
Em grande parte, a dificuldade em se entender os livros de Alice vem do fato de que eles são um tipo de "piada interna". A menos que se conheça quem foi Lewis Carroll e por que ele decidiu escrever estes livros, o máximo que você pode fazer é entrar na viagem e se conformar por estar lendo nonsense. O post de hoje, mais do que homenagear a minha talvez personagem preferida de ficção, vai tentar jogar um pouco de luz sobre o assunto. Mas sem estragar o trabalho de Gardner; quem quiser que vá comprar um Alice Comentado como eu fui.
O homem que viria a ser conhecido como Lewis Carroll nasceu Charles Lutwidge Dodgson, em 27 de janeiro de 1832 em Cheshire, Inglaterra. Viveu praticamente toda sua vida em Oxford, onde se formou em matemática, e lecionava na faculdade de Christ Church, onde era considerado um professor de aulas sem graça, que chegou a escrever alguns livros com problemas divertidos, mas nenhum especialmente relevante. Anglicano, era extremamente religioso e muito ortodoxo, a não ser pela incapacidade de acreditar na danação eterna. Chegou a ser ordenado diácono, mas raramente pregava, e jamais chegou a ser pastor devido a duas deficiências físicas: era gago e surdo de um ouvido. Inimigo feroz da linguagem indecorosa e de diálogos picantes em peças de teatro, Dodgson era tido como esnobe, mas na verdade era excessivamente tímido, capaz de ficar horas em uma reunião sem proferir uma única palavra. Além disso, era um solteirão convicto, que jamais havia tido sequer uma namorada, rabugento, excêntrico e cheio de manias. Apesar disso tudo, era visto por seus amigos como uma figura gentil, e querido por grande parte da população da cidade.
Além de uns poucos amigos íntimos, Dodgson só se sentia à vontade na companhia de crianças. Mais especificamente, de meninas, já que os meninos ele não suportava e fazia o possível para não ter contato direto com eles. Dodgson adorava contar histórias, charadas, fazer truques de mágica, ensinar jogos e montar brinquedos para as meninas, e sua gagueira sumia quando conversava com elas. Se interessou pela fotografia quando esta arte ainda estava em seu início, apenas para poder tirar fotos de meninas. Se fosse hoje em dia, provavelmente ele seria considerado um pedófilo, mas não há qualquer prova de que Dodgson tenha tido qualquer interesse sexual por qualquer menina de Oxford que tenha convivido com ele. Pelo contrário, todas elas, depois de crescidas, continuaram se lembrando dele com carinho, e hoje já se tem acesso a vários diários de meninas da época que narram suas tardes agradáveis em sua companhia.
O livro ficou na casa dos Liddell, até ser visto por outro amigo de Dodgson, George MacDonald, que lhe mostrou a seus filhos, que adoraram. Desde que o havia entregue a Alice, Dodgson continuara expandindo a história, que já contava com mais de cem páginas. MacDonald então sugeriu que ele enviasse o livro para publicação, e indicou o artista John Tenniel, cartunista da famosa revista Punch, e que já tinha ilustrado uma das edições das Fábulas de Esopo, para fazer as ilustrações. Dodgson concordou, mas decidiu inventar o pseudônimo de Lewis Carroll, ao invés de publicá-lo sob seu nome original. Especula-se que este nome foi escolhido por ter o mesmo número de letras de Alice Liddell, e letras duplas nas mesmas posições, além de em "Lewis" e "Alice" as vogais e consoantes estarem em posições trocadas. Mas, como nem o próprio Dodgson jamais explicou porque escolheu se chamar Carroll, aparentemente é tudo coincidência.
A primeira edição impressa de Alice's Adventures in Wonderland ("Aventuras de Alice no País das Maravilhas"), o título pelo qual o livro seria conhecido definitivamente, saiu em julho de 1865, com uma tiragem de dois mil exemplares. Carroll e Tenniel não gostaram da qualidade da impressão, mandaram recolher tudo e encomendaram uma nova, que saiu em dezembro de 1865, mas com data de 1866. O livro se tornou uma sensação entre crianças e adultos, se esgotou rapidamente, e novas edições foram encomendadas, uma após a outra. O livro é produzido ininterruptamente até hoje, já tendo tido mais de 100 edições, e já foi traduzido para mais de cinqüenta idiomas. Um exemplar da primeira edição, a rejeitada pelos autores, foi vendido por um milhão e meio de dólares em 1998. Mesmo ainda sem saber deste futuro glorioso, o sucesso do livro fez Carroll abandonar a carreira de matemático, e se dedicar à de escritor de livros infantis. Infelizmente, nenhum de seus livros posteriores foi tão bem sucedido quanto a primeira aventura de Alice.
Por ter sido escrito especialmente para Alice, o livro é cheio de citações que somente os moradores de Oxford, as irmãs Liddell ou os amigos de Carroll entenderiam. Os poemas que aparecem durante o texto são paródias de poemas e canções da época, muitos hoje esquecidos. Isto faz com que o livro seja considerado por muitos como "sem pé nem cabeça", e leva a múltiplas interpretações das passagens do texto, comparando os personagens com políticos, analisando-as à luz da psicanálise ou até mesmo da religião. Nos Estados Unidos há quem considere que o livro é, na verdade, uma história de terror, pois todas as criaturas tratam mal Alice, que está presa em um pesadelo onde é impotente e do qual não consegue sair, estando à mercê de uma rainha louca que manda decapitar todo mundo. Por causa disso, muitos pais não permitem que seus filhos o leiam até alcançar uma certa idade, um verdadeiro contrassenso para um livro infantil.
Cinco anos após a publicação do primeiro livro de Alice, Carroll decidiu publicar mais um, motivado por um encontro que teve com outra Alice, esta uma prima distante sua, durante um passeio em Onslow Square. Carroll já vinha escrevendo o livro desde bem antes, quando ensinava xadrez às irmãs Liddell, mas o encontro com sua prima Alice lhe deu o elemento que faltava: um espelho. Carroll conta que tinha o costume de mostrar às meninas um espelho, pedir para que elas segurassem uma laranja com a mão direita, e perguntá-las por que é que o reflexo a estava segurando com a mão esquerda. Sua prima Alice foi quem lhe deu a melhor resposta: "se eu estivesse do outro lado do espelho, a estaria segurando com a mão direita". Assim nasceu Through the Looking-Glass and What Alice Found There ("Através do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá", também conhecido como "Alice Através do Espelho" ou "Aventuras de Alice no País do Espelho"), publicado pela primeira vez em 1871.
Seis meses após o sonho com o País das Maravilhas, Alice está brincando com suas duas gatinhas Kitty e Snowdrop, quando percebe que pode atravessar o espelho. Lá ela encontra um mundo mágico, onde tudo é ao contrário (se tem que correr muito para permanecer no mesmo lugar, mata-se a sede com um biscoito muito seco, primeiro se serve o bolo para depois cortá-lo, e outras pérolas). Os governantes do País do Espelho são dois Reis e duas Rainhas (Brancos e Vermelhos), envolvidos em um jogo de xadrez da vida real. Quando Alice manifesta à Rainha Vermelha seu desejo de também ser uma rainha, esta faz dela um peão, e promete que ela se tornará rainha tão logo alcance a última casa do tabuleiro (como um peão faria em um jogo de xadrez de verdade). Alice, então começa a atravessar o estranho País do Espelho, em sua busca pela coroa. O livro vem com um diagrama de xadrez que mostra os movimentos dos personagens do jogo capítulo a capítulo, até Alice se tornar rainha.

Através do Espelho hoje é considerado um clássico infantil, mas nunca foi tão famoso quanto seu antecessor, em parte porque muitas adaptações de Alice, como o filme de 1933 e o desenho da Disney, de 1951, "misturam" as duas aventuras, colocando personagens do País do Espelho no País das Maravilhas. Depois do espelho, Carroll deixou Alice um pouco de lado e publicou dois outros livros infantis, The Hunting of The Snark, de 1876, todo em versos; e Aventuras de Sílvia e Bruno, de 1889. Nenhum dos dois conseguiu chegar perto do sucesso de Alice, e ambos são praticamente desconhecidos. Carroll ainda publicaria um terceiro livro de Alice, The Nursery Alice, uma versão adaptada do País das Maravilhas para crianças de zero a cinco anos, publicado em 1889.
Lewis Carroll morreu em 14 de julho de 1898, em decorrência de uma bronquite. Mesmo não tendo sido especialmente genial ou reverenciado em vida, seu legado foi tão forte que hoje seus dois livros de Alice são considerados clássicos da literatura, tendo influenciado artistas como James Joyce e John Lennon. E transformaram Alice, de uma menininha comum de Oxford, em um dos ícones da ficção infantil, ao lado da Branca de Neve, Bela Adormecida e Cinderella.
0 Comentários:
Postar um comentário