domingo, 24 de julho de 2022

Escrito por em 24.7.22 com 0 comentários

Ursula K. Le Guin

Hoje é dia de Ursula K. Le Guin no átomo! Porque já faz um tempo que ela está dentre as minhas escritoras preferidas e, incapaz de escolher só um livro para fazer um post, decidi fazer um sobre toda a carreira dela.


Ursula K. Le Guin nasceu Ursula Kroeber, em Berkeley, Califórnia, Estados Unidos, em 21 de outubro de 1929. Seu pai, Alfred Louis Kroeber, era antropólogo, lecionava na Universidade de Berkeley, foi diretor do Museu de Antropologia da Califórnia, e estudava os povos originários norte-americanos; sua mãe, Theodora, era formada em psicologia, mas, após os 60 anos, decidiria se tornar escritora, sendo seu livro de maior sucesso Ishi in Two Worlds, de 1961, a biografia de Ishi, indígena norte-americano considerado o último representante da tribo Yahi, dizimada na época da colonização, e que se tornou amigo de Alfred enquanto ele estudava a história da tribo. Ursula era a mais nova de quatro irmãos, sendo os três mais velhos todos homens; a família dividia seu tempo entre uma casa em Berkeley na qual moravam durante o ano letivo e uma em Napa Valley onde passavam o verão e os feriados, e onde recebiam vários acadêmicos de prestígio conhecidos de Albert, dentre eles J. Robert Oppenheimer, um dos inventores da bomba atômica.

Desde criança, ela se interessaria por ler fantasia e ficção científica, especialmente as revistas Thrilling Wonder Stories e Astounding Science Fiction, além das obras de Lord Dunsany e Lewis Padgett; ela também seria fã de mitologia, especialmente a nórdica, e das lendas indígenas que seu pai lhe contava. Aos nove anos, ela escreveria seu primeiro conto de ficção científica, e, dois anos depois, aos 11, enviaria um para análise e publicação na Astounding Science Fiction; o conto, porém, seria rejeitado, e, com vergonha, ela decidiria não tentar novamente.

Ela se formaria pela Berkeley High School (mesma escola onde estudou Philip K. Dick, na mesma época, embora os dois não tenham se conhecido lá) e seria aceita na tradicional Universidade de Harvard, mais especificamente para o Radcliffe College, que oferecia cursos a mulheres, já que, na época, Harvard era uma universidade exclusivamente masculina. Ela ficaria em dúvida entre cursar biologia ou literatura, mas, por ser fraca em matemática, acabaria optando pela segunda, se formando Bacharel em Artes com Foco em Literatura Italiana e Francesa da Renascença em 1951. No ano seguinte, ela ingressaria em uma pós-graduação na Universidade de Columbia, obtendo um Mestrado em Língua Francesa. Suas boas notas fariam com que ela recebesse um convite para fazer doutorado na França, onde ficaria por dois anos, 1953 e 1954.

Durante a viagem, que era feita de navio, ela conheceria e se apaixonaria pelo historiador francês Charles Le Guin, com quem se casaria em Paris em dezembro de 1953, quando ela passaria a usar também seu sobrenome. O casal retornaria aos Estados Unidos em 1954, para que ele concluísse seu doutorado na Universidade de Emory, na Geórgia, mais tarde fazendo um PhD na Universidade de Idaho. Enquanto isso, ela dava aulas de francês, trabalhava como secretária, e daria à luz duas filhas, Elizabeth, em 1957, e Caroline, em 1959. Também em 1959, Charles seria contratado como professor pela Universidade Estadual de Portland, no Oregon, e a família se mudaria para lá, onde nasceria seu terceiro filho, Theodore, em 1964. Le Guin e o marido viveriam em Portland pelo resto de suas vidas, exceto por dois períodos curtos nos quais ela foi estudar em Londres, em 1968 e 1975.

No final da década de 1940, Le Guin criaria um país fictício chamado Orsinia, onde ambientaria cinco romances escritos entre 1951 e 1961. Localizado na Europa Central, Orsinia, cujo nome foi inspirado no da própria autora (tanto Ursula quanto Orsinia têm raízes na palavra "urso"), foi uma monarquia independente até o século XIX, quando passaria a integrar Império Austro-Húngaro, se tornando uma república independente após a Primeira Guerra Mundial e um país comunista após a Segunda, passando ao capitalismo com suas primeiras eleições livres, em 1989 - todas as histórias ambientadas em Orsinia ocorrem entre 1150 e 1989, então não se sabe o destino do país depois disso. Le Guin ofereceria os romances a várias editoras, sendo sempre recusada com a desculpa de que eles eram "inacessíveis", ou seja, os leitores não conseguiriam compreender a história.

Após os Le Guin se mudarem para Portland, Charles a convenceria a voltar a enviar contos para avaliação e publicação, ao invés de tentar publicar os romances. A estratégia daria certo e, no mesmo ano, ela, já aos 30 anos de idade, conseguiria finalmente publicar seu primeiro poema, Folk Song from the Montayna Province, com apenas duas estrofes de quatro versos cada, no periódico Prairie Poet; dois anos depois, em 1961, ela publicaria seu primeiro conto, An die Musik, na revista Western Humanities Review. Tanto o poema quanto o conto seriam ambientados em Orsinia, e Le Guin não seria paga por nenhum dos dois, o que aceitou porque imaginava que, tendo finalmente trabalhos publicados, mais revistas e editoras aceitariam suas histórias.

Diferentemente do que Le Guin imaginava, ter trabalhos publicados não facilitou em nada sua vida; mas, após ouvir de várias editoras que o mercado estava em busca de histórias de ficção científica, ela decidiria deixar Orsinia um pouco de lado e investir nesse gênero. Seu primeiro conto de ficção científica publicado, e o primeiro pelo qual ela seria paga, inaugurando sua carreira de escritora profissional, seria April in Paris, na revista Fantastic Science Fiction, em 1962. O conto faria sucesso, e, nos três anos seguintes, ela conseguiria publicar outros sete; dentre eles, estariam The Word of Unbinding, primeira história ambientada no mundo de fantasia de Terramar, publicado em 1964 na Fantastic Science Fiction, e The Dowry of Angyar (também conhecido como Semley's Necklace), primeira história do que hoje é conhecido como Ciclo Hainiano, também conhecido como Ciclo de Hain ou Ciclo de Hainish (Hainish Cycle, em inglês), também publicado em 1964, mas na Amazing Stories. Em entrevistas posteriores, Le Guin diria que seu principal problema com as histórias de ficção científica da época era a de que todas elas tinham como tema "homem branco conquista o universo", e que ela tentava escrever histórias diferentes disso.

Desde a publicação de Folk Song from the Montayna Province, Le Guin usaria seu nome completo com o do meio abreviado, ou seja, Ursula K. Le Guin; a única ocasião na qual uma história sua não seria publicada sob esse nome seria em 1968, quando a revista Playboy se interessaria por publicar seu conto Nine Lives, mas, acreditando que seus leitores não gostariam de saber que foi escrito por uma mulher, pediriam para que ele fosse atribuído a U.K. Leguin. Na época ela não veria importância nisso e permitiria, mas, em entrevistas posteriores, declararia que foi a única vez em que sofreria qualquer forma de preconceito por ser uma autora mulher; em republicações posteriores, bem como na publicação de novas histórias suas, a Playboy usaria seu nome completo, mas jamais chegaria a se retratar.

Em 1966, Le Guin finalmente conseguiria publicar seu primeiro romance, Rocannon's World, também parte do Ciclo Hainiano. As histórias do Ciclo são ambientadas em um futuro distante, no qual a Terra faz parte de uma confederação de planetas chamada Ekumen, estabelecida pelos hainianos, os habitantes do planeta Hain, que, séculos atrás, conduziram um experimento de colonização em diversos planetas da galáxia, mas, depois, cessaram suas viagens espaciais, somente as retomando agora, quando decidiriam entrar em contato com seus descendentes e propor que todos se unam - segundo essa história, portanto, os seres humanos não teriam surgido na Terra, e sim em Hain, sendo nós os descendentes dos colonos hainianos que estiveram aqui na aurora dos tempos. Devido às diferentes características dos planetas, cada colônia desenvolveria características físicas e psicológicas diferentes, mas ainda sendo essencialmente todos humanos. As histórias do Ciclo Hainiano normalmente envolvem exploração espacial e diplomacia, e costumam contar com enviados de Hain travando contato com os habitantes de algum outro planeta para convencê-los a se unir ao Ekumen ou avaliar se estão prontos para conhecer outros povos através de viagens espaciais. Curiosamente, a própria Ursula detestava o nome "Ciclo Hainiano", criado pela Ace Books, argumentando que, embora todas as histórias compartilhassem a mesma ambientação, não eram uma saga, não tinham uma ordem cronológica de acontecimentos, e não formavam uma história coerente - algo que ela faria de propósito, para não ter que se preocupar com o que já teria ocorrido nas demais histórias quando fosse escrever uma nova.

Seja como for, Rocannon's World seria o primeiro romance do Ciclo Hainiano, publicado em 1966 pela Ace Books como parte de sua série Ace Double, no qual cada edição trazia duas histórias, cada uma com sua própria capa (naquele esquema de que você vira o livro de cabeça pra baixo para ler a história publicada do outro lado); o romance que compartilhava o livro com Rocannon's World era The Kar-Chee Reign, segundo de Avram Davidson. Rocannon's World é parte ficção científica e parte fantasia, e acompanha o etnólogo Gaverel Rocannon, nascido na Terra, que estuda um planeta chamado Fomalhaut, no qual convivem cinco raças inteligentes: os Gdemiar, que se parecem com anões, os Fiia, que se parecem com elfos, os Kiemhrir, que se parecem com ratos antropomórficos, os assustadores Alados, e os mais semelhantes aos humanos, os Liuar. Graças a uma campanha do próprio Rocannon, Fomalhaut está sob um "embargo exploratório", que impede que ele seja colonizado ou explorado, permitindo que seja apenas estudado. Evidentemente, isso não interessa a um grupo poderoso, que sabota a nave de Rocannon para tentar matá-lo; ele sobrevive, mas naufraga no planeta, sem ter como voltar e tendo de aprender a sobreviver em um mundo e uma sociedade completamente alienígenas.

Rocannon's World seria um grande sucesso, e motivaria a Ace Books a lançar mais um romance de Le Guin na Ace Double ainda em 1966, Planet of Exile, que dividiria o livro com Mankind Under the Leash, romance de estreia de Thomas M. Disch. Planet of Exile é ambientado no planeta Werel, onde um ano corresponde a 60 anos terrestres, e onde coexistem duas raças, os teravans, nativos do planeta, e os humanos provenientes da Terra, que tentaram estabelecer ali uma colônia. Embora ambos tenham um ancestral comum (os hainianos), eles não conseguem se reproduzir entre si, e um grupo é desconfiado do outro, estabelecendo contato mínimo e jamais interagindo por vontade própria. Mas o longo inverno se aproxima, e uma visita da curiosa Rolery, adolescente teravan e protagonista da história, à colônia humana pode levar a mudanças irreversíveis na estrutura social do planeta.

Planet of Exile também seria um grande sucesso, e aí a Ace Books ofereceria a Le Guin um livro inteiro, sem dividir com ninguém. Esse livro seria City of Illusions, publicado em 1967, ambientado na Terra em um futuro muito distante, no qual a população humana foi reduzida e vive em pequenas comunidades rurais ou tribos nômades. Os responsáveis por essa redução foram alienígenas chamados Shing, que possuem poderes telepáticos, atacaram o planeta 1200 anos antes do início da história, e ainda o governa. O protagonista é um humano que estava voltando de uma viagem espacial, sem saber do destino da Terra, foi capturado pelos Shing, teve sua mente completamente apagada e foi abandonado na floresta; salvo pelos habitantes de uma pequena comunidade, ele deve tentar sobreviver no mundo onde nasceu, mas que agora é completamente desconhecido por ele. Embora as três histórias não sejam ligadas, o fato de elas claramente envolverem os hainianos levaria a Ace Books a, em uma jogada de marketing, anunciá-los, inclusive em republicações posteriores, como "A Trilogia Hainiana", termo que mais tarde, com o lançamento de mais livros, seria substituído por Ciclo Hainiano.

A Trilogia Hainiana faria um grande sucesso dentre os leitores, mas passaria em branco dentre a crítica, que sequer chegaria a avaliá-la. O livro seguinte de Le Guin, porém, seria um surpreendente sucesso de crítica (e de público), ganhando resenhas nas principais revistas especializadas, destaque nas livrarias e rendendo a ela convites para entrevistas. Tudo começaria ainda em 1967, quando a editora Parnassus Press a procuraria e perguntaria se ela estaria interessada em escrever para adolescentes - já que seus três livros publicados haviam sido classificados como para "jovens adultos". Le Guin aceitaria, e optaria por escrever uma história de jornada do herói e passagem à maioridade ambientada no mundo de fantasia de Terramar, no qual ela já havia ambientado os contos The Word of Unbinding e The Rule of Names.

Assim surgiria O Feiticeiro de Terramar (A Wizard of Earthsea), publicado em 1968, que acompanha o jovem Ged, nascido numa comunidade extremamente pobre, mas que, por demonstrar afinidade com a magia, é levado para a principal escola de magos de seu mundo para ser treinado. Terramar, apropriadamente para seu nome, é um gigantesco arquipélago, com as viagens entre uma ilha e outra feitas por barcos e navios; a magia é bastante presente e os magos são considerados valiosos, pois nem todos conseguem dominá-la - cada comunidade costuma ter um mago residente que, dentre outras coisas, cuida para que saqueadores não a ataquem, as colheitas não se percam, e para que os ventos levem os barcos mais rapidamente a seus destinos. Le Guin faria a história propositalmente sem guerras, que ela considerava um clichê da fantasia e "muito masculinas".

No ano seguinte, Le Guin lançaria o mais famoso de seus livros, aquele que a colocaria definitivamente na lista dos maiores escritores de ficção científica e fantasia de todos os tempos: A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness), publicado pela Ace Books em 1969. O protagonista da história é Genly Ai, nascido na Terra e enviado como emissário ao planeta Gethen, para convidá-los a se unir ao Ekumen. A principal dificuldade é que Gethen possui duas nações dominantes, que não vão com a cara uma da outra, mas o principal detalhe da história é que os nativos de Gethen não possuem gênero, sendo todos assexuados exceto por um curto período a cada mês durante o qual podem se reproduzir, quando cada um assume o sexo masculino ou feminino dependendo de fatores como afinidade e predisposição. O livro toca em temas como feminismo, papel do gênero na cultura e sociedade, e até mesmo xenofobia e religião, e seria o primeiro romance não só da ficção científica, mas da literatura como um todo, a trazer personagens andróginos.

A Mão Esquerda da Escuridão ganharia os dois principais prêmios da literatura de ficção científica, o Hugo e o Nebula, ambos em 1970, e, em 1987, seria considerado pela prestigiada revista Locus o segundo maior romance de ficção científica de todos os tempos, atrás apenas de Duna. Ainda assim, o livro não escaparia de críticas, por não mostrar personagens andróginos em papéis tradicionalmente femininos, com todos sendo políticos, militares ou sacerdotes, papéis tradicionalmente masculinos; pelo fato de que todos os andróginos mostrados no livro possuem relacionamentos heterossexuais (todos os casais são compostos por um no papel de homem e outro no papel de mulher); e por utilizar apenas pronomes masculinos (ele/dele) ao se referir aos personagens andróginos.

Le Guin não planejava escrever uma sequência para O Feiticeiro de Terramar, mas o sucesso do livro acabaria fazendo com que a Atheneum Books, que controlava a Parnassus Press, a convencesse a mudar de opinião. Assim surgiriam As Tumbas de Atuan (The Tombs of Atuan), publicado em 1971, e The Farthest Shore, publicado em 1972, que traziam mais viagens de Ged por Terramar, e fechavam uma trilogia. Le Guin aproveitaria, mais uma vez, embora de forma mais comedida, já que o público-alvo era de uma faixa etária menor, para explorar temas como religião, ética e o papel do gênero na sociedade - a protagonista de As Tumbas de Atuan é uma menina, Tenar, com Ged sendo um coadjuvante de luxo. Ambos seriam grandes sucessos de público e crítica, e The Farthest Shore ganharia o National Book Award de Melhor Livro Infantil, além de ser adaptado em 2006 para o filme de animação Tales of Earthsea, do Studio Ghibli.

Entre os dois livros de Terramar, Le Guin lançaria A Curva do Sonho (The Lathe of Heaven), em 1971, pela Scribner's Books. Ambientado em 2002, quando a Terra está sendo assolada pela instabilidade climática e pela superpopulação, o livro acompanha George Orr, que descobre que seus sonhos têm o poder de alterar a realidade, e passa a ser manipulado por seu psiquiatra, que quer usar esse poder em benefício próprio. A Curva do Sonho ganharia o Locus Award de Melhor Romance em 1972, e seria uma das poucas obras de Le Guin a ser adaptada para a TV, primeiro em 1980, pelo canal PBS, depois em 2002, pelo canal A&E.

Le Guin voltaria ao Ciclo Hainiano com Floresta é o Nome do Mundo (The Word for World is Forest), novela originalmente publicada em 1972 na antologia Again, Dangerous Visions, da Doubleday, e, em 1976, como um livro separado, pela Berkley Books. A história é ambientada no pacífico planeta Athshe, totalmente tomado por uma floresta, que é invadido e colonizado à força pela Terra, que instaura no local um governo militar que trata os nativos, extremamente pacíficos e que não conheciam a guerra, de forma severa - até um deles decidir se revoltar e montar um grupo para expulsar os colonizadores. Le Guin declararia ter sido motivada a escrever a história, que contém uma forte crítica anti-colonialista e anti-militarista, pela Guerra do Vietnã. Floresta é o Nome do Mundo ganharia o Hugo Award em 1973, e seria um dos primeiros romances de ficção a abordar temas ecológicos e a ligação entre linguagem e cultura.

O romance seguinte do Ciclo Hainiano, Os Despossuídos (The Dispossessed), seria publicado pela Harper & Row em 1974. A história é ambientada de forma intercalada no planeta Urras e em seu satélite, Anarres; cerca de 150 anos antes de seu início, os odonianos, equivalentes aos comunistas de Urras, se mudaram todos para Anarres, onde fundaram uma sociedade totalmente cooperativa, sem governo, moeda ou leis, na qual cada um trabalha com o que quiser, da forma como quiser, e a única coisa que impede a ruína da sociedade é o senso de coletividade, que faz com que todos os anarrestis façam suas escolhas levando em conta o bem comum, e não seu próprio bem-estar. O protagonista da história é o físico Shevek, que cria uma teoria revolucionária, mas, ao perceber que a sociedade de Anarres não está interessada em suas ideias, decide se tornar o primeiro anarresti a viajar de volta para Urras, para oferecer seu trabalho ao Conselho de Governos Mundiais - pois Urras, ao contrário de Anarres, é dividida em várias nações, sendo as principais A-Io, mais ou menos equivalente aos Estados Unidos, Thu, mais ou menos equivalente à União Soviética, e Benbili, mais ou menos equivalente à China. Em Urras, porém, Shevek passará por um verdadeiro choque cultural, se sentido perdido em meio a uma sociedade capitalista, hedonista e cheia de convenções de hierarquia e política.

Os Despossuídos também ganharia os prêmios Hugo e Nebula, o que faria com que Le Guin se tornasse a primeira pessoa a ganhar os dois prêmios com dois livros diferentes, além do Locus Award de Melhor Romance em 1975. Embora, no início do livro, pareça que ele será um elogio ao comunismo, logo ele se torna uma grande crítica social, abordando questões relacionadas ao anarquismo, capitalismo, sociedades utópicas, propriedade privada, à importância da ciência para a sociedade, e até mesmo ao taoísmo, além de tocar mais uma vez em questões de gênero - as mulheres de Anarres são consideradas equivalentes aos homens, podendo exercer qualquer profissão, inclusive se tornando cientistas, enquanto as de Urras são consideradas inferiores e inaptas ao trabalho.

Entre A Mão Esquerda da Escuridão e Os Despossuídos, Le Guin também publicaria três contos pertencentes ao Ciclo Hainiano: A Winter's King, que tratava dos efeitos no corpo humano da viagem espacial próxima à velocidade da luz, seria publicado em 1969 no volume 5 da antologia de ficção científica Orbit, publicada pela G.P. Putnam's Sons; Vaster than Empires and More Slow, de 1971, que acompanha uma nave da Terra enviada para investigar um planeta recém-descoberto e aparentemente desabitado, e seria publicada no primeiro volume da coletânea New Dimensions, da Doubleday Books; e The Day Before the Revolution, que acompanha um dia na vida de Odo, a mulher que fundaria o movimento odoniano em Urras, e é considerado um prelúdio para Os Despossuídos, tendo sido publicado em 1974, simultaneamente ao lançamento do livro, na revista Galaxy Science Fiction. The Day Before the Revolution também ganharia um Nebula Award de Melhor Conto.

Esses três contos, bem como Semley's Necklace, The Word of Unbiding, The Rule of Names, Nine Lives e outros dez, estariam presentes na coletânea The Wind's Twelve Quarters, lançada em 1975 pela Harper & Row. Um dos maiores destaques dessa coletânea é The Ones Who Walk Away from Omelas, ambientado em uma cidade utópica cuja prosperidade está diretamente relacionada à miséria de uma única criança, publicado em 1973, no terceiro volume da New Dimensions, e que ganharia o Hugo Award de Melhor Conto.

No ano seguinte, 1976, seria lançado Very Far Away from Anywhere Else, pela Atheneum Books. Uma das pouquíssimas histórias escritas por Le Guin que não são de ficção científica, ficção histórica, nem de fantasia, o livro, voltado para jovens adultos, acompanha Owen, um menino de 17 anos introvertido, de poucos amigos e com dificuldades na família, que sonha em estudar no MIT, a prestigiada instituição universitária norte-americana voltada à ciência e tecnologia. Um dia, ele conhece Natalie, menina extrovertida de sua idade e para quem a música é tudo na vida, e essa amizade improvável acabará alterando o destino de ambos. O livro toca em temas como os efeitos da vida em sociedade, o conflito entre expectativa e realidade, e, evidentemente, o amadurecimento, mostrando a difícil transição entre a adolescência e a vida adulta.

1976 também seria o ano do lançamento de Orsinian Tales, pela Harper & Row, que continha 11 contos que Le Guin havia escrito ambientados em Orsinia, cinco deles anteriormente publicados: An die Musik, Imaginary Countries (1973, The Harvard Advocate), Brothers and Sisters (1976, The Little Magazine), A Week in the Country (1976, The Little Magazine) e The Barrow (1976, The Magazine of Fantasy & Science Fiction). O relativo sucesso dessa coletânea motivaria a Berkley Books a perguntar a Le Guin se ela tinha mais histórias de Orsinia, o que faria com que ela finalmente conseguisse publicar Malafrena, o primeiro romance que ela escreveu no cenário (devidamente revisado e atualizado), em 1979. Mais um conto ambientado em Orsinia, Two Delays on the Northern Line, seria publicado na revista New Yorker, também em 1979.

Antes disso, em 1978, seria a vez do lançamento de The Eye of the Heron, originalmente como parte da antologia Millenial Women, mas mais tarde, no mesmo ano, como um livro em separado, ambos pela Delacorte Press. A história começa 100 anos após a colonização do planeta Victoria, que não tem nenhuma comunicação com a Terra, e para onde foram enviadas duas naves de presidiários e uma de exilados políticos, e mostra o ponto de vista de diversos personagens quanto à colonização e à vida que eles levam no novo planeta. Embora Le Guin, em entrevistas, tenha declarado que "pode ser que The Eye of the Heron faça parte do Ciclo Hainiano", ele não é oficialmente assim considerado.

Na década de 1980, Le Guin decidiria investir em histórias para leitores mais jovens, lançando, inclusive, 11 livros infantis, quatro deles parte da série Catwings, cujos protagonistas eram filhotes de gato que, inexplicavelmente, nasceram com asas. Seu primeiro livro após tomar essa decisão seria The Beginning Place, lançado em 1980 pela Harper & Row, que, assim como Os Despossuídos, alterna seus capítulos entre dois cenários, a Terra e o mundo fantástico de Tembreabrezi. Voltado para jovens adultos, o livro acompanha dois adolescentes norte-americanos, Hugh Rogers e Irene Pannis, que descobrem uma passagem secreta para Tembreabrezi, onde se sentem mais em casa do que em suas próprias casas.

Mas sua principal obra do período seria Always Coming Home, lançado em 1985 também pela Harper & Row, que acompanhava Pandora, uma antropóloga nascida em um povo chamado Kesh, que habita a Terra em um futuro muito distante, centenas de anos após o colapso da sociedade moderna. Always Coming Home contrasta a vida e sociedade dos Kesh com a nossa, estudada por Pandora, e daria origem ao quarto universo criado por Le Guin (após Orsinia, Terramar e o Ciclo Hainiano), no qual também seriam publicados três contos: The Trouble with the Cotton People (1984, The Missouri Review), The Visionary (1984, na revista Parabola) e Time in the Valley (1985, The Hudson Review). As histórias ambientadas em Kesh também trazem poemas, rascunhos e esboços de animais e plantas, como se fossem um registro feito por Pandora.

Em 1990, Le Guin decidiria retornar a Terramar com Tehanu, quarto volume da série, lançado pela Atheneum Books, que acompanha mais uma vez Tenar. Segundo Le Guin, ela teria ficado insatisfeita com o papel da moça em As Tumbas de Atuan, pois, mesmo sendo a protagonista, ainda dependia muito dos homens, principalmente de Ged, e quis escrever uma nova história na qual ela fosse uma protagonista real. Tehanu seria considerado mais adulto que a trilogia original de Terramar, por ser mais sombrio e introspectivo, e renderia a Le Guin mais um Locus Award e mais um Nebula Award de Melhor Romance, o que faria com que ela se tornasse a primeira pessoa na história a ganhar três Nebulas nessa categoria.

No mesmo ano, Le Guin também retornaria ao Ciclo Hainiano, com o conto The Shobies' Story, publicado no primeiro volume da antologia Universe, da Ace Books. Em 1993, um novo conto do Ciclo, Dancing to Ganam, seria publicado na revista Amazing Stories, e, em 1994, mais um, Another Story, seria publicado na revista Tomorrow Speculative Fiction. Esses três contos ficariam conhecidos como "a trilogia de churten", já que todos tratam do mesmo tema, a viagem interestelar mais rápida que a luz, apelidada de churten - que também é usado como verbo, com uma nave "churtenando" (ou coisa assim) ao viajar de um planeta para outro em velocidade superior à da luz - em homenagem ao cientista que criou a teoria que a tornou possível, cujo nome era Churten. The Shobies' Story conta a história da tripulação da nave Shoby, que compartilha entre si suas experiências após o churten, Dancing to Ganam acompanha uma segunda viagem de dois membros da Shoby, dessa vez até o planeta Ganam, cuja sociedade ainda é pré-industrial, e Another Story, inspirada na lenda japonesa de Urashima Taro, acompanha um cientista que vai viajar do planeta O até Hain usando o churten, e se preocupa que, devido à dilatação temporal, perderá o contato com todos os seus entes queridos. Todas as três histórias estariam presentes, junto com outras cinco que não fazem parte do Ciclo Hainiano, na coletânea A Fisherman of the Inland Sea, lançada em 1994 pela Harper Prism.

Depois disso, Le Guin aparentemente se animaria e publicaria cinco histórias seguidas do Ciclo Hainiano: The Matter of Seggri (1993, revista Crank!) é ambientada no planeta Seggri, onde existe uma rigorosa segregação por gênero, e composta por cinco relatos de cinco pessoas diferentes, três mulheres e dois homens; Unchosen Love (1994, Amazing Stories) é ambientada no planeta O (de Another Story), no qual cada casamento é composto por quatro pessoas; Solitude (1994, The Magazine of Fantasy & Science Fiction) em um no qual a sociedade preza o isolamento ao invés da vida em comum; Coming to Age in Karthide (1995, antolgia New Legends, Legends Books) acompanha um habitante de Gethen passando pela adolescência e descobrindo a sexualidade pela primeira vez; Mountain Ways (1996, revista Asimov's Science Fiction) retorna ao planeta O, para acompanhar uma mulher que se envolve em um relacionamento proibido; e Old Music and the Slave Woman (1999, antologia Far Horizons, Avon Eos), acompanha o chefe de inteligência da embaixada do Ekumen no planeta Werel, onde a sociedade é escravagista e sexualmente reprimida, fazendo um relatório a seus superiores sobre a estupidez de um de seus subordinados. Todas essas histórias seriam reunidas, com mais quatro, na coletânea The Birthday of the World and Other Stories, lançada em 2002 pela Harper Collins, cuja história principal, The Birthday of the World, originalmente publicada em 2000 na The Magazine of Fantasy & Science Fiction, que acompanha uma criança durante as comemorações do aniversário de seu planeta, "pode ou não" ser do Ciclo Hainiano, segundo a própria Le Guin.

A principal publicação do Ciclo Hainiano na década de 1990, entretanto, seria Four Ways to Forgiveness, lançado em 1994 pela Harper Collins. Trata-se de uma coletânea de quatro histórias inéditas: Betrayal acompanha uma cientista e um militar com visões opostas sobre a integração de seu planeta, Yeowe, ao Ekumen, mas que acabam se tornando amigos; Forgiveness Day acompanha uma mulher nascida na Terra enviada para analisar o planeta Werel; A Man of the People acompanha um homem nascido em Hain e enviado para analisar Yeowe; e A Woman's Liberation acompanha uma mulher nascida escrava em Werel. Curiosamente, após o lançamento do livro, todas as quatro seriam publicadas em revistas, Betrayal na Blue Motel, ainda em 1994, as outras três na Asimov's Science Fiction, em 1995; A Woman's Liberation também faria parte da coletânea A Woman's Liberation: A Choice of Futures By and About Women, publicada em 2001 pela Hachette. Também em 2001, o livro seria relançado como Five Ways to Forgiveness, com o acréscimo de Old Music and the Slave Woman.

A última história do Ciclo Hainiano seria The Telling, romance publicado em 2000 pela Harcourt. A protagonista, Suki, é uma mulher descendente de indianos nascida na Terra, que viaja até o planeta Aka para atuar como observadora. Ao estilo cyberpunk (mas sem os demais elementos do gênero), Aka é governado pela Corporação, uma empresa privada capitalista que faz o papel de Estado, e proibiu todos os costumes e crenças relacionados à cultura de seus povos. O livro é como se fosse o relatório de Suki ao Ekumen, com suas observações sobre o conflito entre a Corporação e um grupo de nativos que resiste a abandonar suas tradições. The Telling tem como temas política, religião e preservação da cultura através das tradições orais, e renderia a Le Guin mais um Locus Award de Melhor Romance.

Em 2001, seria lançado, pela Harcourt, Tales of Earthsea, coletânea de seis contos ambientados em Terramar, dois deles previamente publicados: Dragonfly (1998, revista Legends) e Darkrose and Diamond (1999, The Magazine of Fantasy & Science Fiction). No mesmo ano, seria publicado, também pela Harcourt, o quinto e último romance de Terramar, The Other Wind, cujo protagonista, Alder, é um feiticeiro responsável pela proteção de um vilarejo que decide partir em uma jornada para tentar descobrir a origem de estranhos sonhos que está tendo. Le Guin ainda escreveria dois contos ambientados em Terramar, The Daughter of Odren, lançado exclusivamente em formato digital pela Harcourt em 2014, e Firelight, publicado em 2018 na revista The Paris Review. Também em 2018, a editora Saga Press lançaria The Books of Earthsea, coletânea que trazia todos os contos e romances ambientados em Terramar. Em 2004, o canal Sci Fi produziria uma minissérie em dois episódios inspirada nas histórias de Terramar, chamada Tales from Earthsea; Le Guin, porém, ficaria extremamente decepcionada, dizendo que a Terramar da minissérie não tinha absolutamente nada a ver com a que ela tinha imaginado para os livros.

Também em 2004, Le Guin criaria seu último universo ficcional, Annals of the Western Shore, que contaria com três romances: Gifts (2004), Voices (2006) e Powers (2007), todos lançados pela Harcourt. As histórias são ambientadas em cidades-estado localizadas no litoral ocidental de um reino medieval; a primeira tem como protagonistas Gry e Orrec, dois jovens pobres que descobrem ter habilidades psíquicas, tendo de aprender a lidar com elas; a segunda é protagonizada por Memer, menina que vive em uma cidade ocupada pelo brutal povo do deserto, que tenta impedir seus habitantes originais de preservar sua própria cultura; e o terceiro é centrado em Gavir, escravo que descobre ter o dom da premonição e é treinado para se professor de um jovem de família rica. Gry e Orrec fazem uma participação especial no segundo livro, e os dois e Memer são personagens importantes no terceiro. Powers renderia a Le Guin seu quarto Nebula Award de Melhor Romance, transformando-a na recordista da categoria.

Além de uma autora de sucesso, Le Guin também seria uma figura central na luta pelos direitos dos autores: em 1977, ela recusaria um Nebula Award de Melhor Conto por The Diary of the Rose, em protesto contra a revogação da filiação de Stanislaw Lem pela Associação dos Escritores de Ficção Científica da América, alegando que não fazia sentido ela receber de um grupo que pratica a intolerância política um prêmio por uma história que critica a intolerância política; em 2009, ela se desfiliaria da Guilda dos Autores da América, em protesto contra o apoio do órgão ao projeto do Google de digitalização de livros, que, em sua opinião, seria maléfico aos autores; e, em 2014, durante o National Book Awards, criticaria duramente a Amazon por sua influência sobre as editoras, em um discurso que ficaria famoso e seria reproduzido por várias emissoras de TV e rádio. Outro de seus discursos, na abertura do ano letivo da universidade Mills College, em Oakland, Califórnia, em 1983, seria considerado um dos 100 maiores discursos do século XX, e escolhido para preservação pela sociedade American Rethoric.

Le Guin faleceria em sua casa, em Portland, em 22 de janeiro de 2018, aos 88 anos de idade. Seu filho declararia que ela já estava com a saúde debilitada há meses, e que provavelmente havia tido um ataque cardíaco. Ela é hoje considerada uma das maiores autoras de ficção científica de todos os tempos, tendo influenciado toda uma geração de autores, dentre os quais podem ser citados Neil Gaiman, Jo Walton, Orson Scott Card e Salman Rushdie. Sem contar os que pertencem ao Ciclo Hainiano (17), Terramar (10), Orsinia (5) e Kelsh (3), ela publicaria nada menos que 67 contos entre 1962 e 2018, o que a torna uma das autoras norte-americanas com mais contos publicados. Em 2000, ela receberia o título de Lenda Viva pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, e, em 2016, entraria para um grupo seleto de autores cujas obras completas foram publicadas pela Library of America.

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