domingo, 5 de junho de 2011

Escrito por em 5.6.11 com 4 comentários

A Maldição de Sarnath (II)

Não se assustem: a figura é a mesma, mas o post é diferente. A razão para isso é um segredo terrível, que, se descoberto, resultará na perda de sua sanidade mental.

Ao invés de ficarmos loucos, portanto, vamos conferir os dez últimos contos do livro A Maldição de Sarnath, último da coleção de seis lançados pela Editora Iluminuras com contos de H.P. Lovecraft, meu autor preferido. Vamos a eles!

Os Gatos de Ulthar (The Cats of Ulthar) - Lovecraft adorava gatos. Todos os seus amigos sabiam disso, chegou a possuir mais de um ao longo de sua vida, e até mesmo escreveu em ensaio sobre os animais, intitulado Cats and Dogs. Dentre os inúmeros motivos pelos quais ele gostava de felinos, estavam as lendas associadas a eles, segundo as quais gatos seriam guardiães de segredos e capazes de identificar e se relacionar com coisas estranhas que os homens não poderiam ver. Um dia, ele decidiu expressar seu amor pelos gatos em um conto, ambientado em uma terra na qual uma lei proíbe os homens de matá-los.

Escrita em um único dia, em 15 de junho de 1920, e publicada pela primeira vez na edição de novembro do mesmo ano do periódico amador Tryout, Os Gatos de Ulthar contam como essa lei foi criada e estabelecida, descrevendo a terra de Ulthar, habitada por muitos gatos, mas também por um casal idoso que os odeia, matando todos os que adentram sua propriedade. Um dia, chega a Ulthar uma trupe mambembe, da qual um dos membros, o menino órfão Menes, tem como único amigo, exatamente, um gato. Um dia o gato desaparece, provavelmente morto pelo estranho casal. Isso leva a consequências lovecraftianas, que afetam toda Ulthar.

Não se sabe se essa já era a intenção de Lovecraft ao escrever o conto, mas Ulthar fica na Terra dos Sonhos, o que pode ser comprovado pela ida de Carter até lá em À Procura de Kadath. Um importante personagem dessa história, Atal, que também seria um dos protagonistas de Os Outros Deuses, aparece pela primeira vez em Os Gatos de Ulthar, ainda como uma criança. A própria Ulthar, aliás, seria o palco da história de Os Outros Deuses, que, como vimos semana passada, também foi colocada pela Iluminuras neste livro.

Assim como Os Outros Deuses, e como muitas outras histórias de Lovecraft, a principal inspiração literária para Os Gatos de Ulthar teria vindo das obras do autor Lord Dunsany, especialmente The Book of Wonder e Idle Days on the Yann. O nome do garoto órfão, Menes, teria sido tirado do título e protagonista de outra história de Dunsany, King Argimenes and the Unknown Warrior, embora alguns estudiosos atribuam o nome ao faraó egípcio de mesmo nome, citando como justificativa o fato de que a trupe mambembe, assim como os egípcios, venera deuses com corpos de homens e cabeças de animais.

Os Gatos de Ulthar seria uma das poucas histórias a aparecer duas vezes na revista Weird Tales, sendo republicada nas edições de fevereiro de 1926 e fevereiro de 1933. Mas sua mais curiosa republicação aconteceria no Natal de 1935, quando Lovecraft mandou imprimir 42 cópias em formato de panfleto, com as quais presenteou seus amigos mais próximos.

Hypnos (Hypnos) - Escrita em março de 1922 e publicada pela primeira vez na edição de maio de 1923 do periódico oficial da NAPA, The National Amateur - mesma edição na qual foi publicada Memória, que vimos aqui semana passada - Hypnos é narrada por um escultor sem nome, que um dia conhece um estranho com feições próximas às das esculturas gregas clássicas. Ambos rapidamente se tornam amigos, e, como ambos têm interesse no oculto e no sobrenatural, desenvolvem uma estranha rotina: durante o dia, o narrador esculpe, tendo o amigo como modelo; durante a noite, enquanto dormem, o amigo o guia por locais inimagináveis, acessíveis apenas através da imaginação humana, e que guardariam incríveis segredos. Essas jornadas se tornam cada vez mais frequentes e cada vez mais penosas - ao ponto de exigirem que os amigos se droguem antes de dormir - até que, um dia, como sempre, eles metem o nariz onde não deveriam, e têm de lidar com as macabras consequências.

O tema de um homem desconhecido agir como guia de outro pelo mundo dos sonhos já havia sido abordado por Lovecraft em Além da Barreira do Sono. Alguns argumentam também que o autor poderia estar passando por uma "fase grega" quando escreveu a história, já que a mais grega de todas as suas criações, A Árvore, é do mesmo ano que Hypnos - não por acaso, o nome do deus grego do sono.

Lovecraft dedicou essa história ao seu grande amigo Samuel Loveman, com o qual sonhava frequentemente, e que já o teria insiprado a escrever O Depoimento de Randolph Carter e Nyarlathotep. Loveman adoraria a história, e escreveria em uma carta a Lovecraft que ela era a melhor que ele havia escrito até então.

Nathicana (Nathicana) - Voltando a um tema recorrente, Lovecraft conta a história de um homem que, vivendo em um local fantástico, se apaixona por Nathicana - para alguns, uma mulher, para outros, um corpo celeste. O que isso tem de recorrente em Lovecraft? Bem, um dia, um evento faz com que ele seja transportado para outro mundo, e então a gente fica sem saber se ele estava sonhando, ou se está sonhando agora e a realidade era o mundo no qual ele conheceu Nathicana. Assim como nós, o pobre protagonista também confunde sonho e realidade.

Nathicana possui uma característica incomum: é um poema. Não é o único poema escrito por Lovecraft, mas foi o único incluído nos livros da Iluminuras. "Característica incomum", aliás, é uma qualidade que só se aplica nesse sentido: Lovecraft escreveu centenas de poemas durante sua vida, e, assim como seu ídolo Edgar Allan Poe, se via primariamente como um poeta, não como escritor. Eram seus contos em prosa que pagavam suas contas, porém, então ele tinha de continuar os escrevendo, mas o que ele gostava mesmo de escrever era poesia.

No início de sua carreira, aliás, Lovecraft só escrevia poesia. Sua obra mais antiga ainda existente, The Poem of Ulysses, escrito aos seis anos de idade, é um poema baseado na Ilíada e na Odisseia, composto de 88 versos em rimas internas. Foi somente quando se filiou à UAPA, a já citada associação norte-americana de escritores amadores, estimulado por outros autores, que ele começou a escrever regularmente em prosa. Ainda assim, não se pode afirmar que os textos em prosa constituíam a maior parte de suas obras: estima-se que Lovecraft tenha escrito mais de 300 poemas, muitos dos quais chegaram aos dias de hoje sem título. As obras em prosa simplesmente eram mais publicadas, então se tornaram mais conhecidas.

Como muito a respeito da poesia de Lovecraft se perdeu com o tempo, não se sabe quando ele teria escrito Nathicana, que foi publicado pela primeira vez na edição de março de 1927 do periódico The Vagrant, cujo editor era W. Paul Cook, escritor que Lovecraft conheceu na UAPA, que foi seu principal incentivador para que ele voltasse a escrever ficção em prosa, e que permaneceu seu amigo até o fim de sua vida.

Do Além (From Beyond) - Mais uma história de Lovecraft narrada em primeira pessoa por um protagonista sem nome - verdade seja dita, começar a história com algo do tipo "meu nome é" só para que o narrador tenha um nome é, de fato, uma coisa meio ridícula - Do Além apresenta o cientista Crawford Tillinghast, que formula a teoria de que diversas realidades se sobrepõem, mas os sentidos de seus habitantes só os permitem perceber a sua própria - em outras palavras, nossos próprios sentidos só nos permitiriam perceber a nossa realidade, que, na verdade, é uma de muitas realidades sobrepostas, todas ocorrendo simultaneamente sem afetar umas às outras. Desacreditado, Tillinghast dedica sua vida a construir uma máquina que, estimulando a glândula pineal, permite que seu usuário perceba todas as realidades possíveis.

Quando a máquina está finalmente pronta, Tillinghast chama o narrador para conhecê-la. Anos de descrédito e obstinação, porém, fizeram com que o cientista se tornasse um homem perigoso, e sua invenção, um risco para a humanidade.

Lovecraft escreveu Do Além ainda em 1920, mas, achando que não era uma de suas melhores histórias, decidiu não publicá-la. Apenas em 1934 a história seria oferecida à revista The Fantasy Fan, que a publicaria em sua edição de junho. De fato, a história é tida como melodramática em excesso e de enredo truncado, não figurando dentre as favoritas dos fãs e estudiosos.

A principal influência de Lovecraft para esta história foi um livro de não-ficção, Modern Science and Materialism, escrito por High Elliot em 1919, que discute exaustivamente as limitações de nossos sentidos. O fato de a máquina de Tillinghast agir sobre a glândula pineal é uma referência e uma alfinetada à teoria de René Descartes, que certa vez declarou que tal glândula seria a conexão entre o corpo físico e a alma imaterial, algo que não só Lovecraft como grande parte do corpo científico da época achou ridículo. O nome do cientista, Crawford Tillinghast, é a junção de dois sobrenomes tradicionais de Providence, que Lovecraft chegou a usar em O Caso de Charles Dexter Ward. Em um primeiro rascunho de Do Além, o nome do personagem era bastante diferente, Henry Annesley.

É importante registrar que a teoria de que nossos sentidos são incapazes de perceber corretamente a realidade que nos cerca seria o tema central de muitas das histórias seguintes de Lovecraft, incluindo A Casa Temida, Os Sonhos na Casa Assombrada e A Cor que Caiu do Céu.

O Festival (The Festival) - Escrita em outubro de 1923 e publicada pela primeira vez na edição de janeiro de 1925 da Weird Tales, essa foi a primeira história a trazer uma passagem completa do Necronomicon, o livro fictício mais famoso inventado por Lovecraft - e um dos mais famosos do mundo literário - bem como mais informações sobre sua história - no caso, que ele foi traduzido do árabe para o latim por alguém chamado Olaus Wormius. Também é considerada uma das primeira histórias dos "Mitos de Cthulhu", termo criado por August Derleth após a morte de Lovecraft para açambarcar todas as histórias que lidavam com criaturas ancestrais vivendo entre nós.

Ambientada durante o Natal, na cidade de Kingsport, próxima à famosa Arkham e que mais tarde seria citada ou serviria de cenário para outras histórias de Lovecraft, como A Estranha Casa entre as Brumas, O Festival acompanha um narrador mais uma vez sem nome, que volta à cidade de seus ancestrais para passar as festividades de acordo com seus costumes. O que ele encontra por lá, entretanto, é mais bizarro do que jamais poderia imaginar.

Lovecraft tirou sua inspiração para escrever O Festival de uma viagem que fez à cidade de Marblehead, Massachusetts, no Natal de 1922. Em uma de suas famosas cartas, ele comentaria que a viagem fora um dos momentos mais marcantes de sua vida, e que estar em um lugar tão profundamente em contato com o passado dos Estados Unidos lhe proporcionou uma emoção como nunca houvera sentido. O caminho que o narrador faz durante sua estada em Kingsport é o mesmo caminho turístico que Lovecraft fez em Marblehead, e a casa de dois andares e a igreja citadas na história realmente existem na cidade, com a mesma aparência.

As principais influências literárias sobre O Festival foram o livro de Margaret Murray, The Witch-Cult in Western Europe, que trata de rituais de feitiçaria em sociedades antigas, e o conto The Novel of the Black Seal, de Arthur Machen, que Lovecraft leu pouco após a viagem, deixando-o bastante impressionado.

A Cidade sem Nome (The Nameless City) - Nos desertos da Arábia, um viajante encontra uma misteriosa cidade abandonada, de aparência imensamente antiga. Explorando-a, ele acaba encontrando em seu interior vestígios de uma civilização reptiliana, mais antiga que a humanidade. A Cidade sem Nome é seu relato desesperado, atormentado por ter encontrado, mais uma vez, o conhecimento proibido.

A Cidade sem Nome é uma espécie de marco dentre as obras de Lovecraft. É a primeira na qual é citada uma passagem do Necronomicon, bem como o nome de seu "autor", o árabe louco Abdul Alhazred, embora ele não seja identificado propriamente como tal. Também foi uma das primeiras nas quais Lovecraft misturou elementos históricos, literários e fantásticos para criar seu ambiente de horror, técnica que empregaria diversas vezes no futuro - em um mesmo parágrafo, o narrador cita o Alhazred, o filósofo do século V Damascius, o escritor medieval Gautier de Metz, o rei persa Afrasiab, Lord Dunsany e o poeta irlandês Thomas Moore; noutro, a Cidade sem Nome é comparada tanto à histórica Chaldaea quanto à fictícia Sarnath.

Lovecraft escreveria em suas cartas que sua principal fonte de inspiração para escrever A Cidade sem Nome teria sido um sonho que tivera após ler uma história de Lord Dunsany, The Probable Adventure of the Three Literary Men, cuja última linha é citada por Lovecraft em seu conto. Outra fonte de inspiração comprovada seria a descrição da cidade árabe de Irem na Encyclopaedia Britannica, a qual Lovecraft copiaria em seu livro de rascunhos. Estudiosos apontam ainda semelhanças marcantes entre a história de Lovecraft e o romance No Centro da Terra, de Edgar Rice Burroughs, que com certeza incluiriam essa obra dentre as influências. A Cidade sem Nome, por sua vez, influenciaria diversas obras posteriores de Lovecraft, inclusive aquela que ele considerava sua obra-prima, Nas Montanhas da Loucura.

A Cidade sem Nome foi escrita no início de 1921, e publicada pela primeira vez no periódico amador The Wolverine em novembro do mesmo ano. Lovecraft considerava a história uma de suas favoritas, e, depois que começou a publicar profissionalmente, a ofereceu para diversas revistas, como Weird Tales, Fantasy Magazine e The Fantasy Fan sendo rejeitado por todas, exceto pela última, que faliu antes que pudesse publicá-la. A história acabaria publicada na Fanciful Tales no final de 1936, e na Weird Tales apenas após a morte de Lovecraft, em novembro de 1938.

Dentre os prováveis motivos para a recusa na publicação estava a pobreza de atmosfera: segundo muitos críticos, ao invés de criar uma atmosfera de pavor, Lovecraft, aqui, a descreve através do uso de inúmeros adjetivos empregados a todo momento pelo narrador, o que não envolve o leitor. Esse "defeito" costuma ser atribuído a uma característica pessoal de Lovecraft, que sempre ficava muito impressionado e fascinado diante de antiguidades, e pode ter tentado expressar, através do narrador, como se sentiria diante de uma cidade inteira de uma época imemorial.

A Procura de Iranon (The Quest of Iranon) - Iranon é o príncipe da grande cidade de Aira, que vaga pelo mundo tentando reencontrar seu lar, de onde saiu por motivos inexplicados. A história começa quando ele chega à cidade de Teloth, onde tenta se estabelecer como músico e contador de histórias, ofícios que desempenha excepcionalmente bem. O povo de Teloth, entretanto, não está interessado, e quer que ele arrume um emprego comum. Desiludido, Iranon decide deixar a cidade, e no caminho conhece o menino Romnod, que sugere que eles partam em direção à cidade de Oonai, que aprecia as artes e certamente acolherá Iranon. Nesta jornada, Iranon descobrirá fatos de seu próprio passado dos quais ele mesmo não se lembrava.

Lovecraft escreveu este conto no início de 1921. Originalmente, ele planejava ambientá-lo na mesma época e local de Polaris, mas fatos narrados por Iranon - como a queda de Sarnath - fazem com que os estudiosos o ambientem no mundo dos sonhos do Dream Cycle. A Procura de Iranon também é uma tentativa por parte de Lovecraft de imitar o estilo de Lord Dunsany, um de seus autores preferidos.

Apesar de ser considerada uma boa imitação, A Procura de Iranon é considerada uma história fraca, com um final decepcionante, embora nem de todo inexplicável. As revistas da época também a consideraram fraca, tanto que Lovecraft só conseguiu publicá-la em 1935, na edição de julho da revista Galleon.

O Rastejante Caos (The Crawling Chaos) - Esse conto foi escrito a quatro mãos, por Lovecraft e pela poetisa Winifred V. Jackson no final de 1920, e publicado em um periódico da UAPA dedicado a contos escritos por mais de um autor, The United Cooperative, edição de abril de 1921. Foi o segundo conto escrito a quatro mãos por Lovecraft e Jackson, que dois anos antes haviam escrito O Prado Verdejante. Sob sugestão de Lovecraft, como Jackson costumava assinar suas obras com o pseudônimo Elizabeth Berkeley, ambos os contos foram creditados a Elizabeth Berkeley e Lewis Theobald, Jr.

O narrador de O Rastejante Caos é um homem doente, cujo tratamento envolve grandes doses de ópio. Sob o efeito da droga, ele se imagina em um local onírico e fantástico, que pouco a pouco está sendo destruído por uma força maligna. Apesar de todo o seu pavor, ele consegue escapar de tal força, mas o que viu nesse local, ao acordar do delírio, faz com que ele passe a viver temeroso de que aqueles eventos possam ser verdadeiros.

Lovecraft e Jackson eram namorados na época em que os contos foram escritos. Não se sabe muitos detalhes sobre como o romance teria começado ou se desenvolvido, mas terminou abruptamente em 1921, quando Lovecraft viajou para uma convenção de jornalistas amadores em Boston e se apaixonou perdidamente e à primeira vista por Sonia Greene. Esse fato chocou muitos de seus amigos, que consideravam que a sensível poetisa Jackson era um par mais adequado para Lovecraft que Greene, uma vendedora de chapéus sete anos mais velha que ele.

Vale citar como curiosidade que The Crawling Chaos (normalmente traduzido para "O Caos Rastejante") é a principal alcunha de Nyarlathotep. Como essa história não tem nada a ver com ele, imagina-se que Lovecraft tenha gostado tanto do título que decidiu incorporá-lo à descrição de um de seus personagens.

Nas Muralhas de Eryx (In the Walls of Eryx) - No futuro, a humanidade chegará ao planeta Vênus, e lá descobrirá estranhos cristais que servem como forma de energia. Esses cristais são tão potentes que um do tamanho de um ovo de galinha consegue suprir as necessidades energéticas de uma cidade inteira por um ano. Imediatamente, é criada uma empresa, a Venus Crystal, responsável por obter tais cristais e trazê-los de volta à Terra. Só há um problema: os cristais são venerados como objetos de culto religioso pela população nativa do planeta, uma estranha raça de homens-répteis. Para eles, roubar os cristais é sacrilégio, e justifica o assassinato dos humanos insolentes que estão invadindo seu planeta. Ainda assim, o valor dos cristais justifica os riscos.

O protagonista de Nas Muralhas de Eryx é Kenton J. Stanfield, funcionário da Venus Crystal enviado ao planeta para recolher alguns cristais. A história é o seu relatório de uma ocasião na qual, por acaso, encontrou o maior cristal de todos, maior que um punho, tamanho que nenhum terráqueo jamais havia visto. Aparentemente no meio do nada, em um local conhecido como Planalto Ericiniano - ou simplesmente Eryx - o cristal está, na verdade, dentro de uma construção totalmente invisível. Seriam os primitivos homens-répteis de Vênus capazes de construir tal estrutura, ou teria sido ela colocada ali por uma outra raça, ancestral e desconhecida?

Nas Muralhas de Eryx é uma história bastante incomum em se tratando de Lovecraft, já que se assemelha mais à ficção científica pulp de autores contemporâneos a ele, como Edgar Rice Burroughs, que às aventuras oníricas que Lovecraft preferia. Esse fato, porém, tem uma explicação simples: a história foi escrita a quatro mãos por Lovecraft e Kenneth J. Sterling, a partir de uma ideia de Sterling, que se baseou na história The Monster-God of Mamurth, de Edmond Hamilton, publicada na edição de agosto de 1926 da Weird Tales, e que girava em torno da descoberta de uma construção invisível no meio do deserto do Saara.

Sterling ainda era um aluno do Ensino Médio quando conheceu pessoalmente Lovecraft, escritor que já admirava pelo seu trabalho na Weird Tales, em meados de 1935. Lovecraft se interessou por alguns escritos que o rapaz lhe mostrara, e se comprometeu a dar tratamento a um de seus rascunhos para que também fosse publicado. No início de 1936, Sterling entregaria a Lovecraft um rascunho de entre 6.000 e 8.000 palavras. Infelizmente, esse rascunho não sobreviveu até hoje, mas estudiosos estimam que a maior parte da história - que tem mais de 12.000 palavras - seja obra de Lovecraft, que teria aproveitado muito pouco do material original de Sterling.

Além de aproveitar para inserir seus temas preferidos, em especial o do conhecimento proibido, Lovecraft teria partido de ideias de Sterling para discutir temas como preconceito, ganância e intolerância religiosa. Curiosamente, fugindo ao seu estilo, Lovecraft também inseriu piadas internas nas formas dos nomes das criaturas e personagens: o protagonista, Kenton J. Stanfield, é claramente uma referência a Kenneth J. Sterling, bem como os sifclighs à Science Fiction League, organização estudantil da qual Sterling fazia parte; o "sinuoso ackman" e a "erva efjeh" são referências a Forest J. Ackerman, correspondente com quem Lovecraft travou uma acirrada briga por discordar de sua opinião sobre uma história escrita por seu amigo Clarke Ashton Smith; as necrófagas moscas farnoth foram batizadas em "homenagem" a Farnsworth Wright, editor da Weird Tales; e os ugrats ao editor de outra revista, a Wonder Stories, Hugo Gernsback, a quem Lovecraft chamava pelas costas de "Hugo the Rat".

Já o Planalto Ericiniano não foi invenção de Lovecraft ou Sterling, sendo um local real no planeta Vênus, batizado em homenagem a Eryx, um dos filhos da deusa Vênus na mitologia greco-romana. A descrição do planeta por Lovecraft e Sterling - uma imensa floresta tropical de clima quente e úmido, com atmosfera tóxica que exige o uso de máscaras mas não de roupas pressurizadas, bastando roupas protetoras de couro, meio parecido com a Pandora de Avatar - pode ser considerada curiosa hoje, mas estava de acordo com o que se conjecturava sobre o planeta na época - somente em 1956 astrônomos fizeram descobertas sobre a real aparência do planeta, e somente em 1968 se descobriu que sua pressão atmosférica é 90 vezes maior que a da Terra.

Talvez por conta das piadas internas, talvez por não ser o que se esperava de uma história de Lovecraft, Nas Muralhas de Eryx foi rejeitada por nada menos que seis revistas: Weird Tales, Astounding Stories, Blue Book, Argosy, Wonder Stories e Amazing Stories. Foi somente após a morte de Lovecraft que a Weird Stories decidiu publicá-la, em sua edição de outubro de 1939. Sterling recebeu 120 dólares pela história, os quais dividiu com a tia sobrevivente de Lovecraft - em agradecimento por Lovecraft ter insistido em creditar a história a ambos todas as vezes em que a ofereceu.

Encerrado com os Faraós (Imprisoned with the Pharaohs) - Assim como Nathicana, essa história possui uma característica que a diferencia das demais selecionadas pela Iluminuras para sua coleção: é a única que Lovecraft escreveu como ghost writer, ou seja, para ser publicada como se tivesse sido escrita por outra pessoa. E essa outra pessoa era ninguém menos que o grande mágico Harry Houdini.

Houdini era amigo pessoal de J.C. Henneberger, dono da editora que publicava a revista Weird Tales. No início de 1924, Houdini contou a Henneberger uma história segundo ele verídica, de uma de suas viagens ao Egito, quando foi surpreendido por árabes, amarrado, amordaçado e abandonado em um templo sob as pirâmides, do qual teve de usar toda a sua habilidade de escapista para conseguir sair. Henneberger achou que a história daria um excelente conto para a revista, e contratou Lovecraft, um dos escritores que mais frequentemente enviavam material para a publicação, para dar um tratamento literário a ela. Henneberger apostava tanto na história e confiava tanto em Lovecraft que lhe pagou, adiantado, 100 dólares pelo trabalho - uma imensa fortuna para a época, na única vez em que Lovecraft recebeu adiantado por uma história.

Empolgado com a quantia e com a confiança, Lovecraft pôs-se a pesquisar tudo o que podia sobre o Egito, comprando guias de viagem e visitando diversas vezes a coleção egípcia do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque. Enquanto pesquisava, Lovecraft chegou à conclusão de que a história, contada como verdadeira por Houdini, possuía inconsistências que a revelavam como inventada. A partir de então, ele se sentiu livre para concluí-la da forma como desejasse - o que significava adicionar seus elementos preferidos, o conhecimento proibido e o horror ancestral desconhecido.

Lovecraft escreveria a história entre fevereiro e março de 1924, e lhe daria o título de Sob as Pirâmides (Under the Pyramids). Quando da publicação, Henneberger achou que esse não era um bom título, e o mudou para Encerrado com os Faraós, que passava uma ideia maior de ocultismo e mistério. A história foi publicada em três partes, nas edições de maio, junho e julho de 1924 da Weird Tales, e atribuída a Houdini, como se o próprio mágico a tivesse escrito. Após a morte de Lovecraft, a Weird Tales decidiu republicá-la de uma só vez e com os devidos créditos, o que fez na edição de junho de 1939.

O protagonista de Encerrado com os Faraós é um mágico, que visita o Egito com sua esposa. Isso jamais é dito no texto, mas, como a história é narrada em primeira pessoa e atribuída a Houdini, fica claro que ele mesmo é o protagonista. Na primeira parte, Houdini e sua esposa visitam vários locais turísticos, especialmente as pirâmides, e Lovecraft faz uma descrição detalhada e cativante do cenário. Na segunda, durante uma nova visita ao local, sozinho, Houdini é capturado por árabes que desdenham de sua capacidade como escapista, alegando que sua mágica não é nada perto dos poderes ancestrais do Egito. Esses árabes o amordaçam, vendam, amarram e o descem por um comprido poço até uma galeria subterrânea. Utilizando-se de suas habilidades de escapista, Houdini consegue se livrar das amarras, mas, enquanto procura um caminho de volta à superfície, acaba descobrindo um segredo aterrador.

Encerrado com os Faraós é famosa dentre os estudiosos de Lovecraft por um fato inusitado: quando foi contratado para escrevê-la, Lovecraft estava em meio aos preparativos de seu casamento com Sonia Greene, que ocorreria em Nova Iorque em 3 de março de 1924. Ele faria um rascunho da primeira metade da história, à mão, que perderia durante a viagem de trem entre Providence e Nova Iorque. Lovecraft chegou a colocar um anúncio no jornal de Providence relatando a perda do manuscrito e pedindo sua devolução, mas esta jamais ocorreu, o que o levou a crer que ninguém o tivesse encontrado. Preocupado com o prazo de entrega, Lovecraft chegou a datilografar uma parte da história antes de seguir para a igreja e tomar parte em seu próprio casamento, e outra parte no escritório do estenógrafo do hotel da Filadélfia no qual ele e Sonia passavam sua lua de mel.

O sacrifício, aparentemente, valeu a pena: tanto a Weird Tales quanto o próprio Houdini se disseram muito impressionados com a história, considerada hoje por muitos críticos e estudiosos como uma das melhores que Lovecraft escreveu em sua carreira.

E, com essa obra-prima, concluímos mais uma série aqui no átomo. Entretanto, como eu disse lá no primeiro post, o de A Cor que Caiu do Céu, esses não foram todos os contos escritos por Lovecraft, apenas aqueles lançados no Brasil nos seis livros da Editora Iluminuras. Mas não se chateiem por nem todos os contos terem sido abordados, pois é bem capaz de eu falar sobre mais alguns em um futuro próximo. Talvez assim que eu descobrir que nome eu vou dar para o post...

Série Lovecraft

A Maldição de Sarnath
Parte 2

4 comentários:

  1. Anônimo22:37:00

    Paraaabéns cara, ouvi falar do Lovecraft a pouco tempo más já estou totalmente fascinada com o autor um dos meus favoritos gostaria muitoo de saber onde vc comprou os livros para ter uma referência. Parabéns noota 10000

    Ray

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  2. Anônimo14:11:00

    Eu gostaria de saber onde você comprou os livros e si há opções diferentes de editoras estou querendo comprar os livros e gostaria de algumas dicas.


    Ray

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  3. Desculpe a demora na resposta, estava viajando e praticamente acabei de chegar.

    Olha, eu comprei esses livros há muito muito tempo, coisa de uns 15 anos, então não lembro onde foi, e nem sei se adiantaria lembrar, já que pode ser que essas lojas já não os tenham mais.

    O que eu sei é que praticamente todas as livrarias online vendem esses livros da Iluminuras. Esses são os que eu gosto mais, mas também há obras de Lovecraft publicadas em dois livros da Editora L&PM, que também são legais, e em uma série da Editora Hedra, que eu nunca li então não posso emitir opinião.

    Espero que tenha ajudado. Abraços!

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  4. Anônimo17:27:00

    Então, oque eu queriia saber era isso mesmo sobre as editoras,voçê ajudou muitoo... Parabéns pelo blog.Adorei tudo sobre o H.P. LoveCraft.

    Bjooos
    Ray

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