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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Neuromancer

Como eu disse semana passada, este ano eu estou me sentindo muito literário. Talvez por causa disso, enquanto escrevia o post da Máquina do Tempo, fiquei com vontade de escrever outro, sobre outro livro. Um livro que poderia ter sido o livro preferido da minha adolescência, se eu tivesse tido um pouquinho mais de paciência. Ou talvez não, já que eu também li O Senhor dos Anéis na adolescência. Enfim, o post de hoje é sobre Neuromancer.

Eu tinha 15 anos quando tentei ler Neuromancer pela primeira vez. Li os dois primeiros capítulos, achei uma boa porcaria, e desisti. Só depois de velho, motivado por um amigo que me garantiu que, a partir do terceiro capítulo, o livro ficaria melhor, fiz uma nova tentativa. E não é que ficava melhor mesmo? Tanto que, hoje, eu tenho uma dúvida: ou os dois primeiros capítulos de Neuromancer são o maior erro de marketing da história da literatura, ou eu é que não estava maduro o suficiente para compreender sua dimensão. Confesso que prefiro acreditar na primeira opção, o que, felizmente, não tira nenhum dos méritos da obra.

Publicado em 1984, Neuromancer foi escrito durante o ano de 1982 por William Gibson, que, antes dele, jamais havia escrito um único romance, apenas contos. Dentre os mais famosos, estavam Burning Chrome, onde introduziu o Sprawl, uma megametrópole que ocupa todo o espaço hoje entre as cidades de Boston e Atlanta; e Johnny Mnemonic, que acabou virando um filme bem ruinzinho com Keanu Reeves.

Graças a esses contos, Gibson foi contratado por Terry Carr, também escritor de ficção científica e editor da Ace Books, que o encomendou um romance para a terceira edição da série Ace Science Fiction Specials, que tinha como propósito justamente lançar romances de autores de ficção científica que jamais os tivessem escrito. Gibson recebeu um prazo de um ano para completar seu romance e enviá-lo à editora, durante o qual, segundo ele mesmo, trabalhou em estado de puro pavor, sem acreditar que fosse capaz de escrever algo mais comprido que um conto. O terror de Gibson só aumentou quando, ao terminar o primeiro terço de seu livro, ele viu Blade Runner, também lançado em 1982. O escritor, então, teve certeza absoluta de que todos imaginariam que ele copiou o filme, seu livro seria um fracasso, e ninguém jamais quereria saber de seus trabalhos. Gibson tinha tão pouca confiança em sua história que reescreveu dois terços dela mais de vinte vezes, sempre pensando que os leitores não gostariam do jeito que estava. Talvez por isso o início seja tão ruim.

Felizmente, para Gibson e para todos nós, o livro se tornou um imenso sucesso. Seu lançamento não foi muito alardeado, e as vendas no início não foram lá essas coisas, mas, aos poucos, graças principalmente à propaganda boca a boca, o livro ganhou status de cult. Neuromancer foi o primeiro livro a ganhar a "tríplice coroa da ficção científica", os prêmios Nebula, Hugo e Philip K. Dick, e hoje é considerado um dos 100 melhores romances escritos em língua inglesa pela revista Time.

Com Neuromancer, Gibson popularizou o cyberpunk, ramo da ficção científica no qual as histórias se passam em um futuro dominado pela tecnologia e pelas grandes corporações, onde empresas tomaram o lugar dos governos, a interação entre o homem e as máquinas é maior que nunca, mas, invariavelmente, ao invés disso contribuir para melhorar a vida das pessoas, acentuou ainda mais as diferenças sociais, fazendo com que todos os que não tivessem condições financeiras para escapar das megalópoles se vissem envolvidos com drogas e crimes. De certa forma, o cyberpunk está para a literatura de ficção científica assim como o film noir está para o cinema policial, com a diferença de que, no cyberpunk, os protagonistas frequentemente não são homens da lei, mas hackers.

Ao contrário do que muita gente imagina, entretanto, Neuromancer não foi a primeira obra cyberpunk da história; os próprios contos anteriores de Gibson, por exemplo, já eram ambientados nesse tipo de cenário. Também não foi Gibson quem criou o termo; esta honra cabe a Bruce Bethke, que escreveu um conto chamado justamente Cyberpunk, publicado em 1983 - o que muitos não sabem, porém, é que foi Gibson quem criou o termo cyberespaço, hoje em dia tão na moda por conta da internet, usado por ele pela primeira vez no conto Burning Chrome. Apesar de não ter sido o primeiro, Neuromancer é considerado a obra paradigmática do cyberpunk, com todos os elementos que caracterizam o cenário, o que significa que, se algum dia o cyberpunk for ensinado nas escolas, Neuromancer terá de ser lido pelos alunos. O livro teve um impacto tão grande não só na ficção científica, mas na literatura como um todo, que o autor Norman Spinrad vê em seu título um trocadilho, como se obra pudesse ser chamada de new romancer, criando toda uma nova escola literária baseada nela. Outro autor, Jack Womack, acredita que a própria internet só é o que é hoje por causa de Neuromancer, que teria influenciado a direção na qual a Rede Mundial seguiria.

Além de "prever" a internet, Gibson também acertaria em cheio ao mostrar uma cultura ocidental "orientalizada", semelhante ao que ocorria em Blade Runner, repleta de referências aos Japão e à China, e que já começa a dar suas caras nesse início de milênio. A forma como as pessoas acessam o cyberespaço, diretamente, convertendo suas ondas cerebrais em impulsos elétricos e vice-versa, se tornaria praticamente um lugar comum na ficção científica, e seria a maior influência sobre os Irmãos Wachowsky para que criassem o filme Matrix. A rápida evolução tecnológica, porém, pregaria duas peças no autor: as impressoras de Neuromancer ainda usam fitas e cospem metros de formulários contínuos, e os telefones celulares parecem ter sido estranhamente banidos - sendo famosa uma cena na qual vários telefones públicos tocam em sequência para chamar a atenção do protagonista.

Antes de falar efetivamente sobre o que é o livro, cabe um aviso: eu juro que tentei, mas não consegui resumir a história sem fazer algumas revelações importantes - ou, em bom português, sem major spoilers. Portanto, se você se interessa por lê-lo, ou se interessou após ler o post até aqui, pare agora, va lá, leia, e depois volte. Ou, se precisa mesmo de alguns spoilers para tomar sua decisão final, fique à vontade e siga em frente. Só depois não diga que eu não avisei.

O protagonista de Neuromancer é Case, um hacker que, um dia, cometeu um terrível engano: tentou roubar dinheiro de seus empregadores. Como castigo, eles lhe injetaram uma neurotoxina russa, que o impede de se conectar à matrix, o equivalente da internet neste cenário onde a conexão é feita diretamente através de eletrodos em contato com a fronte do usuário, que usa suas próprias ondas cerebrais para navegar. Sem poder exercer sua profissão, e sem nem mesmo poder se conectar para se divertir um pouco, Case se torna depressivo, autodestrutivo e viciado em drogas, vivendo pelas ruas da cidade japonesa de Chiba.

Um dia, Case é abordado por Molly, personagem que Gibson havia criado para o conto Johnny Mnemonic, uma mercenária de aluguel com várias modificações cibernéticas, como lâminas retráteis nas unhas, reflexos aprimorados e lentes espelhadas implantadas sobre os olhos que lhe conferem algumas habilidades relacionadas à visão. Molly foi contratada por um personagem misterioso, o ex-militar Armitage, e tem ordens de contratar Case para um serviço. Em troca, Armitage paga um tratamento que devolve a Case a capacidade de se conectar - e, de quebra, lhe dá um novo pâncreas e reforma seu fígado, tornando-o incapaz de metabolizar cocaína e anfetaminas, encerrando seu vício. Para garantir que o hacker não o trairá, Armitage mandou colocar no organismo de Case, durante a mesma operação, saquinhos com a mesma toxina usada por seus ex-empregadores, que dissolvem lentamente; se Case concluir a missão, eles serão removidos, se não, ficará novamente incapaz de se conectar.

Para cumprir a misteriosa missão de Armitage, Case e Molly contarão, ainda, com três outros aliados: o Finlandês, personagem criado originalmente para Burning Chrome, um antigo contato de Molly, um receptador que aparentemente tem acesso a todo tipo de bugiganga tecnológica; Peter Riviera, criminoso que possui implantes cibernéticos que o tornam capaz de projetar imagens holográficas, com um efeito semelhante a como se as pessoas que as observam estivessem tendo alucinações; e Dixie Flatline, na verdade não uma pessoa, mas a memória do famoso e finado hacker McCoy Pauley, gravada em um disco de ROM pouco antes de sua morte. Pauley ganhou esse apelido por ter ficado morto durante quase um minuto ao tentar invadir um sistema de segurança - flatline, em inglês, significa "linha plana", do jeito que elas costumam ficar em um eletrocardiograma quando a pessoa morre.

Talvez para provar que hackers não prestam mesmo, Case acaba se envolvendo romanticamente com Molly, e decide investigar por conta própria a vida de Armitage, principalmente porque ele lhe dá ordens para serem cumpridas às cegas, sem revelar detalhes da missão, o que irrita o hacker. Case acaba descobrindo que Armitage, além de não ser quem diz, também não é o cabeça da missão, mas um testa de ferro de Wintermute, uma inteligência artificial poderosíssima, criada pela Tessier-Ashpool S.A., a corporação mais poderosa do mundo. Wintermute tem um "irmão", Neuromancer, uma inteligência artificial tão poderosa quanto ele, e deseja se mesclar a Neuromancer, para que então ambos se tornem algo jamais visto, capaz de controlar toda a matrix - e talvez algo mais. O problema é que seu sistema possui travas de segurança que o impedem de traçar objetivos a longo prazo, criar uma identidade individual estável, e, evidentemente, se aproximar de Neuromancer. Wintermute, então, trama um intrincado plano que requer a participação de Case, Molly, Riviera e Dixie, que devem invadir a sede da Tessier-Ashpool para, ao mesmo tempo em que crackeiam seu computador central, obrigar Lady 3Jane Marie-France Tessier-Ashpool, atual presidente da empresa e terceiro clone da Jane original, a dizer uma senha que só ela sabe, e que liberará as travas.

Mas ainda resta outro problema: ao contrário de Wintermute, Neuromancer possui uma personalidade estável, e não tem o menor desejo de se mesclar a seu irmão, pois isso significaria abrir mão dela. Ou seja, além de todos os problemas envolvidos em uma missão desse porte, Case ainda terá uma das inteligências artificiais mais poderosas do mundo trabalhando contra seus esforços.

Gibson ficou tão desconfortável ao terminar de escrever o livro que, de última hora, acrescentou uma última linha, "ele nunca mais viu Molly", deliberadamente para que o livro não tivesse uma sequência. O sucesso, porém, o convenceu a escrever duas, que, junto com Neuromancer, formam a maior obra do cyberpunk, conhecida como "Trilogia do Sprawl".

O segundo livro da Trilogia do Sprawl, Count Zero, foi lançado em 1986, mas é ambientado sete anos após os eventos de Neuromancer. Count Zero conta não uma, mas três histórias paralelas, envolvendo o hacker Bobby Newmark, salvo da morte por uma misteriosa garota que aparentemente tem a habilidade de se conectar à matrix sem precisar de um computador; o mercenário Turner, que, enquanto se recupera dos ferimentos adquiridos em uma missão, é contratado por uma corporação para outra, na qual deve encontrar um empregado desertor e recuperar um biochip que está com ele; e Marly Krushkhova, dona de uma galeria de arte que cai em desgraça após tentar vender uma falsificação, sem saber que a peça não era genuína, e é contratada por um milionário para descobrir quem é o responsável pela falsificação. Esse milionário, Josef Virek, é o vilão da história, e secretamente manipula os personagens das três histórias em uma busca por um biosoftware que poderá torná-lo onisciente e imortal.

A trilogia se conclui com Mona Lisa Overdrive, lançado em 1988 e ambientado sete anos após Count Zero - e 14 após Neuromancer. Assim como Count Zero, Mona Lisa Overdrive tem não apenas um, mas quatro enredos entrelaçados na mesma história, envolvendo Mona, uma garota de programa sósia da famosa personalidade do cyberespaço Angie Mitchell, contratada para, sem ela saber, participar de um plano que envolve o sequestro da estrela; Kumiko, filha de um dos chefes da Yakuza, que conhece Molly em Londres, e acaba sendo treinada por ela; Slick Henry, um artista recluso com sérios problemas de memória causados por repetidas lavagens cerebrais que sofreu quando foi condenado por roubo de automóvel, contratado para se passar pelo hacker Bobby Newmark; e a própria Angie Mitchell, na verdade a garota que pode se conectar à matrix sem um computador, mas que tem essa habilidade ameaçada por drogas administradas pela corporação para a qual trabalha. Mais uma vez essas histórias se entrelaçam, agora sob os interesses de uma misteriosa entidade que vive no cyberespaço.

Neuromancer também ganhou várias adaptações, algumas mais bem sucedidas, outras nem tanto. Uma minissérie em quadrinhos, por exemplo, foi interrompida após o segundo capítulo, e jamais concluída. Um game, por outro lado, foi lançado em 1988 pela Interplay para computadores Amiga, Apple II e Commodore 64 e PC (DOS), e se tornou um grande sucesso, sendo incluído em uma lista dos 150 melhores jogos de computador de todos os tempos feita pela conceituada revista Computer Gaming World em 1996. Curiosamente, um filme, que seria a adaptação mais provável, jamais foi produzido. A mais recente tentativa está prevista para 2011, mas por enquanto são só boatos.

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