de cada personagem.

uma SombraComo todos os personagens de Wraith já estão mortos mesmo, eles não podem morrer, por isso suas fichas não trazem a famosa escala de dano sofrido dos outros livros do Mundo das Trevas, e os combates são travados de uma forma um tanto diferente. Basicamente, cada personagem possui uma característica chamada Corpus, que representa sua integridade física; ao sofrer dano físico ou emocional, o personagem perde Corpus, que pode ser restaurado gastando pontos de Pathos. Se o Corpus ou Pathos do personagem chegarem a zero, ele passará por um episódio conhecido como Angústia (Harrowing), no qual ele deverá confrontar sua própria Sombra, ganhando uma nova chance de continuar existindo se sobreviver. Desnecessário dizer, personagens que percam o confronto contra a Sombra na Angústia são devorados pelo Oblívio, deixando de existir para sempre, assim como personagens que cheguem a zero Corpus através do uso de alguns Arcanoi, ataques de alguns Espectros ou dano causado por alguns materiais especiais, como o temido Aço de Stygia. Um episódio de Angústia também pode ser provocado enquanto o personagem ainda tem Corpus e Pathos, por sua Sombra. Estes episódios não visam destruir diretamente o personagem, mas sim sua conexão com suas Paixões e Grilhões, enfraquecendo sua ligação com o mundo físico. Um personagem que perca totalmente sua conexão com suas Paixões e Grilhões também é devorado pelo Oblívio, diferentemente daqueles que resolvem sua situação em relação a eles, atingindo a Transcedência.

Finalmente, alguns fantasmas são tão ligados ao mundo físico que não se conformam de terem morrido, e acabam conseguindo uma espécie de nova chance, voltando a habitar seus antigos corpos e usando sua energia para animá-los. Conhecidos como Risen (os "postos de pé", ou algo do gênero), eles ainda mantêm todas as características de um personagem normal, como Paixões, Grilhões, Arcanoi, Pathos, Corpus e até mesmo uma Sombra, mas são capazes de viver entre os mortais como uma espécie de zumbi, um corpo morto que anda e fala. Os Risen foram descritos em um suplemento separado, e muitos nem consideram que eles façam parte do mesmo cenário de Wraith, já que pouco têm a ver com a sociedade das Shadowlands.

Dos cinco RPGs originais do Mundo das Trevas, Wraith foi o mais mal sucedido. As explicações para isso variam, desde excessiva seriedade do material até excessiva morbidez do clima, passando pelo simples fato de que jogadores de RPG não se sentem à vontade no papel de gente morta. Seja como for, Wraith só teve duas edições (a segunda é de 1996), e foi descontinuado bem antes do Juízo Final que acometeu o Mundo das Trevas em 2004, jamais ganhando uma Edição Revisada como aconteceu com seus colegas mais famosos. Wraith também ainda não ganhou uma nova versão para o novo Mundo das Trevas, mas muitos de seus elementos têm sido usados em outros dos títulos desta nova linha, especialmente o mais recente, Geist: The Sin Eaters.

Antes de ser definitivamente encerrado, Wraith ainda ganhou uma ambientação de época - Wraith: The Great War, ambientado durante a Primeira Guerra Mundial - e um cenário oriental, o Dark Kingdom of Jade. É interessante notar que as Shadowlands equivalem apenas ao mundo dos mortos da civilização ocidental, com diversos outros mundos, cada um com características próprias, e livre da influência do Império, sendo descritos nos livros e em suplementos, como o próprio Dark Kingdom of Jade, equivalente ao mundo dos mortos oriental; o Dark Kingdom of Ivory, equivalente ao mundo dos mortos africano; Khem, o mundo dos mortos do Egito, povoado até por algumas múmias; e a cidade de Swar, o mundo dos mortos da Índia. É realmente uma pena que nem todos estes cenários possam ter sido descritos em detalhes, o que teria feito de Wraith, sem dúvida alguma, o RPG de ambientação mais rica da White Wolf.

Um comentário:

  1. Excelente texto, deu vontade de experimentar. Talvez a maturidade necessária para jogar Wraith tenha pesado contra.

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